A Condessa Vésper - Unama
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CAPÍTULO XLV A CONDESSA E A PRINCESA www.nead.unama.br Desceu a rua do Lavradio, atravessou a praça de D. Pedro I sem olhar para os lados, e seguiu pela rua da Carioca até o Largo do Paço. Penetrou no pequeno jardim defronte da Capela Imperial e assentou-se um instante num dos bancos laterais, a olhar abstratamente para o mal iluminado palácio do Imperador, que nessa tarde havia descido de Petrópolis. Depois ergueu-se com um grande suspiro, e, de chapéu na mão e passos lentos, encaminhou-se para uma tasca do Mercado, pediu aguardente de cana, bebeu de um trago mais de meio copo, e tomou afinal a direção do ponto das Barcas Ferri. Ao chegar aí, olhou para o mar; a noite estava límpida e toda afogada de estrelas. Muita gente descia de Niterói; senhoras e mulheres do povo recolhiam-se à Corte, trazendo ao colo, ou arrastando pela mão, crianças tontas de sono que rabujavam. Bateram onze horas. Gustavo comprou o seu bilhete de passagem com os últimos duzentos réis que possuía, cruzou a estação, entrou na barca, subiu à coberta, e foi assentar-se à proa com o cotovelo na grades da amurada e o rosto apoiado a uma das mãos. Ninguém lhe via as lágrimas. Em breve a máquina principiou a roufenhar, movendo no ar os gigantescos braços da balança, e a embarcação começou a mexer-se e a desgarrar-se do pontão flutuante, tranqüila, pesada e lenta, como um terciário paquiderme que abrisse o nado nas suas águas favoritas. Havia poucos passageiros no tombadilho. Um grupo de rapazes, ameijoados num dos bancos do centro, conversava alegremente, dizendo versos em voz alta e falando de poetas brasileiros. Gustavo ouviu pronunciar o seu nome e ouviu declamar sonetos seus. O homem do leme vigiava o horizonte, a espiar o rumo da viagem pelo postigo da sua guarita. E a melancolia do mar erguia-se para o céu, bebendo a luz das estrelas. Gustavo acendeu um cigarro, e pôs-se a andar de uma ponta para a outra do convés. A barca adiantava-se, arfando. Ao meio da baía, ele atirou fora o cigarro, procurou um ponto mais deserto e sombrio ao lado da chaminé, transpôs o gradil da amurada e, de pé sobre as bordas desta, olhou por algum tempo o mar; e depois cerrando os olhos, de um salto se precipitou nele. As águas fecharam-se sobre o seu corpo. — Homem ao mar! gritou surdamente uma voz à popa. Mas ninguém deu por isso, nem se moveu, e a barca continuou inalteravelmente a cortar a baía em direção de São Domingos de Niterói. Só daí a três dias, quando as ondas rejeitaram à praia do Flamengo o cadáver do suicida e a polícia o recolheu ao fúnebre depósito da ladeira da Conceição, pois ainda não estava concluído o necrotério vizinho ao Arsenal de Guerra foi que, pelas circunstância das notícias da imprensa, veio a saber Ambrosina do triste fim da sua recente vítima. 218
www.nead.unama.br O trágico desfecho daquele desgraçado drama de amor e de depravação, que os jornais diários trataram logo de explorar, a impressionou profundamente pelo seu lado espetaculoso, e veio a servir para acrescentar ao novo capricho da loureira pelo tal guarda-marinha de dezoito anos, uma nota sentimental e fatídica, que o tornava muito mais esquisito e saboroso. E a farsante Condessa teria sem dúvida tirado muito maior partido desse teatral episódio da sua espaventosa existência, se nessa ocasião não lhe aparecesse uma alta e sedutora empresa, a que ela de pronto se lançou, sem distração da menor partícula de sua atividade. É que acabava de cair sobre o Rio de Janeiro, depois de uma divertida viagem de correção à volta do mundo civilizado, o famoso e estouvadíssimo príncipe D. Felipe sobrinho, do Imperador e aluno da Escola Militar. D. Felipe era o tormento do velho Monarca, que na sua patriarcal rapidez de atos públicos e privados, nem lhe daria de novo acesso em palácio ao lado dos netos infantes, se não foram as intercessões da virtuosa e compassiva Imperatriz Dona Teresa. D. Pedro II não perdoava ao sobrinho as estroinices e extravagâncias, que às vezes, força é confessar, degeneravam em ribaldaria e maldade. Dera motivo à correcional viagem de que agora tornava sua Alteza, uma terrível diabrura celebrizada nos anais contemporâneos da vida fluminense; e foi que um dia, depois de uma formidável desordem no jardim do Alcazar, a polícia, no meio de grande pancadaria, cadeiras partidas, mesas e cabeças rachadas, colhera vários estudantes da Praia Vermelha, entre os quais se achava o incorrigível príncipe. D. Felipe foi, com os seus colegas de curso acadêmico e companheiros de pândega, conduzido pela força policial à Escola Militar, porque só aí podiam, ele como aqueles, serem submetidos à prisão. Imagine-se em que estado não iriam! Eram três horas da madrugada quando lá chegaram, e o fato, aliás comum, teria passado sem notoriedade, se o demônio do rapaz não se lembrasse de, ao enfrentar com o corpo de guarda da imperial academia, sacar da algibeira o Tosão de Ouro que levava consigo, e, com ele pendurado ao