A Condessa Vésper - Unama
A Condessa Vésper - Unama A Condessa Vésper - Unama
www.nead.unama.br Gustavo retirou-se da casa, abrindo mão de tudo que possuía, menos roupa, livros e manuscritos, e lá se atirou ele para o centro da cidade, à procura de um cômodo mobiliado em um desses coloniais edifícios do tempo da independência, cujas formidáveis e vetustas salas, de paredes de metro e meio, se viam agora tristemente transformadas em verdadeiras colméias de pinho forrado de banalíssimo papel de cor, e aos quais davam os seus sublocatários o pomposo título de "Palacete de hóspedes". Não era muito valioso o espólio do que, a saldo do seu débito, deixara com D. Joana o literato, mas quanta perseverança, e quanta privação de, pequenos gozos vulgares, não representavam esses modestos e adorados móveis, lentamente adquiridos à proporção que iam aparecendo os recursos e se oferecendo as propícias ocasiões! Além dos objetos de utilidade prática, havia também alguns quadros comprados ao belchor e algumas pobres esculturas, que de preciosas só tinham a boa vontade de quem as conservava com tanto carinho. Mas foi-se tudo, e com essas frágeis cousas também se lhe foi o equilíbrio da vida e do trabalho, tão penosamente conquistado, para de novo abrir-se sob seus pés os negros alçapões da boêmia, com todas as suas desordens, martírios e vergonhas, mas sem lhe renascer, ao lado disso, aquela primitiva febre de concepção intelectual, com que dantes o visionário durante longas horas do dia ou da noite desenhava seus romances, apenas alimentando, além de suas esperanças, por um pão comprado na véspera no quiosque da esquina e uma caneca de café nem sempre quentes. Ambrosina, entretanto, ia para com ele se fazendo menos amorosa e muito mais exigente em sacrifícios de ordem moral. Queria agora que Gustavo a acompanhasse todos os dias aos ensaios no Alcazar, e que à noite se conservasse na caixa do teatro enquanto durasse o espetáculo, e que a levasse às compras à rua do Ouvidor, e saísse com ela de carro a passeio pelo Catete e Praia de Botafogo. O rapaz protestava, mostrando a falsa posição e o ridículo que lhe provinham de tudo isso, sem falar no perigo de perder o seu escasso emprego, única fonte de recursos certos que lhe restava. A tais protestos seguiam-se arrufos e rompimentos, que apenas duravam horas e terminavam numa doída explosão de carícias mútuas. Ainda lhe acudiam, todavia, súbitos lampejos de dignidade, e ele nesses lúcidos instantes tentava reagir com ânimo forte, mas Ambrosina, inexoravelmente, se desfazia em lágrimas e soluços, enleando-o todo com inéditos juramentos de amor e mil beijos enlouquecedores, aos quais cedia o desgraçado, cada vez mais prisioneiro e vencido. De outras vezes eram os ciúmes que o arrebatavam. Nessas ocasiões Gustavo perdia de todo a cabeça e esbravejava furioso. Ela, porém, sorria de si para si e bem pouco se movia com tais crises, segura, na sua proveta experiência do amor libertino, de que por simples zelos nenhum homem abandona à mulher amada; e tratava então de seguir a boa tática aconselhada em tais ocasiões. Fechar os braços e negar os lábios, deixando que agora chorasse ele por sua vez, enquanto ela descansava os olhos e a garganta, tranqüilamente à espera dos indefectíveis afagos da reconciliação. E Gustavo entrava cada vez mais fundo no aviltamento, em cujo lodo a sua inteligência, arrastando as asas encharcadas, nem sequer ousava já erguer os chorosos olhos para nenhum dos seus primitivos ideais. Faltava-lhe agora coragem para tudo, para todo e qualquer esforço; era com dificuldade até que ainda comparecia ele de quando em quando ao seu emprego público, apesar das repetidas admoestações do chefe da repartição. Estava desleixado, preguiçoso, 210
www.nead.unama.br subserviente e tristonho. À tarde e à noite, nuns incoercíveis apuros de dinheiro, percorria as casas de jogo, jogando quando podia, e arranjando modos de jogar com as sobras dos alheios lucros, quando de todo lhe faleciam os próprios meios. Um dia recebeu a demissão. O que seria dele agora?... pensava desanimado. Ambrosina, porém, não se mostrou afligida ao receber tal notícia, declarou ao contrário que chegava a estimar o fato, pois assim o seu bebê ficaria dela exclusivamente. E a queda do desgraçado ganhou daí em diante vertiginosas proporções. Gustavo chegou a aceitar obséquios reais da amante, e muitas vezes encontrou nas algibeiras dinheiro, que ele não sabia donde procedia. Revoltou-se a princípio, mas Ambrosina, tapando-lhe a boca com a dela, lhe afogou a última reação do brio com a lama dos seus implacáveis beijos. E assim quase dois anos decorreram. Por essa época justamente morria Genoveva no hospital. A pobre mulher consentira em ir morar com a filha, mas não pudera suportar por muito tempo o triste papel, que ao lado daquela lhe impunham as fatais circunstâncias do meio. Tinha às vezes, bem a contragosto, coitada! de intervir nas degradações de Ambrosina, e isso lhe doía ainda por dentro, como se lhe fosse direito a algum ponto de sua alma, porventura conservado intacto. Doía-lhe a cumplicidade nos embustes e tramóias da filha contra a bolsa dos libertinos ricos, nas mentirosas