A Condessa Vésper - Unama
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— Como estás forte! Como estás belo! E voltando-se para o coronel: www.nead.unama.br — Olhe! olhe! meu pai! veja o Gabriel! Entrou aqui como um raio de sol! Já não há tristezas! exclamava o médico. Já não há tristezas! fugiram as sombras! E abraçava o enteado. — Como tu me dás vida! Como eu te amo, meu filho! E Gaspar, com efeito, parecia outro; estava agora reanimado e feliz. O coronel abraçou o filho de Violante. — Voltaste, afinal, meu pequeno! disse ele procurando sorrir. Fizeste bem! cá estávamos nós outros, como dois tolos, à espera da morte, e afinal chegas tu, que és a vida, a alegria, a mocidade! Com mil cartuchos! Não há como ter vinte anos! — Mas, que escuridão, meu Deus! disse Gabriel olhando em torno de si. Como se pode viver em uma casa fechada deste modo?! E escancarou uma janela que dava para a rua. Uma baforada quente do ruído de fora invadiu com a luz do meio-dia a sala do coronel, e despertou-a do seu fundo entorpecimento. — Que diabo faz este piano paralítico, que não me dá um ar de sua graça? exclamou o rapaz estacando defronte do sombrio instrumento. Ah! supunhas que não te havia de pôr mais os dedos? Ora, espera, meu velho entrevado, que já te vou escovar a alma! E, sem ouvir o coronel, que lhe gritava da cama, Gabriel sacou a capa do velho piano e abriu-o com estrondo. — Olha que me afliges com isso, Gabriel! dizia o pobre veterano. Depois da minha Anita, ninguém mais tocou nessas teclas! Não me faças chorar!... Mas já ninguém o podia ouvir, porque um doido turbilhão de notas enchia a sala com a sonoridade retumbante dos seu ecos. Era um infernal! bailado de Offenbach. As notas palpitavam vertiginosamente no ar adormecido daquela sala, como um bando de máscaras endemoninhadas invadindo uma sacristia. E tudo parecia ir a pouco e pouco revivescendo com o delírio da música. Os graves trastes, cheios de pó e alquebrados de abandono, pareciam resistir ao desejo de atiraram-se aos pinchos do cancã. Os retratos a óleo, o venerando relógio de armário, as estantes, os trenós, o canapé, tudo parecia acordar à mágica fascinação do rei da gargalhada musical. Gaspar esfregava as mãos. — É a mãe tal qual! A mesma vivacidade! a mesma voz a mesma formosura! 58
www.nead.unama.br E limpava os olhos, apressado, para os não ocupar com outra cousa que não fosse Gabriel. — Como é vivo! Como é belo! exclamava ele, com a fisionomia iluminada de amor paterno. Não obstante, o velho coronel chorava silenciosamente a um canto. Só ele não participou da alegria geral; ao contrário, aquela música, petulante e sarcástica, doía-lhe por dentro como um insulto à sua tristeza. A casa palpitava e estremecia na onda vertiginosa das vibrações, quando de súbito assomou à porta o vulto magro do Marmelada, o chapéu para a nuca e as botas encalavradas, a dançar o som do palpitante bailado. O pobre homem tinha, inteiramente fora de seus hábitos e talvez em conseqüência da fome, apanhado uma formidável bebedeira; e, no entanto, não podia ser melhor o impulso que o levava ali; ia prestar um grande serviço, fazer uma revelação importantíssima para o coronel. Depois daquele delírio em que este o expulsara de casa, o infeliz ainda mais se afundara no seu desânimo moral e físico. O sogro mandara chamá-lo por várias vezes, mas Alfredo resmungava que lá não poria os pés! — Haviam-no enxotado, como se enxota um cão; ele porém, é que não voltaria como os cães! Sabia que era um pobre diabo, mas tinha consciência de não fazer mal a ninguém, nem cometer baixezas, para que o tratassem daquele modo! E o caso é que, apesar de toda a sua miséria, nunca mais voltaria com efeito, se não fosse o seguinte: Na manhã desse dia, toscanejava estendido em um dos bancos