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Espaços de encontro: corporeidade e conhecimento - TV Brasil

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<strong>Espaços</strong> <strong>de</strong> <strong>encontro</strong>:<br />

corporeida<strong>de</strong> e<br />

<strong>conhecimento</strong><br />

BOLETIM 07<br />

MAIO 2005


PROPOSTA PEDAGÓGICA<br />

SUMÁRIO<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO ........................................................... 03<br />

Margarida Serrão<br />

Wilson Costa<br />

PGM 1<br />

O EU E O OUTRO: PARCEIROS ESSENCIAIS ................................................................................................. 15<br />

O Eu e o Outro<br />

Margarida Serrão<br />

PGM 2<br />

EU COMIGO MESMO: O BRINCAR COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE .................... 25<br />

O papel do lúdico na construção do <strong>conhecimento</strong> e do psquismo<br />

Carlos Alberto <strong>de</strong> Mattos Ferreira<br />

PGM 3<br />

O EU, O OUTRO E AS DIFERENÇAS INDIVIDUAIS E CULTURAIS ............................................................... 31<br />

I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença no cotidiano escolar: práticas <strong>de</strong> formação e <strong>de</strong> fabricação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s docentes<br />

Elizeu Clementino <strong>de</strong> Souza<br />

PGM 4<br />

CORPOREIDADE E CONHECIMENTO: A UNICIDADE DO INDIVÍDUO FRENTE À DIVERSIDADE DE<br />

APRENDIZAGENS ............................................................................................................................... 39<br />

Wilson Costa<br />

PGM 5<br />

REDES DE CONVIVÊNCIA E DE ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES .......................................... 50<br />

Antonio Eugenio do Nascimento<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO.<br />

2


PROPOSTA PEDAGÓGICA<br />

<strong>Espaços</strong> <strong>de</strong> <strong>encontro</strong>: corporeida<strong>de</strong> e <strong>conhecimento</strong><br />

Margarida Serrão 1<br />

Wilson Costa 2<br />

À educação cabe uma missão ambígua: preparar a criança e o jovem para a convivência humana e,<br />

portanto, para as relações sociais, o que implica a introjeção das regras e dos valores<br />

convencionados e aceitos coletivamente, reproduzindo os já existentes. Ao mesmo tempo, espera-se<br />

das crianças e dos jovens as mudanças e a quebra das tradições.<br />

Nos tempos em que imperam o pragmatismo, a cultura do lucro a qualquer custo, a exacerbação do<br />

produto, é preciso resgatar um ensino em que o educador ocupe um lugar que possibilite navegar<br />

pelo <strong>conhecimento</strong> ao sabor dos ventos, sem ter a intenção <strong>de</strong> manipular, fazer ren<strong>de</strong>r, obter uma<br />

utilida<strong>de</strong> imediata. É essencial que os educadores reencontrem o prazer <strong>de</strong> compartilhar com seus<br />

alunos a alegria <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões em grupo sobre a organização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong><br />

discutir sobre regras <strong>de</strong> convívio e <strong>de</strong> trabalho, e <strong>de</strong> dividir as responsabilida<strong>de</strong>s para o alcance das<br />

metas individuais e coletivas.<br />

Com o gradual comprometimento dos alunos com os processos <strong>de</strong> planejamento e <strong>de</strong> gerenciamento<br />

das ativida<strong>de</strong>s, a avaliação torna-se contextualizada e po<strong>de</strong> ser entendida na sua condição <strong>de</strong><br />

verificar o que foi alcançado e <strong>de</strong> contribuir para a reorientação do planejamento dos próximos<br />

passos.<br />

No caminho para a construção <strong>de</strong> relações mais favoráveis ao trabalho educativo, <strong>de</strong>ve-se<br />

consi<strong>de</strong>rar o sujeito a partir do seu meio, <strong>de</strong> sua história e <strong>de</strong> suas aprendizagens atuais. Agindo<br />

<strong>de</strong>sta maneira, o aluno percebe-se acolhido e aceito na sua condição <strong>de</strong> indivíduo histórico.<br />

A consciência é uma totalida<strong>de</strong> complexa formada por cognição, motivações e<br />

sentimentos emocionais (Vygotsky, 1993).<br />

A pressão pela homogeneização a que estamos submetidos na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, muitas vezes, leva<br />

o professor a tratar o seu aluno como objeto da pedagogia e da psicologia, esperando respostas que<br />

<strong>de</strong>vem estar <strong>de</strong> acordo com padrões pre<strong>de</strong>terminados pela mídia.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO.<br />

3


É preciso consi<strong>de</strong>rar o aluno-sujeito, aquele que <strong>de</strong>ve ser provocado a resistir à objetivação e à<br />

mecanização que o mundo do consumo impõe. Para tornar esse resgate possível, é necessário pensar<br />

em escolas menores, <strong>de</strong>scentralizadas, regionalizadas, ligadas às comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> bairro, sustentadas<br />

pela cultura local, não com vistas a um fechamento, mas para ganhar o mundo a partir das suas<br />

próprias raízes, construindo o <strong>conhecimento</strong> a partir <strong>de</strong> um saber existente e significante para seus<br />

alunos.<br />

Quando avaliamos as dificulda<strong>de</strong>s da escola e, principalmente, as encontradas pelos professores<br />

para <strong>de</strong>senvolverem os processos <strong>de</strong> ensino-aprendizagem, é necessário refletir sobre a sua<br />

atualida<strong>de</strong>, no que tange às competências e condições essenciais para que ela possa <strong>de</strong>sempenhar o<br />

seu papel <strong>de</strong> mediadora com diferentes linguagens, <strong>conhecimento</strong>s e com a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> grupos<br />

sociais e seus respectivos códigos. É necessário reconhecer que, mesmo em condições adversas <strong>de</strong><br />

trabalho, muitos docentes promovem um ensino <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, contextualizando a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

crianças e jovens, dando mostra <strong>de</strong> que, entre o impossível e o necessário, muita coisa po<strong>de</strong> ser<br />

feita.<br />

Existem diferentes <strong>de</strong>safios para a realização <strong>de</strong> um trabalho que discuta a importância da educação<br />

para a solidarieda<strong>de</strong>, para a convivência, para o <strong>conhecimento</strong> <strong>de</strong> nossa realida<strong>de</strong> cultural, e que<br />

promova a postura crítica dos alunos, quando, por exemplo, os meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa<br />

incitam, com excelente resultado, o imediatismo, o individualismo e o consumo.<br />

A vida nos dias atuais – num mundo cada vez mais baseado na informação e no <strong>conhecimento</strong>,<br />

numa socieda<strong>de</strong> mais aberta e competitiva, com os meios <strong>de</strong> comunicação tornando próximos os<br />

acontecimentos no mundo – mostra-nos, <strong>de</strong> maneira explícita, que a formação educacional básica e<br />

cultural é um dos fatores fundamentais para o alcance <strong>de</strong> melhores condições profissionais no<br />

futuro. Certamente, esta realida<strong>de</strong> aumenta a pressão sobre os profissionais que atuam na escola.<br />

“A escola tem <strong>de</strong> ser a escola do sim e do não, on<strong>de</strong> a prevenção <strong>de</strong>ve afastar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> repressão,<br />

on<strong>de</strong> o espírito <strong>de</strong> colaboração <strong>de</strong>ve evitar as guerras <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ou competitivida<strong>de</strong> mal-entendida, on<strong>de</strong> a<br />

crítica franca e construtiva evita o silêncio roedor ou a apatia empobrecedora e entorpecedora”(Alarcão,<br />

2001, p. 17).<br />

A estrutura escolar permanece concebida em torno dos seguintes princípios: homogeneida<strong>de</strong>,<br />

segmentação, seqüencialida<strong>de</strong> e conformida<strong>de</strong> (Roldão, 2000).<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO.<br />

4


Estes princípios imobilizam a riqueza presente na heterogeneida<strong>de</strong> dos públicos que a freqüentam e<br />

<strong>de</strong> seus saberes e fazeres, discriminando-os pela “ineficiência” <strong>de</strong> suas respostas às expectativas<br />

institucionais, engendradas naqueles princípios.<br />

O re<strong>encontro</strong> com nossas raízes culturais fornece o lastro fundamental sobre o qual se ergue nossa<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, individual e coletiva. Ter história é estar inserido numa or<strong>de</strong>m temporal, numa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

significados e significantes, fazendo parte <strong>de</strong> um tempo que nos prece<strong>de</strong>u e <strong>de</strong> outro que nos<br />

suce<strong>de</strong>rá. Fazer parte <strong>de</strong> uma história é reconhecer um passado e projetar-se num futuro. É ter raízes<br />

e asas. Raízes e asas a partir <strong>de</strong> um corpo habitado por um sujeito que quanto mais se orgulha <strong>de</strong><br />

sua história – individual e coletiva – mais se apropria <strong>de</strong> seu território, mais consciência tem <strong>de</strong> seus<br />

contornos, <strong>de</strong> seus limites e <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s.<br />

Como diz Maria Cristina Kupfer, em seu livro Educação para o Futuro, se o professor não estivesse<br />

tão preocupado em respon<strong>de</strong>r para que serve aquilo que ensina, po<strong>de</strong>ria dizer ao seu aluno:<br />

“Tudo isso não tem mesmo que significar nada, ninguém sabe <strong>de</strong> antemão on<strong>de</strong><br />

um estudo ou as notas musicais ou as palavras vão nos levar. Suporte não saber o<br />

que esse saber significa(...), permita que esse saber venha a produzir os efeitos que<br />

apaziguam – ou enlouquecem –, não procure saber por quê, pois isto é <strong>de</strong>fensivo e<br />

faz frear a busca, jogue-se no rio, molhe-se sem parar para olhar o que está<br />

acontecendo com suas roupas.”<br />

O que está sendo dito é que se o aluno estuda pela obrigação <strong>de</strong> alcançar um resultado<br />

preestabelecido, ele apren<strong>de</strong> muito pouco. Não há espaço para o encantamento e a magia da<br />

<strong>de</strong>scoberta e da criação.<br />

Por uma parte todo sentimento, toda emoção ten<strong>de</strong> a manifestar-se em<br />

<strong>de</strong>terminadas imagens concordantes com ela, como se a emoção pu<strong>de</strong>sse eleger<br />

impressões, idéias, imagens congruentes com o estado <strong>de</strong> ânimo que nos<br />

dominasse naquele instante. Bem sabido é que quando estamos alegres vemos com<br />

olhos totalmente distintos <strong>de</strong> quando estamos tristes (Vygotsky, 1997, p.21).<br />

Uma vez que as contribuições <strong>de</strong> diferentes campos do <strong>conhecimento</strong> – psicologia, sociologia,<br />

pedagogia, psicomotricida<strong>de</strong>, filosofia – apontam para a existência das inter-relações entre o<br />

movimento, os processos <strong>de</strong> representação simbólica, as regras e as emoções, é valido questionar<br />

porque durante tanto tempo a escola não se valeu do potencial das ativida<strong>de</strong>s lúdicas e expressivas<br />

para o <strong>de</strong>senvolvimento cultural, social, cognitivo e afetivo <strong>de</strong> seus alunos.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO.<br />

5


Alguns estudos apontavam que a brinca<strong>de</strong>ira era uma ativida<strong>de</strong> improdutiva, por não apresentar<br />

resultados objetivos e, em muitas ocasiões, favorecer a reprodução <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>sejáveis aos<br />

espaços escolares, classificados como sérios, on<strong>de</strong> a atenção e a <strong>de</strong>dicação não po<strong>de</strong>riam conviver<br />

com as atitu<strong>de</strong>s e expressões <strong>de</strong>correntes das ativida<strong>de</strong>s lúdicas.<br />

Quando observamos o manancial <strong>de</strong> elementos conceituais, atitudinais e procedimentais pré-sentes<br />

na estrutura das ativida<strong>de</strong>s lúdicas, artísticas e <strong>de</strong> movimento e expressão, <strong>de</strong>scortinam-se<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho educativo, inclusive para os conteúdos do ensino formal.<br />

Atualmente, gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>stas ativida<strong>de</strong>s lúdicas é praticada fora da escola, e é, em sua maioria,<br />

<strong>de</strong> domínio <strong>de</strong> meninos e meninas que fazem parte das camadas mais pobres das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s.<br />

Como estas ativida<strong>de</strong>s e eventos são praticados em espaços abertos, e estes se encontram cada vez<br />

mais reduzidos <strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong> segurança e <strong>de</strong> políticas efetivas que estimulem a prática <strong>de</strong>ssas<br />

ativida<strong>de</strong>s, apresenta-se a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> validarmos as expressões culturais como conteúdo<br />

fundamental para a formação do sujeito histórico crítico e, ainda, <strong>de</strong> se discutir o papel e a função<br />

da escola, como um espaço público <strong>de</strong> prática do <strong>conhecimento</strong> e como um lugar promotor <strong>de</strong><br />

<strong>encontro</strong> entre o indivíduo e a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural.<br />

Nada mudou, a força da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social subtrai cada vez mais os espaços <strong>de</strong> inclusão para a<br />

população menos favorecida e <strong>de</strong>stina o excluído à sombra da socieda<strong>de</strong>. Aos pobres restam os<br />

cantos, as favelas, vielas, as sobras, os subempregos, as escolas “sucatadas” e as armas para<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o tráfico <strong>de</strong> drogas.<br />

A imagem <strong>de</strong> si constitui-se a partir dos contextos sociais. Logo, quando o processo é observado<br />

pela ótica <strong>de</strong> como a socieda<strong>de</strong> vê a população excluída, esta geralmente é consi<strong>de</strong>rada como sem<br />

produto, ou seja, carente.<br />

Existe uma falta <strong>de</strong> reflexão sobre as potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta população que, vivendo em condições<br />

tão adversas, apresenta soluções cooperativas para a sobrevivência em questões <strong>de</strong> habitação,<br />

alimentação, adoção, resistência cultural e no enfrentamento da violência praticada pela polícia e<br />

pelas discriminações <strong>de</strong> várias espécies.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO.<br />

6


Estas soluções criativas são traços culturais próprios <strong>de</strong> populações em situação <strong>de</strong> pobreza e<br />

miséria, que <strong>de</strong>monstram, além <strong>de</strong> cooperação e solidarieda<strong>de</strong>, ações inteligentes, fato não<br />

i<strong>de</strong>ntificado nem significado por gran<strong>de</strong> segmento <strong>de</strong> pessoas e instituições que só consi<strong>de</strong>ram o<br />

que o pobre “não tem” e “não é”.<br />

Cultura não tem nada a ver com doutorado; cultura é uma questão <strong>de</strong><br />

sensibilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> valores subjetivos. Por exemplo, a palavra inteligente <strong>de</strong>rivada<br />

do latim ‘intus legeri': aquele que é capaz <strong>de</strong> ler por <strong>de</strong>ntro. Existem pessoas<br />

analfabetas que são sumamente inteligentes, porque captam pessoas e situações<br />

por <strong>de</strong>ntro; isso é cultura (Frei Beto, 2003, p.110).<br />

O olhar estigmatizante das discriminações que recaem sobre os excluídos <strong>de</strong>termina uma imagem<br />

difícil <strong>de</strong> se romper, <strong>de</strong> se <strong>de</strong>svencilhar: o lugar da incapacida<strong>de</strong> e da exclusão. Em contrapartida, as<br />

ausências <strong>de</strong> bons afetos e <strong>de</strong> políticas que atendam às necessida<strong>de</strong>s básicas, sendo estas <strong>de</strong><br />

responsabilida<strong>de</strong> fundamental do Estado, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m-se e reafirmam este olhar condicionante,<br />

resistindo a tudo que não seja realmente interessante, interessado e estável o suficiente para operar<br />

uma mudança das condições subumanas a que estão expostos.<br />

Estudos com pessoas em situação drástica <strong>de</strong> exclusão <strong>de</strong>monstram a dimensão ético-política <strong>de</strong><br />

seus sofrimentos. Moradores <strong>de</strong> favelas não limitam suas necessida<strong>de</strong>s à moradia; clamam por<br />

dignida<strong>de</strong> como na queixa comum <strong>de</strong> que: “as pessoas passam por mim e não me vêem”; “quero me<br />

sentir gente”. As mães e os adolescentes pobres apontam a escola como fonte <strong>de</strong> sentimentos<br />

negativos: tensão, ressentimento, <strong>de</strong>squalificação e expulsão. Ao mesmo tempo, a <strong>de</strong>finem como<br />

uma necessida<strong>de</strong> fundamental, por ser a única esperança <strong>de</strong> tirar as crianças das ruas e <strong>de</strong>ssas<br />

mudarem <strong>de</strong> vida. Talvez por isso ela seja a instituição mais apontada como geradora <strong>de</strong> sofrimento<br />

nas pesquisas (Ba<strong>de</strong>r Burihan Sawaia, 2003, p. 57).<br />

Dentre as instituições sociais, a Família, a Escola e a Socieda<strong>de</strong> Civil Organizada <strong>de</strong>sempenham<br />

importante papel nas discussões sobre quais bases educacionais e i<strong>de</strong>ológicas <strong>de</strong>vem ser<br />

estabelecidos os paradigmas para uma educação que ultrapasse a dimensão dos currículos<br />

previstos para a educação básica, e alcance a amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma visão voltada para o exercício da<br />

cidadania e que seja humanizadora.<br />

A formação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s entre estes atores sociais po<strong>de</strong> contribuir <strong>de</strong>cisivamente para a mobilização<br />

da socieda<strong>de</strong> em busca da operação <strong>de</strong> mudanças significativas neste cenário.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO.<br />

7


O objetivo <strong>de</strong>sta série é socializar as discussões acerca dos valores e sentidos atribuídos<br />

historicamente à corporeida<strong>de</strong> e ao <strong>conhecimento</strong>, revelando seu caráter irredutível e indissociável e<br />

sua prática nos espaços formais e informais <strong>de</strong> educação.<br />

Destacando os elementos conceituais, os valores e as diferentes categorias <strong>de</strong> arte, movimento e<br />

expressão presentes na estrutura das ativida<strong>de</strong>s lúdicas, a série ressalta a importância das trocas<br />

entre o adulto e a criança no início da infância e situa o lugar ocupado pela brinca<strong>de</strong>ira no<br />

<strong>de</strong>senvolvimento. Ao abordar as relações do sujeito com a diversida<strong>de</strong> cultural, principalmente no<br />

convívio com as diferenças, retoma a unicida<strong>de</strong> do indivíduo frente às aprendizagens, recorrendo ao<br />

valor para a qualida<strong>de</strong> da internalização <strong>de</strong>stas quando se apresentam contextualizadas e<br />

significativas para o indivíduo.<br />

Finalizando, aborda o investimento da Socieda<strong>de</strong> Civil para o enfrentamento das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

sociais, no âmbito das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> convivência, tendo como objetivo contribuir para a socieda<strong>de</strong>,<br />

construindo <strong>conhecimento</strong>s e práticas educativas e sociais e, ainda, na proposição <strong>de</strong> políticas<br />

públicas para o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente.<br />

Temas que serão <strong>de</strong>batidos na série: <strong>Espaços</strong> <strong>de</strong> <strong>encontro</strong>: corporeida<strong>de</strong> e <strong>conhecimento</strong> , que<br />

será apresentada no programa Salto para o Futuro/<strong>TV</strong> Escola, <strong>de</strong> 16 a 20 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2005:<br />