desculpas aos amantes explorados e iludidos, na comédia, sempre repetida, da conta apresentada por terrível credor no melhor momento de um matinal idílio, cujo preço devia, em boa consciência, estar já compreendido nas largas despesas da noite anterior. E ainda mais lhe doía o ver-se em muitos casos obrigada a comissões degradantes, passando por hipócrita e ávida de propinas quando tentava revoltar-se, fazendo rir quando de todo não podia conter o pranto, e ouvindo monstruosidades quando tentava escapar aos estroinas, que lhe davam palmadas nas ilhargas e derramavam champanha pela cabeça. Em público, a Condessa Vésper achava muita graça em tudo isso, e aplaudia a estroinice dos seus libertinos com gargalhadas profissionais, mas em particular, quando se achava a só com a mãe, tinha para esta palavras de filha e pedia-lhe desculpa daquelas brutalidades. Genoveva, porém, não se consolava e, apesar das suas abstrações de demente, preferiu que a metessem num hospital, e no fim de contas lá morreu, inteiramente desamparada. Ambrosina chorou nesse dia, mas, para não dar na vista, foi até ao Alcazar, e não deitou luto. Pouco depois, Gustavo lhe apareceu uma bela manhã mais expansivo, e tomando-a pela cintura, disse-lhe que tinha arranjado um emprego rendoso, e queria propor-lhe uma cousa... — O que vem a ser?... perguntou ela. — Oh! uma cousa muito séria, cuja realização depende exclusivamente da resposta que me deres ao que te vou perguntar! — O que é? — Diz-me francamente, Ambrosina, tu me amas?... Ambrosina olhou em silêncio para ele, e riu-se. — Não zombes... Responde! Preciso saber se me amas deveras!... — Mas para quê?... — Preciso... Responde! 211
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subserviente e tristonho. À tarde e à noite, nuns incoercíveis apuros de dinheiro,<br />
percorria as casas de jogo, jogando quando podia, e arranjando modos de jogar com<br />
as sobras dos alheios lucros, quando de todo lhe faleciam os próprios meios.<br />
Um dia recebeu a demissão.<br />
O que seria dele agora?... pensava desanimado. Ambrosina, porém, não se<br />
mostrou afligida ao receber tal notícia, declarou ao contrário que chegava a estimar<br />
o fato, pois assim o seu bebê ficaria dela exclusivamente.<br />
E a queda do desgraçado ganhou daí em diante vertiginosas proporções.<br />
Gustavo chegou a aceitar obséquios reais da amante, e muitas vezes encontrou nas<br />
algibeiras dinheiro, que ele não sabia donde procedia.<br />
Revoltou-se a princípio, mas Ambrosina, tapando-lhe a boca com a dela, lhe<br />
afogou a última reação do brio com a lama dos seus implacáveis beijos.<br />
E assim quase dois anos decorreram. Por essa época justamente morria<br />
Genoveva no hospital. A pobre mulher consentira em ir morar com a filha, mas não<br />
pudera suportar por muito tempo o triste papel, que ao lado daquela lhe impunham<br />
as fatais circunstâncias do meio. Tinha às vezes, bem a contragosto, coitada! de<br />
intervir nas degradações de Ambrosina, e isso lhe doía ainda por dentro, como se<br />
lhe fosse direito a algum ponto de sua alma, porventura conservado intacto. Doía-lhe<br />
a cumplicidade nos embustes e tramóias da filha contra a bolsa dos libertinos ricos,<br />
nas mentirosas desculpas aos amantes explorados e iludidos, na comédia, sempre<br />
repetida, da conta apresentada por terrível credor no melhor momento de um matinal<br />
idílio, cujo preço devia, em boa consciência, estar já compreendido nas largas<br />
despesas da noite anterior. E ainda mais lhe doía o ver-se em muitos casos<br />
obrigada a comissões degradantes, passando por hipócrita e ávida de propinas<br />
quando tentava revoltar-se, fazendo rir quando de todo não podia conter o pranto, e<br />
ouvindo monstruosidades quando tentava escapar aos estroinas, que lhe davam<br />
palmadas nas ilhargas e derramavam champanha pela cabeça.<br />
Em público, a <strong>Condessa</strong> <strong>Vésper</strong> achava muita graça em tudo isso, e<br />
aplaudia a estroinice dos seus libertinos com gargalhadas profissionais, mas em<br />
particular, quando se achava a só com a mãe, tinha para esta palavras de filha e<br />
pedia-lhe desculpa daquelas brutalidades. Genoveva, porém, não se consolava e,<br />
apesar das suas abstrações de demente, preferiu que a metessem num hospital, e<br />
no fim de contas lá morreu, inteiramente desamparada.<br />
Ambrosina chorou nesse dia, mas, para não dar na vista, foi até ao Alcazar,<br />
e não deitou luto.<br />
Pouco depois, Gustavo lhe apareceu uma bela manhã mais expansivo, e<br />
tomando-a pela cintura, disse-lhe que tinha arranjado um emprego rendoso, e queria<br />
propor-lhe uma cousa...<br />
— O que vem a ser?... perguntou ela.<br />
— Oh! uma cousa muito séria, cuja realização depende exclusivamente da<br />
resposta que me deres ao que te vou perguntar!<br />
— O que é?<br />
— Diz-me francamente, Ambrosina, tu me amas?...<br />
Ambrosina olhou em silêncio para ele, e riu-se.<br />
— Não zombes... Responde! Preciso saber se me amas deveras!...<br />
— Mas para quê?...<br />
— Preciso... Responde!<br />
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