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algumas visões da antiguidade - Livraria Martins Fontes

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<strong>algumas</strong> <strong>visões</strong><br />

<strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de<br />

Coleção Estudos Clássicos<br />

Volume 2<br />

organizadores<br />

Paulo <strong>Martins</strong><br />

Henrique F. Cairus<br />

João Angelo Oliva Neto


Sumário<br />

Siglas de autores e obras 7<br />

Prolegômenos à visão 11<br />

Paulo <strong>Martins</strong> e Henrique Cairus<br />

Imagines Physiognomonicae:<br />

a repercussão de lições de fisiognomonia em epigramas de Marcial 14<br />

Alexandre Agnolon<br />

Eikones de Filóstrato, o Velho: um método 31<br />

Rosângela Santoro de Souza Amato<br />

A visão de arte em De signis, de Cícero: uma reflexão tradutológica 46<br />

Anna Carolina Barone<br />

A imagem de Domiciano em Marcial e em moe<strong>da</strong>s de seu tempo 62<br />

Fábio Paifer Cairolli<br />

De Visu hipocrático 88<br />

Henrique Cairus<br />

Júlio César por ele mesmo 106<br />

G<strong>da</strong>lva Maria <strong>da</strong> Conceição<br />

O retrato de Aníbal entre dois gêneros historiográficos:<br />

seu êthos em Lívio e Nepos 118<br />

Cynthia Helena Dibbern<br />

A fraqueza de Flaco no Livro dos Epodos 133<br />

Alexandre Pinheiro Hasegawa


Uma leitura metapoética de Amores, 1,5 – o retrato <strong>da</strong> Elegia 145<br />

Cecilia Gonçalves Lopes<br />

Reflexões sobre duas dimensões <strong>da</strong>s imagines ou eikónes 151<br />

Paulo <strong>Martins</strong><br />

A imagem <strong>da</strong> criança e uma criança destituí<strong>da</strong> de imagem:<br />

considerações sobre a infância nas cartas de Plínio o Jovem 160<br />

Marly de Bari Matos<br />

Bibliotextos: o livro e suas imagens na Antigui<strong>da</strong>de 177<br />

João Angelo Oliva Neto<br />

Imagem verbal – ocorrências <strong>da</strong> écfrase na Enei<strong>da</strong> 188<br />

Melina Rodolpho<br />

Estratégias polêmicas de persuasão<br />

nos scriptores artium do séc. i a.C. 211<br />

Adriano Scatolin<br />

Militia Amoris: uma figura do Amor 221<br />

Lya Valéria Grizzo Serignolli<br />

Sobre os autores 230


Siglas de autores e obras<br />

obras de referência<br />

ap Antologia Palatina<br />

delg P. Chantraine, Dictionnaire Étymologique<br />

de la Langue Grecque<br />

dell A. Ernout et A. Meillet, Dictionnaire Étymologique<br />

de la Langue Latine<br />

lsj H.G. Liddell, R. Scott and H. S. Jones,<br />

A Greek-English Lexicon<br />

ls C. T. Lewis and C. Short, A Latin Dictionary<br />

old P. G. W. Glare, Oxford Latin Dictionary<br />

obras gregas<br />

Arist., en<br />

Poet.<br />

Aristóteles, Ética a Nicômaco<br />

Poética<br />

Hdt. Heródoto, Histórias<br />

[Hes.], Sc. [Hesíodo], Escudo<br />

Hom., Il. Homero, Ilía<strong>da</strong><br />

[Hom.], In Ven. [Homero], Hino Homérico à Afrodite<br />

Phil., Im. Filóstrato, o Velho, Imagens<br />

Plu., Cic. Plutarco, Cícero<br />

Lic.<br />

Licurgo<br />

Luc.,<br />

Lúculo<br />

Pom.<br />

Pompeu<br />

Plat., Prot. Platão, Protágoras<br />

Plb. Políbio, História<br />

Sapph. Safo, Fragmentos<br />

Tuc. Tucídides, História <strong>da</strong> Guerra do Peloponeso<br />

7


obras latinas<br />

8<br />

Cat., Carm. Catulo, Carmina<br />

Caes., Civ.<br />

Gal.<br />

Cic., Ad Att.,<br />

Brut.<br />

Cat.<br />

CM.<br />

De Amic.<br />

De Div.<br />

De Fin.<br />

De Nat.<br />

De Off.<br />

De Or.<br />

De Part.<br />

De Rep.<br />

Or.<br />

Inv.<br />

In Ver.<br />

Tusc<br />

Júlio César, Guerra Civil<br />

Sobre a Guerra <strong>da</strong> Gália<br />

Cícero, Correspondência a Ático<br />

Bruto<br />

Contra Catilina<br />

Sobre a Velhice<br />

Sobre a Amizade<br />

De Divinatione<br />

De Finibus<br />

Sobre a Natureza dos Deuses<br />

Sobre os Deveres<br />

Sobre o Orador<br />

Sobre as Partições <strong>da</strong> Oratória<br />

Sobre a República<br />

Orador<br />

Sobre a Invenção<br />

Contra Verres<br />

Tusculanas<br />

Her. [Anônimo], Retórica a Herênio<br />

Hor., Ars.<br />

Ep.<br />

Epod.<br />

Horácio, Arte Poética<br />

Epístolas<br />

Epodos<br />

Hyg., Higino, Fábulas<br />

Mart. Marcial, Epigramas<br />

Nep., Ag. Cornélio Nepos, Agesilau<br />

Han.<br />

Aníbal<br />

Ov., Am. Ovídio, Amores<br />

Physiog [Anônimo], Livro sobre a Fisiognomonia<br />

Petr., Satyr. Petrônio, Satíricon<br />

Pl., Ep.<br />

Plínio, o Jovem, Epístolas<br />

Paneg.<br />

Panegírico<br />

Prop. Propércio, Elegias


Quint., Inst. Quintiliano, Instituições Oratórias<br />

Sal., Jug. Salústio, A Guerra contra Jugurta<br />

Sen., Ep. Sêneca, Cartas a Lucílio<br />

Suet.,Cal.<br />

Dom.<br />

Suetônio, Calígula<br />

Domiciano<br />

Liv. Tito Lívio, Ab Urbe Condita<br />

Tac., Agric.<br />

Ann<br />

Hist.<br />

Dial.<br />

Tácito, Vi<strong>da</strong> de Agrícola<br />

Anais<br />

Histórias<br />

Diálogo dos Oradores.<br />

Tib. Tibulo, Elegias<br />

Verg., A. Virgílio, Enei<strong>da</strong>.<br />

9


Prolegômenos à visão<br />

Paulo <strong>Martins</strong> e Henrique Cairus<br />

O que viam e como viam os gregos e os romanos, ou, ain<strong>da</strong>, como diziam o que<br />

viam, o que julgavam ver e o que imaginavam ver ou poder ver, mesmo que não<br />

vissem: eis o nosso tema neste livro que apresentamos à sua apreciação.<br />

A visão era o sentido nuclear em nossa Cultura Clássica grega e romana. Por<br />

isso, frequentemente os antigos chamavam de “visíveis” to<strong>da</strong>s as coisas que eram<br />

apreendi<strong>da</strong>s por quaisquer sentidos.<br />

Nosso livro, no entanto, cui<strong>da</strong> de uma via de mão dupla: se vamos dos olhos<br />

ao texto, vamos também do texto aos olhos. Afinal, privilegiando o tema <strong>da</strong> écfrase,<br />

fiamo-nos nos autores <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Sofística, que parecem estar de acordo com Aftônio<br />

(Progymnásmata, 10,36,22), quando este diz ἔκφρασίς ἐστι λόγος περιηγηματικὸς<br />

