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Furto Qualificado e Princípio da Insignificância - ANADEP

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FURTO QUALIFICADO E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA<br />

UMA ABORDAGEM GARANTISTA<br />

Alexandre Brandão Rodrigues<br />

Defensor Público do Estado do Rio Grande do Sul<br />

INTRODUÇÃO<br />

Há que se secularizar o direito, valores morais e religiosos são grandezas estranhas ao<br />

sistema jurídico e, por isso, não são objeto do estudo do jurista. A Constituição Federal de<br />

1988 instituiu um Estado laico, onde houve a ruptura definitiva do Estado e <strong>da</strong> religião.<br />

Assim valores como “pecado”, “mau’, “injusto”, são grandezas inconstitucionais, avessas<br />

ao sistema jurídico, pois não é função do Estado expurgar ou redimir os “pecados” e nem<br />

de penitenciar os ci<strong>da</strong>dãos por serem “pecadores ou imorais”. Tem sim o Estado o dever de<br />

proteger o ci<strong>da</strong>dão contra o ato lesivo de outro ci<strong>da</strong>dão, ou seja, este é o fim do Direito<br />

Penal, de proteger o mais fraco, em duplo sentido, primeiro proteger a vítima do agressor e,<br />

depois, o réu do próprio Estado.<br />

O precursor do positivismo jurídico foi Hans Kelsen com a sua teoria pura do direito,<br />

onde estabeleceu que a norma é o objeto único <strong>da</strong> ciência jurídica. Devendo o jurista se<br />

abster de qualquer outro valor estranho ao sistema jurídico. Ocorre que a teoria pura<br />

proposta por Kelsen confunde a vali<strong>da</strong>de com a vigência <strong>da</strong> norma, onde uma norma<br />

vigente é, necessariamente, uma norma váli<strong>da</strong>.


O garantismo penal veio para <strong>da</strong>r uma nova tônica ao positivismo jurídico, onde<br />

mesmo instigando ao jurista fazer uma constante crítica contra a inserção de valores<br />

estranhos ao sistema jurídico (como valores morais e religiosos), ao mesmo passo,<br />

reintroduz to<strong>da</strong> uma carga valorativa para dentro do sistema, mas não é todo e qualquer<br />

valor que é reintroduzido como objeto de análise do jurista, mas sim os valores que já estão<br />

no sistema jurídico, que foram acolhidos pela Constituição como direitos e garantias<br />

individuais e sociais. Assim, deve o jurista estabelecer uma constante crítica sobre a<br />

vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> norma frente às garantias estabeleci<strong>da</strong>s pela Constituição. Diferenciando a<br />

vigência <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> norma, pois uma norma, mesmo vigente, não será váli<strong>da</strong> se<br />

contrariar os direitos e garantias estabeleci<strong>da</strong>s constitucionalmente, introduzindo, desta<br />

forma, um conceito de vali<strong>da</strong>de material.<br />

Sob o prisma do garantismo penal estabeleceremos uma crítica a corrente decisão do<br />

Tribunal de Justiça do RS que não tem aplicado o princípio <strong>da</strong> insignificância na hipótese<br />

de furto qualificado.<br />

1. O POSITIVISMO JURÍDICO DE HANS KELSEN<br />

Hans Kelsen, foi precursor do positivismo na ciência jurídica. Pretendeu ele<br />

estabelecer um teoria pura do direito, tendo para isto, como base positivismo fun<strong>da</strong>do por<br />

Augusto Conte.<br />

Para Kelsen, o jurista, como cientista jurídico, tem por objeto único e específico a<br />

norma jurídica. Assim, todos questões políticas, religiosas, sociais, psicológicas, éticas e<br />

morais, enfim, questões que não forem afetas a norma propriamente dita, estão fora do<br />

estudo <strong>da</strong> ciência jurídica. É nisto que consiste a sua teoria pura do direito, preconiza o<br />

estudo científico <strong>da</strong> norma jurídica, abstraindo qualquer questão valorativa, pois o que<br />

interessa para o jurista é a norma jurídica e mais na<strong>da</strong>.<br />

2


Segundo a sua teoria, o Direito visa evitar comportamentos nocivos (ilícitos) por<br />

meio <strong>da</strong> sanção. Estando aí a principal diferença entre o direito e a moral, ou seja, no uso <strong>da</strong><br />

coerção socialmente organiza<strong>da</strong>. O Direito se traduz em uma técnica de motivação indireta<br />

de condutas, onde o homem ao agir, terá como instrumento de reflexão o agir de acordo<br />

com o direito e evitar a sanção ou o agir contrário ao direito e se sujeitar as suas penas.<br />

