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Gaspar ficava horas esquecidas a fitá-los, nem que se procurasse descobrir<br />
neles a alma da sua amante. Só aquela criança tinha o mágico poder de interessá-lo<br />
e distraí-lo. Dedicava ao pequeno a maior parte de seu tempo, e por tal forma foi<br />
tomando por ele uma amizade tão profunda e exclusiva, que acabou por fazer de<br />
Gabriel todo o cuidado e toda a preocupação da sua vida.<br />
Passaram-se dois anos. Durante esse tempo, Gaspar havia dado, com o<br />
maior amor e a mais paternal paciência, as primeiras lições ao querido órfão. Seus<br />
negócios estavam concluídos; partiu com ele para o Rio de Janeiro.<br />
O coronel, como todos os que tinham dantes conhecido Gaspar, espantouse<br />
com o aspecto deste; vinha o desgraçado relativamente velho. Nos últimos<br />
tempos entregava-se com exagero ao estudo da medicina e andava a farejar<br />
doentes pobres, que curava de graça.<br />
Foi morar com o pai, na velha propriedade que o coronel possuía em uma<br />
das mais escusas travessas do Catete, e lá vivia ao lado de Gabriel. Começaram<br />
então a distingui-lo pela alcunha de "Médico Misterioso."<br />
Ele próprio se tinha encarregado ainda da instrução primária do enteado, e<br />
dedicava a esse trabalho grande parte do seu lazer. Gabriel o estremecia<br />
loucamente.<br />
E o tempo decorria.<br />
Gaspar era já apontado no Rio de Janeiro como um tipo singular. Parecia<br />
um Positivista ortodoxo. Viam-no passar sombrio e sinistramente calmo, pálido e<br />
misterioso, de olhos fundos e fixos, porte elevado e magro, um tanto curvado, a<br />
conduzir pela mão uma criança, em cuja fisionomia, aliás fresca e pura, se refletia já<br />
a sombra da melancolia que lhe projetara o inseparável companheiro.<br />
Levavam os dois uma vida bem concentrada e tíbia! Gaspar, que se tornara<br />
seco para com todos, gastava, entretanto, boas horas a discorrer com o pupilo.<br />
Ouvia-o com toda atenção. Conversavam, discutiam, como se fossem dois amigos<br />
da mesma idade. Entre eles não havia segredos, tratavam-se por tu, e liam<br />
comumente os mesmos livros.<br />
Ao lado deles definhava o coronel, cujo destino mais se descompunha de dia<br />
para dia. Por este tempo, como para o prostrar de todo, faleceu Ana, a sua filha mais<br />
velha, casada com o empregado público, o inconsciente rival do comendador<br />
Moscoso.<br />
E o viúvo de Ana ausentou-se para Cantagalo, doente e triste. A moléstia da<br />
mulher comera-lhe muito dinheiro e o obrigara a tomar compromissos superiores aos<br />
seus recursos; além disso, a falta de saúde o forçava a prolongar uma licença sem<br />
vencimentos.<br />
Fazia má impressão vê-lo com a sobrecasaca puída do uso e das teimosas<br />
escoriações, com os seus sapatos remontados, o seu espinhoso colarinho a<br />
arrancar-lhe as corcoveias do magro pescoço com as caprichosas franjas dos fiapos<br />
do linho.<br />
O comendador Moscoso sorria de vaidade ao vê-lo passar, tossindo e<br />
arrastando aquele ar de indigência.<br />
— Aquilo mesmo já era de esperar! dizia. Olhem só que tipo! A mulher lá<br />
ficou morta! naturalmente de maus tratos 1 Talvez de fome!<br />
E, para gozar um triunfo completo, meditou os meios de tirar o emprego ao<br />
pobre diabo.<br />
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