A Condessa Vésper - Unama
A Condessa Vésper - Unama A Condessa Vésper - Unama
www.nead.unama.br Já não tinha, porém o relapso, ao lado de Ambrosina, vislumbres dos arroubos da sua paixão de outrora; amava-a de cara fechada, como traga um bêbado a indispensável dose de aguardente, que lhe exige o vício. Mas, ainda assim, existiram juntos quase um ano, ao fundo de um policromo hotelzinho de gente de teatro, por cima do recém-criado Casino da rua do Espírito Santo, que se propunha substituir o Alcazar de saudosa memória popular. E durante esse tempo, valha a verdade, nada de notável ocorreu entre eles, a não ser o próprio fato que de novo os desuniu — um doido capricho de Ambrosina por um hércules francês, que se exibia todas as noites no Círculo do Lavradio; homem belo e brutal, com músculos de bronze, a cujo áspero peso gemia a outonada loureira, sentindo esmagarem-se-lhe as dormentes gelatinas em que se lhe havia derretido pelo corpo o palpitante e branco mármore do passado. A desgraçada o idolatrava, sem a si própria explicar a razão por que. Ele comia-lhe o dinheiro que lhe fariscava nas meias, e batia-lhe com os pés; ela, entre soluços de mulher adorada, dizia-lhe abjeções, cuspia-lhe nas barbas, mas ia, lacrimejante de amor, rebuscá-lo ao fundo das bodegas, para lhe pedir perdão e lhe suplicar que não estivesse a matá-la de ciúmes. O francês levou-a a esfocinhar nas últimas degradações da crápula rasteira, enquanto teve de partir para Buenos Aires com a companhia de funâmbulos a que pertencia, esgueirou-se à sorrelfa, receando que o seu crampon lhe estorvasse a saída. Ambrosina reparou então que o miserável, ainda pior do que fez D. Felipe, lhe carregara com os poucos objetos de valor imediato que lhe restavam, e tratou logo de arranjar meios de encostar-se de novo a Gabriel. Este porém, já de frouxos recursos poderia dispor por esse tempo; achavase quase completamente esgotado em todos os sentidos. Dera ultimamente para beber e jogar por vício, equilibrando a existência pelas alternativas da roleta e do álcool. Tornava-se desleixado em extremo, e até desbridado. Ambrosina conseguiu empolgá-lo de novo, e agora mais do que nunca fazia dele o que bem queria, insultava-o constantemente, e lhe não abria a porta, quando o desgraçado fora de horas lhe chegava ébrio e sem dinheiro. — Vá dormir na estação de polícia, que isto aqui não é lugar de vagabundos! exclamava ela, pondo a cabeça entre as folhas da janela. E, se insistia, despejava-lhe o balde das águas servidas. Mas, nem assim, o pobre diabo a deixava de vez. Uma ocasião afinal, largos meses depois do último aferramento dos dois, Ambrosina, passando de manhã cedo pela rua do Ouvidor, para ir ao Mercado regatear as compras do almoço, viu em uma das vitrinas do Farani, um belo e rico broche de brilhantes. Eram apenas duas pedras, muito fundas, porém, e muito limpas. Ao lado um cartão com letras de ouro dizia que a jóia custava quatro contos de réis. — Ah! meu tempo!... suspirou a filha do comendador Moscoso, a fitar, enamorada e triste, as duas sedutoras gemas. E, depois de muito as contemplar em platônico desejo, soltou um novo e mais fundo suspiro, e lá se foi seguindo o seu caminho, mal amanhada e bamba, levando cravada na alma uma agonia que toda por dentro a encharcava de fel. 232
www.nead.unama.br Ao mercado, inteiramente fora dos seus hábitos de lambareira, fez as compras nesse dia sem se demorar na escolha das vitualhas e sem desfranzir o rosto, passando alheada e torva por entre a pilhas do legumes viçosos e peixes cor de prata que espalhavam no ar o quente aroma das hortas e o frio olor das maresias; e não se deteve um só instante, como costumava, a olhar gulosamente para os montões de frutas frescas e caças despojadas, ou para as relumbrantes serpentes de chouriços e salpicões banhados de gordura, em que das outras vezes deixava a alma pendurada pelos olhos. É que os dois belos brilhantes não lhe saíam da imaginação. Chegou a casa possuída de uma raiva dolorosa e surda, uma como íntima revolta contra a certeza do seu aniquilamento, a dura certeza de que ela, nunca mais seria ninguém. Chorou, chorou muito, arrepelou-se, e pensou em morrer. — Mas por que não hei de eu possuir aqueles brilhantes?! exclamou a miserável a sós com a sua agonia, entre arquejos desabridos. Sim, hão de ser meus! Ainda há nesta carne fibras da Condessa Vésper ! E quando o amante lhe apareceu à tarde, disse-lhe ela secamente: — Ó Gabriel! tens ainda algum dinheiro em depósito? — Quase nada, filha; por quê? — Porque preciso que me compres um broche de brilhantes que vi no Farani; um de duas lindas pedras, levemente azuladas, e engastadas num simples alfinete de ouro. Custa quatro contos... — Estás bêbeda! — Parece-te? Pois fica então sabendo que não tornarás a pôr os pés neste quarto, se não trouxeres os brilhantes contigo! — Vai dormir! Isso passa! À noite, porém, Ambrosina não lhe abriu a porta, como lha não abriu no dia seguinte, nem no outro. Gabriel, que havia caído numa estranha tristeza, resignada e fria, foi então à casa bancária onde depositava o seu dinheiro, e perguntou de quanto ainda dispunha. — Quatro contos e tanto, responderam-lhe. — Passe o recibo. — De tudo? — Sim. Embolsou o dinheiro, tocou para a casa do Farani. Parou defronte do mostrador. Os dois brilhantes, as duas tentações de Ambrosina lá estavam em toda a sua refulgente glória; e o desgraçado estremeceu ao trocar com eles um rápido olhar, como se desse com efeito de surpresa com os olhos de alguém, de algum demônio, do cruel demônio que implacavelmente o perseguia desde o seu primeiro sonho de amor. No meio de um ardente eflúvio de cintilações, feito de acesas cores em que parecia transluzir a alma fulgurante dos minerais preciosos, destacavam-se, a fitar Gabriel, as duas irrequietas pupilas de carbone vivo. Havia a granada e o rubi, com 233
- Page 181 and 182: www.nead.unama.br — Nada... é aq
- Page 183 and 184: Mas, em todo o caso, partiremos ama
- Page 185 and 186: www.nead.unama.br — Este é o Sr.
