O Príncipe de Nassau - Unama

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www.nead.unama.br tal modo os impressionou que a não molestaram. Foi este talvez o exemplo mais singular que jamais se recordou do poder da beleza" 45 . Já os bugres, em redor, ululavam ferozmente o tacape cm punho. Um deles, amplo e forte, beiço rachado, vistoso cocar de araras na cabeça, bradou: — Paraopeba cativou o branco. É o dono. Paraopeba vende o cativo? Paraopeba fitou-o. Era Pero Poti. Estavam ali os dois formidáveis guerreiros. Eram os maiores e os mais famosos do sertão. Mas Paraopeba invejava Poti, porque Poti possuía um cachorro soberbo, único. Por isso, sem hesitar, Paraopeba falou: — Paraopeba tem o cativo mais belo dos brancos. Poti o cachorro mais belo das tabas. Paraopeba dá o cativo para Poti. Poti da o cachorro para Paraopeba. Os dois índios olharam-se. Houve um rápido silêncio. Poti ergueu os olhos para Carlota. Fitou-a bem. Era linda! O selvagem não titubeou: — Poti dá o cachorro para Paraopeba! Ali, diante dos bugres, os dois guerreiros fizeram o negócio: Carlota foi vendida por um cachorro... 46 . Desesperos e alegrias Iam apavorantes as coisas públicas no Recife. João Fernandes apertara tremendamente o cerco. O assédio era cruel. Os flamengos não recebiam a mais pequenina coisa da terra. Pão, quando agora o tinham. Comiam-no vindo de Holanda. Água traziam-nas os galeões mercantes que aportavam. Não havia mais lenha. De repente, para coroa daquilo, faltou absolutamente tudo. Nem uma nau, nem um caravelão, nem um socorro dos Estados! Os sitiados desesperaram. Houve um momento de enlouquecer. Um momento trágico. Acabaram-se todos os viveres. Os belgas — que fazer? — atiraram-se aos cavalos. Em breve, no Recife, não ficou um só cavalo. E nada de socorros de Holanda! A fome, cada vez mais dura, premia-os. Os sitiados atiraramse aos cães. Acabaram-se os cães. Atiraram-se aos gatos. Acabaram-se os gatos! E nada de socorros... Os sitiantes, implacáveis, continuavam a rondar os muros noite e dia, com ferocidade aterradora. Não houve remédio: os sitiados atiraram-se aos ratos e os morcegos! Acabaram-se os ratos e os morcegos... Era necessário capitular. Os de Holanda sentiam claro a sua desgraça. Perderam todas as esperanças de salvar-se. Mas pungia-os fundo o abandonar às mãos do inimigo tanta obra de preço. Começaram, então, sem dó, a queimar a Cidade Maurícia. Foram-se, uma a uma, as casas de Giles Van Ufel, o grande proprietário. Foram-se, um a um, os vastos depósitos de açúcar. Foi-se toda a Rua dos Judeus. Foi-se a sinagoga. Foi-se... Ali, cada dia, sinistro e fúnebre, era um grande incêndio que avermelhava o céu. E cada dia, com mais desespero e ânsia, era um sôfrego fincar de olhos pelo mar afora. Nada de socorros de Holanda! 45 Southey. 46 Frei Rafael de Jesus, Castrioto Lusitano, livro 6: "A húa donzella de gentil forma venderam a hú indio por um cão de caça...". 118

www.nead.unama.br Até que enfim, naquela desolação, os sitiados tomaram uma resolução selvagem. Era noitinha. Caía sobre as coisas mansa serenidade. Tudo quieto. De súbito. dentro dos muros, irromperam clarões sanguejantes. Grossas golfadas de fogo enovelaram-se no ar. Estrondos, ruir de coisas, labaredas imensas, fumarada. Que era aquilo? Os brasileiros lançaram este grito lancinante: — O Palácio de Friburgo! Sim, era o Palácio de Nassau. Os flamengos não tiveram comiseração. Deitaram fogo ao seu maior carinho. Apagaram o traço mais varonil da sua passagem na América. O monumento único, o grande capricho do Príncipe, a maravilha da época, lá estava a crepitar nas chamas, desabando, desfazendo-se, morrendo numa pouca de escombros e de cinzas. Aquele aniquilar-se, o fim daquele esplendor, era bem o símbolo do domínio holandês no Brasil... 47 . Foi então, naqueles dias lúgubres, que varejou pelo Recife a dentro um mensageiro de Uruassu. Trouxe a notícia formidável. Contou a carnagem, as barbaridades arrepiantes, o extermínio... D. Ana, que ouvia ansiosa a narrativa, interrogou bruscamente: — Morreram todos? — Todos! Ou antes: escapou apenas uma mulher! — Como? — Sim, dona! Uma rapariga. Ouvi isso de Jacob Rabbi. É uma tal Carlota... D. Ana, agarrando o mensageiro, sacudiu-o com violência: — Carlota? Esbraseava, numa agitação, pôs-se a cascatear perguntas dardejantes; — Mas que houve? Por quê não a mataram? Onde está a moça? O mensageiro explicou singelamente: — Com Pero Poti. Paraopeba vendeu-a por um cachorro. D. Ana mordia o lábio. O sangue fervia-lhe nas veias. Ah, era preciso ter Carlota entre as mãos! Tê-la no Recife! Não esperou mais nada. Chamou o Bastião: — Monte o primeiro cavalo que achar e voe ao acampamento de Jacob Rabbi. Procure o bugre Poti. Saiba onde anda Carlota e traga-me a rapariga. Tragame de qualquer jeito! Ouviu? De qualquer jeito! Aqui tem você uma bolsa cheia de dobrões. Pague o índio tudo o que ele pedir... — Fique sussegada, D. Ana! A moça vem pará na sua mão... 47 Diário do Holandês curioso", pág. 13: "Dia 17 Começamos a demolir as casas da Cidade Maurícia. Eis um espetáculo que fazia dó. A pobre gente fugia etc., etc...." Pág. 131: "Dia 18. Continuou a demolição das casas. Nesta data foram também abatidas e queimadas as casas e o belo Palácio de Friburgo, residências de Sua Exa. o Príncipe Maurício, edificado em 1640. Lamentável espetáculo! etc." 119