PGM 1: O Eu e o Outro: parceiros essenciais<br />

“Encontro <strong>de</strong> dois: Quando estiveres perto, arrancarei os meus olhos e os<br />

colocarei no lugar dos teus. Tu arrancarás os teus olhos e os colocarás no lugar<br />

dos meus. Então, eu te olharei com teus olhos e tu me olharás com os meus.”<br />

(Moreno)<br />

Constituída na história do sujeito que se move e é mobilizado pelas incessantes necessida<strong>de</strong>s<br />

geradas pelas emoções e suas implicações interpessoais e construída no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> seu<br />

<strong>de</strong>senvolvimento por intermédio dos diálogos tônicos com a mãe, ou com quem tenha<br />

<strong>de</strong>sempenhado a função materna, a corporeida<strong>de</strong> traduz o seu sujeito pela sua originalida<strong>de</strong><br />

presencial, <strong>de</strong>finidora da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

A condição do sujeito dialoga sempre com a sua história, construída junto aos outros seus, mesmo<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO.<br />

8


que não sejam consangüíneos, e é constituída <strong>de</strong> afetos e <strong>de</strong> <strong>conhecimento</strong>s gerados pelas suas<br />

interações – emocionais/afetivas, cognitivas e corporais – com o mundo dos objetos e do<br />

<strong>conhecimento</strong>.<br />

A ação mediadora exercida pelo adulto entre a criança e o mundo é fundamental para as noções que<br />

esta construirá, e se manifestará nas suas interações corporais expressivas e verbais com os outros e<br />

os objetos. Logo, torna-se central observarmos como se constitui o sujeito. Qual a importância dos<br />

cuidados e afetos dispensados ao seu <strong>de</strong>senvolvimento nos primeiros anos <strong>de</strong> vida? Que papel está<br />

reservado aos responsáveis, professores e socieda<strong>de</strong> nessa construção? Por que algumas crianças e<br />

jovens parecem lidar com situações adversas e outros a elas sucumbem? Em que medida é possível<br />

intervir no <strong>de</strong>senvolvimento e na subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossos alunos enquanto indivíduos e cidadãos?<br />

Como organizar os ambientes e sobre o que se <strong>de</strong>ve instruir as pessoas diretamente envolvidas na<br />

educação <strong>de</strong> crianças nos primeiros anos <strong>de</strong> vida e na adolescência?<br />

Neste programa, abordaremos os processos <strong>de</strong> humanização e formação do indivíduo durante a<br />

infância e a adolescência, ressaltando o papel constitutivo dos adultos significativos (pais e<br />

educadores) nesses processos. Também analisaremos o conceito <strong>de</strong> resiliência e <strong>de</strong> que modo as<br />

pesquisas realizadas sobre o tema com crianças e jovens po<strong>de</strong>m nortear o relacionamento entre<br />

educadores e educandos.<br />

PGM 2: Eu comigo mesmo: o brincar como espaço <strong>de</strong> construção da subjetivida<strong>de</strong><br />

“O brincar tem um lugar e um tempo...<br />

Para dominar o que está fora, é preciso fazer coisas, não só pensar ou <strong>de</strong>sejar, e<br />

fazer coisas leva tempo.<br />

Brincar é fazer.” (D.W. Winnicott)<br />

O <strong>encontro</strong> da criança consigo mesma se faz através do brincar. É o lúdico que possibilita a<br />

elaboração <strong>de</strong> suas vivências e sentimentos cotidianos. A compreensão dos acontecimentos que lhe<br />

dizem respeito se torna possível pelo reviver que o seu brincar produz, expressando o que ela ainda<br />

não é capaz <strong>de</strong> formular pela linguagem e encontrando alternativas para solucionar impasses da<br />

realida<strong>de</strong>.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO.<br />

9


O adolescente, por sua vez, já é capaz <strong>de</strong> refletir sobre si, seus atos, seu entorno, sua existência, o<br />

sentido da mesma e sua finitu<strong>de</strong>. Contudo, necessita <strong>de</strong> um interlocutor que lhe possibilite<br />

reconhecer-se, inicialmente entre iguais (o grupo), <strong>de</strong>pois como diferente entre iguais, e, finalmente,<br />

como único, mas pertencendo ao conjunto <strong>de</strong> cidadãos, agentes <strong>de</strong> transformação.<br />

A escola po<strong>de</strong> facilitar o <strong>encontro</strong> da criança e do jovem consigo mesmos ou afastá-los <strong>de</strong> si<br />

mesmos. Como fazer do espaço escolar um espaço propiciador do brincar? De que forma os espaços<br />

<strong>de</strong> educação informal – ONGs – , com a oferta <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> arte-educação, po<strong>de</strong>m contribuir<br />

para o fortalecimento da auto-estima e do auto-re<strong>conhecimento</strong>? E que danos po<strong>de</strong>m ocorrer às<br />

crianças a quem isto não se torna possível?<br />

Trataremos neste programa do brincar como espaço privilegiado para o <strong>de</strong>senvolvimento humano,<br />

no qual ocorrem as trocas essenciais à construção da subjetivida<strong>de</strong> e à transmissão dos valores<br />

éticos e culturais.<br />

PGM 3: O Eu, o Outro e as diferenças individuais e culturais<br />

“Quando olhamos, por alto, as pessoas, ressaltam suas diferenças: negros e<br />

brancos, homens e mulheres, seres agressivos e passivos, intelectuais e<br />

emocionais, alegres e tristes, radicais e reacionários. Mas, à medida que<br />

compreen<strong>de</strong>mos os <strong>de</strong>mais, as diferenças <strong>de</strong>saparecem e em seu lugar surge<br />

a unicida<strong>de</strong> humana: as mesmas necessida<strong>de</strong>s, os mesmos temores, as<br />

mesmas lutas e <strong>de</strong>sejos. Todos somos um” (William Schultz).<br />

O exercício da tolerância e da cidadania brota da relação do indivíduo com ele mesmo, que passa<br />

por pessoas próximas, especiais, que possibilitam a sua existência, para então, expandir-se até os<br />

outros.<br />

A forma como os responsáveis, amigos e professores participam da educação da criança colabora<br />

fundamentalmente para a sua construção das noções e valores sobre as coisas, pessoas, crenças,<br />

particularida<strong>de</strong>s históricas e culturais.<br />

Se as relações iniciais incentivam a curiosida<strong>de</strong> em relação à <strong>de</strong>scoberta do mundo e à diversida<strong>de</strong><br />

das características humanas, gran<strong>de</strong>s serão as chances <strong>de</strong> o indivíduo estabelecer convívios<br />

sensíveis e interessados, que levem em conta as riquezas presentes na pluralida<strong>de</strong> manifestada na<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 10


vida humana.<br />

Eis o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio do ser humano: compreen<strong>de</strong>r que todas as pessoas são iguais em relação aos<br />

direitos da existência e diferentes na maneira <strong>de</strong> viver a sua existência.<br />

De que maneira a escola po<strong>de</strong> tornar-se um território favorável à aprendizagem do convívio com a<br />

diferença?<br />

Este programa <strong>de</strong>staca a importância social da escola na promoção do convívio com a diferença,<br />

ressaltando o caráter humanizador da educação e o valor do trabalho com a pluralida<strong>de</strong> cultural.<br />

PGM 4: Corporeida<strong>de</strong> e <strong>conhecimento</strong>: a unicida<strong>de</strong> do indivíduo frente à diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

aprendizagens<br />

“O professor pensa ensinar o que sabe, o que recolheu dos livros e da vida. Mas o<br />

aluno apren<strong>de</strong> do professor não necessariamente o que ele quer ensinar-lhe, mas<br />

aquilo que quer apren<strong>de</strong>r. Assim, o aluno po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r o reverso ou algo<br />

diferente do que o professor ensinou-lhe. Ou, mais ainda, aquilo que o professor<br />

nem sabe que ensinou, mas o aluno reteve. O professor, por isso, ensina também o<br />

que não quer, algo <strong>de</strong> que não se dá conta e que passa silenciosamente pelos<br />

gestos e pelas pare<strong>de</strong>s da sala...” (Affonso Romano <strong>de</strong> Santanna).<br />

O pensamento se constrói a partir do movimento e das linguagens expressivas. O movimento<br />

corporal no espaço e no tempo tem o sentido próprio <strong>de</strong> cada sujeito, traduzido no estilo pessoal.<br />

A exploração do espaço pelo corpo, na ontogênese, é intermediada pelo olhar, pelo toque e pela<br />

palavra orientadora do outro.<br />

Se o pensamento se constitui a partir do movimento e este se opera corporalmente, quais são as<br />

implicações da ausência <strong>de</strong> exploração dos espaços e dos objetos na constituição <strong>de</strong> aprendizagens<br />

que <strong>de</strong>les <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m e <strong>de</strong> que maneira as vivências lúdicas favorecem a constituição da<br />

corporeida<strong>de</strong>? Se apren<strong>de</strong>r requer mobilida<strong>de</strong>, quais as implicações da ausência <strong>de</strong> situações<br />

dinâmicas contextualizadas para a constituição <strong>de</strong> aprendizagens significativas? Como apren<strong>de</strong>r<br />

com corpos estáticos, presos a ca<strong>de</strong>iras enfileiradas nas salas <strong>de</strong> aula? Como incluir as vivências<br />

corporais no dia-a-dia da aprendizagem escolar?<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 11


Por que as escolas não discutem sobre a importância político-pedagógica das aprendizagens <strong>de</strong> arte-<br />

educação – teatro, dança, música, artes visuais, brinquedoteca – e <strong>de</strong> movimento – esportes, lutas,<br />

jogos e brinca<strong>de</strong>iras tradicionais –, explorando <strong>de</strong>vidamente os elementos conceituais e atitudinais<br />

dos seus conteúdos?<br />

Neste programa, abordaremos estas questões, <strong>de</strong>stacando o valor <strong>de</strong>stas ativida<strong>de</strong>s para a construção<br />

da subjetivida<strong>de</strong> e para a construção <strong>de</strong> valores estéticos e éticos.<br />

PGM 5: Re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> convivência e <strong>de</strong> enfrentamento das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

“Estão fechando os sentidos do ser humano, cada vez requer-se mais<br />

intensida<strong>de</strong> (...). Não vemos o que não tem iluminação da tela, nem ouvimos<br />

o que não chega a nós carregados <strong>de</strong> <strong>de</strong>cibéis, nem sentimos o cheiro dos<br />

perfumes.<br />

Temos tempo para reverter esse abandono e esse massacre. O ser humano<br />

sabe fazer dos obstáculos novos caminhos, porque, para a vida, lhe basta o<br />

espaço <strong>de</strong> uma greta para renascer” (Ernesto Sábato. A Resistência .<br />

Buenos Aires, Seix Barral, 2000).<br />

As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> movimento e expressão, lúdicas e artísticas, existem na cultura humana <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu<br />

início e <strong>de</strong>põem sobre as relações do homem com os contextos históricos, culturais, espirituais e<br />

sociais, traduzindo as formas <strong>de</strong> organização social <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e das relações <strong>de</strong> trabalho.<br />

Por um lado, estas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> natureza estética e política sempre proporcionaram a expressão <strong>de</strong><br />

idéias, sentimentos e beleza, e <strong>de</strong>stinavam-se ao ócio. Por outro lado, também eram vistas como<br />

inúteis, sem caráter <strong>de</strong> serieda<strong>de</strong> e utilida<strong>de</strong> para o trabalho.<br />

No <strong>de</strong>correr dos séculos, as instituições educacionais e para a formação cível e militar foram<br />

absorvendo as técnicas empregadas pelos artistas populares, adaptando-as ao seu interesse,<br />

moldando o cidadão <strong>de</strong> acordo com as suas necessida<strong>de</strong>s políticas, militares e econômicas.<br />

Atualmente, ouve-se falar que crianças e jovens pobres <strong>de</strong>vem dançar, cantar, jogar e fazer arte para<br />

ter um futuro melhor. Esta expectativa não só gera uma ilusão quanto <strong>de</strong>stitui todo o caráter <strong>de</strong><br />

respeito à criança e ao jovem como um ser histórico, que <strong>de</strong>ve ser ouvido e consi<strong>de</strong>rado no seu<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 12


momento atual e cobrado pelos seus <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> maneira a<strong>de</strong>quada aos seus direitos, no âmbito da<br />

lei e das regras educativas institucionais.<br />

Hoje, muitas instituições do terceiro setor empreen<strong>de</strong>m seus esforços para o resgate da auto-estima<br />

e para o auto-re<strong>conhecimento</strong> <strong>de</strong> crianças e jovens, através da oferta <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s lúdicas e<br />

expressivas, investindo no seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> gerar trocas interpessoais e valorizar a expressão pessoal.<br />

Estes movimentos têm constituído re<strong>de</strong>s para o enfrentamento às violações <strong>de</strong> direitos e para a<br />

criação <strong>de</strong> espaços culturais, gerando tecnologia social e buscando a valorização <strong>de</strong>stas ativida<strong>de</strong>s<br />

para a educação e inclusão <strong>de</strong> crianças e jovens oriundos da população <strong>de</strong> baixa renda.<br />

Este programa vai abordar a riqueza <strong>de</strong>ste trabalho e apresentar as contribuições que as re<strong>de</strong>s têm<br />

dado à socieda<strong>de</strong> e ao Estado para o enfrentamento das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais.<br />

Referências bibliográficas<br />

CENPEC. Muitos lugares para apren<strong>de</strong>r . São Paulo: Cenpec/Fundação Itaú Social/ Unicef,<br />

2003.<br />

COLL, César. Comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Aprendizagens. Revista Pátio . Porto Alegre: Ed. Artmed,<br />

2002.<br />

COLL, César . Os Conteúdos da Reforma. Porto Alegre: Ed. Artmed, 2000.<br />

COSTA, Wilson. Impresso, 2004.<br />

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. O brincar e suas teorias . São Paulo: Pioneira, 1998.<br />

FERNANDEZ, Alicia. O saber em jogo: a psicopedagogia propiciando autorias <strong>de</strong><br />

pensamento . Trad. Neusa Kern Hickel. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.<br />

_____________. Psicopedagogia em Psicodrama: morando no brincar . Trad. Yara Stela<br />

Rodrigues Avelar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.<br />

GARCIA, Regina Leite et al. O corpo que fala <strong>de</strong>ntro e fora da escola . Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

DP&A Editora, 2002.<br />

KUPFER, Maria Cristina. Educação para o Futuro, psicanálise e educação . São Paulo:<br />

Editora Escuta, 2001.<br />

LEVIN, Esteban. A infância em cena, constituição do sujeito e <strong>de</strong>senvolvimento psicomotor .<br />

Trad. Lúcia Endlich Orth e Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1997.<br />

LEVIN, Esteban. A Clínica Psicomotora: o corpo na linguagem . Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 13


SCHULTZ, William. Todos somos uno, la cultura <strong>de</strong> los encuentros. Buenos Aires: Amorrortu<br />

editores, 1971.<br />

SOARES, Carmen. Imagens da educação no corpo. Campinas, SP: Autores Associados,<br />

1998.<br />

WINNICOTT, D.W. O brincar e a realida<strong>de</strong>. Trad. José Octávio <strong>de</strong> Aguiar Abreu e Vane<strong>de</strong><br />

Nobre. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora, 1971.<br />

VALVERDE, Iracema Almeida. Estatuto da criança e do adolescente. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Expressão e Cultura, 2001.<br />

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1996.<br />

Notas<br />

1 Psicóloga, psicanalista e educadora. Consultora <strong>de</strong>sta série.<br />

2 Professor <strong>de</strong> Educação Física e psicomotricista. Gerente pedagógico da Fundação<br />

Gol <strong>de</strong> Letra. Consultor <strong>de</strong>sta série.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 14


PROGRAMA 1<br />

O EU E O OUTRO: PARCEIROS ESSENCIAIS<br />

O Eu e o Outro<br />

“O maior apetite do homem é <strong>de</strong>sejar ser. Se os olhos olham com amor, o que não<br />

é, tem que ser.”<br />

(Padre Antonio Vieira. Paixões Humanas )<br />

Margarida Serrão( 1)<br />

O momento sociocultural em que vivemos está marcado por duas afirmativas: uma é proveniente da<br />

i<strong>de</strong>ologia capitalista, e a outra é proveniente do <strong>de</strong>senvolvimento científico e tecnológico. A<br />

injunção capitalista que nos captura estabelece que tudo po<strong>de</strong> ser adquirido, basta que tenhamos a<br />

moeda a<strong>de</strong>quada para essa aquisição. A injunção <strong>de</strong>corrente do avanço científico e tecnológico<br />

afirma que é possível sanar todas as nossas dores e faltas através <strong>de</strong> um produto a<strong>de</strong>quado. Se este<br />

produto ainda não está disponível, com mais algum tempo <strong>de</strong> pesquisa e investimento, estará.<br />

Uma socieda<strong>de</strong> centrada em produtos que o indivíduo po<strong>de</strong> ter a qualquer momento, conforme sua<br />

vonta<strong>de</strong>, gera insatisfação constante e leva a uma busca <strong>de</strong>senfreada pelo ter. Ter tudo, ter qualquer<br />

coisa, ter mais.<br />

São esses os tempos em que vivemos. Tempos <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> referenciais, <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> ritos <strong>de</strong><br />

passagem <strong>de</strong> mito e <strong>de</strong> lei. Tempo <strong>de</strong> apagamento das diferenças entre as gerações e entre os sexos.<br />

Como educar nesses tempos?<br />

Etimologicamente, educação significa “a arte <strong>de</strong> cultivar as plantas e fazê-las reproduzir nas<br />

melhores condições possíveis para se auferirem bons resultados” (Dicionário Aurélio). Trata-se,<br />

portanto, <strong>de</strong> uma arte. E como tal, não possui fórmulas prontas, nem receitas. Mas po<strong>de</strong>mos trocar<br />

experiências e refletir sobre o que vemos, ouvimos, <strong>de</strong>scobrimos e experienciamos.<br />

Somos educadores e nossas sementes são crianças e adolescentes, geralmente vivendo em situações<br />

adversas, portanto, em solo árido, e a nós compete uma difícil missão: a <strong>de</strong> contribuirmos como<br />

formadores éticos das novas gerações.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 15


Uma educação é sempre a transmissão <strong>de</strong> um saber. Porém, se consi<strong>de</strong>rarmos verda<strong>de</strong>iro que<br />

educamos mais pelo que somos do que pelo que sabemos, temos que levar em conta, além do<br />

<strong>conhecimento</strong>/informação (<strong>conhecimento</strong> que sabemos possuir), também o saber que não sabemos<br />

ter, ou seja, aquilo que somos e que, inconscientemente, transmitimos.<br />

Por acreditar nessa afirmação, convido você, professor/professora, para uma viagem imaginária,<br />

que relata a trajetória <strong>de</strong> um filhote humano na direção <strong>de</strong> sua constituição enquanto sujeito <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sejo, futuro cidadão.<br />

A Viagem<br />

“Haja hoje - Para tanto hontem.”<br />

(Paulo Leminski)<br />

Quando nasce uma criança, estamos diante <strong>de</strong> um ser com infinitas possibilida<strong>de</strong>s, mas ainda<br />

<strong>de</strong>spreparado para sobreviver por si. Trata-se <strong>de</strong> um filhote humano que só submetido aos cuidados<br />

<strong>de</strong> uma maternagem virá a se constituir num sujeito capaz <strong>de</strong> conviver entre seus pares.<br />

O recém-nascido bebê humano não tem consciência <strong>de</strong> seus contornos, nem <strong>de</strong> se constituir num<br />

ser. É como se fosse constituído <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> partes <strong>de</strong> corpo. Esses fragmentos só se<br />

organizam na estrutura <strong>de</strong> um corpo à medida que são conectados através do toque materno.<br />