ὑπ’ ὄψιν ἄγων ἐναργῶς τὸ δηλούμενον (“écfrase é o lógos descritivo que coloca sob<br />

a vista, de forma evidente, o que é explicitado”).<br />

Seguimos, no livro, um roteiro que se inicia com uma apresentação, feita por<br />

Henrique Cairus, do breve tratado hipocrático De uisu (Acerca <strong>da</strong> visão), que, embora<br />

diminuto, tem o valor de ser o mais antigo registro de um texto médico ocidental<br />

sobre a visão. O tratado aqui apresentado e traduzido pela primeira vez para o português<br />

traz também uma écfrase do olho doente a partir não só <strong>da</strong> visão que tem, mas<br />

também <strong>da</strong> visão que se lhe tem.<br />

No capítulo seguinte, Paulo <strong>Martins</strong> apresenta a leitura <strong>da</strong> visão como ponto de<br />

vista do enunciador, que formula verbalmente imagines / εἰκόνες, produzindo, de um<br />

lado, as effigies, decalca<strong>da</strong>s em modelos reais e vividos do cotidiano romano ou grego.<br />

De outro, os simulacra, afeitos à produção ou à reprodução <strong>da</strong>quelas imagens mentais<br />

fantasiosas (os φαντάσματα), distantes de modelos reais de uma construção que,<br />

por muito tempo, foi liga<strong>da</strong> à figuração “idealiza<strong>da</strong>”, rótulo que, no caso específico <strong>da</strong><br />

materiali<strong>da</strong>de, procura evitar, posto que tal termo evoca justamente a imateriali<strong>da</strong>de,<br />

ambienta<strong>da</strong> na memória ou na ideia. Tais simulacra operam frequentemente a personificação<br />

divina ou a “correção” <strong>da</strong> imagem do real-referente pelo ingenium e pela ars,<br />

na clave de uma amplificatio retórica e poeticamenta legitima<strong>da</strong>.<br />

No caso <strong>da</strong>s effigies, podemos refletir materialmente sobre as máscaras de cera<br />

apostas aos rostos dos mortos, em Roma. Políbio as nomina como τὰ πρόσωπα, e<br />

sua função era a invocação dos ancestrais <strong>da</strong> gens, modelos de uirtus / ἀρετή, como<br />

exempla <strong>da</strong> domus à socie<strong>da</strong>de, os patres patriae, que possuem, em sua vertente ver-<br />

11


paulo martins e henrique cairus<br />

bal, figuração registra<strong>da</strong> nos gêneros historiográfico, filosófico ou épico, nos quais<br />

homens ilustres, epiditicamente construídos, evidenciam, perfis nobilíssimos, retratos<br />

verossímeis, que ensinam, comovem e deleitam; logo, doces e úteis. É dessa<br />

ordem a construção <strong>da</strong>s imagines de Aníbal, leva<strong>da</strong>s a termo por Lívio e Nepos (conforme<br />

se pode notar a partir <strong>da</strong> leitura do capitulo que Cynthia Helena Dibbern<br />

escreveu para este livro), bem como as εἰκόνες que temos de Sócrates, a partir dos<br />

textos de Platão, Xenofonte ou Aristófanes, ou mesmo as imagens de Domiciano em<br />

verso epigramático e em numismática (como se lê no capítulo de autoria de Fábio<br />

Paifer Cairolli). O suporte material desses textos, sua diversi<strong>da</strong>de de gênero e seus<br />

fins diversos pouco interferem nesse processo de representação.<br />

Os simulacra, por sua vez, se desdobram como reflexos ou resultados materiais<br />

<strong>da</strong>s φαντασίαι / uisiones. A figuração divina, que, apesar de antropomórfica para<br />

gregos e romanos (assim como para quase todos os povos do ocidente), dista de<br />

modelos reais, operando, não raro, a soma de múltiplas reali<strong>da</strong>des a que poderíamos<br />

até entender como effigies, que, forma<strong>da</strong> de fragmentos do real pré-existente,<br />

não reproduz nenhuma de suas uni<strong>da</strong>des. Não é de outra forma que observamos,<br />

guiados pelo capítulo escrito por Lya Grizzo Serignolli, a representação <strong>da</strong> milícia<br />

do Amor, ao modo elegíaco.<br />

O complexo jogo de representação imagética em que o verbo constrói muito<br />

mais a imagem do que se supunha há não muito tempo é radicalizado pela experiência<br />

sofístícia de Filóstrato, o Velho, que, neste volume, ganha especial atenção de<br />

Rosângela Santoro de Souza Amato.<br />

Curiosamente, esses tipos de imagens, epidíticas por excelência, operam não só<br />

o louvor, como também a deformação calcula<strong>da</strong> do vitupério. Se verbalmente o primeiro<br />

matiz pode estar ligado ao hino, ao epinício, à épica e até mesmo à elegia, não há<br />

como o segundo se distanciar do vício e, portanto, próximo do impropério epódico/<br />

iâmbico, satírico, epigramático ou cômico, como deformações morais e físicas, figura<strong>da</strong>s<br />

nos epigramas de Marcial, como podemos ler no capítulo que Alexandre Agnolon<br />

dedicou a esse tema, e nos epodos de Horácio, conforme nos ensina Alexandre Pinheiro<br />

Hasegawa, neste volume. Os estudos aqui recolhidos sobre esse tema em particular<br />

confirmam que tais construções verbo-imagéticas estão respal<strong>da</strong><strong>da</strong>s em tratados de<br />

physiognomonia que circulam na Antigui<strong>da</strong>de, já que atendem não só a vícios físicos,<br />

plasticamente operados, como também às tortuosi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> alma.<br />

No volume que o leitor tem em mãos, procurou-se estar atento às artes figurativas,<br />

sejam elas produtos <strong>da</strong> cultura material, sejam elas produtos descritos. A leitura<br />

e a interpretação <strong>da</strong>s imagines / εἰκόνες são o ponto axial deste livro. Por essa razão,<br />

a ἔκφρασις passa a ser o principal mote a glosarmos, como faz Rosângela Amato,<br />

em seu já referido capítulo sobre Filóstrato, e também Melina Rodolpho, que analisa<br />

esse expediente retórico na Enei<strong>da</strong>.<br />

12


prolegômenos à visão<br />

Mesmo a representação imagética plasticamente realiza<strong>da</strong> do texto enquanto<br />

objeto puramente físico – mas não menos pleno de significações – recebeu atenção no<br />

presente volume, em que João Angelo de Oliva Neto escreve um capítulo acerca <strong>da</strong> iconografia<br />

antiga supérstite dedica<strong>da</strong> à representação do objeto livro e dos demais suportes<br />

<strong>da</strong> escrita, e, em contraparti<strong>da</strong>, promove a confrontação dessa iconografia com os<br />

elementos observados nas écfrases, sobretudo poéticas, dessa matéria temática.<br />

Cícero legou-nos um texto de alto valor reórico, o De signis, em que procede<br />

a belas écfrases <strong>da</strong>s estatuas que acusa Verres de roubar. Em tudo o texto atrai o leitor<br />

de hoje: ao leigo, pela engenhosi<strong>da</strong>de e pela própria beleza do discurso, como ao<br />

classicista, que, para além de to<strong>da</strong>s as impressões de leitor, ain<strong>da</strong> encontra o especial<br />

encanto de ver o gênero epidítico visitar garbosamente o gênero judiciário. Ana<br />

Carolina Barone, neste livro, dedica ao De signis um estudo que lhe lança novas luzes<br />

a partir do estudo de seu léxico. Não há obra, pois, que, ao focar a relação entre texto<br />

e imagem na Antigui<strong>da</strong>de, possa margear displiscente o De signis ciceroneano.<br />