- Page 187 and 188: www.nead.unama.br — Ele não a le
- Page 189 and 190: www.nead.unama.br em que toca meu d
- Page 191 and 192: CAPÍTULO XXXIX A VEZ DA CIGARRA ww
- Page 193 and 194: www.nead.unama.br Esse sujeito, con
- Page 195 and 196: www.nead.unama.br — Ah! É verdad
- Page 197 and 198: www.nead.unama.br de reformar o jar
- Page 199 and 200: — Venha para cá... disse uma voz
- Page 201 and 202: www.nead.unama.br meu trabalho, tra
- Page 203 and 204: www.nead.unama.br A semanária toss
- Page 205 and 206: www.nead.unama.br O noivo de Estela
- Page 207 and 208: www.nead.unama.br — Pois bem, à
- Page 209 and 210: www.nead.unama.br cousa! Socorra mi
- Page 211 and 212: www.nead.unama.br subserviente e tr
- Page 213 and 214: www.nead.unama.br instintos e de to
- Page 215 and 216: www.nead.unama.br "Foi então que c
- Page 217 and 218: www.nead.unama.br Gustavo despejou-
- Page 219 and 220: www.nead.unama.br O trágico desfec
- Page 221 and 222: www.nead.unama.br E ela, ao lado do
- Page 223 and 224: www.nead.unama.br recolheu à cama,
- Page 225 and 226: www.nead.unama.br — Eu te amo! Eu
- Page 227 and 228: www.nead.unama.br Ambrosina, as sua
- Page 229 and 230: www.nead.unama.br respondido às mi
- Page 231: www.nead.unama.br sonegues quando e
- Page 235: www.nead.unama.br — Hein?! interr
www.nead.unama.br<br />
Ao mercado, inteiramente fora dos seus hábitos de lambareira, fez as<br />
compras nesse dia sem se demorar na escolha das vitualhas e sem desfranzir o<br />
rosto, passando alheada e torva por entre a pilhas do legumes viçosos e peixes cor<br />
de prata que espalhavam no ar o quente aroma das hortas e o frio olor das<br />
maresias; e não se deteve um só instante, como costumava, a olhar gulosamente<br />
para os montões de frutas frescas e caças despojadas, ou para as relumbrantes<br />
serpentes de chouriços e salpicões banhados de gordura, em que das outras vezes<br />
deixava a alma pendurada pelos olhos.<br />
É que os dois belos brilhantes não lhe saíam da imaginação.<br />
Chegou a casa possuída de uma raiva dolorosa e surda, uma como íntima<br />
revolta contra a certeza do seu aniquilamento, a dura certeza de que ela, nunca<br />
mais seria ninguém.<br />
Chorou, chorou muito, arrepelou-se, e pensou em morrer.<br />
— Mas por que não hei de eu possuir aqueles brilhantes?! exclamou a<br />
miserável a sós com a sua agonia, entre arquejos desabridos. Sim, hão de ser<br />
meus! Ainda há nesta carne fibras da <strong>Condessa</strong> <strong>Vésper</strong> !<br />
E quando o amante lhe apareceu à tarde, disse-lhe ela secamente:<br />
— Ó Gabriel! tens ainda algum dinheiro em depósito?<br />
— Quase nada, filha; por quê?<br />
— Porque preciso que me compres um broche de brilhantes que vi no<br />
Farani; um de duas lindas pedras, levemente azuladas, e engastadas num simples<br />
alfinete de ouro. Custa quatro contos...<br />
— Estás bêbeda!<br />
— Parece-te? Pois fica então sabendo que não tornarás a pôr os pés neste<br />
quarto, se não trouxeres os brilhantes contigo!<br />
— Vai dormir! Isso passa!<br />
À noite, porém, Ambrosina não lhe abriu a porta, como lha não abriu no dia<br />
seguinte, nem no outro.<br />
Gabriel, que havia caído numa estranha tristeza, resignada e fria, foi então à<br />
casa bancária onde depositava o seu dinheiro, e perguntou de quanto ainda<br />
dispunha.<br />
— Quatro contos e tanto, responderam-lhe.<br />
— Passe o recibo.<br />
— De tudo?<br />
— Sim.<br />
Embolsou o dinheiro, tocou para a casa do Farani.<br />
Parou defronte do mostrador. Os dois brilhantes, as duas tentações de<br />
Ambrosina lá estavam em toda a sua refulgente glória; e o desgraçado estremeceu<br />
ao trocar com eles um rápido olhar, como se desse com efeito de surpresa com os<br />
olhos de alguém, de algum demônio, do cruel demônio que implacavelmente o<br />
perseguia desde o seu primeiro sonho de amor.<br />
No meio de um ardente eflúvio de cintilações, feito de acesas cores em que<br />
parecia transluzir a alma fulgurante dos minerais preciosos, destacavam-se, a fitar<br />
Gabriel, as duas irrequietas pupilas de carbone vivo. Havia a granada e o rubi, com<br />
233