Quando as mãos da mãe ensaboam, enxugam, <strong>de</strong>spem, vestem, acariciam, elas vão untando a pele<br />

do bebê com uma cola afetiva que une esses pedaços <strong>de</strong> corpo, dando-lhes sentido e constituindo<br />

uma unida<strong>de</strong>. Dessa colagem também participam a voz e o olhar maternos.<br />

A voz traz o calor do som humano. Rememora uma música ouvida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ventre. Embala e<br />

acalma. Po<strong>de</strong> também assustar, amedrontar, confundir. Ainda que as palavras não queiram dizer<br />

coisa alguma, o tom <strong>de</strong> voz fala. E muito.<br />

O olhar representa o primeiro espelho no qual a criança po<strong>de</strong> se mirar e se reconhecer. Se esse olhar<br />

vem cheio <strong>de</strong> amor e carinho, se é um olhar apaixonado, reflete para o bebê sua imagem como se<br />

fosse um espelho no qual ele se vê muito belo. No olhar da mãe, o bebê se reconhece como um ser<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 16


amável ou <strong>de</strong>sprezível, como presença ou ausência (se o olhar está vazio ou se olha e nada vê) e<br />

assim por diante, em suas variadas nuanças.<br />

Essa ligação tão íntima, simbiótica, entre o bebê e sua mãe, ou quem faz as vezes <strong>de</strong>sta, necessária<br />

nos primeiros dias, semanas, meses, para a constituição <strong>de</strong>sse ser como sujeito, está fadada a se<br />

transformar. Da mesma forma como a gestação se compõe <strong>de</strong> nove meses e, no parto, o cordão<br />

umbilical precisa ser cortado para que mãe e bebê possam sobreviver, também essa ligação íntima<br />

precisa ser cortada para que mãe e filho possam sobreviver como sujeitos. Se esse corte não se<br />

efetua, o filho permanece como o objeto que preenche todos os <strong>de</strong>sejos da mãe e fica<br />

impossibilitado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar ele próprio.<br />

O responsável pelo corte <strong>de</strong>sse cordão simbólico é o pai. É o pai que, ao se introduzir entre a mãe e<br />

seu filho, corta esse outro cordão simbólico, possibilitando que ambos sobrevivam como sujeitos<br />

<strong>de</strong>sejantes, capazes <strong>de</strong> exercer-se individualmente.<br />

Mas gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> nossas crianças não tem pai. E quando não há um pai? Essas crianças não se<br />

constituem sujeitos? Mesmo quando não há, po<strong>de</strong> existir um pai. Porque esse pai <strong>de</strong> carne e osso<br />

que se introduz na relação mãe-filho é um representante do “terceiro”, que entra numa relação dual<br />

e a rompe. Com isso quero dizer que algo ou alguém que <strong>de</strong>sperte o olhar da mãe e afaste esse olhar<br />

do seu filho, preenchendo o seu <strong>de</strong>sejo (da mãe), ocupando a sua atenção e lhe dando prazer, ocupa<br />

o lugar <strong>de</strong> terceiro na relação, executa o corte, como o pai.<br />

Essa dinâmica inicial entre pai-mãe-filho <strong>de</strong>termina a posição que a criança vai assumir nessa<br />

triangulação, estrutura a sua personalida<strong>de</strong> e marca a sua inserção no coletivo, no social.<br />

Dessa forma, cresce a criança, inicialmente como um filhote <strong>de</strong>vorador que se torna humano<br />

quando submetido a uma maternagem e, posteriormente, a uma or<strong>de</strong>m social que lhe é imposta a<br />

partir da separação sofrida com a entrada <strong>de</strong> um terceiro (geralmente o pai) na íntima relação que<br />

mantém com sua mãe.<br />

Filho <strong>de</strong>vorador porque não há limites ao seu querer onipotente: mãe, objetos, mundo, tudo ao seu<br />

redor se oferece ao seu <strong>de</strong>sejo. Só à medida que vai se confrontando com alguns “não”,<br />

naturalmente dados e/ou impostos, e apren<strong>de</strong> a suportar as frustrações que esses “não” acarretam, é<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 17


que vai adquirindo feições humanas, e, conseqüentemente, torna-se capaz <strong>de</strong> participar da<br />

convivência com outros semelhantes, todos submetidos a uma lei maior: não é possível ter tudo.<br />

Desse modo, <strong>de</strong> limite em limite, apren<strong>de</strong>ndo a conviver com frustrações, ao final da infância, a<br />

criança já tem formada a estrutura da sua personalida<strong>de</strong>, assim como possui uma lei interna que lhe<br />

permite aceitar que todos nós estamos submetidos a uma or<strong>de</strong>m que nos suplanta.<br />

É possível, então, reafirmar que:<br />

• Toda criança vem ocupar um lugar preenchido pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> seus pais (ou daqueles que a<br />

criam), por suas fantasias e seus fantasmas. E se reconhece nos significantes que lhe são<br />

atribuídos por eles. Mais tar<strong>de</strong>, essa mesma afirmação po<strong>de</strong> ser feita em relação aos seus<br />

professores.<br />

• Toda criança <strong>de</strong>seja aten<strong>de</strong>r às expectativas dos adultos significantes com os quais convive.<br />

Esses adultos são, via <strong>de</strong> regra, seus pais e, posteriormente, seus professores.<br />

• Toda criança necessita <strong>de</strong> limites ao seu querer onipotente para adquirir “um rosto humano”.<br />

Esses limites geram frustrações que ela apren<strong>de</strong> a suportar e é esta aprendizagem que lhe<br />

permitirá conviver produtivamente com seus pares, inventando saídas criativas para as suas<br />

faltas.<br />

Mas, nossa viagem não se encerra aqui. Ao primeiro trecho, chamado Infância, segue-se o segundo.<br />

Adolescência<br />

“Em mim a anatomia ficou louca<br />

Sou todo coração.”<br />

(Maiakovski)<br />

A adolescência – estamos cansados <strong>de</strong> ouvir e <strong>de</strong> saber – é um tempo difícil. Uma passagem<br />

geralmente turbulenta entre a infância e a juventu<strong>de</strong>. Inicia-se com a puberda<strong>de</strong>, ou seja, com as<br />

transformações biológicas e físicas <strong>de</strong> um corpo que se modifica sem o controle do seu dono. Um<br />

corpo que se modifica à revelia do ser que o habita não é muito fácil <strong>de</strong> suportar. Principalmente se<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 18


está cercado por mo<strong>de</strong>los e promessas <strong>de</strong> corpos perfeitos e padronizados. Imagens i<strong>de</strong>alizadas e<br />

propagan<strong>de</strong>adas pela mídia a serviço do consumo. Assim, o primeiro luto vivido pelo adolescente<br />

diz respeito à perda do corpo <strong>de</strong> criança.<br />

A esse, segue-se o luto pela perda da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> infantil. O adolescente não é mais criança, porém<br />

ainda não é adulto. A perda da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> infantil não atinge só o próprio adolescente, atinge<br />

também os adultos que o cercam.<br />

Imaginemos que uma criança entra em sua sala <strong>de</strong> aula agora e não se trata <strong>de</strong> uma aluna da escola.<br />

Você irá logo perguntar seu nome e, em seguida, <strong>de</strong> quem é filho(a). Essa filiação vai lhe conferir<br />

uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Se, no entanto, é um adulto que aí entra, e não se trata <strong>de</strong> um responsável ou<br />

funcionário, você irá igualmente perguntar-lhe o nome e, em seguida, o que faz. Sua ocupação vai<br />

lhe conferir uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Se, no entanto é um jovem quem chega, você lhe perguntará, com<br />

certeza, o seu nome e, a seguir, o que quer ser. O jovem é uma promessa <strong>de</strong> vir a ser. O futuro é que<br />

lhe conferirá uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

No vazio sobre si mesmo, o adolescente se <strong>de</strong>para com mais uma perda: a quebra da imagem dos<br />

pais, até então entes i<strong>de</strong>alizados, positiva ou negativamente, como todo-po<strong>de</strong>rosos, mágicos,<br />

flagrados agora na sua humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seres falíveis, com <strong>de</strong>feitos, contraditórios, que se enganam.<br />

Essa <strong>de</strong>scoberta é acompanhada <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> confrontação e <strong>de</strong> contestação <strong>de</strong> todas as<br />

normas, regras, idéias que valiam como referências, anteriormente. O primeiro momento da<br />

adolescência é <strong>de</strong> ruptura. Exige dos pais e professores “suportar o tranco”, estabelecer limites<br />

firmes, manter sua autorida<strong>de</strong>.<br />

Nesse espaço aberto entre o que foi, quando criança, e o que será, quando adulto, o adolescente<br />

reedita a sua infância.<br />

E o que é isso que o adolescente reedita da infância?<br />

Ele reedita exatamente o momento do corte necessário para que a vida se faça possível. Só que<br />

agora se trata da sua vida enquanto sujeito que sente, pensa, escolhe. Ele reedita o lugar que ocupa<br />

junto aos pais e a internalização da lei à qual todos estamos submetidos. Essa lei nos fala da<br />

sexualida<strong>de</strong> e da morte, nos fala da escolha <strong>de</strong> um sexo e <strong>de</strong> um objeto <strong>de</strong> amor. Essa lei nos fala da<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 19


nossa própria incompletu<strong>de</strong> e finitu<strong>de</strong>. Para a criança, havia sido prometido um tempo futuro, um<br />

“quando você crescer”. E, em função <strong>de</strong> como a história infantil se inscreveu nesse adolescente, a<br />

história atual será reorganizada, com mais ou menos turbulência.<br />

O segundo momento da adolescência traz movimentos novos. Não se trata mais, em geral, <strong>de</strong><br />

ruptura, mas <strong>de</strong> re<strong>conhecimento</strong>, <strong>de</strong> reorganização, reconstrução e troca. A palavra-chave é<br />

re<strong>conhecimento</strong>. O adolescente em questão quer o re<strong>conhecimento</strong> <strong>de</strong> seus pares e dos adultos<br />

significativos. O adolescente <strong>de</strong> que tratamos quer ser i<strong>de</strong>ntificado como sujeito agente da ação.<br />

Precisa ainda <strong>de</strong> limites, mas postos em novas bases, as bases da troca e da escuta, para que se sinta<br />

reconhecido como um semelhante.<br />

E por que parece tão difícil para pais e professores aten<strong>de</strong>r a esse <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> re<strong>conhecimento</strong>? Talvez<br />

porque isso envolva mudanças <strong>de</strong> posição, que implicam lutos e abertura <strong>de</strong> feridas aparentemente<br />

cicatrizadas, e o surgimento <strong>de</strong> questões que <strong>de</strong>sencavam mágoas infantis, tanto dos adultos quanto<br />

dos jovens.<br />

Po<strong>de</strong>ríamos ficar <strong>de</strong>sanimados ao pensar em marcas irreversíveis, oriundas do passado. Mas é<br />

preciso olhar sob outro ângulo. É justamente porque essas questões são revividas que revisões se<br />

tornam possíveis e novos textos po<strong>de</strong>m ser inseridos na história original.<br />

Os princípios dos novos textos permanecem os mesmos: o vínculo afetivo, a colocação <strong>de</strong> limites, o<br />

respeito mútuo e a confiança no processo <strong>de</strong> crescimento e <strong>de</strong> transformação.<br />

Por vínculo afetivo enten<strong>de</strong>mos a relação <strong>de</strong> caráter libertador que se estabelece entre o adulto<br />

significativo e o jovem, permitindo a expressão <strong>de</strong> questões pessoais em direção à autonomia,<br />

favorecendo novos questionamentos e a quebra <strong>de</strong> rótulos e papéis fixos. Em relação ao educador,<br />

este precisa estar disponível para criar as condições favoráveis para construir algo em comum com<br />

o jovem. Para tal, <strong>de</strong>ve estar consciente do lugar que ocupa e <strong>de</strong> sua importância para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento pessoal e social <strong>de</strong> quem se encontra sob sua responsabilida<strong>de</strong>. Isto implica aceitar<br />

diferenças individuais e o jeito <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> cada um e escutar e acolher a todos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong><br />

afinida<strong>de</strong>s e preferências.<br />

Por colocação <strong>de</strong> limites, enten<strong>de</strong>mos o estabelecimento dos contornos necessários, sem os quais a<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 20


convivência se tornaria impossível. O adolescente espera e precisa dos limites, até mesmo para<br />

confrontá-los. Trata-se dos “não” que lhe garantem a proteção e o espaço seguro para encarar<br />

<strong>de</strong>safios e construir seus próprios contornos e suas próprias regras.<br />

Por respeito mútuo, enten<strong>de</strong>mos a aceitação <strong>de</strong> outras formas <strong>de</strong> pensar, sentir e agir. Respeitar<br />

alguém não é sinônimo <strong>de</strong> concordar com o outro e, sim, <strong>de</strong> respeitar sua individualida<strong>de</strong>, seu ritmo,<br />

suas opiniões, sua imagem, suas origens e escolhas. Isso envolve tanto os professores quanto os<br />

alunos.<br />

Confiar no processo <strong>de</strong> crescimento e <strong>de</strong> transformação do ser humano significa afirmar que<br />

acreditar é possibilitar acontecer. Acreditar que todos temos um potencial que é possível<br />

<strong>de</strong>senvolver, uma história que é possível compartilhar, uma experiência que é possível ressignificar.<br />

A nós, educadores, cabe tocar com mãos <strong>de</strong> escultores a massa ainda bruta – promessa; ver na<br />

matéria-prima, massa bruta, a obra futura – projeto; acreditar que será belo o resultado – espelho.<br />

Estaremos, então, fortalecendo as bases que permitem à criança e ao adolescente imaginar-se<br />

adulto, <strong>de</strong>sejar ser adulto, ter a certeza <strong>de</strong> que vale a pena pagar o preço <strong>de</strong> crescer.<br />

Porque crescer é sempre difícil. Implica per<strong>de</strong>r coisas para ganhar outras. Implica ter coragem <strong>de</strong><br />

admitir os erros, trocar certezas por dúvidas, questionar o impossível, mas realizar o possível.<br />

Notas<br />

1 Psicóloga, psicanalista e educadora. Consultora <strong>de</strong>sta série.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 21


Resiliência<br />

Texto complementar<br />

Resiliência 1<br />

Margarida Serrão 2<br />

Na ausência <strong>de</strong> referenciais, <strong>de</strong> ritos <strong>de</strong> passagem, <strong>de</strong> mito e <strong>de</strong> lei, o adolescente necessita <strong>de</strong> uma<br />

força extraordinária para confrontar-se com a questão do ser e para amenizar a dor <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir-se<br />

mortal e incompleto.<br />

Essa força se faz presente — basta que nosso olhar se <strong>de</strong>tenha ao redor e observe mais<br />

profundamente os movimentos e também as ações positivas produzidas por um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

jovens em suas comunida<strong>de</strong>s, grupos, associações, escolas, a <strong>de</strong>speito das adversida<strong>de</strong>s.<br />

É inevitável que nos perguntemos: Por que alguns jovens crescem <strong>de</strong> modo saudável apesar das<br />

condições sociais e familiares <strong>de</strong>sfavoráveis, enquanto outros sucumbem? Por que crianças em<br />

situação <strong>de</strong> risco não <strong>de</strong>senvolvem o problema ao qual estão expostas e outras <strong>de</strong>le não escapam?<br />

Por que uns e outros não?<br />

Embora compreendamos a importância fundante dos primeiros anos <strong>de</strong> vida na constituição do<br />

sujeito, a existência é um processo multifacetado, dinâmico, que não <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> um mecanismo<br />

<strong>de</strong>terminado. Há sempre possibilida<strong>de</strong>s encobertas <strong>de</strong> superação e recriação.<br />

O conceito <strong>de</strong> resiliência oferece aí um campo <strong>de</strong> reflexão. O termo “resiliência”, em sua origem,<br />

surge no âmbito da engenharia e se refere à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um material para recobrar sua forma<br />

original após ser submetido a uma pressão <strong>de</strong>formadora. Ampliado para o campo das ciências<br />

sociais e humanas, passou a <strong>de</strong>signar a capacida<strong>de</strong> do indivíduo <strong>de</strong> fazer as coisas bem e realizar<br />

ações <strong>de</strong> forma socialmente aceitável em um contexto adverso, que implica alto risco <strong>de</strong> efeitos<br />

negativos.<br />

Estudiosos <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> resiliência em crianças e adolescentes levantam indicadores para nortear a<br />

reflexão e posterior ação <strong>de</strong> pais, professores e educadores sociais. Apontam como componentes <strong>de</strong><br />

uma ação resiliente a resistência ante a <strong>de</strong>struição, ou seja, a capacida<strong>de</strong> para proteger a própria<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 22


integrida<strong>de</strong> ameaçada e a capacida<strong>de</strong> para construir uma saída vital positiva, apesar das<br />

circunstâncias difíceis. Muitas crianças e jovens criados na rua e que conseguiram inserir-se<br />

produtivamente na socieda<strong>de</strong> exemplificam esse ponto, assim como casos <strong>de</strong> sobreviventes <strong>de</strong><br />

campos <strong>de</strong> concentração e afins. Tampouco precisamos <strong>de</strong> exemplos tão extremos; qualquer<br />

situação <strong>de</strong> adversida<strong>de</strong> precoce permite nossa reflexão.<br />

A investigação particularizada <strong>de</strong> crianças e jovens resilientes indica algumas condições entre esses<br />

sujeitos:<br />

• Re<strong>de</strong>s sociais <strong>de</strong> apoio incondicional<br />

Essas re<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m estar representadas pela família, ou pela escola, ou por <strong>de</strong>terminado professor,<br />

ou por um educador social, ou pela união <strong>de</strong> dois ou mais representantes.<br />

A aceitação incondicional da criança (ou do adolescente) não implica a aceitação <strong>de</strong> sua conduta,<br />

mas sim um interesse genuíno por sua pessoa, assim como o oferecimento do espaço <strong>de</strong> escuta<br />

necessário para que a criança ou o adolescente se sintam acolhidos, num clima <strong>de</strong> confiança, a<br />

<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> seus atos.<br />

• Crença em algo superior a si que dá sentido à sua existência<br />

Esse algo superior não diz respeito necessariamente a alguma fé religiosa, mas a algo que<br />

transcen<strong>de</strong> a existência imediata e concreta, oferecendo sentido a ela. Por exemplo: a arte, a música,<br />

a <strong>de</strong>dicação a uma causa.<br />

• Re<strong>conhecimento</strong> <strong>de</strong> possuir algum traço distintivo <strong>de</strong> valor<br />

O sentimento <strong>de</strong> possuir um traço distintivo em relação aos <strong>de</strong>mais, que seja valorizado e contribua<br />

positivamente para a convivência no grupo social, é fonte <strong>de</strong> resiliência.<br />

Conseguir controlar os impulsos em situações-limite e dar conta <strong>de</strong> suas responsabilida<strong>de</strong>s também<br />

representam vitórias significativas, que favorecem uma atitu<strong>de</strong> resiliente ante as adversida<strong>de</strong>s.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 23


• Senso <strong>de</strong> humor<br />

A capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enxergar espaços em situações <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>, em que o humor po<strong>de</strong> instalar-se,<br />

parece abrir alternativas <strong>de</strong> ação e oportunizar a diminuição do sofrimento.<br />

