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CAPÍTULO III<br />
ASCENDENTES<br />
www.nead.unama.br<br />
O comendador Moscoso não se podia conformar com a idéia de que ali<br />
estivesse, debaixo de suas telhas e no seio de sua família, o filho do homem a quem<br />
ele mais odiara no mundo, do homem, pelo qual fizera verdadeiros sacrifícios para<br />
vingar-se, e a quem devia as duas mais penosas cenas de toda a sua vida — o filho<br />
do coronel Pinto Leite.<br />
Como há de ver o leitor lá para diante, havia, pouco antes do casamento de<br />
Ambrosina, sofrido o comendador das mãos do coronel, no meio do maior escândalo<br />
social, a maior afronta que se pode fazer a um inimigo.<br />
Todavia, o coronel Pinto Leite fora sempre um modelo de franqueza e de<br />
generosidade. A vida militar dera-lhe à fisionomia e às maneiras certo cunho de<br />
desabrida aspereza, mas ao mesmo tempo lhe temperara o caráter com essa<br />
bondade, natural e seca, que moralmente distingue, dos materialistas sensuais,<br />
ávidos e fracos, os homens castos, sentimentais e fortes.<br />
A história do velho ódio que lhe tributava o comendador vinha de longe, e só<br />
poderá ser bem compreendida com uma rápida exposição dos traços gerais da vida<br />
do coronel.<br />
Pinto Leite, aos vinte anos, como simples alferes, fazia parte das<br />
aventurosas expedições a São Paulo e Minas, quando o Brasil, ainda<br />
estremunhando com a Independência, palpitava nas lutas militares e políticas, que<br />
depois firmaram definitivamente a sua nacionalidade. Fez carreira pelo valor, pela<br />
sisudez de caráter e leal cumprimento do dever. Ainda muito moço já era capitão e<br />
desempenhava os mais honrosos cargos de confiança do governo regencial.<br />
Foi por esse tempo que, em campanha nas fronteiras rio-grandenses, se<br />
enamorou da filha de um estancieiro, e no intervalo de dois combates se casou com<br />
ela. Deste consórcio nasceram primeiro dois filhos gêmeos: Ana e Gaspar, e cinco<br />
anos depois falecia em Uruguai a infeliz mãe, por ocasião de dar à luz mais uma<br />
filha: Virgínia.<br />
A situação política do país havia mudado inteiramente com a precoce e<br />
forçada maioridade do príncipe D. Pedro II, que mal acabava de completar quinze<br />
anos, e o soldado, vendo-se ao cabo da guerra preterido por bisonhos e<br />
engravatados filhotes do novo governo, e de mais a mais viúvo, enfermo de inúteis e<br />
gloriosas feridas, só por ele próprio ainda lembradas, e sobrecarregado com a<br />
responsabilidade da educação de três filhos, pediu e obteve reforma no posto de<br />
coronel, capitalizou o que tinha, e transferiu-se definitivamente para a Corte.<br />
Só então, pela primeira vez na vida, desfrutou paz e estabilidade. Os bens<br />
adquiridos davam-lhe para viver decentemente; e quanto às suas ambições, essas,<br />
pobre delas! quedariam, talvez para sempre, sepultadas na bainha com a sua<br />
desiludida espada de reformado.<br />
Ana e Gaspar, ao lado do viúvo, chegaram aos mais belos e bem<br />
aproveitados dezesseis anos. O rapaz matriculou-se na Academia de Medicina,<br />
enquanto a rapariga, chamando a si os cuidados domésticos da casa, fazia as vezes<br />
de mãe junto à irmã pequena.<br />
Mas, com volver-se púbere, entrou Ana logo a penar no próprio ninho e a<br />
procurar com os olhos, em volta dos seus primeiros devaneios de donzela, quem a<br />
ajudasse a construí-lo.<br />
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