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ANAIS DO I CONGRESSO NACIONAL DE FILOSOFIA DA UNICENTRO I CONAFIL – 22 A 26/06/2009 – ISSN: 2175-3059 Ora, essa limitação da liberdade a uma escolha, mediante um ato inteligível, do nosso ser parece chocar-se com o pensamento de Kant. De fato, Kant afirma que a ―ação (Handlung) é atribuída ao caráter inteligível do homem‖ e, na sequencia, parece tornar-se mais difícil o acordo com Schopenhauer quando lemos: ―e agora, no momento em que mente, ele é totalmente culpado; portanto, desconsiderando todas as condições empíricas do ato, a razão era integralmente livre, e a mentira é de todo imputável à sua omissão‖ (CRP B 583). Para o meu interesse nessa discussão importa sublinhar, nessa passagem, as partes ―no momento em que ele mente‖ e ―a razão era inteiramente livre‖. Parece ser clara a sugestão de Kant de que a ação particular (no exemplo, a mentira maldosa) resultou de uma razão que era livre para mentir ou não mentir. 1 No parágrafo seguinte ao da citação acima, Kant argumenta que a razão, embora estando presente e sendo ―sempre a mesma em todas as ações do homem em todas as circunstâncias temporais‖, não é, contudo, ―no tempo nem atinge um novo estado no qual não estava‖ 2 , uma vez que, em relação a este novo estado, ―ela é determinante, mas não determinável‖. Assim sendo, não cabe perguntar por que a razão não se determinou de outro modo. Poder-se-ia indagar por que a razão ―mediante a sua causalidade (...) não determinou diversamente os fenômenos‖. Porém, em relação a isto, ―qualquer resposta é impossível. Com efeito, um outro caráter inteligível teria dado um outro caráter empírico‖ (CRP B 584). Se esta última frase de Kant é isolada, pode-se tomá-la como significando que se um homem que mente maldosamente tivesse um outro caráter moral, isto é, tivesse um outro ―sinal distintivo ... enquanto ser racional dotado de liberdade" 3 que comportasse princípios 1 Na Crítica da Razão Prática Kant afirma que ―satisfazer ao mandamento categórico da moralidade está em poder de cada um em todo tempo‖ (A 64). 2 Veja nota anterior. 3 I. KANT. Anthropologie du point de vue pragmatique, p. 135. É digna de registro a mudança de sentido que o termo ―caráter‖ (Charakter) sofre no pensamento de Kant. Se na Crítica da Razão Pura, como vemos, caráter é a ―lei da causalidade‖, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, embora sem definição clara, o termo já é tomado em outro sentido (por exemplo; seção I, §§ 1 e 11, onde Kant o contrasta com o temperamento, sugerindo, no § 1, que caráter seria o modo como a vontade usa os talentos do espírito, as qualidades do temperamento e os dons da fortuna). Na I Congresso Nacional de Filosofia da UNICENTRO/PR – Guarapuava/PR II Colóquio Kant da Sociedade Kant Brasileira – Seção Paraná – SKB/PR Página7

ANAIS DO I CONGRESSO NACIONAL DE FILOSOFIA DA UNICENTRO I CONAFIL – 22 A 26/06/2009 – ISSN: 2175-3059 práticos proibitivos do mentir, teria então um caráter empírico, isto é, um comportamento diverso, sempre dizendo a verdade. Embora isso até possa ser considerado verdadeiro, o que Kant quer dizer é que um outro caráter inteligível daria um outro caráter empírico porque de uma outra lei da causalidade não- empírica resultaria, como efeito, um outro fenômeno. Schopenhauer interpreta a frase em pauta no primeiro sentido com a agravante de compreender o caráter inteligível como caráter moral imutável (no sentido antropológico) 1 . No entanto, Schopenhauer poderia resistir a essa leitura. A base textual mais forte contra a sua tese parece estar em outro lugar, a saber, na seguinte advertência de Kant: Mas porque o caráter inteligível resulta nas circunstâncias existentes, exatamente nestes fenômenos e neste caráter empírico é uma questão que ultrapassa tão de longe a faculdade de nossa razão para responder, e até todo o direito de ela sequer Antropologia de um ponto de vista pragmático, o caráter é a ―propriedade da vontade pela qual o próprio sujeito se liga a princípios práticos determinados que são indefectivamente prescritos por si mesmo através de sua própria razão‖ (p. 139-140 da edição francesa citada). Segundo H. Allison, a ênfase no sentido antropológico de caráter, que ao seu ver surge implicitamente a partir da segunda Crítica, marca uma mudança que deve ser entendida como ―concomitantes às mudanças na teoria moral de Kant produzidas pela introdução do princípio da autonomia‖ (Kant‟s Theory of Freedom, p. 140). 1 Cf. A. SCHOPENHAUER. Sobre o Fundamento da Moral, p. 89. Segundo o ponto de vista de V. Delbos (Op. Cit., 365-367), Schopenhauer retém o substancialismo ―plus ou moins explicite‖ da teoria kantiana do caráter inteligível. Este substancialismo se verificaria na consideração de que a ação resultaria de uma ―determination essencialle de la chose en soi comme chose‖ (p.367). Para Delbos, Kant se inclinaria, na Crítica da Razão Prática a eliminar este pendor substancialista , tomando como origem do caráter uma ação intemporal em sua relação direta com a lei moral‖ (Ibid.). De acordo com Henry E Allison, o contraste entre caráter inteligível e empírico na Crítica da Razão Pura não tem sentido psicológico ou antropológico, mas sim a função de distinguir os modos de operar da causalidade, na medida em que esta pode ser duplamente considerada como causalidade empírica e inteligível (Cf. HENRY ALLISON. ―Entre la cosmología y la autonomía: La teoría kantiana de la libertad en la Crítica de la razón pura‖. p.484-485). H. Allison assinala que Kant também aplica a distinção entre caráter empírico e inteligível ao agente causal, isto é, o sujeito da causalidade, porém, segundo ele, ―não há indicação, ao menos na exposição inicial, de que este sujeito se deva conceber em termos psicológicos, i.é, como pessoa‖ (p.485). Não obstante, Kant, ao afirmar que é pelo caráter empírico ―que podemos considerar o homem quando simplesmente o observamos e quando, tal qual ocorre na Antropologia, pretendemos investigar fisiologicamente as causas de suas ações‖ (CRP B 578) parece sugerir uma aproximação de sentido entre a lei da causalidade empírica e caráter antropologicamente considerado. I Congresso Nacional de Filosofia da UNICENTRO/PR – Guarapuava/PR II Colóquio Kant da Sociedade Kant Brasileira – Seção Paraná – SKB/PR Página8