Aceitação dos fracassos, re<strong>conhecimento</strong> do sofrimento, ternura pelo imperfeito, capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

brincar, criativida<strong>de</strong> e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> rir <strong>de</strong> si mesmo são atitu<strong>de</strong>s facilitadoras <strong>de</strong> resiliência. O humor<br />

propriamente dito parece ser, por si só, uma chave motriz da mesma.<br />

Desejo e força<br />

Refletindo sobre o que foi dito acerca da resiliência, é possível entrever inúmeras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

ação geradoras <strong>de</strong>sse potencial presente nos seres humanos. Possibilida<strong>de</strong>s e potencial que não<br />

po<strong>de</strong>mos antecipar, mas apenas apostar em sua existência e atuar a seu favor.<br />

Se os pais dão aos filhos raízes e asas, não são os únicos responsáveis pelo solo no qual essas raízes<br />

se <strong>de</strong>senvolvem, nem pelos ares em que as asas ensaiarão seus vôos.<br />

Para o jovem, lançar-se no futuro é projetar para si os i<strong>de</strong>ais que construiu ao longo <strong>de</strong> sua breve<br />

história. Os adultos significativos aí se incluem como interlocutores na construção <strong>de</strong> seus planos,<br />

escutando anseios, ouvindo questões, interessando-se por suas verda<strong>de</strong>s, respeitando suas escolhas,<br />

reconhecendo seus valores. O projeto <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> um jovem diz respeito ao adulto que ele quer ser,<br />

aos valores pelos quais quer viver e ao tipo <strong>de</strong> vida que <strong>de</strong>seja levar.<br />

É <strong>de</strong>ntro em nós que as coisas são. Admitir-se imperfeito e mortal, reconhecer-se incompleto e<br />

faltante, mas ainda assim capaz <strong>de</strong> exercer-se criativamente, produzindo marcas diferenciais no<br />

entorno, fazendo a diferença no âmbito pessoal e coletivo. Desejo e força.<br />

Notas<br />

1 Texto extraído do artigo “É <strong>de</strong>ntro em nós que as coisas são”, publicado em Escola<br />

da Família. Idéias 32, Edição Comemorativa da Secretaria <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> Educação<br />

<strong>de</strong> São Paulo, Programa Escola da Família.<br />

2 Psicóloga, psicanalista e educadora. Consultora <strong>de</strong>sta série.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 24


PROGRAMA 2<br />

EU COMIGO MESMO: O BRINCAR COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DA<br />

SUBJETIVIDADE<br />

O papel do lúdico na construção do <strong>conhecimento</strong> e do psiquismo 1<br />

Carlos Alberto <strong>de</strong> Mattos Ferreira 2<br />

Brincar <strong>de</strong>riva do latim vinculum , que significa “laço, união e criação <strong>de</strong> vínculos”. Em diversos<br />

idiomas, como o alemão, o inglês, o francês e o espanhol, os termos brincar e jogar são<br />

equivalentes, enquanto que na língua portuguesa <strong>de</strong>tecta-se uma divisão.<br />

A construção da ativida<strong>de</strong> lúdica, presente no jogo e no brinquedo, tem sido objeto <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong><br />

autores em diversas áreas do <strong>conhecimento</strong>, em especial daqueles que são interessados em sua<br />

gênese, no que se refere à infância e à cultura.<br />

Em nosso estudo, propomos apresentar três correntes importantes – no campo da construção do<br />

psiquismo – que estudam as bases da ativida<strong>de</strong> lúdica, a saber: a psicogênese piagetiana, a<br />

perspectiva sócio-histórica da escola russa, em Vygotsky e Leontiev, e as contribuições<br />

psicanalíticas em Freud, Winnicott e Lacan.<br />

Partindo do princípio formulado pelo antropólogo Johan Huizinga (1938-2001), o jogo po<strong>de</strong> ser<br />

consi<strong>de</strong>rado como universal, encontrando-se presente em todas as culturas conhecidas.<br />

A escolha das três correntes que estudam o brincar e o jogo, que serão analisadas neste texto, dizem<br />

respeito aos estudos que mais influenciam e dão suporte teórico e prático aos profissionais e<br />

pesquisadores acerca do papel <strong>de</strong>sempenhado pela função da construção lúdica na organização<br />

psíquica.<br />

O ato <strong>de</strong> brincar e o jogo infantil nem sempre têm seus respectivos valores reconhecidos e<br />

compreendidos, quando o assunto é o <strong>de</strong>senvolvimento infantil e a construção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s.<br />

Compreen<strong>de</strong>-se que, por meio das ativida<strong>de</strong>s lúdicas, o pequeno infans – <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> palavras –<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 25


inicia sua vinculação com o mundo e, em função das experiências <strong>de</strong>sfrutadas, passa a construir<br />

suas representações <strong>de</strong> si, do outro e da realida<strong>de</strong> apreensível em seu contexto sócio-histórico-<br />

afetivo.<br />

Po<strong>de</strong>-se inferir, ainda, que a partir da ação e da linguagem por meio do lúdico, a criança constrói<br />

suas estratégias, o que lhe permite ser reconhecida como sujeito que recria a realida<strong>de</strong>, que busca<br />

escapes ilusórios das <strong>de</strong>terminações históricas, num esforço <strong>de</strong> recuperação das perdas vivenciadas<br />

em função <strong>de</strong> reconstruir sua existência e <strong>de</strong> encontrar um sentido para a vida.<br />

De acordo com as linhas que propomos apresentar, constata-se que a primazia da ação e/ou da<br />

linguagem aparece alternada em função dos suportes teóricos que sustentam a idéia <strong>de</strong> uma<br />

ativida<strong>de</strong> lúdica que seja estruturante <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s e organizadora <strong>de</strong> corporeida<strong>de</strong>s.<br />

Nesse prisma, subjetivida<strong>de</strong>s e corporeida<strong>de</strong>s, constituídas sob a ótica do lúdico, por meio da ação e<br />

da linguagem, serão estudadas em três correntes principais: a psicogênese piagetiana, a sociogênese<br />

vygotskiana e a psicanálise.<br />

1. A psicogênese piagetiana (teoria cognitiva)<br />

A psicogênese piagetiana fundamenta-se nos princípios construtivistas e interacionistas do sujeito<br />

com o objeto da aprendizagem, <strong>de</strong> forma a po<strong>de</strong>r estabelecer critérios <strong>de</strong> hierarquia para<br />

internalização das estruturas do <strong>conhecimento</strong>.<br />

Piaget cria uma Epistemologia Genética, que tem por objetivo estudar a gênese dos processos com<br />

os quais a criança apren<strong>de</strong> a apren<strong>de</strong>r. O mo<strong>de</strong>lo clássico da estrutura dos estágios <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scrito no seguinte enquadre, articulado aos seus correspon<strong>de</strong>ntes<br />

lúdicos:<br />

ESTÁGIOS DO DESENVOLVIMENTO / PROCESSO DE CONSTRUÇÃO LÚDICA<br />

SENSÓRIO-MOTOR JOGOS DE EXERCÍCIOS<br />

PRÉ-OPERATÓRIO JOGOS SIMBÓLICOS<br />

OPERATÓRIO CONCRETO JOGOS COM REGRAS<br />

HIPOTÉTICO DEDUTIVO JOGOS COM REGRAS<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 26


O lúdico po<strong>de</strong> ser compreendido como um processo <strong>de</strong> construção, cuja base remonta às ativida<strong>de</strong>s<br />

sensório-motoras que, submetidas ao <strong>de</strong>senvolvimento da função simbólica e, posteriormente, ao<br />

domínio das regras, inscrevem o sujeito no meio social, através do processo <strong>de</strong> adaptação.<br />

Outro quadro que relaciona os estágios anteriores com a construção das regras po<strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>monstrado a seguir:<br />

Prática das Regras Estágio I: Simples práticas regulares individuais<br />

Regras motoras<br />

Manipulação <strong>de</strong> objetos<br />

Esquemas ritualizados<br />

Estágio II: Imitação dos maiores com egocentrismo<br />

Joga para si, mesmo acompanhada<br />

Estágio III: Cooperação nascente<br />

Vencer / Controle mútuo<br />

Início da unificação das regras<br />

Estágio IV: Interesse e codificação das regras<br />

Consciência autônoma<br />

Objetivida<strong>de</strong><br />

2. A ótica sócio-histórica <strong>de</strong> Vygotsky (teoria da mente)<br />

O processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, em Vygostsky, é observado por meio das transformações<br />

produzidas nas Funções Psíquicas Superiores, já mencionadas anteriormente. Essas funções são<br />

chamadas “superiores” porque são mediadas pela linguagem e estão em oposição às funções<br />

nervosas elementares. O laço familiar, o vínculo cultural, a condição <strong>de</strong> humano são construídos<br />

pelo processo <strong>de</strong> “aprendizagens” a que o ser humano vai estar submetido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu nascimento.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 27


Articulando a relação entre a ativida<strong>de</strong> mediada por signos e instrumentos e a Zona <strong>de</strong><br />

Desenvolvimento Proximal, Vygotsky (1991,1997) introduz a função lúdica, <strong>de</strong>scrita como<br />

brinquedo. O brinquedo, como elemento <strong>de</strong> acesso à realida<strong>de</strong> das relações existentes no mundo e<br />

como agente do <strong>de</strong>senvolvimento infantil, contém todas as tendências do <strong>de</strong>senvolvimento. Em sua<br />

ativida<strong>de</strong> lúdica, a criança po<strong>de</strong> agir <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma esfera imaginativa, produzindo intenções<br />

voluntárias e construindo as bases da criação <strong>de</strong> uma ação planejada.<br />

De acordo com a orientação teórica <strong>de</strong> Vygotsky, todo avanço no processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento está<br />

conectado com uma mudança acentuada nas motivações, tendências e incentivos.<br />

A motivação é sempre relativa à ida<strong>de</strong> da criança: o que motiva um bebê não motiva uma criança <strong>de</strong><br />

quatro anos. As tendências são uma síntese das necessida<strong>de</strong>s e dos <strong>de</strong>sejos da criança, tentando<br />

tornar realizável o irrealizável, tanto por não po<strong>de</strong>r satisfazer imediatamente tais necessida<strong>de</strong>s e<br />

<strong>de</strong>sejos, quanto pela impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agir num mundo real (dos adultos). Por isso, ela cria o<br />

brinquedo.<br />

Os incentivos estão vinculados a <strong>de</strong>terminantes externos que são constituídos pelas influências do<br />

meio social sobre a criança, em diversas relações <strong>de</strong> troca, com adultos, outras crianças e outros<br />

elementos característicos <strong>de</strong> cada cultura, como jogos, brinquedos, representações sociais e acesso a<br />

diferentes tecnologias, entre outros.<br />

Em intercâmbio constante com o seu meio ambiente, a criança, diante do <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> conhecer-se e<br />

<strong>de</strong> conhecer o mundo, constrói sua compreensão da realida<strong>de</strong> pela imaginação e que, em sua<br />

dimensão pragmática, é constituída na interação com o brinquedo.<br />

3. As correntes psicanalíticas<br />

O <strong>de</strong>sejo que dirige o brincar da criança é o <strong>de</strong> tornar-se adulto. Este <strong>de</strong>sejo é guiado pela ilusão<br />

infantil <strong>de</strong> que no mundo adulto todas as fantasias são possíveis <strong>de</strong> ser realizadas.<br />

O brincar e o jogar das crianças são as estratégias básicas <strong>de</strong> comunicação infantil, por meio das<br />

quais elas inventam o mundo e elaboram os impactos exercidos pelos outros.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 28


Freud consi<strong>de</strong>ra que os principais objetivos da civilização são “produzir <strong>conhecimento</strong> e capacida<strong>de</strong><br />

para controlar as forças da natureza” e “criar regulamentos necessários para ajustar as relações dos<br />

homens uns com os outros”.<br />

Sobre a agressivida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer que Freud a compreen<strong>de</strong> como uma expressão primária<br />

original e “auto-consistente, sendo o maior impedimento à civilização”. E, tal como <strong>de</strong>scrita,<br />

encontra-se presente nas diversas ativida<strong>de</strong>s infantis, caracterizadas, essencialmente pelo brincar,<br />

don<strong>de</strong> se observa que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das formas com que as crianças são educadas, po<strong>de</strong>-se afirmar<br />

que não existe ativida<strong>de</strong> lúdica que não apresente expressões <strong>de</strong> fantasias agressivas, tais como<br />

brincar <strong>de</strong> guerra, <strong>de</strong> matar, atirar, ferir e morrer, por exemplo.<br />

O jogo e o brinquedo infantis produzem uma área intermediária, on<strong>de</strong> a criança po<strong>de</strong> experimentar<br />

suas fantasias agressivas sem ser <strong>de</strong>strutiva com os outros e nem ser <strong>de</strong>struída por eles.<br />

Winnicott consi<strong>de</strong>ra que crianças “privadas” e “inquietas” são incapazes <strong>de</strong> brincar. A possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> criar é um estado saudável e a sua impossibilida<strong>de</strong>, uma submissão, torna-se uma base doentia<br />

para toda a vida. Os adultos, em geral, não observam que crianças consi<strong>de</strong>radas como muito<br />

obedientes po<strong>de</strong>m estar prisioneiras <strong>de</strong> uma ação inibitória que as impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar suas<br />

emoções e <strong>de</strong>sejos por meio das brinca<strong>de</strong>iras e da comunicação verbal.<br />

O brincar facilita o crescimento e a saú<strong>de</strong> da criança, conduz aos relacionamentos grupais e é uma<br />

forma <strong>de</strong> comunicação consigo mesma e com os outros.<br />

A constituição das subjetivida<strong>de</strong>s e as origens da fantasia encontram-se no cerne da organização<br />

simbólica dos enigmas fundamentais <strong>de</strong>scritos por Freud: as fantasias da cena primária, da sedução<br />

e da castração, que surgem em função dos enigmas da existência, da sexualida<strong>de</strong> e da diferença<br />

sexual.<br />

No início da vida, fantasia e realida<strong>de</strong> se confun<strong>de</strong>m e, através da primeira, a criança cria uma<br />

estratégia para compensar, pelo jogo, suas experiências dolorosas, <strong>de</strong> tal modo que brincar<br />

possibilita a realização dos <strong>de</strong>sejos. A saída para os obstáculos impostos pelo mundo encontra uma<br />

resolução por meio da fantasia. O brincar e o fantasiar possibilitam a realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 29


Como se po<strong>de</strong> constatar, a ativida<strong>de</strong> lúdica é um elemento básico para a compreensão do<br />

<strong>conhecimento</strong> e do psiquismo humano, merecendo aprofundamento nos estudos e na prática da<br />

educação e da clínica.<br />

Referências bibliográficas<br />

FREUD, S. Além do princípio do prazer . Volume XVIII. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Standard<br />

<strong>Brasil</strong>eira/Imago, 1976.<br />

______________. O Mal-Estar na Civilização . Rio <strong>de</strong> Janeiro, Imago Editora, 1997.<br />

HUIZINGA, J. Homo Lu<strong>de</strong>ns – O jogo como elemento da cultura . São Paulo Editora Perspectiva,<br />

2001.<br />

PIAGET, J. A formação do símbolo na criança – imitação, jogo e sonho, imagem e representação .<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ed. Guanabara Koogan, 1978.<br />

______________. O juízo moral na criança . (1 a ed. 1932) São Paulo, Summus Editorial, São<br />

Paulo, 1994.<br />

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente . 4 ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1991(c).<br />

______________. La imaginacion y el arte en la infância. México, Fontamara, 1997.<br />

VYGOTSKY, L.S. & LURIA, A.R. & LEONTIEV, A. Linguagem, Desenvolvimento e<br />

Aprendizagem . São Paulo, Ícone, 1988.<br />

Notas<br />

1 Doutorando em Medicina Social; Fonoaudiólogo; Psicanalista. Coor<strong>de</strong>nador da<br />

Pós-graduação em Educação Clínica e Psicomotora do IBMR.<br />

2 Artigo publicado em: Fórum, ISSN 1518-2509, volume 9, INES, Rio <strong>de</strong> Janeiro, p.<br />

17-21.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 30


Sinopse<br />

PROGRAMA 3<br />

O EU, O OUTRO E AS DIFERENÇAS INDIVIDUAIS E CULTURAIS<br />

I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença no cotidiano escolar: práticas <strong>de</strong> formação e <strong>de</strong><br />

fabricação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s docentes<br />

Elizeu Clementino <strong>de</strong> Souza 1<br />

“Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa <strong>de</strong> intermédio: pilar da ponte <strong>de</strong><br />

tédio que vai <strong>de</strong> mim para o outro”<br />

(Mário <strong>de</strong> Sá Carneiro).<br />

O texto aborda questões relativas à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e à diferença no cotidiano escolar e as implicações<br />

nas práticas <strong>de</strong> formação. Busca-se discutir aspectos concernentes à fabricação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

docentes e formas historicamente construídas <strong>de</strong> regulação no cotidiano escolar e no<br />

<strong>de</strong>senvolvimento profissional dos professores, a partir das práticas pedagógicas implementadas na<br />

cultura escolar, no tocante à homogeneização das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, em negação à cultura da diferença.<br />

Neste texto, que visa oferecer subsídios aos <strong>de</strong>bates do terceiro programa da série, pretendo discutir<br />

questões teórico-práticas relacionadas à construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e à vivência das diferenças no<br />

cotidiano escolar. Pretendo, também, analisar as implicações da construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

profissional no processo da formação docente e do <strong>de</strong>senvolvimento profissional <strong>de</strong> professores, no<br />

que se refere às diferenças e a interculturalida<strong>de</strong> na escola.<br />

Vivemos numa socieda<strong>de</strong> marcada pela pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imagens e diferenças sociais e culturais. A<br />

escola, por sua vez, buscará <strong>de</strong>senvolver seu projeto pedagógico com ênfase nas diferenças e nas<br />

relações que os indivíduos estabelecem consigo mesmos e com os outros. Convém questionar se<br />

nós, professores, <strong>de</strong>senvolvemos nossas práticas tendo em vista a assunção das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e o<br />

respeito às diferenças. Como po<strong>de</strong>mos viver os projetos <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e do respeito à diversida<strong>de</strong>,<br />

tão presente e marcada na socieda<strong>de</strong> brasileira? De que maneira a escola po<strong>de</strong> tornar-se um<br />

território favorável à aprendizagem do convívio com a diferença?<br />

Compreendo a educação como um processo <strong>de</strong> autotransformação do sujeito, que envolve e provoca<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 31


aprendizagens em diferentes domínios da existência, evi<strong>de</strong>nciando o processo que acontece em cada<br />

sujeito, traduzindo-se na dinâmica que estrutura ou é estruturada por cada um no seu modo <strong>de</strong> ser,<br />

estar, sentir, refletir e agir. Sendo assim, a educação e, por conseqüência, também a formação não se<br />

esbarram na transmissão e aquisição <strong>de</strong> saberes, na transferência <strong>de</strong> competências técnicas e<br />

profissionais e, tampouco, na assertiva das potencialida<strong>de</strong>s individuais. Filio-me à perspectiva<br />

epistemológica da formação experiencial, por enten<strong>de</strong>r que a noção <strong>de</strong> processo <strong>de</strong> formação que<br />

ela implica possibilita o centramento no sujeito na globalida<strong>de</strong> da vida, entendida como interação da<br />

existência com as diversas esferas da ‘con-vivência' como perspectiva educativa e formativa.<br />

É na dinâmica da vida e nas histórias tecidas no nosso cotidiano que apren<strong>de</strong>mos dimensões<br />

existenciais e experienciais sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre o meio em que vivemos. No<br />

entrecruzamento <strong>de</strong> nossas aprendizagens, a escola exerce um papel singular, visto que neste espaço<br />

