A Condessa Vésper - Unama
A Condessa Vésper - Unama A Condessa Vésper - Unama
www.nead.unama.br Apareceu a primeira estrela. Então o desterrado sentiu abrir-se-lhe por dentro no coração um fundo e sombrio vale de saudades. Lembrou-se da sua extinta família, das suas afeições interrompidas de toda a sua infância protegida e afagada. Quanta recordação! Naquele dia de seus anos reuniram-se em casa os amigos do pai, fazia-se festa, levavam-lhe presentes. Foi naquele mesmo dia que ele uma vez recebeu de mimo o relógio de ouro, agora empenhado sem esperanças de resgate, como recebeu o anel e o alfinete de gravata já também engolidos pelo mesmo sorvedouro. Depois de muito divagar pelo seu passado ainda quente, Gustavo foi buscar o retrato de sua mãe e, à derradeira luz do crepúsculo, quedou-se a contemplá-lo silenciosamente, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. Dias depois, já o tal jornal em que ele trabalhava havia estourado, ficando a dever-lhe três meses de salário, e o sonhador atravessava as ruas da Corte, a torcer com insistência o buço, nesse ar desconfiado e revesso dos moços de aspirações intelectuais, a quem, fora da família, vieram a faltar de todo os meios de subsistência; cabeça baixa, olhar carregado, roupa no fio e sapatos rotos. Alguns conhecidos seu fingiam não o ver, menos o Reguinho que estava sempre a oferecerlhe fantásticos empregos. Gustavo nessas ocasiões sentia um grande e impotente ódio sufocar-lhe o coração, e mentalmente fazia terríveis projetos de vingança contra tudo e contra todos. As dificuldades reproduziam-se para ele sem trégua, nem resfolgo; cada dia a viver era um problema a resolver. Mas nem por isso se apeava dos seus sonhos, nem se deixava invadir pelo desânimo. Havia de achar furo na vida! havia de descobrir meios de vencer e chegar! havia de escrever os livros que sentia em gestação dentro do seu espírito, e havia de ter o quinhão que era da sua boca, o bocado para o qual a natureza o armara com aqueles belos trinta dentes, que ultimamente lhe serviam mais para rir do que para comer. Que diabo! monologava ele em revolta. Há por aí tanto sujeito, nulo de inteligência e de aptidão para qualquer trabalho, que todavia anda limpo, satisfeito e confortado, por que não hei de eu conseguir ao menos ter o estômago seguro e um abrigo certo, para poder dedicar às letras algumas horas por dia?... De todos esses misteriosos recursos, de que no Rio de Janeiro vivem em grande quantidade certos meliantes que muito consomem e nada produzem, o jogo, o calote, o dinheiro arranjado de empréstimo, as comissões gravadas à sede de pândega e à sensualidade dos ricos inexperientes, de tudo isso não tinha o pobre Gustavo sequer desconfiança na sua sonhadora ingenuidade; e o mesmo fato de se confessar ele necessitado de trabalho, como a sua leal modéstia, a sua franqueza, a sua honestidade enfim, eram outros tantos obstáculos que lhe trancavam os caminhos da vida. De uma vez saiu a correr os colégios do Rio de Janeiro à procura de trabalho. Era impossível que entre tantos e tantos estabelecimentos de educação, não houvesse algum que precisasse dos seus serviços. Entrou no primeiro que encontrou. Veio recebê-lo um velho, cuja fisionomia branda e simpática, e cujos cabelos brancos e respeitáveis, lhe inspiraram logo grande confiança. O velho era o diretor do colégio; fê-lo entrar para a sala e lhe perguntou o que desejava. — Ganhar a vida... disse Gustavo; venho oferecer-lhe os meus serviços... — Como professor?.. — Sim, senhor, ou como simples empregado; estou numa situação da aceitar tu.... 168
www.nead.unama.br — Que matérias sabe o senhor? — Para ensinar sei o português, francês, espanhol, aritmética e desenho. — Nós precisamos justamente de um professor de espanhol; em breve vamos precisar de um de desenho e um substituto de português primário; o que aí está vai tratar-se em Barra Mansa... O rosto de Gustavo tomou logo uma expressão mais animada; o velho, porém, o observava de alto a baixo, com gesto de desconfiança e desagrado. — São justamente as matérias que poderei ensinar melhor. Meu pai era oriental e deu-me lições de espanhol desde muito cedo; no português também estou bem preparado, porque ultimamente tenho estudado com esperança de um concurso; quanto ao desenho, sei o suficiente para ensinar em colégio. O velho, sentado comodamente em uma cadeira de braços, havia já apertado os olhos três ou quatro vezes, esticando os lábios, como quem medita; e depois, a esfregar as mãos nas coxas, perguntou: — Trouxe consigo os seus atestados?... — Que atestados?... — É boa! de professor.. — Ah! Eu não tenho atestados... nunca fui professor... desejo justamente principiar agora... — E olhe que não principia muito tarde! E o velho, levantando-se resolutamente, convidou-o a sair com estas palavras: — Pois, meu caro senhor, sinto muito não lhe ser agradável; mas... neste colégio só se