A Condessa Vésper - Unama

A Condessa Vésper - Unama A Condessa Vésper - Unama

nead.unama.br
from nead.unama.br More from this publisher
19.04.2013 Views

www.nead.unama.br E, o que é mais estranho, Laura, no capricho dos seus arroubos, achava sempre meio de reunir e conciliar os personagens, os fatos e os lugares mais incongruentes e desencontrados. Lera a "Graziela" de Lamartine, e o sentimento de tristeza que a arrebatou com semelhante leitura, bem longe de possuir a ingênua melancolia da procitana apaixonada, levou-a a edificar um dos castelos do seu mundo fantástico nos rochedos de Ischia. E aí mesmo, nesse castelo suspiroso e poético, o encapotado Cativo de Santa Helena penetrou despoticamente para tomar o melhor lugar. Um dia, depois de reler aquela obra, Laura encostou-se à janela, olhando vagamente para as águas. Um italiano, que para à rua com o seu realejo, principia a moer a "Marselhesa". A tarde precipitava-se no crepúsculo, e enchia a natureza de tons melancólicos e doloridos. Laura conhecia algumas passagens da revolução francesa, narradas enfaticamente pelo autor de "Graziela", na "História dos Girondinhos". E aquela pobre música, arrancada de um realejo por um mendigo, foi o bastante para arrastála ao seu mundo fantástico. E então, sob o poderoso domínio do sentimentalismo retórico da Marselhesa, a infeliz caiu vítima de uma crise muito mais forte que as anteriores. As lágrimas saltaram-lhe dos olhos e o coração lhe palpitou com veemência. Teve uma terrível noite de febre e de ansiedade. O pai e a avó viram-se aflitos. O médico cobria-os de perguntas, e olhava atentamente para os olhos expressivos de Laura. — Não é nada... dizia ele depois, em particular ao cocheiro. E segredou-lhe alguma cousa ao ouvido. — Não! não! respondeu Jorge. Isso foi logo que ela entrou nos quatorze anos... Hoje está com dezesseis. — Ela tem algum namoro?... — Qual!... Teve um, mas foi tolice de criança; passou! — Entretanto, aquilo pode converter-se em seria... É preciso casá-la. Desde esse dia, Jorge vivia preocupado com a idéia de casar a. filha. Mas não achava jeito de tocar-lhe no assunto. Além disso, coitada! pensava o bom homem; a quem diabo iria ela escolher para marido?... A pobre rapariga só conhecia gente, que lhe podia encher as medidas! Laura estava, com efeito, na crise fisiológica em que as aves cantam, e terse-ia dedicado exclusivamente a preparar o seu ninho, se, como dizia o pai no seu rude bom senso, houvesse por ali algum rapaz que lhe enchesse as medidas. O vela de Sebo, apesar de toda a sua semelhança com Bonaparte, fora posto à margem, desde que ultimamente dera para emborrachar-se aos domingos. Laura, pois, não tinha a quem dedicar os gorjeios da sua puberdade. Seu canto de amor ficou sem resposta e transformou-se em gemidos, que foram cair aos pés de Ambrosina, como um tesouro sem dono. Eis em que condições olhava, embevecida, a filha do cocheiro, para aquele formoso ser que permanecia prostrado sobre a cama. 120

www.nead.unama.br No quarto reinava o silêncio triste das noites de chuva, só se ouvia a conversa monótona de Jorge, que na sala próxima tomava café com Alfredo, servidos pela velha Benedita. Fez-se mais tarde, e Jorge, depois de cuidado o hóspede, disse aos seus que se recolhessem. Teve-se de armar uma cama para Alfredo, na sala de visitas; Laura dormia ao lado de Ambrosina, no mesmo leito. Daí a meia hora, estavam todos acomodados. Laura fechou as portas do quarto, soltou os cabelos e despiu-se. A amante de Gabriel continuava a dormir. A menina assentou-se perto dela, quedou-se a contemplá-la com um olhar profundamente meigo. A espaços, leves suspiros entreabriam os lábios da adormecida. Laura vergou-se sobre ela e deu-lhe um beijo. CAPÍTULO XXIV O IMPLACÁVEL ALFINETE Foi uma noite de insônia e divagações para a filha do cocheiro. Logo que ela se deitou ao lado de Ambrosina, sentiu um estremecimento nervoso encrespar-lhe a dourada penugem do corpo. Encolheu-se toda, como uma rola acariciada. A luz frouxa de uma lamparina de azeite derramava-se no quarto, deixando perceber confusamente os objetos. Laura, apoiada sobre o cotovelo esquerdo, amparando a cabeça com a mão, tinha, no gracioso abandono íntimo do leito, um profundo ar de enlevo e de melancolia. O colo, meio descoberto, aparecia-lhe através das modestas rendas da camisa, em toda a deliciosa frescura da sua virgindade. Os cabelos caíam-lhe em torno do pescoço, fazendo-lhe destacar a palidez do rosto. A boca, semi-aberta, deixava passar um sorriso amargo e ansioso. Viam-se-lhe os dentes brancos, mais brancos na meia sombra que lhe banhava as feições, e os olhos negros, mais negros no luzir daquele anseio. Ambrosina, a princípio sossegada, começava a agitar-se, e a dizer palavras destacadas e sons inarticulados. Era o delírio da febre. Laura tomou-lhe nas mãos a cabeça e pousou-a em seu colo. A enferma abriu os olhos e encarou-a surpreendida, mas o seu olhar era doce como o beijo de amor. Laura sorriu, assentou-se melhor na cama e puxou de todo Ambrosina para o regaço. Esta, mole de fraqueza, deixou-se-lhe cair sobre as pernas, cingiu-lhe com um dos braços a cintura. Tinha os olhos fechados, a respiração convulsa; a outra lhe acarinhava os cabelos e lhe afagava o corpo, como enfermeira amorosa. E a noite absorvia no seu negro silêncio aquele mistério de ternura. Ouvia-se a voz sibilante dos ventos, que esfuziavam por entre as ripas do telhado, e o marulhar monótono da costa, cujas ondas morriam ali perto, à pequena distância da casa. Ambrosina, afinal, serenou e adormeceu tranqüila, abraçada estreitamente à doce companheira. 121