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Até que enfim, naquela <strong>de</strong>solação, os sitiados tomaram uma resolução<br />

selvagem.<br />

Era noitinha. Caía sobre as coisas mansa serenida<strong>de</strong>. Tudo quieto. De<br />

súbito. <strong>de</strong>ntro dos muros, irromperam clarões sanguejantes. Grossas golfadas <strong>de</strong><br />

fogo enovelaram-se no ar. Estrondos, ruir <strong>de</strong> coisas, labaredas imensas, fumarada.<br />

Que era aquilo? Os brasileiros lançaram este grito lancinante:<br />

— O Palácio <strong>de</strong> Friburgo!<br />

Sim, era o Palácio <strong>de</strong> <strong>Nassau</strong>. Os flamengos não tiveram comiseração.<br />

Deitaram fogo ao seu maior carinho. Apagaram o traço mais varonil da sua<br />

passagem na América. O monumento único, o gran<strong>de</strong> capricho do <strong>Príncipe</strong>, a<br />

maravilha da época, lá estava a crepitar nas chamas, <strong>de</strong>sabando, <strong>de</strong>sfazendo-se,<br />

morrendo numa pouca <strong>de</strong> escombros e <strong>de</strong> cinzas. Aquele aniquilar-se, o fim daquele<br />

esplendor, era bem o símbolo do domínio holandês no Brasil... 47 .<br />

Foi então, naqueles dias lúgubres, que varejou pelo Recife a <strong>de</strong>ntro um<br />

mensageiro <strong>de</strong> Uruassu. Trouxe a notícia formidável. Contou a carnagem, as<br />

barbarida<strong>de</strong>s arrepiantes, o extermínio... D. Ana, que ouvia ansiosa a narrativa,<br />

interrogou bruscamente:<br />

— Morreram todos?<br />

— Todos! Ou antes: escapou apenas uma mulher!<br />

— Como?<br />

— Sim, dona! Uma rapariga. Ouvi isso <strong>de</strong> Jacob Rabbi. É uma tal Carlota...<br />

D. Ana, agarrando o mensageiro, sacudiu-o com violência:<br />

— Carlota?<br />

Esbraseava, numa agitação, pôs-se a cascatear perguntas dar<strong>de</strong>jantes;<br />

— Mas que houve? Por quê não a mataram? On<strong>de</strong> está a moça?<br />

O mensageiro explicou singelamente:<br />

— Com Pero Poti. Paraopeba ven<strong>de</strong>u-a por um cachorro.<br />

D. Ana mordia o lábio. O sangue fervia-lhe nas veias. Ah, era preciso ter<br />

Carlota entre as mãos! Tê-la no Recife! Não esperou mais nada. Chamou o Bastião:<br />

— Monte o primeiro cavalo que achar e voe ao acampamento <strong>de</strong> Jacob<br />

Rabbi. Procure o bugre Poti. Saiba on<strong>de</strong> anda Carlota e traga-me a rapariga. Tragame<br />

<strong>de</strong> qualquer jeito! Ouviu? De qualquer jeito! Aqui tem você uma bolsa cheia <strong>de</strong><br />

dobrões. Pague o índio tudo o que ele pedir...<br />

— Fique sussegada, D. Ana! A moça vem pará na sua mão...<br />

47 Diário do Holandês curioso", pág. 13: "Dia 17 Começamos a <strong>de</strong>molir as casas da Cida<strong>de</strong> Maurícia. Eis um<br />

espetáculo que fazia dó. A pobre gente fugia etc., etc...." Pág. 131: "Dia 18. Continuou a <strong>de</strong>molição das casas.<br />

Nesta data foram também abatidas e queimadas as casas e o belo Palácio <strong>de</strong> Friburgo, residências <strong>de</strong> Sua Exa. o<br />

<strong>Príncipe</strong> Maurício, edificado em 1640. Lamentável espetáculo! etc."<br />

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