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— É! havemos de ver...<br />
— Ora! estás insuportável!<br />
www.nead.unama.br<br />
Gabriel não ouviu já esta última frase, espetou de novo o seu olhar no teto.<br />
O padrasto fez um gesto de impaciência e pôs-se a andar de um para o outro lado<br />
da sala.<br />
Ouvia-se o relógio palpitar a um canto, e o crepitar das asas de uma abelha,<br />
que lutava contra a vidraça da janela. A casa tinha um profundo ar de tristeza;<br />
sentia-se que nem sempre por ela circulava o ar, e que aquelas paredes e aquele<br />
teto não estavam habituados ao eco alegre do riso de crianças e vozes de mulher.<br />
Gaspar, depois de muitas voltas pela sala, foi postar-se novamente defronte de<br />
Gabriel.<br />
— Então? disse, vendo que o enteado não dera por sua presença.<br />
— Hein? repetiu o rapaz, fitando-o abstratamente.<br />
O médico então se aproximou mais dele, e lhe tomou uma das mãos.<br />
Gabriel deixou cair a cabeça sobre o peito.<br />
Pobre criatura... pensou o padrasto, depois de alguns segundos; muito caro<br />
pagas tu a falta de mãe durante a infância! Não serias assim, inútil e perdido, se nos<br />
teus primeiros anos de mocidade te inoculasse ela com o seu amor, a idéia do bem<br />
e da justiça! E, quem sabe, se não teria eu também grande parte na tua miséria,<br />
meu desgraçado filho?... Fui o teu exemplo, o teu guia, o teu mestre; eu! o menos<br />
competente para isso, pois que me faltava energia, faltava-me fé na própria vida;<br />
faltava-me tudo, menos o tédio e a tristeza; eu sabia que era homem, apenas porque<br />
sofria! E é este despojo, é este espectro de homem, que há vinte anos representa<br />
para ti todo o teu passado e toda tua família! Ah! não serias sem dúvida o que és, se<br />
outro se houvesse encarregado da tua educação moral. Amei-te, só porque vinhas<br />
tu de tua mãe. Quanto egoísmo, meu Deus! E, entretanto, o meu amor nunca te<br />
serviu de benefício, fez-te ao contrário caminhar sempre na inútil sombra da minha<br />
árida tristeza... Eu me revejo em ti, querida vítima!<br />
E Gaspar afastou-se para chorar à vontade. Gabriel deixou-se ficar na<br />
mesma postura, agora com o olhar ferrado no chão.<br />
Pairava-lhe o espírito entre duas vastidões inatingíveis e ambas igualmente<br />
desejadas; uma, porém, toda claridade de luz sidérea e matinal, outra feita de<br />
ardentes chamas agitadas e vermelhas. E os dois infinitos se abraçavam como o<br />
céu se abraça com o oceano. Tranças louras, crespos cabelos negros, anjo e<br />
demônio se confundiam numa única saudade! E o casto e tímido sorriso do anjo era<br />
avidamente bebido pela boca sensual e vermelha do demônio; asas brancas,<br />
cobertas de nupcial e imaculado véu, estalavam nas garras do lúbrico e formoso<br />
monstro vestido de granada e ouro; alva açucena emurchecia e calava o seu virginal<br />
aroma embriagada pelos quentes sândalos do inferno.<br />
Gabriel estava em ambos, e sentia perfeitamente no íntimo do seu desejo,<br />
que, apesar de tudo, se pudesse escolher, ele sacrificaria ainda uma vez o anjo ao<br />
demônio.<br />
E esta convicção torturava como o vício inconfessável. Repugnava-lhe o seu<br />
próprio coração, e sentia a sua alma debaixo dos pés, envergonhada e suja.<br />
A idéia da responsabilidade moral principiava a querer entrar-lhe o espírito, e<br />
o desgraçado fugia dela por compreender que lhe faltava coragem para ser homem.<br />
Daí a sua atual e constante preocupação — o suicídio. A morte lhe parecia a única<br />
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