www.nead.unama.br<br />

No quarto reinava o silêncio triste das noites de chuva, só se ouvia a<br />

conversa monótona de Jorge, que na sala próxima tomava café com Alfredo,<br />

servidos pela velha Benedita.<br />

Fez-se mais tarde, e Jorge, depois de cuidado o hóspede, disse aos seus<br />

que se recolhessem.<br />

Teve-se de armar uma cama para Alfredo, na sala de visitas; Laura dormia<br />

ao lado de Ambrosina, no mesmo leito.<br />

Daí a meia hora, estavam todos acomodados. Laura fechou as portas do<br />

quarto, soltou os cabelos e despiu-se. A amante de Gabriel continuava a dormir. A<br />

menina assentou-se perto dela, quedou-se a contemplá-la com um olhar<br />

profundamente meigo.<br />

A espaços, leves suspiros entreabriam os lábios da adormecida.<br />

Laura vergou-se sobre ela e deu-lhe um beijo.<br />

CAPÍTULO XXIV<br />

O IMPLACÁVEL ALFINETE<br />

Foi uma noite de insônia e divagações para a filha do cocheiro.<br />

Logo que ela se deitou ao lado de Ambrosina, sentiu um estremecimento<br />

nervoso encrespar-lhe a dourada penugem do corpo. Encolheu-se toda, como uma<br />

rola acariciada.<br />

A luz frouxa de uma lamparina de azeite derramava-se no quarto, deixando<br />

perceber confusamente os objetos.<br />

Laura, apoiada sobre o cotovelo esquerdo, amparando a cabeça com a mão,<br />

tinha, no gracioso abandono íntimo do leito, um profundo ar de enlevo e de<br />

melancolia. O colo, meio descoberto, aparecia-lhe através das modestas rendas da<br />

camisa, em toda a deliciosa frescura da sua virgindade. Os cabelos caíam-lhe em<br />

torno do pescoço, fazendo-lhe destacar a palidez do rosto. A boca, semi-aberta,<br />

deixava passar um sorriso amargo e ansioso. Viam-se-lhe os dentes brancos, mais<br />

brancos na meia sombra que lhe banhava as feições, e os olhos negros, mais<br />

negros no luzir daquele anseio.<br />

Ambrosina, a princípio sossegada, começava a agitar-se, e a dizer palavras<br />

destacadas e sons inarticulados. Era o delírio da febre.<br />

Laura tomou-lhe nas mãos a cabeça e pousou-a em seu colo. A enferma<br />

abriu os olhos e encarou-a surpreendida, mas o seu olhar era doce como o beijo de<br />

amor.<br />

Laura sorriu, assentou-se melhor na cama e puxou de todo Ambrosina para<br />

o regaço. Esta, mole de fraqueza, deixou-se-lhe cair sobre as pernas, cingiu-lhe com<br />

um dos braços a cintura. Tinha os olhos fechados, a respiração convulsa; a outra lhe<br />

acarinhava os cabelos e lhe afagava o corpo, como enfermeira amorosa.<br />

E a noite absorvia no seu negro silêncio aquele mistério de ternura. Ouvia-se<br />

a voz sibilante dos ventos, que esfuziavam por entre as ripas do telhado, e o<br />

marulhar monótono da costa, cujas ondas morriam ali perto, à pequena distância da<br />

casa.<br />

Ambrosina, afinal, serenou e adormeceu tranqüila, abraçada estreitamente à<br />

doce companheira.<br />

121

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!