Para além <strong>da</strong>s imagines vistas, a ver, a imaginar, a supor e a inspirar – primeiro na<br />

imaginação e depois na arte –, há aquelas que se projetam no campo do significado,<br />

nesse vasto campo abstrato do imaginário social, quando se entende imaginário precisamente<br />

pela galeria de imagines que regem nosso estar no mundo. Duas autoras<br />

exploram esse aspecto: Marly de Bari Matos, com o capítulo sobre a representação <strong>da</strong><br />

infância na epistolografia de Plínio, o Jovem, e G<strong>da</strong>lva Maria <strong>da</strong> Conceição, que, em<br />

seu texto, desvela os procedimentos retóricos utilizados por Júlio César para construir<br />

discursivamente a figura de seu próprio êthos.<br />

A construção discursiva de uma imagem e a sua projeção num imaginário coletivo<br />

não é tarefa de pouca monta. Em seu princípio e em seu fim, paira a égide<br />

<strong>da</strong> auctoritas, que, neste volume, será estu<strong>da</strong><strong>da</strong>, em suas implicações retóricas, por<br />

Adriano Scatolin.<br />

Não raro, a imagem do objeto-referencial encontra seu retrato verbal entrelaçado<br />

a outras representações, mas o que Cecília Gonçalves Lopes analisa neste<br />

volume é o entretecimento de duas imagens no texto poético de Ovídio: a de Corina<br />

e a própria elegia.<br />

Quisemos, pois, <strong>da</strong>r a este livro que nos coube organizar o destino de contribuir<br />

para o mosaico de estudos acerca do ver na Antigui<strong>da</strong>de, oferecendo, assim, mais um<br />

ponto de apoio teórico e ilustrativo para o estudo do tema. Olhares variados sobre<br />

variados olhares é o que temos a oferecer, para que seja este um livro que explora o<br />

encontro entre o discurso e a visão, que, como já foi dito, é trata<strong>da</strong> aqui como via de<br />

mão dupla, posto que, se decodifica, também codifica pelo canal discursivo.<br />

13


Imagines Physiognomonicae:<br />

a repercussão de lições de fisiognomonia<br />

em epigramas de Marcial<br />

Alexandre Agnolon<br />

Em diversos epigramas invectivos de Marcial, há o concurso de procedimentos<br />

discursivos que ultrapassam o simples vilipêndio. Ou seja, o ataque pode consubstanciar-se<br />

mediante o emprego de técnicas elocutivas cujo efeito seja visualizante,<br />

como a ékphrasis, que não se constituem simples ornato, mas se associam, justamente<br />

pela constituição de imagens, à invenção por estabelecer, na descrição do sujeito<br />

vicioso, devi<strong>da</strong> adequação entre suas ações vis, responsáveis por comprometê-lo no<br />

plano dos costumes, e sua aparência física (habitus corporis), o que é enfim amplificação<br />

do vitupério na medi<strong>da</strong> em que o vício moral ganha evidência (euidentia)<br />

por ser engendrado pelo poeta em termos pictóricos. Nesse sentido, a euidentia é,<br />

a um só tempo, virtude <strong>da</strong> elocução e meio gerador de páthos. 1 A prática é aconselha<strong>da</strong><br />

amiúde em tratados de Retórica. O anônimo <strong>da</strong> Retórica a Herênio prescreve<br />

que a descrição, quando construí<strong>da</strong> de maneira perspícua e clara, é demasiado útil à<br />

causa, uma vez que é capaz de suscitar na audiência “indignação ou misericórdia” (uel<br />

indignatio uel misericordia) na representação de ações, afetos e caracteres. 2 Ora, nesse<br />

sentido, o poeta intenta, na descrição, estabelecer estreita relação entre os caracteres<br />

físicos e anímicos <strong>da</strong> personagem vitupera<strong>da</strong>, como se a suposta torpeza física<br />

1 Ver Quint., Inst., 6, 2, 32-33: “Segue-se a enargia, denomina<strong>da</strong> por Cícero ilustração e vivaci<strong>da</strong>de, a qual parece<br />

menos dizer-nos algo que nos apresentar algo à vista; e nossas paixões [apenas] emanarão com a condição<br />

de que sejamos introduzidos em meio aos próprios acontecimentos. Acaso, paixões tais não advêm destas<br />

pinturas [de Vergílio]: ‘de suas mãos arrojam-se a lançadeira e o feixe de lã já desenre<strong>da</strong>do’, ‘e no peito brando<br />

uma feri<strong>da</strong> jaz aberta’? E aquele corcel ‘com adornos depostos’ no funeral de Palantes? Quê? Perfeitamente, o<br />

mesmo poeta não captou a imagem do derradeiro destino de tal maneira que disse: ‘e morrendo, repassa-lhe<br />

na memória a doce Argos’?; Insequetur ἐνάργεια, quae a Cicerone inlustratio et euidentia nominatur, quae<br />

non tam dicere uidetur quam ostendere, et adfectus non aliter quam si rebus ipsis intersimus sequentur. An non ex<br />

his uisionibus illa sunt: ‘excussi manibus radii reuolutaque pensa’,/ ‘leuique patens in pectore uulnus’, equus ille in<br />

funere Pallantis ‘positis insignibus’? Quid? non idem poeta penitus ultimi fati cepit imaginem, ut diceret: ‘et dulcis<br />

moriens reminiscitur Argos’? (tradução nossa). Quintiliano, Institutio Oratoria, with an English translation by<br />

H. E. Butler, Cambridge, ma: Harvard University Press; London: William Heinemann, books i-iii, 1996;<br />

books iv-vi, 1995; books vii-ix, 1996; books x-xii, 1998.<br />

2 Ver Her., 4, 51: “Com esse gênero de ornamento podem ser suscita<strong>da</strong>s indignação ou misericórdia quando<br />

to<strong>da</strong>s as consequências reuni<strong>da</strong>s se exprimem brevemente num discurso perspícuo”, Hoc genere exortationis<br />

uel indignatio uel misericordia potest commoueri, cum res consequentes conprehensae uniuersae perspicua breuiter<br />

exprimuntur oratione. [Cícero]. Retórica a Herênio. Tradução e introdução Ana Paula Celestino Faria e Adriana<br />

Seabra. São Paulo: Hedra, 2005.<br />

14


imagines p h y s i o g n o m o n i c a e:<br />

a repercussão de lições de fisiognomonia em epigramas de marcial<br />

refundisse imediatamente em torpeza moral. Ain<strong>da</strong> que articule tópicas já bastante<br />

conheci<strong>da</strong>s tanto por poetas quanto por oradores, como, por exemplo, os lugares do<br />

retrato prescritos por Quintiliano nas Instituições Oratórias (5, 10, 23-27), a construção<br />

de imagens em Marcial pode relacionar-se também com tratados de fisiognomonia.<br />