‘convivemos' e internalizamos papéis sociais apreendidos no cotidiano familiar. O investimento na<br />

formação <strong>de</strong> professores e no trabalho coletivo na escola po<strong>de</strong>rá possibilitar outras formas <strong>de</strong><br />

trabalho didático e pedagógico, que contribuam para a reafirmação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, para a vivência,<br />

para a tolerância e para o respeito ao exercício da cidadania.<br />

Discutir a fabricação da igualda<strong>de</strong> , tomada aqui como projeto <strong>de</strong> homogeneização dos indivíduos e<br />

da negação das diferenças no espaço da escola , é uma tarefa que exige reafirmação <strong>de</strong> novas e<br />

constantes opções que cruzam e entrecruzam a compreensão do mundo, da vida, das aprendizagens<br />

e experiências construídas ao longo da existência.<br />

A vivência escolar se entrecruza, no seu cotidiano, com valores produzidos no coletivo e no âmbito<br />

social, na medida em que esses valores se modificam <strong>de</strong> acordo com os condicionantes econômicos,<br />

políticos, institucionais, culturais, físico-ambientais e ético-estéticos. Compreendo que é <strong>de</strong>sse<br />

entrecruzamento que são apropriados, construídos e reconstruídos diversos processos e formas da<br />

vida dos sujeitos como produtores e construtores da história. Por isso, penso que não <strong>de</strong>vemos<br />

fechar a noção <strong>de</strong> “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” como algo fixo, imutável e cristalizado, porque significa construção,<br />

daí a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreendê-la como processo que comporta subjetivida<strong>de</strong>s, complexida<strong>de</strong>s,<br />

diferenças e não igualda<strong>de</strong>s.<br />

É fundamental <strong>de</strong>sconfiar <strong>de</strong> tudo que é naturalizado, especialmente, em relação às práticas<br />

cotidianas engendradas na escola e no espaço familiar, as quais são ancoradas em padrões,<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 32


envolvendo os sujeitos e reforçando o projeto <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>, reforçando a marginalização e<br />

escamoteando as diferenças 2 daqueles que transitam e optam por formas <strong>de</strong> expressão e <strong>de</strong><br />

manifestação que não se enquadram nas legitimida<strong>de</strong>s sociais e institucionais.<br />

Teoricamente, busco em Louro (1997, 1998), Hall (2000) e Silva (1999, 2000) princípios teóricos<br />

que me possibilitem apreen<strong>de</strong>r conceitos e políticas <strong>de</strong> sentido sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e a diferença no<br />

cotidiano escolar, visto que “[...] consi<strong>de</strong>ramos a diferença como um produto <strong>de</strong>rivado da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Nesta perspectiva, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é a referência, é o ponto original relativamente ao qual<br />

se <strong>de</strong>fine a diferença [...]” (SILVA, 1999, p. 74-5). Numa outra perspectiva, e no que concerne à<br />

fabricação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s docentes, busco em Lawn (2000), Moita (1992) e Nóvoa (1992a, b),<br />

aspectos teóricos sobre a construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s profissionais e práticas <strong>de</strong> regulação<br />

engendradas nas políticas <strong>de</strong> formação.<br />

Ao abordar a subjetivida<strong>de</strong> e o processo <strong>de</strong> formação e (auto) formação do “<strong>de</strong>vir professor”,<br />

Pereira afirma que: “Quando pensamos a construção das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, também somos perseguidos<br />

por esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> harmonia e <strong>de</strong> cristalização como padrão <strong>de</strong>sejado. A socieda<strong>de</strong><br />

nos dá, prontas, algumas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s: homem, mulher, professor, artista, mãe, pai, família, escola<br />

etc.” (Pereira, 2000, p. 36). Desta forma, reitera o autor que: “Uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é, nesse caso, uma<br />

configuração cristalizada, estereotipada <strong>de</strong> uma maneira <strong>de</strong> ser ou um ritmo <strong>de</strong>terminado em<br />

respon<strong>de</strong>r às figuras <strong>de</strong>mandadas [...]. A institucionalização das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s é uma forma <strong>de</strong><br />

homogeneizar o cotidiano e construir os grupamentos e as coletivida<strong>de</strong>s [...]” (i<strong>de</strong>m, p. 37).<br />

Evi<strong>de</strong>ncia-se que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não é uma construção do sujeito por ele mesmo em suas relações<br />

individual e coletiva, mas sim uma diferença que o sujeito produz em si. Por isso, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é<br />

produzida e forjada conforme os mo<strong>de</strong>los e padrões estabelecidos, como quer a nossa socieda<strong>de</strong>,<br />

com base nas estratégias e estratificações convencionadas socialmente.<br />

Ao discutir sobre “Os professores e a fabricação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s” Lawn 3 (2000) afirma que a<br />

construção e as alterações na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> são forjadas e governadas pelo Estado, o qual utiliza<br />

discursos como forma <strong>de</strong> controlar as “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s oficiais”. O discurso revela-se como elemento <strong>de</strong><br />

governação das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s oficiais e gerencia as reformas pensadas como estratégias políticas <strong>de</strong><br />

um <strong>de</strong>terminado momento histórico.<br />

O controle da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos professores e o estabelecimento <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> fiscalização instauram-se<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 33


como matriz da gestão da profissão, porque a mesma <strong>de</strong>ve refletir e a<strong>de</strong>quar-se ao projeto<br />

educacional do Estado e representar a idéia <strong>de</strong> “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional e <strong>de</strong> trabalho” (p. 69), como<br />

forma <strong>de</strong> garantir mudanças no sistema educativo. Evi<strong>de</strong>ncia-se que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é produzida e<br />

performatizada através do discurso legal, do administrativo e do pedagógico, os quais são expressos<br />

através <strong>de</strong> parâmetros, regulamentos, manuais, portarias, discursos públicos, projetos e programas<br />

<strong>de</strong> formação.<br />

A relação posta pelo autor entre a fixação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional ou oficial e o mundo do<br />

trabalho torna-se visível pelos efeitos práticos e i<strong>de</strong>ológicos da administração e da governação dos<br />

professores, seja através das políticas <strong>de</strong> formação, das exigências e ‘competências' requeridas para<br />

seleção ou contratação, o que evi<strong>de</strong>ncia que “[...] a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser um aspecto chave da<br />

tecnologia do trabalho [...]” (p. 71). As mudanças e reformas educativas vinculam-se aos mo<strong>de</strong>los<br />

político-econômicos e refletem as alterações que são impressas no trabalho docente, relacionando-<br />

se às formas <strong>de</strong> controle sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos professores e as tecnologias impostas pelo trabalho.<br />

Historicamente, as questões sobre fabricação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e políticas reguladoras <strong>de</strong> fronteira são<br />

ilustradas pelas lutas e tensões dos professores nos movimentos trabalhistas ao longo do século XX,<br />

na vinculação a partidos <strong>de</strong> esquerda, na eleição ou candidatura <strong>de</strong> professores e na participação em<br />

movimentos sociais.<br />

Em diferentes períodos e reformas, a fixação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos professores, gerenciada através dos<br />

discursos, materializa-se nas mudanças e na reestruturação do trabalho. Estruturas e políticas tácitas<br />

são pensadas pelo Estado como forma <strong>de</strong> regulação das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s dos professores, seja para a<br />

manutenção das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s oficiais ou para o policiamento das fronteiras i<strong>de</strong>ntitárias. Os<br />

professores contrapõem-se, através dos movimentos associativos e sociais da profissão, ao discurso<br />

<strong>de</strong> governação e às políticas <strong>de</strong> fronteira. A autonomia e o domínio exercido no espaço da sala <strong>de</strong><br />

aula, assim como o controle por parte do sujeito professor do seu fazer, po<strong>de</strong>m criar dimensões <strong>de</strong><br />

não subserviência, <strong>de</strong> oposições e tensões sobre a manutenção e as políticas <strong>de</strong> fronteiras pensadas e<br />

reguladas pela nação, visto que a “[...] existência <strong>de</strong> professores que não se a<strong>de</strong>quam às i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

oficiais causa pânico. Da mesma forma, as idéias que os professores têm, e as pessoas às quais se<br />

associam, também causam pânico [...]” (p. 76). Este princípio configura-se como um dos problemas<br />

relacionados à manutenção das fronteiras, estabelecendo dificulda<strong>de</strong>s para controlar e manter<br />

fi<strong>de</strong>dignas as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s oficiais.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 34


Novos problemas são impostos cotidianamente à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos professores e às políticas <strong>de</strong><br />

fronteira. Gerir a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> docente, através da polifonia <strong>de</strong> discursos construídos na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

– como forma <strong>de</strong> um novo controle sobre a profissão, ou para as transformações exigidas pela<br />

socieda<strong>de</strong> do apren<strong>de</strong>r a apren<strong>de</strong>r – instala uma nova crise sobre a profissão e os saberes da<br />

profissão. As mudanças na forma <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> viver a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> docente são construídas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

década <strong>de</strong> 80, e se consubstanciam na emergência <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> tecnológica, numa economia<br />

globalizada e no acirramento das injustiças e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s entre as pessoas e as nações.<br />

Tais mudanças mexem significativamente com a forma <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> exercer a profissão docente,<br />

incluindo os formatos <strong>de</strong> controle e <strong>de</strong> regulação das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Se nos anos 80 a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos<br />

professores representava um domínio sobre o fazer e circunscrevia-se no espaço da sala <strong>de</strong> aula e na<br />

organização da escola, num mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização como sinônimo <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, a partir do<br />

início dos anos 90 as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e os mecanismos <strong>de</strong> controle são explicitados nas políticas <strong>de</strong><br />

formação e <strong>de</strong> certificação, as quais configuram mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> competências, <strong>de</strong> uma cultura da<br />

excelência e na diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imagens e <strong>de</strong> representações <strong>de</strong> professores que é engendrada pelos<br />

diferentes mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> escolarização.<br />

Outra vertente <strong>de</strong> reflexão sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é construída na perspectiva dos estudos culturais 4 ,<br />

apreen<strong>de</strong>ndo a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> como ‘aquilo que é' e a diferença, como o oposto à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, como<br />

‘aquilo que não é', visto que ambas estão numa relação <strong>de</strong> estreita <strong>de</strong>pendência. Ou seja, a forma <strong>de</strong><br />

expressão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, como fixa e imutável, <strong>de</strong>marca e escamoteia as relações postas nesta<br />

relação, ou como algo que se esgota em si mesmo. “A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> está ligada a estruturas discursivas<br />

e narrativas. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> está ligada a sistemas <strong>de</strong> representação. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tem estreitas<br />

conexões com relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r” (Silva, 1999, p. 97). I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença são produções<br />

históricas, resultantes <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> produção simbólica e discursiva que envolvem po<strong>de</strong>r, saber,<br />

disciplinamento, inclusão, exclusão e que se caracterizam em representações.<br />

Conforme Louro (1997), “a escola <strong>de</strong>limita espaços” 5 , os quais são instituídos a partir <strong>de</strong> símbolos<br />

e códigos, mapeando o que cada um po<strong>de</strong> ou não po<strong>de</strong> fazer, separando, agregando, elegendo,<br />

classificando e legitimando diferenças em suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s ‘escolarizadas'.<br />

Das representações, sentimentos, gestos e olhares apren<strong>de</strong>mos, no cotidiano escolar, a construir<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e diferenças. É nesse movimento <strong>de</strong> ‘arquitetura' das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que busco enten<strong>de</strong>r os<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 35


mecanismos e movimentos pensados i<strong>de</strong>ológica e tacitamente sobre as produções das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

docentes em suas transformações históricas. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que são reguladas, imitadas,<br />

performatizadas conforme os mo<strong>de</strong>los estabelecidos.<br />

Para Moita, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> profissional “[...] é uma construção que tem uma dimensão espácio-<br />

temporal, que atravessa a vida profissional <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a fase da opção pela profissão até a reforma,<br />

passando pelo tempo concreto da formação inicial e pelos diferentes espaços institucionais on<strong>de</strong> a<br />

profissão se <strong>de</strong>senrola [...]” (1992 p. 115-6). A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> profissional assenta-se em saberes<br />

científicos e pedagógicos e tem como referência axiomas éticos e <strong>de</strong>ontológicos. Po<strong>de</strong>-se apreen<strong>de</strong>r<br />

que é forjada e performatizada a partir do contexto e dos interesses postos historicamente como<br />

forma <strong>de</strong> controle e <strong>de</strong> organização das mudanças educativas ou, ao contrário, como forma <strong>de</strong> não<br />

assujeitamento ao estabelecido. Ainda assim, a autora reitera que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> profissional: “É uma<br />

construção que tem marca das experiências feitas, das opções tomadas, das práticas <strong>de</strong>senvolvidas,<br />

das continuida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>s, quer ao nível das representações, quer ao nível do trabalho<br />

concreto” (i<strong>de</strong>m, p. 116).<br />

Conforme Nóvoa (1992b, c), a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é entendida como um lugar <strong>de</strong> lutas, tensões e conflitos,<br />

caracterizando-se como um espaço <strong>de</strong> construção do ser e estar na profissão, que parte do pessoal<br />

para o profissional e vice-versa. “[...] É um processo que necessita <strong>de</strong> tempo. Um tempo para<br />

refazer i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, para acomodar inovações, para assimilar mudanças” (1992b, c, p. 16).<br />

As histórias <strong>de</strong> vida, as representações e as narrativas <strong>de</strong> formação marcam aprendizagens tanto na<br />

dimensão pessoal, quanto profissional e entrecruzam movimentos potencializadores da<br />

profissionalização docente, porque “[...] um professor tem uma história <strong>de</strong> vida, é um ator social,<br />

tem emoções, um corpo, po<strong>de</strong>res, uma personalida<strong>de</strong>, uma cultura, ou mesmo culturas, e seus<br />

pensamentos e ações carregam as marcas do contexto nos quais se inserem” (Tardif, 2000, p. 15).<br />

Nesta perspectiva, a epistemologia da prática, os saberes e a história <strong>de</strong> vida são significativos para<br />

a aprendizagem profissional. Não po<strong>de</strong>mos separar os saberes das histórias, dos contextos que os<br />

instituem, mo<strong>de</strong>lam e <strong>de</strong>finem, visto que eles implicam a forma <strong>de</strong> ser e estar na profissão e<br />

<strong>de</strong>marcam possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalhar o <strong>de</strong>senvolvimento pessoal e profissional do professor, bem<br />

como potencializam práticas pedagógicas centradas na pedagogia da diferença.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 36


Referências bibliográficas<br />

HALL, Stuart. Quem precisa da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>? In: SILVA, Tomaz Ta<strong>de</strong>u da. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença: a<br />

perspectiva dos estudos culturais . Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 103/133.<br />

LAWN, Martin. Os professores e a fabricação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s . In: NÓVOA, A. e SCHRIEWER, J.<br />

(orgs.). A difusão mundial da escola . Lisboa: EDUCA, 2000, pp. 69-84.<br />

LOURO, Gaucira Lopes. Gênero, sexualida<strong>de</strong> e educação. Petrópolis: Vozes, 1997.<br />

__________________ . Segredos e mentiras do currículo . Sexualida<strong>de</strong> e gênero nas práticas<br />

escolares . In: SILVA, Luiz Heron da (org.). A Escola Cidadã no contexto da globalização .<br />

Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 33/47.MOITA, Maria da Conceição. Percursos <strong>de</strong> formação e <strong>de</strong> transformação<br />

. In: NÓVOA, António (org.). Vida <strong>de</strong> Professores . Porto: Porto Ed., 1992, pp. 111-140.<br />

______________(org.). Profissão professor . Porto: Porto Ed., 1992a.<br />

______________(org.). Vida <strong>de</strong> professores . Porto: Porto Ed., 1992b.<br />

___________ . Os professores e as histórias da sua vida . In: NÓVOA, António (org.). Vida <strong>de</strong><br />

professores . 2ª ed. Porto: Porto Ed., 1992c, pp. 11-30.<br />

SANTOS, Stela Rodrigues dos. O mito da homogeneida<strong>de</strong> no cotidiano da escola: um i<strong>de</strong>al<br />

insensato . In: Revista da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação da Bahia , Ano II, v. 1, n. 2, (jan./ <strong>de</strong>z./, 2001),<br />

Salvador: EDUFBA, 2001, pp. 77/98.<br />

SILVA, Tomaz Ta<strong>de</strong>u da. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis:<br />

Vozes, 2000.<br />

_________________. Documentos <strong>de</strong> I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: uma introdução às teorias do currículo . Belo<br />

Horizonte: Autêntica, 1999.<br />

TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e <strong>conhecimento</strong>s universitários: elementos<br />

para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências em relação à<br />

formação para o magistério. Revista <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Educação, Campinas, ANPED – Autores<br />

Associadas, nº 13, pp. 05-21, jan./abr. 2000.<br />

Notas<br />

1 Doutor em Educação pela FACED-UFBA, Professor do Programa <strong>de</strong> Pós-<br />

Graduação em Educação e Contemporaneida<strong>de</strong> da Universida<strong>de</strong> do Estado da<br />

Bahia e das Faculda<strong>de</strong>s Integradas Olga Mettig.<br />

2 Para o aprofundamento <strong>de</strong>ssa questão, consultar o trabalho <strong>de</strong> Stela Rodrigues<br />

dos Santos (2001): ‘O mito da homogeneida<strong>de</strong> no cotidiano da escola: um i<strong>de</strong>al<br />

insensato', quando a autora analisa implicações e práticas discriminatórias e<br />

homogeneizadoras no cotidiano escolar, no tocante à fabricação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

dóceis e subservientes.<br />

3 Embora, como salienta o autor, o texto trate <strong>de</strong> um caso particular – os professores<br />

e a socieda<strong>de</strong> inglesa –, entendo que as questões por ele colocadas são cabíveis<br />

em outras esferas, que não especificamente o sistema público inglês. Afirma o autor<br />

que “[...] A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do professor tem o potencial para não só refletir ou simbolizar<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 37


o sistema, como também para ser manipulada, no sentido <strong>de</strong> melhor arquitetar a<br />

mudança [...]” (Lawn, 2000, p. 71).<br />

4 Em relação às teorizações construídas no campo dos estudos culturais sobre<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença, busco em Louro (1997, 1998), Hall (2000) e Silva (1999,<br />

2000) princípios teóricos que me possibilitem sistematizar aspectos sobre tal<br />

abordagem.<br />

5 Segundo Louro, “Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar<br />

e in corp orados por meninos e meninas, tornam-se parte <strong>de</strong> seus corpos. Ali se<br />

apren<strong>de</strong> a olhar e a se olhar, se apren<strong>de</strong> a ouvir, a falar e a calar; se apren<strong>de</strong> a<br />

preferir. [...] E todas essas lições são atravessadas pelas diferenças, elas confirmam<br />

e também produzem diferenças. Evi<strong>de</strong>ntemente, os sujeitos não são passivos<br />

receptores <strong>de</strong> imposições externas. Ativamente eles se envolvem e são envolvidos<br />

nessas aprendizagens – reagem, respon<strong>de</strong>m, recusam ou as assumem<br />

inteiramente” (1997, p. 61).<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 38