Para Kelsen, há duas classes de normas, as primárias, que estabelecem sanções para<br />

atos nocivos e as adjetivas, que explicam as condutas. Ou seja, para sua teoria, o preceito<br />

primário de um tipo (ex: matar alguém) trata-se de norma secundária, enquanto a que<br />

estabelece a sanção (pena- seis a vinte anos) é norma primária.<br />

A base de sua teoria pura está na preposição que o princípio de regência <strong>da</strong>s ciências<br />

naturais difere do <strong>da</strong> ciência jurídica. Pois para aquela, que corresponde ao mundo do “ser”,<br />

do plano <strong>da</strong> existência determina<strong>da</strong>, é regi<strong>da</strong> pela causa e feito, ou seja pelo princípio <strong>da</strong><br />

causali<strong>da</strong>de. Já a ciência jurídica é regi<strong>da</strong> pelo princípio <strong>da</strong> imputação, onde os fatos só<br />

encontram razão nas normas que os vinculam, sendo ações normativamente qualifica<strong>da</strong>s.<br />

Expressando assim, a contingenciali<strong>da</strong>de do mundo do “dever ser”. Tal contingenciali<strong>da</strong>de<br />

consiste em o fato ser enquadrado na norma (imputado), pois só assim, terá valor jurídico.<br />

Assim, para a teoria pura do direito, o objeto <strong>da</strong> ciência jurídica são as normas, devendo ser<br />

abstraí<strong>da</strong>s de qualquer valor, seja moral, seja religioso, etc.<br />

No sistema instituído por Kelsen, a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> norma se confunde com a sua<br />

vigência, ou seja, uma norma por ser vigente é automaticamente váli<strong>da</strong>. Isto porque entende<br />

que todo o sistema normativo tem uma característica dinâmica, onde uma norma é sempre<br />

precedi<strong>da</strong> por outra norma autorizadora. Sendo que esta pode delegar competência para a<br />

norma subseqüente, formando assim uma cadeia de autorizações. Neste contexto, uma<br />

norma pode conferir um poder de produção normativa a uma determina<strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de.<br />

Assim, se tal autori<strong>da</strong>de, seguir o processo formal de produção legislativa a norma<br />

produzi<strong>da</strong> será vigente e por ser vigente, será automaticamente váli<strong>da</strong>, independente do seu<br />

conteúdo.<br />

3


Neste enfoque, tais critérios, para a vigência e, conseqüente, para a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

normas, são fixados pela Constituição. Pois, apenas de uma norma (dever ser) pode se<br />

derivar outra norma, na lógica do sistema jurídico-positivista kelseniano. Assim, não só o<br />

direito condiciona a sua própria criação, mas a própria aplicação do direito é, ao mesmo<br />

tempo, a sua criação.<br />

Este sistema é formado com base em uma pirâmide, onde a Constituição está no seu<br />

ápice, <strong>da</strong>ndo vali<strong>da</strong>de as demais normas que há sucedem, no sistema de cadeia de<br />

autorizações normativas. Mas, para <strong>da</strong>r vali<strong>da</strong>de a Constituição, pois sendo esta o ápice <strong>da</strong><br />

pirâmide, se não tiver vali<strong>da</strong>de, todo o sistema normativo perderia vali<strong>da</strong>de, por isto Kelsen<br />

formulou a teoria <strong>da</strong> norma hipotética fun<strong>da</strong>mental, sendo que é esta que dá vali<strong>da</strong>de a<br />

