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www.nead.unama.br<br />
A chegada do carro sobressaltou os tranqüilos moradores. Laura veio logo à<br />
porta saber o que havia. A casa não tinha corredor, e via-se, mesmo de fora, a<br />
salinha simples e guarnecida de velhos móveis.<br />
— Ó Laura! gritou o cocheiro, apeando-se. Anda daí a ajudar D. Ambrosina,<br />
que aqui vem a cair de fadiga!<br />
Ambrosina foi recolhida ao melhor lugar e à melhor cama que havia na casa.<br />
Jorge rejubilava na satisfação de prestar aqueles socorros, e recomendava<br />
que nada faltasse aos hóspedes sem calcular o desgraçado o perigo que metia em<br />
casa, e desgraça que preparava para si e para os seus.<br />
Alfredo, aborrecido com o estado das suas calças penetrou na sala do<br />
cocheiro.<br />
Era uma salinha limpa e arejada pelo mar. Havia entre a porta e a janela<br />
uma velha cômoda, sobre a qual ao lado de um silencioso e caduco relógio de metal<br />
amarelo com redoma e peanha, se aprumava sombriamente um Napoleão de gesso,<br />
com o seu olhar de águia debaixo do chapéu à polichinelo, com as suas botas e o<br />
seu capote, com uma das mãos instaladas legendariamente no peito a outra<br />
segurando uma canudo, que queria dizer um óculo<br />
Esse boneco de gesso, ali onde o viam, tivera uma agitadora influência<br />
sobre o obscuro destino de Laura. Aos domingos, quando Jorge reunia alguns<br />
amigos para jantar, era ele o objeto de calorosas discussões; havia sempre na roda<br />
algum cego entusiasta do famoso corso que sacudido um bocado pelo vinho<br />
Figueira do cocheiro divagava de orelha sobre as campanhas napoleônicas,<br />
comunicando o próprio entusiasmo aos companheiros, para os quais os fatos da<br />
vida de Bonaparte tomavam proporções sobrenaturais e divinas.<br />
Laura cresceu e palpitou sob a influência dessas conversas e, sem conhecer<br />
a verdadeira história de Napoleão, deixou-se magnetizar pela cativante poesia da<br />
lenda.<br />
Aos quinze anos, quando toda a donzela constrói o seu ideal de amor pelo<br />
que conhece de mais grandioso e de mais belo, ela formou o seu pela figura de<br />
gesso que ali, ao lado do inocente relógio, se deixara pintalgar pelas moscas desde<br />
o dia do casamento de Jorge.<br />
A pobre sonhadora contava intimamente com a súbita aparição de um jovem<br />
militar, ardente e corajoso, que a tomasse da Praia do Russell e a sentasse no trono<br />
de França. Só depois de muito esperar em vão, foi que se desenganou e se decidiu<br />
aceitar, qualquer outro sujeito, que ao menos se parecesse fisicamente com o<br />
grande homem.<br />
Quem mais estava no caso era o João Braga, por alcunha "O Vela de Sebo",<br />
em razão de sua farinhenta brancura e da sua figura grossa e curta. Um honesto<br />
padeiro, ainda moço, muito parecido efetivamente com o Napoleão de gesso.<br />
Laura ficava horas esquecidas a olhar para o narigão aquilino do Vela de<br />
Sebo, para a sua testa desafrontada, para os seus olhos fundos e carrancudos, para<br />
a sua boca sem lábios, e para aquele enorme queixo, farto e redondo como um<br />
papo.<br />
Ninguém atinava com a razão que levou a bela filha de Jorge, a "Flor do<br />
Russell", a gostar de semelhante criatura.<br />
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