É justamente essa relação que pretendo explorar no presente trabalho. Tomarei<br />

como ponto de parti<strong>da</strong> o epigrama 39 do livro 6 de Marcial em cujos versos Marula é<br />

invectiva<strong>da</strong> por adultério. Em segui<strong>da</strong>, a partir <strong>da</strong> breve descrição dos filhos <strong>da</strong> mulher,<br />

todos eles bastardos, apontarei os efeitos cômicos que o poeta busca evidenciar pela<br />

relação dos traços físicos dos sujeitos descritos a disposições humanas, disposições<br />

estas discuti<strong>da</strong>s em tratados de fisiognomonia, especialmente no De physiognomonia<br />

liber 3 , de autoria anônima e composto provavelmente no século iv d.C.; vez ou outra,<br />

farei referência a outros tratados, como o atribuído a Aristóteles e a fisiognomonia<br />

composta por A<strong>da</strong>mâncio (iv d.C). Além de outras obras antigas, como a Retórica<br />

a Herênio e as Instituições Oratórias, reportarei também a fontes posteriores, como<br />

o De humana physiognomonia de Giambattista della Porta 4 (1541-1615), <strong>da</strong><strong>da</strong> a lume<br />

em Nápoles em 1586, bem como a Iconologia de Cesare Ripa (1555-1622), edita<strong>da</strong><br />

pela primeira vez em Roma em 1593, a fim de demonstrar a longa tradição <strong>da</strong>s fisiognomonias<br />

para a constituição de modelos de representação de afetos e caracteres<br />

humanos de que se serviram tanto poetas, quanto pintores e escultores.<br />

Marcial, 5 6, 39<br />

Pater ex Marulla, Cinna, factus es septem<br />

non liberorum: namque nec tuus quisquam<br />

nec est amici filiusue uicini,<br />

sed in grabatis tegetibusque concepti<br />

materna produnt capitibus suis furta. 5<br />

Hic qui retorto crine maurus incedit<br />

subolem fatetur esse se coci Santrae.<br />

At ille sima nare, turgidis labris<br />

ipsa est imago Pannychi palaestritae.<br />

Pistoris esse tertium quis ignorat, 10<br />

quicumque lippum nouit et uidet Damam?<br />

Quartus cinae<strong>da</strong> fronte, candido uultu<br />

ex concubino natus est tibi Lygdo:<br />

3 Anônimo. De physiognomonia liber. Tradução anota<strong>da</strong> de Leonardo Davine Dantas. Iniciação Científica.<br />

(Graduando em Letras) – Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas, Fun<strong>da</strong>ção de Amparo à Pesquisa do Estado<br />

de São Paulo. Orientador: Paulo Sérgio de Vasconcellos, 1999.<br />

4 De humana physiognomonia. Iohannis Battistae Portae Neapolitani. Libri iv. Francofurti, 1618.<br />

5 Martial. Epigrams, edited and translated by D. R. Shackleton Bailey. The Loeb Classical Library. Cambridge,<br />

ma: Harvard University Press, vol. i – ii – iii, 1993.<br />

15


alexandre agnolon<br />

16<br />

percide, si uis, filium: nefas non est.<br />

Hunc uero acuto capite et auribus longis, 15<br />

quae sic mouentur ut solent asellorum,<br />

quis morionis filium negat Cyrtae?<br />

Duae sorores, illa nigra et haec rufa,<br />

Croti choraulae uilicique sunt Carpi.<br />

Iam Niobi<strong>da</strong>rum grex tibi foret plenus 20<br />

si spado Coresus Dindymusque non esset.<br />

Com Marula, Cina, te tornaste pai de sete,<br />

mas não de filhos teus e livres, pois nenhum é filho teu,<br />

nem é de amigo ou vizinho,<br />

mas, concebidos em esteiras e pobres camilhas,<br />

nas feições revelam os amores furtivos <strong>da</strong> mãe. 5<br />

Um, que caminha como mouro de crespa cabeleira,<br />

confessa que é rebento do cozinheiro Santra.<br />

Outro, porém, de nariz chato e túrgidos lábios,<br />

é a imagem mesma do palestrita Pânico.<br />

Quem ignora – quem quer que conheça e veja Dama remelento – 10<br />

que o terceiro é do padeiro?<br />

O quarto de aspecto de bicha e rosto pálido<br />

nasceu-te de Ligdo, teu amante:<br />

se desejares, vara este filho: não é sacrilégio.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, este de cabeça em ponta e orelhas longas 15<br />

que se movem como soem mover-se as dos asnos,<br />

quem nega que é filho de Cirta, o bufão?<br />

As duas irmãs – uma é negra, a outra, ruiva –<br />

são de Croto, o flautista, e do caseiro Carpo.<br />

Já te estaria completa a grei dos Nióbi<strong>da</strong>s, 20<br />

não fossem Coreso e Díndimo eunucos.<br />

Diferentemente de outros poemas de Marcial, não há indicativo algum de que<br />

seja a mulher feia, mas o ataque existe e é em dimensão sexual, já que o poeta arrola<br />

os amantes <strong>da</strong> mulher, todos eles de baixa extração: cozinheiros, padeiros, flautistas,<br />

caseiros, histriões etc. Portanto, a prova irrefutável do adultério <strong>da</strong> mulher são os próprios<br />

filhos, que carregam em suas feições os traços dos ver<strong>da</strong>deiros pais, de origem<br />

servil, constituindo-se, pois, crimes contra sua gens, supondo, evidentemente, que a<br />

personagem seja proveniente de extrato elevado – na<strong>da</strong> é inferido a esse respeito, mas<br />

é de se supor que assim seja, uma vez que, no plano <strong>da</strong> composição, a descrição dos<br />

filhos bastardos de Marula segue de perto a de um busto romano tradicional. 6 Ora,<br />

6 Estratégia similar encontramos em Hor., Ep. 8, vv. 11-14 em que a mulher, já idosa, é associa<strong>da</strong> ao patriciado<br />

pela alusão, em seu cortejo fúnebre, a bustos de antepassados: “Sê tu feliz, e que as imagens triunfais/<br />

ao funeral, ao teu, prece<strong>da</strong>m,/ nem haja esposa que caminhe carrega<strong>da</strong>/ de perlas mais arredon<strong>da</strong><strong>da</strong>s.”, esto


imagines p h y s i o g n o m o n i c a e:<br />

a repercussão de lições de fisiognomonia em epigramas de marcial<br />

incorporando o retrato romano, restrito pelo menos no período republicano aos<br />

optimates, 7 o que se associaria também à categoria “estirpe” do gênero epidítico para<br />

a caracterização de pessoas, 8 o poeta amplifica o vício na medi<strong>da</strong> em que a representação<br />

buslesca, paródica mesmo dos bustos tradicionais, só faz torná-la mais viciosa,<br />

pois a fala epigramática põe em cena, de um lado, a origem patrícia de Marula – e<br />

consequentemente as uirtudes próprias <strong>da</strong> aristocracia – e, de outro, a impudicícia<br />

<strong>da</strong> mulher que, enganando o marido, mancha a honra <strong>da</strong> gens.<br />

Acresce ain<strong>da</strong> que a invectiva pode recair sobre o marido. O poeta inicia o epigrama<br />

mediante apóstrofe: “Com Marula, Cina, te tornaste pai de sete”, Pater ex<br />

Marulla, Cinna, factus es septem (v. 1). Marcial estabelece Cina como interlocutor<br />

do epigrama e lhe apresenta a traição <strong>da</strong> mulher não somente com o fim de alertá-lo<br />

acerca do adultério <strong>da</strong> esposa e <strong>da</strong> origem espúria de seus filhos – caso Cina já<br />

não saiba a esse respeito, de sorte que o adultério teria ocorrido com o seu consentimento<br />

–, 9 mas sobretudo exortá-lo a restituir a legitimi<strong>da</strong>de de sua descendência,<br />

tomando Latona como exemplo, indiciado pela alusão, na conclusão do epigrama<br />

beata, funus atque imagines/ ducant triumphales tuum/ nec sit marita quae rotundioribus /onusta bacis ambulet.<br />

(tradução de Alexandre Pinheiro Hasegawa).<br />

7 “[...] o direito de cultuar imagens é restrito aos patrícios e apenas eles detêm o ius imaginum e, como corolário,<br />

a possibili<strong>da</strong>de de realizar os gentilicia funera. O termo ius reflete, pois, a consuetudo como privilégio de<br />

poucos, regulando ativi<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, o funeral e a própria representação, com um direito que é essencialmente<br />

público. Da mesma maneira, a pompa dos funerais atinge apenas uma cama<strong>da</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, pois que é gentilicia,<br />

isto é, algo que só é admitido para aqueles que pertencem a uma gens.” <strong>Martins</strong>, P. Imagem e Poder:<br />

considerações sobre a representação de Otávio Augusto (44 a.C. – 14 d.C.). Tese de Doutoramento apresenta<strong>da</strong><br />

ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas <strong>da</strong> fflch <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo sob orientação<br />

<strong>da</strong> Profa. Dra. Ingeborg Braren, São Paulo, 2003. p. 138.<br />

8 Quint., Inst., 5, 10, 23-24: 23. Assim, em primeiro lugar, os argumentos devem ser amiúde extraídos <strong>da</strong><br />

pessoa, visto que, como eu já disse, dividimos todos eles em duas partes: a primeira, relativa às matérias e a<br />

segun<strong>da</strong>, às pessoas, de modo que a causa, o tempo, o lugar, a ocasião, o instrumento, o modo, etc. sejam<br />

consequência <strong>da</strong>s ações. Entretanto, não devo tratar tudo que sucede às pessoas, tal como fez a maioria dos<br />

autores, mas só aquilo de que se podem retirar argumentos. 24. Ei-los: origem, pois quase sempre os filhos<br />

julgam-se semelhantes aos pais e aos antepassados e por vezes é disto que emanam as razões de viver honesta<br />

ou torpemente”, 23. In primis igitur argumenta saepe a persona ducen<strong>da</strong> sunt, cum sit, ut dixi, diuisio, ut omnia in<br />

haec duo partiamur, res atque personas: ut causa, tempus, locus, occasio, instrumentum, modus et cetera rerum sint<br />

accidentia. Personis autem non quidquid accidit exequendum mihi est, ut plerique fecerunt, sed unde argumenta<br />

sumi possunt. 24. Ea porro sunt: genus (nam similes parentibus ac maioribus suis plerumque filii creduntur, et<br />

nonnumquam ad honeste turpiterque uiuendum inde causae fluunt). (tradução nossa).<br />

9 Mart., 1, 73: Ninguém houve em to<strong>da</strong> Roma que quisesse trepar/ de graça, Ceciliano, com tua esposa,/<br />

enquanto era permitido. Mas agora, depois de postos os guar<strong>da</strong>s,/ enorme é a turba de fodedores: és um<br />

homem engenhoso. Nullus in urbe fuit tota, qui tangere uellet/ uxorem gratis, Caeciliane, tuam,/ dum licuit;<br />

sed nunc positis custodibus ingens/ turba fututorum est. Ingeniosus homo es. (Tradução nossa). Neste epigrama,<br />

é evidente que o marido tem ciência do adultério <strong>da</strong> esposa e que, principalmente, perfaz papel de seu<br />

proxeneta, lucrando com o adultério. Repare-se que, <strong>da</strong> mesma maneira que Cina, Ceciliano é também o<br />

interlocutor do poeta.<br />

17


alexandre agnolon<br />

(vv. 20-21), ao mito de Níobe: 10 “Já te estaria completa a grei dos Nióbi<strong>da</strong>s,/ não fossem<br />

Coreso e Díndimo eunucos.”, Iam Niobi<strong>da</strong>rum grex tibi foret plenus/ si spado<br />

Coresus Dindymusque non esset. O poeta vitupera o marido porque este não fora firme<br />

o suficiente para manter a fideli<strong>da</strong>de <strong>da</strong> esposa ou mesmo para restituir devi<strong>da</strong>mente<br />

a referi<strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de de sua descendência, haja vista a dessemelhança dos próprios<br />

filhos, que se constituem enfim indicadores de caracteres viciosos, tomados diretamente<br />

dos escravos e libertos <strong>da</strong> domus com quem Marula manteve relações sexuais.<br />

Assim, o adultério e a origem bastar<strong>da</strong> dos filhos são consequência não só <strong>da</strong> licenciosi<strong>da</strong>de<br />

de Marula, mas também do caráter permissivo de Cina.<br />

Até aqui tratamos brevemente acerca de alguns aspectos do epigrama 6, 39 de<br />

Marcial. Vimos que o poeta vitupera a mulher adúltera mediante constituição de<br />

imagines, mas não dela e, sim, de seus filhos, que são índices de sua traição, pois<br />

fisicamente se assemelham a seus supostos amantes, todos eles de baixa extração;<br />

que o poeta, por possivelmente incorporar características <strong>da</strong>s representações imagéticas<br />

de caráter aristocrático, potencializa os vícios de Marula – e talvez do próprio<br />

marido –, uma vez que ela pertenceria a uma gens romana; e que as descrições se<br />

associam aos lugares-comuns do retrato de pessoas, prescrito pela retórica epidítica.<br />

Discorreremos a partir de agora sobre as relações entre os procedimentos descritivos<br />

empregados pelo poeta e os preceitos dos tratados de fisiognomonia, particularmente<br />

aqueles a que nos referimos no início do presente trabalho.<br />

Dos tratados de fisiognomonia antigos, subsistem somente os atribuídos a<br />

Aristóteles e a Apuleio; as lições de A<strong>da</strong>mâncio (iii d.C.) e o De physiognomonia<br />

liber, de autoria anônima, como vimos, e composto provavelmente no século iv d.C.<br />

Os demais de que temos notícia, compostos pelo médico Loxo, <strong>da</strong>tado do iii a.C.,<br />

e pelo rétor Polemão, ativo no século ii d.C., perderam-se. Não se sabe exatamente<br />

que autor foi o primeiro a delinear os aspectos principais <strong>da</strong> doutrina, ain<strong>da</strong> que<br />

por vezes sejam associados à tradição pitagórica. Além disso, as lições dos fisiognomonistas<br />

frequentemente incorporam a doutrina hipocrática dos humores. O autor<br />

anônimo do De physiognomonia liber (12), por exemplo, demonstra que a compleição<br />

média, ou seja, o perfeito equilíbrio é a melhor para o bem-estar do sujeito na<br />

medi<strong>da</strong> em que a força e a saúde correm a par <strong>da</strong> sabedoria. Ora, nesse sentido, seus<br />

caracteres físicos, que se refletem na devi<strong>da</strong> proporção entre as partes e o todo do<br />

10 Eram doze os filhos de Níobe: seis rapazes e seis moças. Níobe julgava-se mais feliz que Latona, mãe somente<br />

de Apolo e Ártemis, de modo que a deusa se ofendeu e ordenou a seus filhos que matassem a grande prole <strong>da</strong><br />

filha de Tântalo. Algumas versões referem que teriam sobrevivido um ou dois filhos. Por causa de tão grande<br />

dor, Níobe foi transforma<strong>da</strong> em rocha, de onde brotavam incessantemente suas lágrimas. Em outras versões<br />

do mito, não somente era maior o número de filhos e filhas (quatorze ao todo), mas também a ofensa teria<br />

se dirigido diretamente a Apolo e Ártemis (cf.: Hyg., Fab, 9).<br />

18


imagines p h y s i o g n o m o n i c a e:<br />

a repercussão de lições de fisiognomonia em epigramas de marcial<br />

corpo – some-se aqui o devido equilíbrio dos humores corporais – constituem-se<br />

índices de força e beleza, mas sobretudo é representação <strong>da</strong> própria virtude, <strong>da</strong> justa-medi<strong>da</strong>,<br />

porquanto o homem seria incapaz de desempenhar ações justas e nobres<br />

sem o intermédio <strong>da</strong> força, sem os meios exteriores que lhe possibilitariam levar a<br />

cabo ações virtuosas. 11 No entanto, no mesmo passo, ain<strong>da</strong> que julgue a compleição<br />

média a melhor, o anônimo também nos apresenta os temperamentos dominantes<br />

associados aos quatro humores. O sanguíneo, pese a grande força, o rubor e a firmeza<br />

e densi<strong>da</strong>de dos cabelos, tem constrangi<strong>da</strong>s a inteligência e a agudeza de senso,<br />

ao passo que aquele que possui escassez de sangue – <strong>da</strong>í o melancólico e o fleumático<br />