PROGRAMA 4<br />

CORPOREIDADE E CONHECIMENTO: A UNICIDADE DO INDIVÍDUO<br />

FRENTE À DIVERSIDADE DE APRENDIZAGENS<br />

Wilson Costa 1<br />

Este texto, que oferece subsídios para as discussões do quarto programa da série, tem por objetivo<br />

contribuir para a discussão a respeito dos processos que ocorrem no <strong>de</strong>senvolvimento, que apontam<br />

e significam a unicida<strong>de</strong> do sujeito nos processos <strong>de</strong> aprendizagem , consi<strong>de</strong>rando a importância do<br />

movimento para o <strong>conhecimento</strong> da realida<strong>de</strong> dos objetos e dos espaços, como também das<br />

linguagens expressivas e artísticas para a compreensão das relações humanas subjetivas, cognitivas,<br />

interpessoais e políticas.<br />

Inicialmente, este texto aborda a função e a importância das relações interpessoais para a<br />

constituição do sujeito e <strong>de</strong> sua corporeida<strong>de</strong>, nos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, aprendizagem e<br />

nos diferentes espaços sociais, <strong>de</strong>ntre estes, o escolar. Num segundo momento, aborda as relações<br />

entre corporeida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ologia e corporeida<strong>de</strong> e ludicida<strong>de</strong>, significando as suas implicações na<br />

construção <strong>de</strong> <strong>conhecimento</strong>s escolares e informais. Aponta para uma abordagem construtivista <strong>de</strong><br />

aspectos lúdicos, essenciais para o resgate do interesse dos alunos sobre os <strong>conhecimento</strong>s<br />

escolares, e aborda também as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> estudo sobre os elementos conceituais e atitudinais<br />

presentes nos conteúdos das áreas do ensino formal e das linguagens <strong>de</strong> movimento e da expressão<br />

artística. Finaliza com a discussão sobre a importância <strong>de</strong>stas ativida<strong>de</strong>s para favorecer o<br />

envolvimento dos alunos com dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem.<br />

<strong>Espaços</strong> Corporais: Afetivo, <strong>de</strong> Linguagem expressiva e Cidadão<br />

O que mobiliza o sujeito e o coloca em movimento?<br />

O que o motiva a buscar permanentemente a realização <strong>de</strong> satisfações imediatas?<br />

É a emoção que coloca em movimento a sua globalida<strong>de</strong>, na busca da atualização <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sejos e<br />

das suas necessida<strong>de</strong>s.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 39


O <strong>de</strong>slocamento físico do corpo e do seu sujeito no espaço remete a uma condição motriz, sempre<br />

impregnada <strong>de</strong> um sentido particular, um <strong>de</strong>sejo, uma intenção expressa numa atitu<strong>de</strong> manifesta em<br />

sua tonicida<strong>de</strong> – tônus residual, tônus <strong>de</strong> postura, tônus <strong>de</strong> sustentação (Wallon, 1971, p.132).<br />

Chamo a atenção para a dimensão subjetiva que, amalgamada com a dimensão biológica, se<br />

presentifica em cada ação do sujeito no mundo, especialmente pelo seu próprio corpo.<br />

A condição do sujeito dialoga sempre com a sua história, construída junto aos outros seus, mesmo<br />

que não sejam consangüíneos, constituída <strong>de</strong> afetos e <strong>conhecimento</strong>s gerados pelas suas interações<br />

– emocionais/afetivas, cognitivas e corporais – com o mundo social, dos objetos e do <strong>conhecimento</strong>.<br />

A ação mediadora exercida pelo adulto entre a criança e o mundo é fundamental para as noções da<br />

realida<strong>de</strong> que esta constituirá e se expressará <strong>de</strong> forma singular nas suas interações corporais,<br />

expressivas e verbais com os outros, os ambientes e os objetos.<br />

O caráter cultural e prazeroso das ativida<strong>de</strong>s lúdicas e expressivas, <strong>de</strong> acordo com as escolhas da<br />

abordagem pedagógica <strong>de</strong> cada instituição, po<strong>de</strong> exercer papel fundamental na formação <strong>de</strong><br />

crianças e jovens.<br />

O conceito <strong>de</strong> imagem corporal remete às relações existentes entre as percepções que a criança<br />

gradualmente constitui do seu corpo e a idéia que constrói <strong>de</strong> si mesma. Esta construção é<br />

constituída por elementos subjetivos e objetivos, possibilitando a formação das percepções sobre<br />

sua personalida<strong>de</strong>, pelas atitu<strong>de</strong>s, sentimentos, idéias e nas relações interpessoais. Logo, quando<br />

trabalhamos a corporeida<strong>de</strong>, atuamos sobre a imagem corporal da criança e incidimos sobre a sua<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

Assim, as noções do esquema e da imagem corporal evoluem simultaneamente, sendo que o<br />

esquema se estrutura pela internalização das representações do corpo construídas nas ações, e a<br />

imagem se organiza a partir da crescente consciência sobre as interações com os outros, em que são<br />

atribuídos sentidos e valores às atitu<strong>de</strong>s da criança, <strong>de</strong>terminando os traços da sua personalida<strong>de</strong>.<br />

As significações e os sentidos atribuídos pelas pessoas e ambientes às ações da criança interferem<br />

nos esquemas motores e expressivos em formação, imprimindo uma imagem do sujeito no âmbito<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 40


social.<br />

Neste momento, é fundamental analisarmos o papel dos espaços que a criança freqüenta e nos quais<br />

interage, além da família, durante a sua vida: a escola e a socieda<strong>de</strong>.<br />

No <strong>de</strong>correr da vida, as aprendizagens e o <strong>de</strong>senvolvimento ocorrem tanto fora quanto <strong>de</strong>ntro da<br />

escola ou <strong>de</strong> outros espaços educacionais, como pressupõe a corrente sócio-histórica.<br />

O laço familiar, o vínculo cultural, a condição <strong>de</strong> humano é construída a partir das influências <strong>de</strong><br />

“aprendizagens” a que o ser humano vai estar submetido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu nascimento.<br />

Desse entendimento, conclui-se que o contexto social e o momento histórico criam condições que<br />

geram “aprendizagens” específicas <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado meio, para que, num contexto <strong>de</strong> interação, a<br />

criança possa construir seu processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento, <strong>de</strong>scrito na obra <strong>de</strong> Vygotsky:<br />

Começa com a mobilização das funções mais primitivas (inatas), com o seu uso<br />

natural. A seguir, passa por uma fase <strong>de</strong> treinamento, em que, sob a influência <strong>de</strong><br />

condições externas, muda sua estrutura e começa a converter-se <strong>de</strong> um processo<br />

natural em um “processo cultural” complexo, quando se constitui uma nova forma<br />

<strong>de</strong> comportamento com a ajuda <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> dispositivos externos. O<br />

<strong>de</strong>senvolvimento chega, afinal, a um estágio em que esses dispositivos auxiliares<br />

externos são abandonados e tornados inúteis e o organismo sai <strong>de</strong>sse processo<br />

evolutivo transformado, possuidor <strong>de</strong> novas formas e técnicas <strong>de</strong> comportamento<br />

(VYGOTSKY & LÚRIA, 1996, p. 215, apud Ferreira, 2000, p. 12).<br />

Os pais, familiares, colegas e educadores participam da vida da criança, estabelecendo relações que<br />

geram <strong>conhecimento</strong>s, habilida<strong>de</strong>s e valores.<br />

A escola é o espaço social eleito para ampliar o espaço das relações, para além da família,<br />

introduzindo novos elementos na rotina da criança, <strong>de</strong>ntre eles a figura do professor, que exerce<br />

uma função fundamental no acolhimento, nos cuidados, na formação e no exercício da cidadania.<br />

A postura i<strong>de</strong>ológica assumida pela Instituição Escolar frente às questões <strong>de</strong> natureza política e<br />

humanitária <strong>de</strong>fine a sua atualida<strong>de</strong> frente à obvieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua função social.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 41


As aprendizagens sobre as relações interpessoais, no seio institucional, implicam a integração ao<br />

contexto social, on<strong>de</strong> o indivíduo é convocado a submeter, em <strong>de</strong>terminadas ocasiões, os seus<br />

impulsos e <strong>de</strong>sejos particulares, em respeito a regras coletivas estabelecidas.<br />

Aqui cabem algumas consi<strong>de</strong>rações sobre o lugar do educando no convívio com a escola, como<br />

instituição que exerce uma função social <strong>de</strong> importância na constituição <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> moral do<br />

sujeito no grupo, que remete à constituição da imagem corporal, ou seja, a imagem que este forma<br />

<strong>de</strong> si mesmo.<br />

Como estimular no indivíduo o hábito <strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer, sem provocar a sujeição?<br />

Como exercer a autorida<strong>de</strong> sobre alguém, sem torná-lo um eterno menor, sempre<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da or<strong>de</strong>m estabelecida ou das “autorida<strong>de</strong>s”, isto é, do homem<br />

político, do superior hierárquico e dos “manipuladores”? Como exercer a<br />

autorida<strong>de</strong> a fim <strong>de</strong> produzir a liberda<strong>de</strong> em vez do po<strong>de</strong>r, a autonomia em vez do<br />

condicionamento, a responsabilida<strong>de</strong> em vez da submissão?As possíveis respostas<br />

a essas questões sempre implicam, <strong>de</strong> um ou outro modo, um mo<strong>de</strong>lo jurídico<br />

(Canivez, 1991, p. 34).<br />

Logo, a função <strong>de</strong> mediar as aprendizagens, que cabe ao professor, <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar as condições<br />

sócio-morais dos alunos e a a<strong>de</strong>quação dos conteúdos ao contexto em que eles vivem, para<br />

correspon<strong>de</strong>r às reais necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> suas competências.<br />

O contexto escolar exerce um lugar significativo no que se refere à constituição do sujeito, uma vez<br />

que avalia a sua capacida<strong>de</strong> pelo <strong>de</strong>sempenho nas aprendizagens, o valor da nota, e reflete as<br />

condições <strong>de</strong> convívio dos alunos na relação com as regras da instituição e com a disciplina.<br />

Corporeida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ologia<br />

O (...) controle da socieda<strong>de</strong> sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela<br />

consciência ou pela i<strong>de</strong>ologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no<br />

biológico, no somático, no corporal que antes <strong>de</strong> tudo investiu a socieda<strong>de</strong><br />

capitalista. O corpo é uma realida<strong>de</strong> biopolítica (FOUCAULT, 1986, p. 80).<br />

Na história da humanida<strong>de</strong>, o corpo humano (e o seu sujeito) esteve no foco <strong>de</strong> eventos e<br />

acontecimentos <strong>de</strong> diferentes naturezas. No teatro, nas guerras, na dança, nos esportes, nas doutrinas<br />

religiosas e espiritualistas, na arte, enfim, nos mais diversos terrenos das relações e expressões<br />

humanas, o corpo protagonizou e sofreu assédios pelos mais diferentes interesses.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 42


Para René Descartes, o corpo estava dissociado da alma, sendo esta a substância pensante e o corpo<br />

a instância limitadora e sem interação com a sutileza do pensamento, da alma.<br />

Esta visão Dualista Cartesiana, do século XVII, foi superada pelas <strong>de</strong>scobertas do campo da<br />

neurofisiologia no século XIX que, a partir da i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados fenômenos clínicos,<br />

nomeou a palavra psicomotricida<strong>de</strong>.<br />

Em 1909, Dupré, neurologista francês, a partir <strong>de</strong> estudos clínicos, contribuiu para o campo da<br />

psicomotricida<strong>de</strong>, afirmando a in<strong>de</strong>pendência da <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> motora dos processos neurológicos,<br />

abrindo espaços para os estudos da psicomotricida<strong>de</strong>, para além das amarras da cognição.<br />

Uma vez superada s, pelo campo das pesquisas científicas, as abordagens que dissociavam o sujeito<br />

do seu corpo e o corpo do seu sujeito, po<strong>de</strong>mos insistir na dimensão simbólica como formadora do<br />

humano e responsável pelo advento da linguagem, que funda a cultura humana.<br />

Não é o homem que constitui o simbólico, é o simbólico que constitui o homem.<br />

Quando o homem entra no mundo, entra no simbólico que já está ali. E não po<strong>de</strong><br />

ser homem se não entra no simbólico (Roland Barthes, 1983, p. 99-100).<br />

Nas relações <strong>de</strong> domínio, ocorridas pelas lutas <strong>de</strong> classes, aqueles que <strong>de</strong>têm o po<strong>de</strong>r submetem os<br />

oprimidos a seus valores e às suas normas, explicitando o que lhes é ou não permitido, que se<br />

esten<strong>de</strong> aos ganhos, posses, credos, expressões e oportunida<strong>de</strong>s.<br />

Estes domínios se esten<strong>de</strong>m também às práticas corporais, uma vez que, historicamente, as<br />

i<strong>de</strong>ologias influenciaram as relações que os indivíduos estabeleceram com seu próprio corpo,<br />

através da alimentação, vestuários, práticas corporais artísticas, esportivas, <strong>de</strong> lazer e <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa para<br />

finalida<strong>de</strong>s pessoais e da pátria.<br />

Prescrições <strong>de</strong> valores e <strong>de</strong> padrões estéticos foram moldadas corporalmente no século, a partir das<br />

práticas da ginástica científica. No mesmo século, a referida prática corporal é englobada pela<br />

“educação corporal”, e se faz portadora <strong>de</strong> preceitos e normas (Carmen Soares, 1998, p.17).<br />

O corpo é o primeiro lugar on<strong>de</strong> a mão do adulto marca a criança, ele é o<br />

primeiro espaço on<strong>de</strong> se impõem os limites sociais e psicológicos que foram dados<br />

a sua conduta, ele é o emblema on<strong>de</strong> a cultura vem inscrever seus signos como<br />

também seus brasões (Vigarello, 1978, p. 9).<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 43


As pretensões <strong>de</strong> formação do caráter das populações <strong>de</strong> países europeus, objetivadas na i<strong>de</strong>ologia<br />

cientificista, através das teorias evolucionistas, organicistas e mecanicistas, revolucionaram os<br />

meios <strong>de</strong> pesquisa científica e da produção <strong>de</strong> bens materiais. A prática da ginástica é consi<strong>de</strong>rada<br />

como ferramenta fundamental para uma certa prontidão, explicitada pela estética e pelo rendimento<br />

físico, correspon<strong>de</strong>ndo aos valores higienistas e <strong>de</strong> trabalho produtivo, que visava aten<strong>de</strong>r aos<br />

princípios do capital.<br />

Não faltaram iniciativas no <strong>de</strong>correr do século XIX <strong>de</strong> estendê-la a toda população, atribuindo-lhe<br />

valores estreitamente ligados aos interesses <strong>de</strong> consolidação econômica e política da Europa.<br />

Logo, ao selecionarmos os conteúdos para o trabalho educativo, <strong>de</strong>vemos cuidar dos seus aspectos<br />

sócio-históricos, exercendo uma leitura crítica que possibilite ao aprendiz escapar <strong>de</strong> uma leitura<br />

ingênua dos fatos da atualida<strong>de</strong>.<br />

Aqui encontramos um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio: como <strong>de</strong>senvolver conteúdos e objetivos sem <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar<br />

as motivações, tendências e inclinações <strong>de</strong> um público cada vez mais bombar<strong>de</strong>ado pela mídia <strong>de</strong><br />

massa e a globalização, que têm <strong>de</strong>gradado cada vez mais os valores humanizadores?<br />

Corporeida<strong>de</strong> e ludicida<strong>de</strong><br />

Dentre as contribuições <strong>de</strong> Piaget para o <strong>de</strong>senvolvimento infantil, <strong>de</strong>staco as relacionadas ao jogo.<br />

No título A Formação do Símbolo na Criança , o autor apresenta estudos sobre a representação<br />

infantil, <strong>de</strong>stacando o predomínio dos processos individuais da vida infantil sobre os fatores<br />

coletivos para a gênese da imitação, explicitando os estreitos laços entre corpo, movimento e<br />

cognição, a partir das etapas do <strong>de</strong>senvolvimento que <strong>de</strong>screve em sua obra.<br />

Os processos sócio-interacionais que ocorrem na ontogênese encontram nas ativida<strong>de</strong>s sensório-<br />

motoras o momento inicial <strong>de</strong> <strong>conhecimento</strong> da realida<strong>de</strong> objetiva, em que a criança constrói suas<br />

noções sobre os objetos e, conseqüentemente, sobre o seu próprio corpo.<br />

Na medida em que os processos <strong>de</strong> representação cognitiva, no tocante às ativida<strong>de</strong>s representativas<br />

ou da função simbólica, avançam sobre as formas primitivas e pré-verbais do período sensório-<br />

motor, os <strong>conhecimento</strong>s adquiridos pelas explorações corporais transformam-se – com a aquisição<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 44


da linguagem, ou sistemas <strong>de</strong> signos coletivos – em conceitos ou <strong>de</strong>sdobram-se em novos conceitos<br />

(Piaget, 1978, p.12).<br />

Vygotsky <strong>de</strong>staca a contribuição das aprendizagens, a partir do jogo simbólico, para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento das categorias do pensamento e para o aprendizado específico <strong>de</strong> relacionamento<br />

com as regras.<br />

A prática <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s lúdicas, especificamente a partir das categorias do jogo simbólico, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

da <strong>de</strong>cisão, por parte daquele que brinca, se entra ou não na brinca<strong>de</strong>ira. Esta tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão<br />

pressupõe uma <strong>de</strong>liberação, uma escolha. Dentre diversos fatores, existem motivações <strong>de</strong>terminadas<br />

por alguma emoção específica, algum afeto que influencie especialmente na escolha.<br />

Por uma parte, todo sentimento, toda emoção ten<strong>de</strong> a manifestar-se em<br />

<strong>de</strong>terminadas imagens concordantes com ela, como se a emoção pu<strong>de</strong>sse eleger<br />

impressões, idéias, imagens congruentes com o estado <strong>de</strong> ânimo que nos<br />

dominasse naquele instante. Bem sabido é que quando estamos alegres vemos com<br />

olhos totalmente distintos <strong>de</strong> quando estamos tristes (Vygotsky, 1997, p. 21).<br />

Uma vez que as contribuições <strong>de</strong> diferentes campos do <strong>conhecimento</strong> – psicologia, sociologia,<br />

pedagogia, psicomotricida<strong>de</strong>, filosofia – apontam para a existência das inter-relações entre o<br />

movimento, os processos <strong>de</strong> representação simbólica, o contexto sociocultural e as emoções, é<br />

valido questionar porque durante tanto tempo a escola não se valeu da riqueza das ativida<strong>de</strong>s<br />

lúdicas e expressivas para o <strong>de</strong>senvolvimento cultural, social, cognitivo e afetivo <strong>de</strong> seus alunos.<br />

Alguns estudos apontavam que a brinca<strong>de</strong>ira era consi<strong>de</strong>rada uma ativida<strong>de</strong> improdutiva, por não<br />

apresentar resultados objetivos e, em muitas ocasiões, favorecer a reprodução <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s<br />

in<strong>de</strong>sejáveis aos espaços escolares, classificados como sérios, on<strong>de</strong> a atenção e a <strong>de</strong>dicação não<br />

po<strong>de</strong>riam conviver com as atitu<strong>de</strong>s e expressões <strong>de</strong>correntes das ativida<strong>de</strong>s lúdicas.<br />