Constituição.<br />

Ou seja, a norma hipotética fun<strong>da</strong>mental foi cria<strong>da</strong> com o fim de manter a lógica do<br />

sistema jurídico-positivista, onde uma norma só pode derivar de outra norma, sendo que<br />

to<strong>da</strong> a gama de proposições axiológicas, valorativas, não faz parte do sistema jurídico. Para<br />

o direito, na teoria pura, o que interessa é a norma, sendo esta, exclusivamente, o seu objeto<br />

de estudo. Assim, não importa ao direito responder o que é justo ou injusto, o que é imoral<br />

ou moral, mas sim o que é lícito ou ilícito.<br />

2 O GARANTISMO PENAL DE LUIGI FERRAJOLI<br />

Ferrajoli é um positivista, pois acredita no Direito como ciência onde a norma é o seu<br />

objeto e onde valores morais, éticos, religiosos são grandezas estranhas ao sistema. Na<br />

formulação <strong>da</strong> sua teoria, o garantismo, que trata-se de uma teoria positivista, onde a<br />

norma é o objeto de estudo, mas inova no sentido de reintroduzir os valores para dentro do<br />

sistema jurídico. Mas, tais valores não têm como fonte o direito natural ou o direito divino,<br />

são os valores escolhidos pelo próprio sistema, previstos expressamente ou implicitamente<br />

na Constituição. Ou seja, os princípios ou valores que o garantismo reintroduz no sistema<br />

jurídico, são valores que estão no próprio sistema, que foram acolhidos pela Constituição.<br />

Não importa os valores de fora do sistema, que são colhidos na filosofia ou na moral, por<br />

4


exemplo. Assim, o garantismo, de certa forma, mantém a “pureza” <strong>da</strong> teoria do Direito.<br />

Mas se contrapõe ao formalismo exarcebado <strong>da</strong> teoria pura, incluindo como objeto de<br />

análise não só a vali<strong>da</strong>de formal <strong>da</strong> norma (vigência), mas também a análise <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de<br />

substancial (material) <strong>da</strong> norma produzi<strong>da</strong>.<br />

2.1 Significados do Garantismo<br />

Para entender o garantismo, principalmente o garantismo penal, há de se ter em mente<br />

os três significados desta teoria estabelecidos por Ferrajoli.<br />

O garantismo, no primeiro significado, diz respeito a um modelo normativo de direito<br />

onde sobressai a estrita legali<strong>da</strong>de, entendendo-se por estrita legali<strong>da</strong>de não só a vigência<br />

<strong>da</strong> lei, mas sim a condição de vali<strong>da</strong>de ou legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis vigentes. Assim, no plano<br />

epistemológico o garantismo, segundo Ferrajoli, se caracteriza “como o sistema cognitivo<br />

ou de poder mínimo, sob o plano fático se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a<br />

minimizar a violência e maximizar a liber<strong>da</strong>de e, sob o plano jurídico, como um sistema de<br />

vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos ci<strong>da</strong>dãos.”<br />

(FERRAJOLI, L., 2006, p. 786)<br />

No segundo aspecto, o garantismo é teoria jurídica <strong>da</strong> “vali<strong>da</strong>de” e <strong>da</strong> “efetivi<strong>da</strong>de”.<br />

Onde a vali<strong>da</strong>de se traduz na legitimação <strong>da</strong>s normas jurídicas frente aos princípios e<br />

garantias estabeleci<strong>da</strong>s pela Constituição, sendo legítimas e, conseqüentemente, váli<strong>da</strong>s as<br />

normas que estão de acordo com os princípios e garantias constitucionais e, por sua vez,<br />

inváli<strong>da</strong>s e ilegítimas, as normas que vão de encontro a estes princípios e garantias. Já, no<br />

plano fático, pugna pela plena efetivi<strong>da</strong>de de modelos normativos que garantem princípios<br />

e direitos.<br />

5


Pois no sistema jurídico pode haver normas vigentes que não são váli<strong>da</strong>s, pois se<br />

contrapõe aos princípios e garantias constitucionais. Bem como normas, basea<strong>da</strong>s em<br />

princípios, que estabelecem direitos e garantias para o ci<strong>da</strong>dão, que, por não serem<br />

aplica<strong>da</strong>s no plano fático, não são efetivas. Por isto, segundo Ferrajoli (FERRAJOLI, L.,<br />