– teria, ao contrário, aguça<strong>da</strong>s a inteligência e o espírito, conferindo-lhe vivaci<strong>da</strong>de<br />

aos órgãos sensitivos <strong>da</strong> face, 12 ain<strong>da</strong> que a dita escassez de sangue fosse responsável<br />

por lhe extenuar as partes do corpo, enfraquecendo-o e lhe alterando a cor<br />

<strong>da</strong> tez. Percebe-se, assim, que os tratados de fisiognomonia, ressalva<strong>da</strong>s as pequenas<br />

diferenças entre eles, versavam basicamente acerca dos caracteres morais e anímicos<br />

do sujeito que pudessem ser observados e significados a partir de índices físicos. Para<br />

os fisiognomonistas, portanto, o signo era motivado; eliminavam, em certo sentido,<br />

a arbitrarie<strong>da</strong>de dele. É o que se pode entrever pela definição <strong>da</strong> doutrina que nos é<br />

ofereci<strong>da</strong> no prólogo do De physiognomonia liber (2). Nela, a alma não se constitui<br />

enti<strong>da</strong>de absolutamente independente e abstrata, âmago <strong>da</strong> inteligência e disposições<br />

humanas. Pelo contrário, é o corpo que dá forma à alma de acordo com as quali<strong>da</strong>des<br />

– ou os vícios – deste mesmo corpo: “à maneira do ar que soa diversamente<br />

na gaita, na flauta ou na tuba, ain<strong>da</strong> que exista um só ar”.<br />

Os tratados especializaram-se. Por analogia, os autores relacionaram as características<br />

físicas de animais a disposições humanas, a zoognomonia: “quando a base do<br />

nariz é sóli<strong>da</strong> como que obtusa e redon<strong>da</strong>, aponta o forte e o magnânimo. São deste<br />

modo os focinhos dos leões e dos cães de caça. Narizes longos e finos se aproximam<br />

11 Arist., en, 1099b: “[...] é impossível, ou pelo menos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidos meios. Em<br />

muitas ações utilizamos como instrumento os amigos, a riqueza e o poder político; e há coisas cuja ausência<br />

empana a felici<strong>da</strong>de, como a nobreza de nascimento, uma boa descendência, a beleza. Com efeito, o homem<br />

de muito feia aparência, ou mal-nascido, ou solitário e sem filhos, não tem muitas probabili<strong>da</strong>des de ser feliz,<br />

e talvez tivesse menos ain<strong>da</strong> se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse<br />

roubado bons filhos ou bons amigos.” Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim.<br />

Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Grifo nosso).<br />

12 A fisiognomonia, incorporando a teoria dos humores, influencia a pintura. Esses índices, fisiognomônicos e<br />

hipocráticos, transparecem, por exemplo, no autorretrato de Albrecht Dürer (1471-1528), <strong>da</strong>tado de 1493, que<br />

se encontra atualmente no Museu do Louvre, em Paris. No retrato, o pintor se representa com a tez páli<strong>da</strong>,<br />

mas com os olhos vivos e inquiridores; nas mãos, carrega um cardo seco. A representação provavelmente<br />

segue a imagem do melancólico: a bile negra liga-se à terra, <strong>da</strong>í ser escura e seca. O engenho, a inteligência<br />

e agudeza de senso do pintor são representa<strong>da</strong>s, pictoricamente, pela melancolia.<br />

19


alexandre agnolon<br />

ao <strong>da</strong>s aves e produzirão costumes desta maneira”. 13 Os tratadistas também propunham<br />

curiosas relações entre as características do clima de determina<strong>da</strong> região e as<br />

disposições morais de seus habitantes, espécie de fisiognomonia climática: “e o sinal<br />

de uma cor quente [a negra], como acima dito, é <strong>da</strong>s regiões meridionais, e, <strong>da</strong> fria,<br />

atributo <strong>da</strong>s setentrionais”. 14 Eles também discorriam amiúde acerca <strong>da</strong>s nações e dos<br />

supostos caracteres que sua origem étnica poderia transmitir aos homens: os trácios,<br />

por exemplo, poderiam ser figurados como preguiçosos, ébrios e iníquos. Ambas as<br />

categorias de fisiognomonia se associam, retoricamente, como se pode ver, aos tópoi<br />

do retrato de pessoas, especialmente às categorias “estirpe” e “nação”. 15<br />

No epigrama de Marcial que citamos há pouco, o 6, 39, podemos perceber claramente<br />

as relações que o poeta epigramático estabelece entre a descrição dos amantes<br />

de Marula e características étnicas, climáticas e mesmo animalescas dos indivíduos,<br />

o que se coaduna com os preceitos <strong>da</strong>s fisiognomonias antigas. Nos versos 6<br />

e 7 do epigrama, que retomamos aqui – “Um, que caminha como mouro de crespa<br />

cabeleira,/ confessa que é rebento do cozinheiro Santra.”, Hic qui retorto crine maurus<br />

incedit/ subolem fatetur esse se coci Santrae. –, Marcial apresenta-nos a brevíssima descrição<br />

do primogênito de Marula cujas feições remetem diretamente ao cozinheiro<br />

Santra: o caminhar de mouro e os cabelos crespos, ain<strong>da</strong> que simplesmente constituam<br />

notações, 16 são <strong>da</strong>dos suficientes para não somente apontar, como vimos ante-<br />

13 Physiog., 51. (tradução de Leonardo Davine Dantas). Baltrusaitis. J. “Aberrações – ensaio sobre a len<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

formas ‘Fisiognomonia Animal’”, tradução de Luiz Dantas. In: Revista de História <strong>da</strong> Arte e Arqueologia.<br />

n. 2. ifch-unicamp, 1995/ 1996, p. 331-353, brevemente exemplifica outras características animais amiúde<br />

arrola<strong>da</strong>s pelos tratadistas: “Os sinais <strong>da</strong> magnanimi<strong>da</strong>de são os cabelos duros, o corpo reto, a constituição<br />

robusta, o ventre largo e não proeminente; os sinais <strong>da</strong> timidez – os cabelos macios, o corpo entorpecido, a<br />

barriga <strong>da</strong> perna achata<strong>da</strong>, olhos fracos que piscam (pseudo-Aristóteles). Os olhos azuis com pupilas pequenas<br />

pertencem aos malvados e aos sórdidos. Os olhos completamente azuis são os melhores olhos (A<strong>da</strong>mâncio).<br />

Um raciocínio como este, onde se confundem matéria e espírito, volta incessantemente naquelas dissertações,<br />

embora também exista quem faça a dedução comparando os traços do homem com as formas dos animais,<br />

cujas aptidões e instintos acredita-se conhecer melhor”. (p. 331-2)<br />

14 Idem, 88.<br />

15 Cf. Quint., Instit., 5, 10, 23-25.<br />

16 Ain<strong>da</strong> que breve, a notação é prática prescrita em tratados de retórica antigos e se constitui do apontamento<br />

de marca, de traço distintivo do sujeito. Portanto, é espécie de perífrase que determina a pessoa como virtuosa<br />

ou viciosa e, por isso, associa-se aos lugares-comuns de descrição de pessoas <strong>da</strong> retórica epidítica. Em Her., 4,<br />

63 assim se define: “A notação é a descrição <strong>da</strong> natureza de alguém pelos sinais distintivos que, como marcas,<br />

são atributos <strong>da</strong>quela natureza; [...]. Caracterizações desse tipo, que descrevem o que é conforme à natureza<br />

de ca<strong>da</strong> um, trazem, forçosamente, muito deleite, pois dão a ver tudo o que é característico de alguém, seja<br />

um vanglorioso [...], um invejoso, um soberbo, um cobiçoso, um adulador, um amante, um dissoluto, um<br />

ladrão, um delator, enfim, com a notação, as inclinações de quem quer que seja podem ser exibi<strong>da</strong>s aos olhos<br />

de todos.” Notatio est, cum alicuius natura certis describitur signis, quae, sicuti notae quae naturae sunt adtributa<br />