pescoço, entrar solenemente no bélico recinto. Como de rigor, o Oficial de guarda mandou bradar armas ao Tosão de Ouro, o que equivalia a dar sinal da presença do Imperador, pois no Brasil só este até aí ousara servir-se dessa cavalheiresca ordem de Felipe o Bom, apesar de ser ela facultativa aos outros membros varões da família imperial brasileira. Fez-se alarma. Toda a Escola ferveu logo num levante, ao estrugido de tambores e clarins que chamavam a postos o Estado Maior. E os velhos professores tiveram, em sobressalto, de afrontar o seu reumatismo, e precipitarem-se estremunhados aos competentes uniformes de grande gala, para receber a suposta visita de Sua Majestade. Foi por entre a formatura em peso da veneranda corporação da Escola, que D. Felipe, esbodegado e sorridente, atravessou para a prisão. Calcule-se daí o efeito de semelhante escândalo, e por ele quanto se não chocaria o circunspecto Monarca. Agora, de volta à Corte, D. Felipe vira uma vez Ambrosina às pernadas com um pobre cançoneta, naquele mesmo famoso teatrinho onde se engendrara pretexto a referida anedota histórica, e logo correu à caixa para se fazer apresentar à festejada exibicionista de belas formas, procurando incontinente requestá-la de assalto. 219
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O trágico desfecho daquele desgraçado drama de amor e de depravação,<br />
que os jornais diários trataram logo de explorar, a impressionou profundamente pelo<br />
seu lado espetaculoso, e veio a servir para acrescentar ao novo capricho da loureira<br />
pelo tal guarda-marinha de dezoito anos, uma nota sentimental e fatídica, que o<br />
tornava muito mais esquisito e saboroso.<br />
E a farsante <strong>Condessa</strong> teria sem dúvida tirado muito maior partido desse<br />
teatral episódio da sua espaventosa existência, se nessa ocasião não lhe<br />
aparecesse uma alta e sedutora empresa, a que ela de pronto se lançou, sem<br />
distração da menor partícula de sua atividade.<br />
É que acabava de cair sobre o Rio de Janeiro, depois de uma divertida<br />
viagem de correção à volta do mundo civilizado, o famoso e estouvadíssimo príncipe<br />
D. Felipe sobrinho, do Imperador e aluno da Escola Militar.<br />
D. Felipe era o tormento do velho Monarca, que na sua patriarcal rapidez de<br />
atos públicos e privados, nem lhe daria de novo acesso em palácio ao lado dos<br />
netos infantes, se não foram as intercessões da virtuosa e compassiva Imperatriz<br />
Dona Teresa. D. Pedro II não perdoava ao sobrinho as estroinices e extravagâncias,<br />
que às vezes, força é confessar, degeneravam em ribaldaria e maldade.<br />
Dera motivo à correcional viagem de que agora tornava sua Alteza, uma<br />
terrível diabrura celebrizada nos anais contemporâneos da vida fluminense; e foi que<br />
um dia, depois de uma formidável desordem no jardim do Alcazar, a polícia, no meio<br />
de grande pancadaria, cadeiras partidas, mesas e cabeças rachadas, colhera vários<br />
estudantes da Praia Vermelha, entre os quais se achava o incorrigível príncipe.<br />
D. Felipe foi, com os seus colegas de curso acadêmico e companheiros de<br />
pândega, conduzido pela força policial à Escola Militar, porque só aí podiam, ele<br />
como aqueles, serem submetidos à prisão.<br />
Imagine-se em que estado não iriam!<br />
Eram três horas da madrugada quando lá chegaram, e o fato, aliás comum,<br />
teria passado sem notoriedade, se o demônio do rapaz não se lembrasse de, ao<br />
enfrentar com o corpo de guarda da imperial academia, sacar da algibeira o Tosão<br />
de Ouro que levava consigo, e, com ele pendurado ao pescoço, entrar solenemente<br />
no bélico recinto.<br />
Como de rigor, o Oficial de guarda mandou bradar armas ao Tosão de Ouro,<br />
o que equivalia a dar sinal da presença do Imperador, pois no Brasil só este até aí<br />
ousara servir-se dessa cavalheiresca ordem de Felipe o Bom, apesar de ser ela<br />
facultativa aos outros membros varões da família imperial brasileira.<br />
Fez-se alarma. Toda a Escola ferveu logo num levante, ao estrugido de<br />
tambores e clarins que chamavam a postos o Estado Maior.<br />
E os velhos professores tiveram, em sobressalto, de afrontar o seu<br />
reumatismo, e precipitarem-se estremunhados aos competentes uniformes de<br />
grande gala, para receber a suposta visita de Sua Majestade.<br />
Foi por entre a formatura em peso da veneranda corporação da Escola, que<br />
D. Felipe, esbodegado e sorridente, atravessou para a prisão.<br />
Calcule-se daí o efeito de semelhante escândalo, e por ele quanto se não<br />
chocaria o circunspecto Monarca.<br />
Agora, de volta à Corte, D. Felipe vira uma vez Ambrosina às pernadas com<br />
um pobre cançoneta, naquele mesmo famoso teatrinho onde se engendrara pretexto<br />
a referida anedota histórica, e logo correu à caixa para se fazer apresentar à<br />
festejada exibicionista de belas formas, procurando incontinente requestá-la de<br />
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