Estas abordagens superficiais <strong>de</strong>tinham-se em algumas condutas <strong>de</strong> quem brinca e joga, subtraindo-<br />

as <strong>de</strong> todo o contexto da ativida<strong>de</strong>, isolando-as dos processos <strong>de</strong> formação subjetiva e <strong>de</strong> adaptação<br />

aos contextos sociais, que toda criança e todo adolescente vivem.<br />

O que é consi<strong>de</strong>rado como produtivo, ou não, para as aprendizagens escolares e para a vida <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

da visão <strong>de</strong> mundo dos educadores, das escolas e da socieda<strong>de</strong>. Felizmente, alguns paradigmas da<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 45


educação estão sendo revistos e têm possibilitado a abertura <strong>de</strong> espaços para discussões acerca do<br />

que é fundamental para a educação <strong>de</strong> um cidadão na atualida<strong>de</strong>.<br />

As práticas educativas que consi<strong>de</strong>ram a unida<strong>de</strong> do sujeito que apren<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rando os<br />

pressupostos acima analisados, <strong>de</strong>vem consi<strong>de</strong>rar: “O quê?; por quê?; como? e para que se educa?”<br />

E, ainda, quais os conteúdos, objetivos e ativida<strong>de</strong>s que mobilizam o sujeito, visto por esta ótica?<br />

Conhecimento e ludicida<strong>de</strong><br />

As expectativas do adulto sobre a inserção social da criança se apresentam <strong>de</strong> diferentes maneiras,<br />

principalmente em relação à educação escolar. Responsáveis e educadores esmeram-se, a partir <strong>de</strong><br />

seus <strong>de</strong>sejos, <strong>de</strong> suas expectativas e <strong>de</strong> suas responsabilida<strong>de</strong>s, para que a criança aprenda a falar,<br />

comer, controlar os esfíncteres e, ao longo da vida, ler, escrever, namorar, formar-se, casar e<br />

trabalhar.<br />

A escola, em função <strong>de</strong> seu projeto político-pedagógico, correspon<strong>de</strong>rá ou não aos anseios dos pais<br />

para o futuro <strong>de</strong> seus filhos, através <strong>de</strong> suas práticas metodológicas e culturas institucionais.<br />

A prática pedagógica tradicional pressupõe um aluno <strong>de</strong>dicado e esforçado, nos mol<strong>de</strong>s do trabalho<br />

adulto, exigindo uma atenção estável, a prática dos valores e da ética institucionais, num ambiente<br />

<strong>de</strong> silêncio e imobilida<strong>de</strong>, valendo-se das exposições verbais e leituras como estratégias didáticas.<br />

Por outro lado, na literatura especializada que trata dos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento infantil, os<br />

aspectos lúdicos são consi<strong>de</strong>rados como fundamentais para as aprendizagens escolares. E, ao<br />

contrário da prática da maioria dos espaços educativos, sugerem um ensino dinâmico, através <strong>de</strong><br />

vivências concretas <strong>de</strong> trabalho, promovendo espaços que privilegiam o diálogo, discussões <strong>de</strong><br />

temas atuais em grupo, o exercício da autonomia e, fundamentalmente, o prazer <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r.<br />

Parece, pois, necessário, ao pensar a educação pelo jogo, refletir simultaneamente<br />

sobre a educação pelo trabalho, enfrentando o preconceito que entre nós, por<br />

graves razões sociais, separa a idéia <strong>de</strong> infância da <strong>de</strong> trabalho.<br />

A dialética jogo-trabalho é indispensável à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambas as práticas: po<strong>de</strong><br />

resgatar a liberda<strong>de</strong> do jogo e o prazer do trabalho (Heloísa Dantas, 1998, p. 112,<br />

113).<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 46


Em seu trabalho O lúdico nos processos do <strong>de</strong>senvolvimento e da aprendizagem escolar , Lino <strong>de</strong><br />

Macedo discute a importância da ludicida<strong>de</strong> para os processos <strong>de</strong> ensino-aprendizagem, visando à<br />

reconstrução das práticas pedagógicas. Para que esta condição seja <strong>de</strong>senvolvida, o referido autor<br />

aponta cinco indicadores:<br />

Prazer funcional<br />

“Uma tarefa interessante para a criança é clara, simples e direta. É realizável nos<br />

seus tempos (interno, externo). Desafiante (envolvente). Constante (regular) na<br />

forma e variável no conteúdo. Surpreen<strong>de</strong>nte. Com espírito lúdico”.<br />

Desafio. Surpresa<br />

Lúdico: Surpreen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>safiador.<br />

“Contexto <strong>de</strong> projetos ou jogos são prenhes <strong>de</strong> situações- problema”.<br />

Possível<br />

“(...) não se realizam tarefas impossíveis. Como tornar possível o impossível?”<br />

Ativida<strong>de</strong>s: Necessárias e possíveis. Necessárias – Do ponto <strong>de</strong> vista afetivo, não<br />

fazê-las, produz algum <strong>de</strong>sconforto – sentimento <strong>de</strong> perda. Do ponto <strong>de</strong> vista<br />

cognitivo – pensável ou realizável – compreensível para o sujeito, algo faz sentido,<br />

cria <strong>de</strong>manda.<br />

“Possíveis: Pressupõe, da condição do sujeito, ter recursos internos – habilida<strong>de</strong>s<br />

ou competências para a realização e recursos externos – objetos, tempo, pessoas”.<br />

“Tarefas impossíveis geram respostas evasivas, <strong>de</strong>sculpas, <strong>de</strong>sinteresse,<br />

adiamentos, sentimentos <strong>de</strong> culpa (...)”<br />

Simbólica<br />

Ativida<strong>de</strong>s motivadas e históricas. “motivadas no sentido <strong>de</strong> que há uma relação<br />

entre a pessoa que faz e aquilo que é feito”.<br />

Sensório-motora: Prazer funcional – repetição – exploração dos esquemas <strong>de</strong><br />

ação.<br />

Simbólico: Via conceitual – imaginação – sonho – representação – faz- <strong>de</strong>-conta –<br />

metáforas e metonímicas.<br />

Construtivo<br />

“Desafio <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar algo segundo diversos pontos <strong>de</strong> vista, dada sua natureza<br />

relacional e dialética.”<br />

Errância. “A errância é uma forma curiosa, atenta, mas aberta, <strong>de</strong> explorar<br />

alguma coisa.<br />

Construção: direção – sentido – foco – <strong>de</strong>stino.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 47


Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

“A errância não se faz <strong>de</strong> qualquer jeito, mas tem um objetivo, uma meta, que se<br />

cumpre, ainda que <strong>de</strong> forma errante”<br />

(Lino <strong>de</strong> Macedo, 2003. Impresso)<br />

Consi<strong>de</strong>rando o sujeito em sua globalida<strong>de</strong>, atualizada nas relações corporais e significativas com<br />

os outros, com os objetos e com o contexto sociocultural imediato, as ativida<strong>de</strong>s lúdicas,<br />

expressivas, <strong>de</strong> movimento e escolares, quando <strong>de</strong>senvolvidas em condições como as apontadas<br />

pelos indicadores categorizados por Lino <strong>de</strong> Macedo, constituem-se em po<strong>de</strong>rosa ferramenta para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da auto-imagem e da auto-estima.<br />

Neste aspecto, a leitura psicomotora da corporeida<strong>de</strong> dos sujeitos, pelo olhar do educador, favorece<br />

a expressão falada e corporal do aprendiz. Esta é a porta <strong>de</strong> entrada para o estabelecimento <strong>de</strong> um<br />

vínculo inicial que remeta a uma progressiva e constante cumplicida<strong>de</strong> para a mudança constante <strong>de</strong><br />

paradigmas, baseados na metodologia educacional, no convívio social e na formação <strong>de</strong> valores.<br />

As ativida<strong>de</strong>s são o meio e a meta final, uma vez que é através <strong>de</strong>las que o sujeito coloca em<br />

discussão todo o seu <strong>conhecimento</strong> e conteúdos subjetivos.<br />

A partir dos encaminhamentos acima <strong>de</strong>scritos, alcançamos os conteúdos previstos pelas áreas na<br />

dimensão do sujeito mais global, para além das limitações dos conteúdos e, ao mesmo tempo,<br />

extrapolando <strong>de</strong>stes as suas dimensões habituais.<br />

Certamente não só as aprendizagens são alcançadas, mas também outros sujeitos ressurgem,<br />

confirmando a importância dos vínculos afetivos com os outros, reafirmando constantemente as<br />

suas competências psicomotoras e reorientando o seu olhar para o mundo ao seu redor, a partir dos<br />

novos paradigmas vivenciados.<br />

Referências bibliográficas<br />

CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? Campinas, SP: Papirus, 1991.<br />

CENPEC. Muitos lugares para apren<strong>de</strong>r. São Paulo: Cenpec/Fundação Itaú Social/ Unicef, 2003.<br />

CENPEC. Guia <strong>de</strong> ações complementares à escola para crianças e adolescentes. São Paulo:<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 48


Cenpec/Unicef, 2002.<br />

COLL, César. Comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Aprendizagens. Porto Alegre: Revista Pátio / Ed. Artmed, 2002.<br />

COLL, César. Os Conteúdos da Reforma. Porto Alegre: Ed. Artmed, 2000.<br />

FERREIRA, Carlos Alberto <strong>de</strong> Mattos. Psicomotricida<strong>de</strong>. Da educação infantil à gerontologia.<br />

Teoria & Prática. São Paulo: Lovise, 2000.<br />

FUNDAÇÃO GOL DE LETRA – Impresso.<br />

HERNANDEZ & VENTURA. A organização do currículo por projetos <strong>de</strong> trabalho. Porto Alegre:<br />

Ed. Artes Médicas, 1998.<br />

LEVIN, Esteban. A Clínica Psicomotora: o corpo na linguagem . Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.<br />

MACEDO, Lino. O lúdico nos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e da aprendizagem escolar. Impresso,<br />

2003.<br />

PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança. Imitação, jogo e sonho. Imagem e<br />

representação. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar Editores, 1978.<br />

SOARES, Carmen. Imagens da educação no corpo. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.<br />

VALVERDE, Iracema Almeida. Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Expressão e<br />

Cultura, 2001.<br />

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1996.<br />

WALLON, Henri. As origens do caráter na criança. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971.<br />

Nota<br />

Professor <strong>de</strong> Educação Física e psicomotricista. Gerente pedagógico da Fundação<br />

Gol <strong>de</strong> Letra. Consultor <strong>de</strong>sta série.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 49


PROGRAMA 5<br />

REDES DE CONVIVÊNCIA E DE ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES<br />

Antonio Eugenio do Nascimento 1<br />

...São pais-<strong>de</strong>-santo, paus-<strong>de</strong>-arara, são passistas<br />

São flagelados, são pingentes, balconistas<br />

Palhaços, marcianos, canibais, lírios pirados<br />

Dançando, dormindo, <strong>de</strong> olhos abertos à sombra<br />

Da alegoria, dos faraós embalsamados...<br />

Bosco e Blanc<br />

Os versos que abrem este artigo fazem parte da bela canção Rancho da Goiabada , escrita por João<br />

Bosco e Aldir Blanc, no final do período autoritário que teve início com o golpe militar <strong>de</strong> 1964.<br />

Nela, os autores fazem <strong>de</strong>sfilar, além dos bóias-frias que não aparecem na estrofe em epígrafe, uma<br />

lista <strong>de</strong> tipos profissionais brasileiros que já não conseguem sustentar a si próprios com as parcas<br />

moedas recebidas em troca <strong>de</strong> sua força <strong>de</strong> trabalho, muito menos dar à sua prole as condições<br />

necessárias para mantê-la longe dos expedientes vis que, quase sempre, nas periferias das gran<strong>de</strong>s<br />

cida<strong>de</strong>s, levam os jovens às raias da <strong>de</strong>linqüência.<br />

Lá se vão os dias <strong>de</strong> um passado não muito distante, em que ouvíamos pais e mães, trabalhadores e<br />

trabalhadoras integrantes <strong>de</strong>ssas categorias, pronunciarem frases esperançosas exprimindo o <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> que seus filhos tivessem uma vida melhor. A mais comum, dita entre afagos, mas sempre com a<br />

contundência que a necessida<strong>de</strong> requeria, passava, com pequenas variações, a seguinte mensagem:<br />

estu<strong>de</strong>, meu filho, pra que você possa ser alguém na vida. Com este jargão os mais velhos queriam<br />

externar a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a meninada tivesse um futuro diferente , obviamente, numa perspectiva<br />

<strong>de</strong> ascensão que somente a escola seria capaz <strong>de</strong> propiciar. No Nor<strong>de</strong>ste, os meninos ainda<br />

ganhavam dois tapinhas na cabeça, seguidos da sentença imperativa: cresça meu filho, pra ir pro<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro!<br />

Esta forma simplória <strong>de</strong> caminhar em busca <strong>de</strong> dias melhores fez com que gran<strong>de</strong> parte da<br />

população campesina fosse gradativamente se <strong>de</strong>slocando para as cida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> supostamente<br />

estariam as mágicas instituições ampliadoras do <strong>conhecimento</strong>, capazes <strong>de</strong> livrar os mais novos das<br />

mazelas do analfabetismo e, por conseguinte, das formas escravistas <strong>de</strong> produção que ainda hoje<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 50


maculam as esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, criadas com o objetivo precípuo <strong>de</strong> combatê-las. É preciso que se diga<br />

que, por muito tempo, quase uma meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> século, o aforismo popular produziu bons resultados:<br />

inúmeros camponeses, que apostaram neste tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento, conseguiram levar os filhos às<br />

escolas <strong>de</strong> nível médio e superior e suas famílias a patamares mais confortáveis na pirâmi<strong>de</strong> social.<br />

Na década <strong>de</strong> 80, mais precisamente em 1985, o regime autoritário chegava ao fim, levando com ele<br />

velhas práticas <strong>de</strong> mercado que seriam substituídas pelas tendências globalizantes alicerçadas no<br />

pensamento neoliberal. No caso do <strong>Brasil</strong>, o que mais se propagava eram as vantagens do estado<br />

mínimo. Um Estado leve e livre <strong>de</strong> compromissos empresariais para que os recursos, acumulados<br />

com a sangria dos impostos, fossem aplicados diretamente na satisfação das necessida<strong>de</strong>s básicas da<br />

população.<br />

Portanto, era <strong>de</strong> se esperar que, ao concluirmos o processo <strong>de</strong> universalização da escola (os números<br />

mais otimistas falam em 98% das crianças matriculadas no Ensino Fundamental), a filharada das<br />

classes que aparecem na música <strong>de</strong> Bosco e Blanc não tivesse mais <strong>de</strong> se amontoar nos sinais <strong>de</strong><br />

trânsito para as sutis formas <strong>de</strong> mendicância realizadas pelos menores limpadores <strong>de</strong> nada,<br />

malabaristas e ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> todos os produtos que po<strong>de</strong>m ser utilizados em pequenos golpes, na<br />

velocida<strong>de</strong> que os sinais <strong>de</strong> trânsito <strong>de</strong>terminam. Além da infância e da adolescência habitantes<br />

serelepes dos cruzamentos urbanos, po<strong>de</strong>ríamos completar a lista com os meninos dos lixões, das<br />

feiras temáticas e livres, da prostituição, dos empacotadores clan<strong>de</strong>stinos dos supermercados, do<br />

tráfico <strong>de</strong> drogas e <strong>de</strong> inúmeras ativida<strong>de</strong>s insalubres que são postas à disposição dos petizes que<br />

têm passagem registrada pelos bancos da escola pública brasileira.<br />

Neste ponto já po<strong>de</strong>mos imaginar que: (1) a universalização da escola não veio acompanhada da<br />

qualida<strong>de</strong> que uma instituição, prioritariamente, <strong>de</strong>stinada aos filhos dos setores menos favorecidos<br />

da socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve possuir; (2) o aumento dos níveis <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego, motivado pela entrada <strong>de</strong><br />

nosso país em uma competição para a qual ele não estava preparado, contribuiu para o aumento do<br />

número <strong>de</strong> jovens e adolescentes que se movimenta em busca <strong>de</strong> quase nada. Uma parcela<br />

significativa <strong>de</strong>ste contingente é composta por <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> sertanejos e “agrestinos”, que além<br />

das dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> convivência, em meio à violência da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, já não possuem sequer os<br />

referenciais capazes <strong>de</strong> lhes <strong>de</strong>spertar o <strong>de</strong>sejo, comum aos que chegam do Norte , <strong>de</strong>, um dia,<br />

voltar à terra natal.<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 51


Na cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, este coletivo veio juntar-se aos afro-<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes habitantes dos núcleos<br />

proletários e favelados, dando origem a um segmento social que, ao ser abandonado pelo Estado<br />

brasileiro permanentemente preocupado com o pagamento das dívidas interna e externa, cai nos<br />

braços das organizações não-governamentais atuantes nas lacunas <strong>de</strong>ixadas pelas esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<br />

outrora responsáveis por gran<strong>de</strong> parte das políticas assistenciais.<br />

A novida<strong>de</strong> que aparece nesta discussão resi<strong>de</strong> no aumento consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> instituições que<br />

voltaram suas práticas para a implementação <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que têm origem no universo da arte. Os<br />

últimos 50 anos foram <strong>de</strong>terminantes para a consolidação <strong>de</strong> um processo sócio-educativo que tem<br />

suas raízes fincadas nos interstícios da Escola Nova e que chegou até nós, na década <strong>de</strong> 60, através<br />

das propostas <strong>de</strong> inúmeras escolinhas <strong>de</strong> artes , que tinham como objetivo primeiro a difusão das<br />

linguagens artísticas entre as camadas populares. Seus formuladores (Anísio Teixeira, Villa-Lobos e<br />

mais tar<strong>de</strong> Augusto Rodrigues) estavam certos <strong>de</strong> que a arte era algo importante <strong>de</strong>mais para ficar<br />

restrita aos domínios da classe artística que, já naquela época, ia transformando o seu amor<br />

(amadorismo) em profissão. Por esta nova concepção, todos <strong>de</strong>veriam engajar-se no estudo <strong>de</strong> um<br />

tipo <strong>de</strong> arte qualquer, inclusive os artistas.<br />

A questão que agora retomamos tem por objetivo estimular a realização <strong>de</strong> embates i<strong>de</strong>ológicos<br />

sobre as formas <strong>de</strong> sedução empregadas pelas organizações não-governamentais na arregimentação<br />

<strong>de</strong>sses segmentos para um tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> (trabalho artístico), que até bem pouco tempo era visto,<br />

pela socieda<strong>de</strong> brasileira, como algo proibido e marginal. Po<strong>de</strong>mos limpar o campo trabalhando, em<br />

um primeiro momento, sobre o consenso <strong>de</strong> que a todos <strong>de</strong>ve ser dada a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vivência e<br />

estudo das linguagens da arte, para em seguida trazer à tona as preocupações relativas às<br />

propagandas enganosas que levam crianças, adolescentes e jovens à incorporação da máxima que os<br />

induz a acreditar que o aprendizado <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada manifestação artística po<strong>de</strong> levá-los a<br />

conquistas capazes <strong>de</strong> lhes proporcionar uma vida <strong>de</strong> melhor qualida<strong>de</strong>.<br />