[...] Huiusmodi notationes, quae describunt, quod consentaneum sit unius cuiusque naturae, vehementer habent<br />

magnam delectationem: totam enim naturam cuiuspiam ponunt ante oculos, aut gloriosi [...] aut invidi aut tumidi<br />

aut avari, ambitiosi, amatoris, luxuriosi, furis, quadruplatoris; denique cuiusvis studium protrahi potest in medium<br />

20


imagines p h y s i o g n o m o n i c a e:<br />

a repercussão de lições de fisiognomonia em epigramas de marcial<br />

riormente, a origem espúria e servil dos amantes, mas sobretudo indiciam sua origem<br />

estrangeira, muito provavelmente egípcia ou síria a julgar pela cabeleira crespa e a tez<br />

morena. O anônimo do De physiognomonia liber informa que os cabelos crespos ou<br />

encaracolados são próprios de homens enganadores, avarentos, medrosos e sedentos<br />

de lucro, e que homens assim são geralmente egípcios – notoriamente medrosos – ou<br />

sírios – conhecidos por serem gananciosos e cobiçosos. 17 Ora, o tópos se repete no fim<br />

do epigrama (vv. 18-19), a articular os preceitos fisiognomônicos associados à origem<br />

étnica com o tópos origem / nação do retrato epidítico: “As duas irmãs – uma é negra,<br />

a outra, ruiva –/ são de Croto, o flautista, e do caseiro Carpo.”, Duae sorores, illa nigra<br />

et haec rufa,/ Croti choraulae uilicique sunt Carpi. Repare-se que, na fala epigramática,<br />

é evidente a origem estrangeira de Croto – provavelmente etíope – e de Carpo<br />

que, com os cabelos vermelhos, de certo provém <strong>da</strong> Gália ou <strong>da</strong> Europa Setentrional.<br />

Igualmente, as particulari<strong>da</strong>des físicas <strong>da</strong>s personagens, e étnicas por seu turno, são<br />

entendi<strong>da</strong>s nas fisiognomonias como características próprias de homens vis: Croto,<br />

pela origem africana, é covarde e ardiloso: “A cor negra indica o covarde, o que foge<br />

do combate, o homem ardiloso. Ela se refere àqueles que habitam os litorais meridionais,<br />

como os etíopes, os egípcios e os povos próximos a eles” 18 ; e Carpo, avarento,<br />

mas também feroz, indócil e estúpido: “aqueles, porém, que possuem cabelos ruivos,<br />

bem vivos, [...] são geralmente próprios de homens detestáveis, gananciosos e ferozes,<br />

difíceis de se ensinar.” 19<br />

Nos versos 8 e 9 (“Outro, porém, de nariz chato e túrgidos lábios,/ é a imagem<br />

mesma do palestrita Pânico”, At ille sima nare, turgidis labris/ ipsa est imago Pannychi<br />

tali notatione. Cic., De Or., 2, 58, 236, vincula o riso a notação de alguma torpeza, explicita<strong>da</strong> por alguma<br />

deformi<strong>da</strong>de característica: “Já quanto ao lugar e à região, por assim dizer, do ridículo [...], eles residem na<br />

torpeza e na deformi<strong>da</strong>de. Ri-se unicamente, ou quase apenas, do que assinala e aponta alguma torpeza de<br />

maneira não torpe.” Locus autem, et regio quasi ridiculi [...] turpitudine et deformitate qua<strong>da</strong>m continetur: haec<br />

enim ridentur uel sola, uel maxime, quae notant et designant turpitudinem aliquam non turpiter. scatolin, A.<br />

A invenção do Do orador de Cícero: um estudo à luz do Ad Familiares, 1, 9, 23. São Paulo: fflch-usp. Tese de<br />

doutoramento defendi<strong>da</strong> para obtenção do título de doutor em Letras Clássicas, sob orientação <strong>da</strong> Profa.<br />

Dra. Zélia L. V. de Almei<strong>da</strong> Cardoso, 2009.<br />

17 Physiog., 14.<br />

18 Ibidem, 79.<br />

19 Ibidem, 73. As tópicas do retrato bem como os preceitos fisiognomônicos de caráter étnico articulados<br />

no poema de Marcial parecem repercutir na tradição poética posterior relativamente ao vitupério. É o caso<br />

de Gregório de Matos, em que amiúde a invectiva explora certos estereótipos associados a nacionali<strong>da</strong>des,<br />

como propõe Hansen, João Adolfo. A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século x v i i. 2ª. Ed.<br />

São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora <strong>da</strong> Unicamp, 2004. p. 400: “articula<strong>da</strong> no topos ‘nação’, a<br />

tipificação atribui quali<strong>da</strong>des ‘naturais’ <strong>da</strong> nação – muito comum, por exemplo, é a referência do ‘mal gálico’,<br />

efetua<strong>da</strong> como exclusiva do ‘francês’. A referência às nacionali<strong>da</strong>des encena, aliás, os estereótipos morais e<br />

políticos correntes sobre elas. Assim, ‘italianos’ são sodomitas, ‘franceses’ têm sífilis ou são peritos nas artes<br />

meretrícias, ‘holandeses’ são selvagens hereges, ‘tudescos’ (alemães) são burlescos etc.”<br />

21


alexandre agnolon<br />

palaestritae.), o nariz chato do atleta Pânico é sinônimo de luxúria, e seus lábios túrgidos,<br />

índices de sua baixeza de caráter, imundície, voraci<strong>da</strong>de e estupidez, haja vista<br />

que, nas fisiognomonias, estas características são próprias dos porcos. 20 O próprio<br />

nome do atleta já indicia também a lascívia de seu caráter. Pânico remete a pannychís,<br />

“noite inteira”, festivi<strong>da</strong>de cuja evidente licenciosi<strong>da</strong>de pode ter integrado o culto de<br />

diversas divin<strong>da</strong>des no mundo antigo. Oliva Neto afirma que uma delas poderia ter<br />

sido Priapo. 21 Além disso, o fato de ser palestrita, e a própria ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> palestra por<br />

sua vez, pode aludir a práticas sexuais, como é o caso do epigrama 67 do livro vii de<br />

Marcial, 22 em que não somente a mulher lá vitupera<strong>da</strong>, Filênis, é descrita como um<br />

atleta a fim de se amplificar seu vício, o lesbianismo, <strong>da</strong>í sua representação masculiniza<strong>da</strong>,<br />

mas sobretudo o poeta estabelece relação entre os atletas do ginásio e intercurso<br />

sexual, 23 o que se intensifica pelo emprego de verbos pertencentes ao campo<br />

semântico de “bater”, “<strong>da</strong>r golpes”, no caso uapulo no verso oito. É provável que verbos<br />

dessa espécie tenham gerado as principais metáforas sexuais em latim. 24<br />

O terceiro filho de Marula tem as mesmas feições do padeiro: “Quem ignora<br />

– quem quer que conheça e veja Dama remelento –/ que o terceiro é do padeiro?”,<br />

Pistoris esse tertium quis ignorat,/ quicumque lippum nouit et uidet Damam? De<br />

maneira similar, a breve descrição aponta elementos que rebaixam a origem do filho<br />

de Marula, haja vista o caráter escatológico <strong>da</strong> alusão, especificamente à imundície<br />

de Dama que, além de entrever provável doença e falta de cui<strong>da</strong>dos com o corpo –<br />

caracteres transmitidos ao descendente –, é análoga à baixeza social <strong>da</strong> personagem,<br />