do Passeio Público, quando dois homens se assentaram no banco imediato, conversando. Alfredo reconheceu-os; eram o comendador Moscoso e o Melo Rosa. O viúvo de Ana fingiu que dormia, escondeu o rosto e prestou ouvidos. Os outros não lhe descobriram as feições, nem desconfiaram de sua presença, tão miserável era o aspecto de Alfredo e tão borracho parecia estar. O comendador, entretanto, ia dizendo, em continuação à sua conversa: — Pois o bicho escondeu-se! Suas mofinas produziram o efeito desejado... Mais umas duas da mesma força, e lavra-se-lhe a certidão de óbito. Foi obra! Melo Rosa tirou uma tira de papel do bolso e leu com intenção: "O nosso coronel, sem milho e crivado de dívidas não sai do buraco, nem à sétima facada; tem medo dos cadáveres, coitado! Mas nós havemos de arrancá-lo do esconderijo, nem que seja a marmelada! Lá diz o outro que macaco velho quando se coça, é que está tramando alguma! Vamos ter nova patifaria! Olho vivo! — A Sentinella.". — Que tal a acha?... perguntou o Melo ao comendador. — Não sei... disse este. Faltava-lhe graça... Você tem sido mais feliz das outras vezes. Veja se faz alguma cousa mais picante, mais mordaz... Melo guardou silenciosamente a tira no bolso, e prometeu arranjar cousa melhor. 59
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E voltando-se para o coronel:<br />
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— Olhe! olhe! meu pai! veja o Gabriel! Entrou aqui como um raio de sol! Já<br />
não há tristezas! exclamava o médico. Já não há tristezas! fugiram as sombras!<br />
E abraçava o enteado.<br />
— Como tu me dás vida! Como eu te amo, meu filho!<br />
E Gaspar, com efeito, parecia outro; estava agora reanimado e feliz.<br />
O coronel abraçou o filho de Violante.<br />
— Voltaste, afinal, meu pequeno! disse ele procurando sorrir. Fizeste bem!<br />
cá estávamos nós outros, como dois tolos, à espera da morte, e afinal chegas tu,<br />
que és a vida, a alegria, a mocidade! Com mil cartuchos! Não há como ter vinte<br />
anos!<br />
— Mas, que escuridão, meu Deus! disse Gabriel olhando em torno de si.<br />
Como se pode viver em uma casa fechada deste modo?!<br />
E escancarou uma janela que dava para a rua.<br />
Uma baforada quente do ruído de fora invadiu com a luz do meio-dia a sala<br />
do coronel, e despertou-a do seu fundo entorpecimento.<br />
— Que diabo faz este piano paralítico, que não me dá um ar de sua graça?<br />
exclamou o rapaz estacando defronte do sombrio instrumento. Ah! supunhas que<br />
não te havia de pôr mais os dedos? Ora, espera, meu velho entrevado, que já te vou<br />
escovar a alma!<br />
E, sem ouvir o coronel, que lhe gritava da cama, Gabriel sacou a capa do<br />
velho piano e abriu-o com estrondo.<br />
— Olha que me afliges com isso, Gabriel! dizia o pobre veterano. Depois da<br />
minha Anita, ninguém mais tocou nessas teclas! Não me faças chorar!...<br />
Mas já ninguém o podia ouvir, porque um doido turbilhão de notas enchia a<br />
sala com a sonoridade retumbante dos seu ecos.<br />
Era um infernal! bailado de Offenbach. As notas palpitavam<br />
vertiginosamente no ar adormecido daquela sala, como um bando de máscaras<br />
endemoninhadas invadindo uma sacristia.<br />
E tudo parecia ir a pouco e pouco revivescendo com o delírio da música. Os<br />
graves trastes, cheios de pó e alquebrados de abandono, pareciam resistir ao desejo<br />
de atiraram-se aos pinchos do cancã.<br />
Os retratos a óleo, o venerando relógio de armário, as estantes, os trenós, o<br />
canapé, tudo parecia acordar à mágica fascinação do rei da gargalhada musical.<br />
Gaspar esfregava as mãos.<br />
— É a mãe tal qual! A mesma vivacidade! a mesma voz a mesma formosura!<br />
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