Por outro lado, <strong>de</strong>vemos reconhecer que o trabalho <strong>de</strong>senvolvido por uma parcela significativa das<br />

instituições aglutinadas sob a chancela “<strong>de</strong> educação informal” vem, ao longo dos últimos vinte<br />

anos, produzindo frutos que po<strong>de</strong>riam chegar à escola pública e, mais facilmente, às crianças<br />

vitimadas por uma modalida<strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong> esquecimento social: esquecidas pelo Estado, pela<br />

família, pela escola; não importando, para efeito <strong>de</strong>ste trabalho, as razões dos esquecimentos que,<br />

porventura, viessem a ser apresentadas para justificar as <strong>de</strong>sgraças <strong>de</strong> cada segmento. Sabemos<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 52


apenas que a emergência exige a aplicação <strong>de</strong> outras e maiores formas <strong>de</strong> investimentos,<br />

notadamente nas escolas públicas que servem às camadas economicamente menos favorecidas. Mas<br />

o que precisamos fazer?<br />

Para os esquecidos, quase tudo. A escola que está posta a eles não interessa mais. Criada sob a égi<strong>de</strong><br />

dos postulados positivistas e presa à lógica utilitarista que estabelece os padrões <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, a<br />

escola é, sobretudo, uma instituição orientada pelas i<strong>de</strong>ologias que enfatizam a competição como<br />

instrumento <strong>de</strong> crescimento, mas ainda não <strong>encontro</strong>u a maneira <strong>de</strong> contribuir para que, a todos,<br />

fossem dadas as mesmas oportunida<strong>de</strong>s. Isto faz com que, quase sempre diante do imprevisível, nos<br />

percebamos assustados com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aparecimento <strong>de</strong> novas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fracasso. Ao<br />

mesmo tempo, sabemos da existência <strong>de</strong> bons exemplos que po<strong>de</strong>riam funcionar como ponto <strong>de</strong><br />

partida para novas formas <strong>de</strong> produção coletiva. A escola, notadamente a que serve às classes<br />

populares, é um imenso laboratório produtor <strong>de</strong> inúmeros experimentos: alguns fortuitos, outros<br />

intencionais, quase sempre pouco observados pelo coletivo docente. No entanto, para nossa<br />

satisfação, essa forma soberba <strong>de</strong> olhar com <strong>de</strong>sdém para o <strong>conhecimento</strong>, que emerge do<br />

imbricamento entre o saber científico e o senso comum, não impe<strong>de</strong> o trânsito das interferências<br />

que, mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>, provocarão fendas na organização curricular tradicional.<br />

Por isso, é importante que nos <strong>de</strong>tenhamos, primeiro, na observação <strong>de</strong>ssas saudáveis rupturas,<br />

<strong>de</strong>pois na construção <strong>de</strong> estratégias pautadas nos referenciais teóricos que direcionam a produção do<br />

objeto artístico, na esperança <strong>de</strong> que eles possam contribuir para a superação das dificulda<strong>de</strong>s que<br />

surgem no cotidiano dos espaços formais <strong>de</strong> educação. Com isto, estaremos dando um passo<br />

significativo para a construção das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> convivência e enfrentamento das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s , objeto<br />

central <strong>de</strong>sta discussão, que, mesmo sem o aval das esferas oficiais vão, aqui e ali, se constituindo<br />

para a felicida<strong>de</strong> geral.<br />

O problema que está posto nos atordoa, porque a quase totalida<strong>de</strong> das escolas por on<strong>de</strong> passamos,<br />

como alunos ou professores, elaboram os seus programas educativos baseando-se na pretensa<br />

existência <strong>de</strong> um aluno padrão i<strong>de</strong>al, cada vez mais distante da realida<strong>de</strong>. Logo, as nossas<br />

inquietações não se distanciam muito daquelas que, mundo afora, levaram inúmeros educadores à<br />

busca <strong>de</strong> alternativas que pu<strong>de</strong>ssem contribuir para a superação das barreiras subjetivas salpicadas<br />

no caminho daqueles que, por uma série inumerável <strong>de</strong> motivos, sofreram qualquer tipo <strong>de</strong> agressão<br />

praticado pelo núcleo social que, por princípio, <strong>de</strong>veria protegê-lo, ou pelos caprichos, nem sempre<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 53


ondosos, da mãe natureza.<br />

Precisamos, no entanto, ter a consciência <strong>de</strong> que, por mais que estejamos, cotidianamente, a revirar<br />

gavetas e estantes em busca <strong>de</strong> alguma argumentação que nos aju<strong>de</strong> a dialogar com as nossas<br />

aflições relativas à educação dos setores populares, vamos perceber que parte daquilo que<br />

procuramos não resi<strong>de</strong> nas páginas da literatura clássica, elaborada com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> respaldar o<br />

trabalho docente e contribuir para a melhoria <strong>de</strong> suas práticas. É mais razoável acreditar que os<br />

nossos <strong>de</strong>sejos serão parcialmente satisfeitos através das vivências promovidas por algumas<br />

instituições que <strong>de</strong>scobriram, quase sempre fazendo uso da seiva que emerge do <strong>conhecimento</strong><br />

popular, os instrumentos capazes <strong>de</strong> fazer com que uma <strong>de</strong>terminada situação incômoda pu<strong>de</strong>sse ser<br />

contornada pelos próprios membros do grupo social afetado. Sobre este assunto, Gohn (1999, p. 7),<br />

nos ajuda com a seguinte proposição:<br />

Hoje, quando a humanida<strong>de</strong> caminha para a finalização <strong>de</strong> mais um milênio (1999), a educação tem<br />

sido proclamada como uma das áreas-chave para enfrentar os novos <strong>de</strong>safios gerados pela<br />

globalização e pelo avanço tecnológico na era da informação. A educação é conclamada também<br />

para superar a miséria do povo, promovendo o acesso dos excluídos a uma socieda<strong>de</strong> mais justa e<br />

igualitária, juntamente com a criação <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> renda e da justiça social.<br />

Neste cenário, observa-se uma ampliação do conceito <strong>de</strong> educação, que não se restringe mais aos<br />

processos <strong>de</strong> ensino-aprendizagem no interior das unida<strong>de</strong>s escolares formais, transpondo os muros<br />

da escola para os espaços da casa, do trabalho, do lazer, do associativismo, etc. Com isto, um novo<br />

campo da educação se estrutura: o da educação não-formal. Ela aborda processos educativos que<br />

ocorrem fora das escolas, em processos organizativos da socieda<strong>de</strong> civil, ao redor <strong>de</strong> ações coletivas<br />

do chamado terceiro setor da socieda<strong>de</strong>, abrangendo movimentos sociais, organizações não<br />

governamentais e outras entida<strong>de</strong>s sem fins lucrativos que atuam na área social; ou processos<br />

educacionais, frutos da articulação das escolas com a comunida<strong>de</strong> educativa, via conselhos,<br />

colegiados etc .<br />

Temos, inclusive, observado que este tipo <strong>de</strong> instituição, livre das amarras dos tradicionais sistemas<br />

oficiais <strong>de</strong> ensino, movimenta-se com mais liberda<strong>de</strong> em torno das estratégias elaboradas para que<br />

um <strong>de</strong>terminado fim seja atingido. Uma parte <strong>de</strong>ste universo é composta por entida<strong>de</strong>s que fazem<br />

uso <strong>de</strong> instrumentos não convencionais para livrar a meninada dos perigos oferecidos pelas ruas das<br />

gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e das condições miseráveis em que vive. Algumas <strong>de</strong>las, fruto <strong>de</strong> iniciativas<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 54


individuais em pequenos espaços para ensinamento <strong>de</strong> práticas acrobáticas, teatrais, esportivas ou<br />

musicais, outras resultantes dos financiamentos público/privados, que possibilitam a implantação <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s centros <strong>de</strong> artes e esportes. Insere-se neste último contexto, à guisa <strong>de</strong> exemplo, a Vila<br />

Olímpica da Mangueira, no Rio <strong>de</strong> Janeiro e a Escola <strong>de</strong> Música Pracatum, situada no bairro do<br />

Can<strong>de</strong>al, que fica nos arredores <strong>de</strong> Salvador, ambas trabalhando sob a ótica <strong>de</strong> que o menino que vai<br />

bem no trato com a música, a dança ou com o esporte, normalmente, vai bem na escola. A citação<br />

<strong>de</strong> Guerreiro (2000, p. 113), sob o trabalho <strong>de</strong> Carlinhos Brown, contribui para o entendimento do<br />

assunto que estamos discutindo:<br />

A Escola Pracatum, i<strong>de</strong>alizada pelo percussionista Carlinhos Brown, inaugurada no bairro do<br />

Can<strong>de</strong>al, em março <strong>de</strong> 1999, pretendia aten<strong>de</strong>r a duzentos jovens do bairro entre 14 e 19 anos,<br />

oferecendo, além <strong>de</strong> formação musical, cursos <strong>de</strong> alfabetização. Para Carlinhos Brown, “o que<br />

estamos fazendo no Can<strong>de</strong>al é uma revolução com elegância”. Orçada em US$ 2.000.000,00 (dois<br />

milhões <strong>de</strong> dólares), a Pracatum conta com apoio do BNDES, da Unicef e da Fundação Vitae.<br />

Durante dois anos, a escola foi comandada por uma equipe responsável pela elaboração <strong>de</strong> uma<br />

pedagogia a<strong>de</strong>quada ao contexto do Can<strong>de</strong>al e aten<strong>de</strong>u, experimentalmente, a sessenta alunos. Mas<br />

a <strong>de</strong>sestruturação <strong>de</strong>ssa equipe, sob a alegação <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> verbas, impediu o pleno funcionamento<br />

da Escola, que ficou seis meses sem ativida<strong>de</strong>s, voltando a abrir as portas para setenta alunos. No<br />

espaço Pracatum funciona, também, o estúdio <strong>de</strong> gravação <strong>de</strong> Carlinhos Brown – A Ilha do Sapo.<br />

Além do exposto nos parágrafos anteriores, já temos vários indícios <strong>de</strong> que os alunos que se<br />

envolvem em trabalhos <strong>de</strong> natureza lúdica, artística ou utilitária caminham, com mais <strong>de</strong>senvoltura,<br />

pelos vários campos do <strong>conhecimento</strong>. O que estamos querendo dizer com isso é que a escola<br />

pública, num arroubo <strong>de</strong> progressivismo , e no afã <strong>de</strong> se colocar na <strong>de</strong>fensiva contra o discurso<br />

burguês sobre as diferenciações entre o ensino oferecido às classes dominantes (produção<br />

intelectual) e os setores subalternos (trabalho braçal), esqueceu-se da importância da escola <strong>de</strong><br />

Freinet e Makarenko, on<strong>de</strong> as oficinas sempre estiveram presentes, dando significado às ativida<strong>de</strong>s<br />

que a escola <strong>de</strong>senvolvia visando à alfabetização dos filhos das socieda<strong>de</strong>s francesa e soviética,<br />

atordoados pelas angústias dos períodos pós-guerra.<br />

Amplia-se, portanto, o leque <strong>de</strong> interlocutores. Além <strong>de</strong> nossa aproximação com os construtores <strong>de</strong><br />

propostas alternativas direcionadas para o fortalecimento das ações cooperativas, visando ao<br />

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crescimento das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> convivência, é importante que mantenhamos abertos os canais <strong>de</strong> diálogo<br />

com as instituições que orientam suas práticas para o trabalho lúdico, esportivo ou utilitário<br />

alicerçado em mo<strong>de</strong>los capazes <strong>de</strong> promover o aparecimento <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> mais fraterna e<br />

solidária. Satisfazem a essas condições, <strong>de</strong>ntre muitos outros, e além dos já citadas nos parágrafos<br />

acima: a Trupe Levantando a Lona, uma escolinha <strong>de</strong> circo que trabalha com os meninos e meninas<br />

do Morro do Cantagalo, ligada ao Grupo Cultural Afro-Reggae, e o Projeto Dois Toques, ligado à<br />

Fundação Gol <strong>de</strong> Letra, ambos sediados no Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

O Grupo Cultural Afro-Reggae ganha corpo a partir <strong>de</strong> 1993, mais precisamente na Favela <strong>de</strong><br />

Vigário Geral, um pouco antes da gran<strong>de</strong> chacina cometida pela polícia carioca, na qual per<strong>de</strong>ram a<br />

vida mais <strong>de</strong> 20 trabalhadores. Trata-se <strong>de</strong> uma organização não-governamental que atua nos<br />

bolsões <strong>de</strong> pobreza da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>. Atualmente o grupo está estruturado em quatro gran<strong>de</strong>s<br />

comunida<strong>de</strong>s: Vigário Geral, Morro do Cantagalo, Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e Parada <strong>de</strong> Lucas e conta ainda<br />

com trabalhos em vários outros pequenos núcleos habitados pelos segmentos menos favorecidos.<br />

Afora o quesito dimensão e volume <strong>de</strong> atendimento, po<strong>de</strong>mos dizer que o trabalho realizado pelo<br />

Grupo Cultural Afro-Reggae é filho legítimo das gráficas escolares <strong>de</strong> Freinet, também presentes<br />

nas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidas pelos Centros <strong>de</strong> Interesses da Ilha <strong>de</strong> Cuba e pelas Colônias <strong>de</strong><br />

Ressocialização <strong>de</strong> Makarenko, na antiga União Soviética. São formas distintas <strong>de</strong> lidar com a<br />

educação dos filhos das classes menos favorecidas, porém alicerçadas nos mesmos princípios e<br />

visando à conquista dos mesmos objetivos: proporcionar aos filhos do proletariado um leque <strong>de</strong><br />

oportunida<strong>de</strong>s capaz <strong>de</strong> levar a socieda<strong>de</strong> à melhoria dos padrões <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, trabalho e<br />

lazer.<br />

Vivemos no mundo da bola, somos o país <strong>de</strong> futebol e por isso achamos natural que todos os<br />

meninos, em algum momento <strong>de</strong> suas vidas, tenham sonhado em ser um Ronaldinho não<br />

importando, para efeito dos sonhos, se o moço é gaúcho ou carioca. O que todos querem mesmo é<br />

um dia entrar no maior estádio do mundo ovacionados pela torcida <strong>de</strong> seu time, comprar uma casa<br />

para a mãe e um carro vermelho novinho em folha para <strong>de</strong>sfilar entre os amigos da pobre infância,<br />

dos quais, todos os que chegam lá, dizem jamais esquecer.<br />

Tamanha unanimida<strong>de</strong> fez com que as mais antigas propostas <strong>de</strong> ocupação do tempo da meninada,<br />

nos horários não preenchidos pelas escolas, partissem <strong>de</strong> agremiações ainda não contaminadas pela<br />

febre das ONGs, que surgiram com os mesmos ventos impulsionadores do fenômeno da<br />

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO. 56


globalização. Do futebol para os outros esportes tudo aconteceu com certa rapi<strong>de</strong>z. Além da<br />

ocupação do tempo, uma boa parte dos responsáveis, mesmo não explicitando, tolerava o doce ócio<br />

das crianças, na crença enrustida <strong>de</strong> que, um dia, a natureza lhes <strong>de</strong>volvesse um Romário, um<br />

Tafarel ou um Oscar, se o esporte que o menino escolhera para praticar tem a cesta como meta, ao<br />

invés do gol. Multiplicavam-se, portanto, as escolinhas <strong>de</strong> esportes, uma boa parte <strong>de</strong>las assumida<br />

pelos estados e municípios, certos estavam os seus dirigentes <strong>de</strong> que reassumiam as funções<br />

abandonadas com a história do estado mínimo nacional.<br />

Dentre as propostas interessantes que surgem do mundo da bola, uma <strong>de</strong>las vem na contramão,<br />

falando em cultura, cidadania, transformação da realida<strong>de</strong>. Trata-se do Projeto Dois Toques da<br />

Fundação Gol <strong>de</strong> Letra, uma instituição criada por dois prestigiados jogadores <strong>de</strong> futebol que, até<br />

bem pouco tempo, encantavam os olhos da torcida brasileira: Leonardo, dono <strong>de</strong> um jogo vistoso,<br />

homem falante, excelente articulador e Raí que, durante toda a sua vida esportiva, caracterizou-se<br />

pela disciplina, pelo comportamento ético e pelas paixões que <strong>de</strong>spertava nas camadas femininas da<br />

socieda<strong>de</strong>. O que pouca gente sabe é que, além <strong>de</strong> todas as virtu<strong>de</strong>s inerentes à profissão, os dois<br />

ainda arranjaram um tempo para conversar sobre uma coisa que nós fazemos todos os dias:<br />

construir estratégias para que a socieda<strong>de</strong> avance em busca <strong>de</strong> dias mais promissores.<br />

Queremos, no entanto, <strong>de</strong>ixar claro que, apesar do número significativo <strong>de</strong> projetos que partem da<br />

iniciativa <strong>de</strong> grupos privados, setores religiosos ou pessoas físicas, insistimos em responsabilizar o<br />

Estado pela falta <strong>de</strong> cuidado para com a educação dos setores sociais menos aquinhoados. O que<br />

essas instituições estão apontando, cada uma à sua maneira, são algumas alternativas que po<strong>de</strong>m<br />

proporcionar à filharada das classes populares uma vida mais digna. Ao Estado cabe a tarefa <strong>de</strong><br />

multiplicar as iniciativas que <strong>de</strong>ram bons frutos, on<strong>de</strong> quer que haja necessida<strong>de</strong>.<br />

Referências bibliográficas<br />

FREINET, Celestin. A educação pelo trabalho . Lisboa, Presença, 1974.<br />

Celestin Freinet: educador francês, um dos expoentes da Escolanovismo, mas<br />

perfeitamente afinado com os postulados sócio-interacionistas que orientam a escola<br />

progressista brasileira. Dentre as estratégias que criou para a superação das<br />

dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seus alunos, estão: a aula-passeio, os cantinhos <strong>de</strong> interesses e a<br />

gráfica escolar.<br />

GARCIA, Regina Leite (org ). Múltiplas linguagens na escola . Rio <strong>de</strong> Janeiro, DP&A, 2000.<br />

Regina Leite Garcia: professora primária, professora universitária, doutora em<br />

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educação. Atualmente é professora da pós-graduação em educação da Universida<strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral Fluminense, autora <strong>de</strong> vários livros e coor<strong>de</strong>na o Grupalfa – Grupo <strong>de</strong> estudos<br />

para alfabetização sediado na UFF-Niterói.<br />

GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal. São Paulo, Cortez, 1999.<br />

Maria da Glória Gohn: professora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, especialista em<br />

educação não-formal.<br />

GUERREIRO, Goli . A trama dos tambores – a música afro-pop <strong>de</strong> Salvador . São Paulo, Editora<br />

34, 2000.<br />

Goli Guerreiro: professora e pesquisadora cultural. O trabalho usado neste artigo é<br />

uma síntese <strong>de</strong> sua tese <strong>de</strong> doutorado sobre o movimento musical <strong>de</strong> Salvador.<br />

MAKARENKO, Anton Semiónovitch. Poema pedagógico . São Paulo, <strong>Brasil</strong>iense, 1986.<br />

Anton Semiónovitch Makarenko: pedagogo soviético responsável pela implantação da<br />

colônia Gorki, na Rússia pós-revolucionária, na qual educou um grupo <strong>de</strong> jovens e<br />

adolescentes pré-<strong>de</strong>linqüentes, tendo a cooperação e a disciplina como princípios<br />

fundamentais.<br />

VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente . São Paulo, Martins Fortes, 1991. L. S.<br />

Vygotsky: p sicólogo russo, autor <strong>de</strong> vários tratados sobre psicologia, educação e arte.<br />

É o principal inspirador do movimento sócio-interacionista. Para Vygotsky a<br />

aprendizagem é fruto <strong>de</strong> processos interativos que têm origem na cooperação.<br />

Notas<br />

Mestre em Educação pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense. Professor da<br />

Universida<strong>de</strong> Estácio <strong>de</strong> Sá e da Re<strong>de</strong> Pública <strong>de</strong> Angra dos Reis. É autor, <strong>de</strong>ntre<br />

outros, dos livros A escola do aluno caminhador e Vamos indo na ciranda.<br />

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