20 Cf. baltrusaitis, j. op.cit., p. 335; Physiog., 48 e 51.<br />

21 Cf. oliva neto, j. a. Falo no Jardim, Priapeia Grega, Priapeia Latina. Cotia: Ateliê Editorial / Campinas:<br />

Editora <strong>da</strong> unicamp, 2006, p. 196.<br />

22 “Filênis roçadeira enraba rapazotes /e, mais furiosa que a libido dum marido,/ fode por dia onze menininhas./<br />

Cingi<strong>da</strong>, joga com a péla também/ e, amarela com o pó, halteres,/ pesados para atletas, gira com braço ligeiro;/<br />

e to<strong>da</strong> emporcalha<strong>da</strong> do pó <strong>da</strong> palestra/ se submete aos golpes do mestre untado./ Nem janta ou se põe à mesa<br />

antes/ de ter vomitado sete medi<strong>da</strong>s de puro vinho!/ Julga ela, então, que lhe é lícito repeti-los,/ quando comeu<br />

dezesseis nacos de carne./ Após tudo isso, ao se entregar aos prazeres,/ ela não chupa – julga ser pouco viril –/<br />

mas as meninas – no meio – devora-as por inteiro./ Que os deuses te deem juízo, Filênis,/ tu que julgas viril<br />

lamber bocetas.”, Pedicat pueros tribas Philaenis/ et tentigine saeuior mariti/ undenas dolat in die puellas./ Harpasto<br />

quoque subligata ludit/ et flauescit haphe, grauesque draucis/ halteras facili rotat lacerto,/ et putri lutulenta de palaestra/<br />

uncti uerbere uapulat magistri:/ nec cenat prius aut recumbit ante/ quam septem uomuit meros deunces;/ ad<br />

quos fas sibi tunc putat redire,/ cum colyphia sedecim comedit,/ post haec omnia cum libidinatur,/ non fellat – putat<br />

hoc parum uirile –/ sed plane medias uorat puellas./ Di mentem tibi dent tuam, Philaeni,/ cunnum lingere quae<br />

putas uirile. (tradução nossa).<br />

23 Procedimento análogo ocorre em Mart., 1, 96, vv. 11-14: “Tomamos banho juntos: ele nunca olha para cima,/<br />

porém, aos atletas observa com olhos devoradores e/ não observa suas picas com lábios ociosos./ Desejas saber<br />

quem é? Mas seu nome me escapa.”, Una lauamur: aspicit nihil sursum,/ sed spectat oculis deuorantibus draucos/<br />

nec otiosis mentulas uidet labris./ Quaeris quis hic sit? Excidit mihi nomen. (tradução nossa).<br />

24 Cf. a<strong>da</strong>ms, j.n., The Latin Sexual Vocabulary. Baltimore: John Hopkins University Press, 1982. p. 145-149.<br />

22


imagines p h y s i o g n o m o n i c a e:<br />

a repercussão de lições de fisiognomonia em epigramas de marcial<br />

intensifica<strong>da</strong> pela ativi<strong>da</strong>de exerci<strong>da</strong> por ela que, como a exerci<strong>da</strong> por Santra, é considera<strong>da</strong><br />

vil e própria de escravos e libertos, o que pode se associar, no retrato epidítico,<br />

ao tópos relativo à natureza do ânimo (animi natura). 25 Na passagem em questão,<br />

com o referir a secreção que se desprende de Dama, pode ser que Marcial sugira<br />

ser a torpeza consequência do viver desregrado <strong>da</strong> personagem, causa mesma de sua<br />

intemperança. Nesse sentido, a estratégia do poeta coincide com o que aconselha<br />

o anônimo <strong>da</strong> Retórica a Herênio, 26 quando, ao se elogiar ou vituperar, é necessário<br />

começar pelas circunstâncias externas à pessoa (ab externis rebus), não somente tratar<br />

de sua ascendência, mas também <strong>da</strong>quelas quali<strong>da</strong>des inerentes ao próprio corpo.<br />

Assim, a feiura, antes de ser meramente torpeza física, entrevê vícios morais, perceptíveis<br />

nas ações do sujeito vituperado, assim “diremos que carece não só de beleza,<br />

mas de to<strong>da</strong>s as outras vantagens, por sua própria culpa e intemperança”. Em outras<br />

palavras, a provável doença, causa imediata <strong>da</strong> torpeza física, a secreção, seria consequência<br />

<strong>da</strong> imoderação <strong>da</strong> personagem, que se entrega a excessos de to<strong>da</strong> a sorte.<br />

A feição do quarto filho é assim descrita pelo poeta (vv. 12-14): “O quarto de<br />

aspecto de bicha e rosto pálido/ nasceu-te de Ligdo, teu amante:/ se desejares, vara<br />

este filho: não é sacrilégio.”, Quartus cinae<strong>da</strong> fronte, candido uultu/ex concubino natus<br />

est tibi Lygdo:/ percide, si uis, filium: nefas non est. É evidente a condição de Ligdo:<br />

amante não só <strong>da</strong> mulher, mas do próprio marido, Cina. E certamente, pela referi<strong>da</strong><br />

condição, é também escravo. Os caracteres de Ligdo, portanto, a baixa extração,<br />

sua aparência efemina<strong>da</strong> e páli<strong>da</strong>, são transmitidos ao bastardo a ponto de a fala<br />

epigramática aconselhar o marido a submetê-lo sexualmente. Além disso, a palidez<br />

do filho, e de Ligdo consequentemente, é sinal de lascívia, como é sugerido em tratados<br />

de fisiognomonia: 27<br />

25 Quint., Inst., 5, 10, 27: 27. natureza do ânimo: com efeito, a cobiça, a cólera, a severi<strong>da</strong>de e outros [caracteres]<br />

semelhantes a estes, amiúde, inspiram credibili<strong>da</strong>de ou a retiram, assim como quando se questiona se os<br />

hábitos de alguém são excessivos, moderados ou miseráveis. Importam também os ofícios, pois o camponês,<br />

o advogado, o negociante, o sol<strong>da</strong>do, o marujo e o médico desempenham ativi<strong>da</strong>des muito diferentes entre<br />

si. 27. animi natura: etenim auaritia, iracundia, misericordia, crudelitas, seueritas aliaque his similia adferunt<br />

fidem frequenter aut detrahunt, sicut uictus luxuriosus an frugi an sordidus quaeritur; studia quoque (nam rusticus,<br />

forensis, negotiator, miles, nauigator, medicus aliud atque aliud efficiunt). (Tradução nossa).<br />

26 Her., 3,14<br />

27 Suet., Cal., constrói o retrato de Calígula de maneira semelhante. É de reparar que, segundo o historiador,<br />

o princeps propositalmente compunha sua aparência a fim de gerar temor em quem o visse: “Era de alta<br />

estatura, tez palidíssima, corpo enorme, o pescoço e as pernas delga<strong>da</strong>s. Os olhos, assim como as têmporas,<br />

fundos. A fronte larga e carrancu<strong>da</strong>. Cabelos ralos e o alto <strong>da</strong> testa desguarnecido. O resto do corpo, cabeludo.<br />

Constituía crime capital olhá-lo quando ele passava, por cima, e pronunciar, por qualquer motivo, a<br />

palavra “cabra”. Seu rosto era naturalmente horrível e repelente. E ele procurava torná-lo ain<strong>da</strong> mais feroz,<br />

compondo-o diante de um espelho para inspirar terror e espanto. Statura fuit eminenti, colore expallido, corpore<br />

enormi, gracilitate maxima ceruicis et crurum, oculis et temporibus concauis, fronte lata et torua, capillo raro at<br />

circa uerticem nullo, hirsutus cetera. Quare transeunte eo prospicere ex superiore parte aut omnino quacumque<br />

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