admitem professores garantidos pela Instrução Pública. — Mas, eu me submeto a exame, disse Gustavo, já também de pé; e se não estiver habilitado... — Hei de pensar nisso! respondeu o diretor, sem mais procurar disfarçar a sua impaciência. E fez um gesto com a mão aberta, o qual tanto podia significar "Passe bem!" como "Ponha-se a fresco!" Gustavo saiu, sem dizer uma palavra; no corredor fez uma mesura. — Viva! bocejou o velho, fechando a porta com estrondo. O boêmio desceu as escadas furioso, mas sem desanimar, continuou a farejar trabalho pelos colégios. Uns não precisavam de professor; outros não o podiam admitir, porque ele era muito moço; outros não diziam a razão porque não queriam; outros voltaram à questão dos atestados, e todos o olhavam com a mesma desconfiança e o despediam com a mesma sem-cerimônia. Ao meio-dia, Gustavo achava-se em Botafogo, defronte de um colégio de muito boa aparência. Havia um homem na chácara; o rapaz disse, mesmo da rua, que desejava falar ao Sr. diretor. 169
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Apareceu a primeira estrela.<br />
Então o desterrado sentiu abrir-se-lhe por dentro no coração um fundo e<br />
sombrio vale de saudades. Lembrou-se da sua extinta família, das suas afeições<br />
interrompidas de toda a sua infância protegida e afagada. Quanta recordação!<br />
Naquele dia de seus anos reuniram-se em casa os amigos do pai, fazia-se festa,<br />
levavam-lhe presentes. Foi naquele mesmo dia que ele uma vez recebeu de mimo o<br />
relógio de ouro, agora empenhado sem esperanças de resgate, como recebeu o<br />
anel e o alfinete de gravata já também engolidos pelo mesmo sorvedouro.<br />
Depois de muito divagar pelo seu passado ainda quente, Gustavo foi buscar<br />
o retrato de sua mãe e, à derradeira luz do crepúsculo, quedou-se a contemplá-lo<br />
silenciosamente, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces.<br />
Dias depois, já o tal jornal em que ele trabalhava havia estourado, ficando a<br />
dever-lhe três meses de salário, e o sonhador atravessava as ruas da Corte, a torcer<br />
com insistência o buço, nesse ar desconfiado e revesso dos moços de aspirações<br />
intelectuais, a quem, fora da família, vieram a faltar de todo os meios de<br />
subsistência; cabeça baixa, olhar carregado, roupa no fio e sapatos rotos. Alguns<br />
conhecidos seu fingiam não o ver, menos o Reguinho que estava sempre a oferecerlhe<br />
fantásticos empregos. Gustavo nessas ocasiões sentia um grande e impotente<br />
ódio sufocar-lhe o coração, e mentalmente fazia terríveis projetos de vingança contra<br />
tudo e contra todos.<br />
As dificuldades reproduziam-se para ele sem trégua, nem resfolgo; cada dia<br />
a viver era um problema a resolver. Mas nem por isso se apeava dos seus sonhos,<br />
nem se deixava invadir pelo desânimo. Havia de achar furo na vida! havia de<br />
descobrir meios de vencer e chegar! havia de escrever os livros que sentia em<br />
gestação dentro do seu espírito, e havia de ter o quinhão que era da sua boca, o<br />
bocado para o qual a natureza o armara com aqueles belos trinta dentes, que<br />
ultimamente lhe serviam mais para rir do que para comer.<br />
Que diabo! monologava ele em revolta. Há por aí tanto sujeito, nulo de<br />
inteligência e de aptidão para qualquer trabalho, que todavia anda limpo, satisfeito e<br />
confortado, por que não hei de eu conseguir ao menos ter o estômago seguro e um<br />
abrigo certo, para poder dedicar às letras algumas horas por dia?...<br />
De todos esses misteriosos recursos, de que no Rio de Janeiro vivem em<br />
grande quantidade certos meliantes que muito consomem e nada produzem, o jogo,<br />
o calote, o dinheiro arranjado de empréstimo, as comissões gravadas à sede de<br />
pândega e à sensualidade dos ricos inexperientes, de tudo isso não tinha o pobre<br />
Gustavo sequer desconfiança na sua sonhadora ingenuidade; e o mesmo fato de se<br />
confessar ele necessitado de trabalho, como a sua leal modéstia, a sua franqueza, a<br />
sua honestidade enfim, eram outros tantos obstáculos que lhe trancavam os<br />
caminhos da vida.<br />
De uma vez saiu a correr os colégios do Rio de Janeiro à procura de<br />
trabalho. Era impossível que entre tantos e tantos estabelecimentos de educação,<br />
não houvesse algum que precisasse dos seus serviços. Entrou no primeiro que<br />
encontrou. Veio recebê-lo um velho, cuja fisionomia branda e simpática, e cujos<br />
cabelos brancos e respeitáveis, lhe inspiraram logo grande confiança. O velho era o<br />
diretor do colégio; fê-lo entrar para a sala e lhe perguntou o que desejava.<br />
— Ganhar a vida... disse Gustavo; venho oferecer-lhe os meus serviços...<br />
— Como professor?..<br />
— Sim, senhor, ou como simples empregado; estou numa situação da<br />
aceitar tu....<br />
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