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De novo, bruto e bárbaro, bate em cheio na outra ná<strong>de</strong>ga. Estronda um uivo<br />
mais doido, mais lancinante. Borralho continua impassível. Mergulha outra vez a<br />
mecha na cal<strong>de</strong>irada. E outra vez, na barraca, estruge o berro do miserável...<br />
Denso cheiro <strong>de</strong> carne queimada empesta o ar. O flamengo tem os olhos<br />
<strong>de</strong>svairados. Mas Simão Borralho é cruel. Não cessa. O martírio do holandês<br />
prossegue, implacável e fúnebre. De instante a instante, durante a vasta noite, foi<br />
aquela mesma cena bárbara. Foi aquele mesmo trágico queimar <strong>de</strong> carne humana.<br />
Não houve um pedaço do <strong>de</strong>sgraçado em que não batesse a estopa <strong>de</strong> breu. O<br />
corpo ficou-lhe em carne viva. Era uma chaga só.<br />
João Blaar não resistiu. Pela madrugada, muito ao <strong>de</strong> leve, sentiu o toque da<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira mechada. Gemeu palidamente. Cerrou os olhos. Desmaiou...<br />
Desmaiou e nunca mais se <strong>de</strong>spertou.<br />
No outro dia, pela Capitânia inteira, estrondou a notícia jubilosíssima: João<br />
Blaar. o gran<strong>de</strong> facínora, morrera na viagem à Bahia... 37 .<br />
Antônio Cavalcanti<br />
O Bastião era um alcoviteiro cínico. Não se cingia aquela alma diabólica em<br />
enredar no acampamento <strong>de</strong> João Fernan<strong>de</strong>s. Transbordava-se. Conhecedor da<br />
terra como ninguém, sutilíssimo em artimanhas, o negro tinha o <strong>de</strong>scoro <strong>de</strong> carrear à<br />
Cida<strong>de</strong> Maurícia todas as novida<strong>de</strong>s do Exército Libertador. Mal os holan<strong>de</strong>ses, na<br />
Casa-Forrte, compravam a vida com a entrega das mulheres, já o escravo se<br />
esgueirava pela casa <strong>de</strong> D. Ana Pais. A pernambucana ouviu-o petrificada! E<br />
exclamou com pasmo:<br />
pai...<br />
— Escaparam todas?<br />
— Todas!<br />
— E Carlota?<br />
— Partiu prô Rio Gran<strong>de</strong>. Rodrigo foi escondê ela em Uruassu, na casa do<br />
A perigosa dama não escutou mais. Partiu, trêmula, para o Palácio <strong>de</strong><br />
Friburgo. Chegou, galgou as escadarias, embarafustou-se pelo salão a<strong>de</strong>ntro. Os<br />
três do Supremo Conselho haviam se reunido em sessão urgente. Estavam pálidos.<br />
Hamel, o olho chamejante, dizia com gestos <strong>de</strong>satados:<br />
— Blaar, preso! Hous, preso! Os oficiais, presos! Oitocentos soldados<br />
presos! Raios me partam! Com mil bombas! Isto é <strong>de</strong>rrota nunca vista no Brasil...<br />
Agitado, crispando os punhos, estacava a cada passo diante dos<br />
companheiros:<br />
— Por <strong>de</strong>sgraça, senhores, não é só a <strong>de</strong>rrota. Ainda há mais! E a ajuda do<br />
Viso-Rei? E André Vidal <strong>de</strong> Negreiros? Que dizem Vosmecês do biltre? Que cão!<br />
Os três homens entreolhavam-se. Meneavam a cabeça. Murmuravam todos<br />
com <strong>de</strong>sconsolo:<br />
— Estamos perdidos! Estamos perdidos!<br />
37 João Blaar foi o único que morreu nessa viagem. Todos os <strong>de</strong>mais chegaram sãos e salvos. Vi<strong>de</strong> as curiosas<br />
Memórias <strong>de</strong> Matheus Van Broc, nas quais esse oficial holandês <strong>de</strong>ixou as peripécias da jornada.<br />
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