ANAIS DO I CONGRESSO NACIONAL DE FILOSOFIA DA UNICENTRO<br />

I CONAFIL – 22 A 26/06/2009 – ISSN: 2175-3059<br />

Ora, essa limitação da liberdade a uma escolha, mediante um ato inteligível, <strong>do</strong><br />

nosso ser parece chocar-se com o pensamento de Kant. De fato, Kant afirma que a<br />

―ação (Handlung) é atribuída ao caráter inteligível <strong>do</strong> homem‖ e, na sequencia,<br />

parece tornar-se mais difícil o acor<strong>do</strong> com Schopenhauer quan<strong>do</strong> lemos: ―e agora,<br />

no momento em que mente, ele é totalmente culpa<strong>do</strong>; portanto, desconsideran<strong>do</strong><br />

todas as condições empíricas <strong>do</strong> ato, a razão era integralmente livre, e a mentira é<br />

de to<strong>do</strong> imputável à sua omissão‖ (CRP B 583). Para o meu interesse nessa<br />

discussão importa sublinhar, nessa passagem, as partes ―no momento em que ele<br />

mente‖ e ―a razão era inteiramente livre‖. Parece ser clara a sugestão de Kant de<br />

que a ação particular (no exemplo, a mentira mal<strong>do</strong>sa) resultou de uma razão que<br />

era livre para mentir ou não mentir. 1<br />

No parágrafo seguinte ao da citação acima, Kant argumenta que a razão, embora<br />

estan<strong>do</strong> presente e sen<strong>do</strong> ―sempre a mesma em todas as ações <strong>do</strong> homem em<br />

todas as circunstâncias temporais‖, não é, contu<strong>do</strong>, ―no tempo nem atinge um novo<br />

esta<strong>do</strong> no qual não estava‖ 2 , uma vez que, em relação a este novo esta<strong>do</strong>, ―ela é<br />

determinante, mas não determinável‖. Assim sen<strong>do</strong>, não cabe perguntar por que a<br />

razão não se determinou de outro mo<strong>do</strong>. Poder-se-ia indagar por que a razão<br />

―mediante a sua causalidade (...) não determinou diversamente os fenômenos‖.<br />

Porém, em relação a isto, ―qualquer resposta é impossível. Com efeito, um outro<br />

caráter inteligível teria da<strong>do</strong> um outro caráter empírico‖ (CRP B 584). Se esta última<br />

frase de Kant é isolada, pode-se tomá-la como significan<strong>do</strong> que se um homem que<br />

mente mal<strong>do</strong>samente tivesse um outro caráter moral, isto é, tivesse um outro ―sinal<br />

distintivo ... enquanto ser racional <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de liberdade" 3 que comportasse princípios<br />

1 Na Crítica da Razão Prática Kant afirma que ―satisfazer ao mandamento categórico da moralidade<br />

está em poder de cada um em to<strong>do</strong> tempo‖ (A 64).<br />

2 Veja nota anterior.<br />

3 I. KANT. Anthropologie du point de vue pragmatique, p. 135. É digna de registro a mudança de<br />

senti<strong>do</strong> que o termo ―caráter‖ (Charakter) sofre no pensamento de Kant. Se na Crítica da Razão Pura,<br />

como vemos, caráter é a ―lei da causalidade‖, na Fundamentação da Metafísica <strong>do</strong>s Costumes,<br />

embora sem definição clara, o termo já é toma<strong>do</strong> em outro senti<strong>do</strong> (por exemplo; seção I, §§ 1 e 11,<br />

onde Kant o contrasta com o temperamento, sugerin<strong>do</strong>, no § 1, que caráter seria o mo<strong>do</strong> como a<br />

vontade usa os talentos <strong>do</strong> espírito, as qualidades <strong>do</strong> temperamento e os <strong>do</strong>ns da fortuna). Na<br />

I Congresso Nacional de Filosofia da UNICENTRO/PR – Guarapuava/PR<br />

II Colóquio Kant da Sociedade Kant Brasileira – Seção <strong>Paraná</strong> – SKB/PR<br />

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