2006, p. 787), requer “dos juízes e dos juristas uma constante tensão crítica sobre as leis<br />

vigentes, por causa do duplo ponto de vista que a aproximação metodológica aqui delinea<strong>da</strong><br />

composta seja na sua aplicação seja na sua explicação: o ponto de vista normativo, ou<br />

prescritivo, do direito válido e o ponto de vista fático ou descritivo, do direito efetivo.”<br />

Diante disto, deve sempre o jurista se ater a questão <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s normas, visto de forma<br />

substancial, frente aos princípios prescritos na Constituição, bem como para normas que<br />

garantem tais princípios e que não são eficazes no plano fático.<br />

No terceiro significado, pretende ser uma filosofia do direito que impute o ônus de<br />

justificação ao Estado e ao próprio Direito. Pois tanto o Direito como o Estado são “coisas<br />

artificiais” que servem de meios para a satisfação dos interesses e necessi<strong>da</strong>des do homem.<br />

Necessitando, por isto, de constante justificação externa quantos aos bens que ficaram<br />

responsáveis por tutelar. Assim, há uma inversão de princípios quando estas instituições<br />

artificiais, pois cria<strong>da</strong>s pelo homem, se constituem em fins em si mesmas, perdendo, pois, o<br />

ônus <strong>da</strong> justificação. Dando razão a criação de Estados totalitários e de um Direito<br />

arbitrário.<br />

2.2 Graus de garantismo e/ou autoritarimo de um sistema jurídico<br />

Ferrajoli criou um sistema, através <strong>da</strong> proposição de dez axiomas fun<strong>da</strong>mentais (dez<br />

princípios), sendo que ca<strong>da</strong> um deles trata-se de uma condição indispensável para que o<br />

Estado possa punir, ou seja, trata-se de condições indispensáveis para a existência <strong>da</strong> pena,<br />

são eles:<br />

A1- Nulla poena sine crimine (não há pena sem crime);<br />

A2- Nullum crimen sine lege (não há crime sem lei);<br />

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A3- Nulla Lex (poenalis) sine necessitate (não há lei penal sem necessi<strong>da</strong>de);<br />

A4- Nulla necessitas sine injuria (não há necessi<strong>da</strong>de sem lesão);<br />

A5- Nulla injuria sine actione (não há lesão sem ação);<br />

A6- Nulla acione sine culpa (não há ação sem culpa);<br />

A7- Nulla culpa sine judicio (não há culpa sem jurisdicionarie<strong>da</strong>de);<br />

A8- Nulla judicium sine accusatione (não há jurisdicionali<strong>da</strong>de sem acusação);<br />

A9- Nulla acusatio sine probatione (não há acusação sem prova);<br />

A10- Nulla probatio sine defensione (não há prova sem defesa).<br />

Tal sistema foi montado de modo que “ca<strong>da</strong> um dos termos implicados implique, por<br />

sua vez o sucessivo” (FERRAJOLI, L., 2006, p. 92), formando uma cadeia de quarenta e<br />

cinco teoremas. Assim, podemos formar: Nulla poena sine lege, nulla injuria sine judicio,<br />

nulla judicio sine defensione, e assim por diante.<br />

Tanto mais garantista será um sistema jurídico, quanto mais observar os princípios<br />

enumerados. E, por conseqüência, tanto mais autoritário será um sistema jurídico, quanto<br />

menos observar tais princípios. Assim, exemplificaremos, um Estado que impõe uma pena<br />

sem haver crime para uma determina<strong>da</strong> conduta, é um Estado totalitário, altamente<br />

autoritário, pois a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pessoa fica totalmente ao arbítrio do Estado. Podemos<br />

considerar que é um Estado totalmente autoritário e antigarantista.<br />

Já um juiz que condena uma pessoa com base em provas onde não houve a<br />

participação <strong>da</strong> defesa, também produz uma norma autoritária. Mas não podemos dizer que<br />

o Estado é totalmente autoritário, pois havia um crime, o crime foi instituído por uma lei, a<br />

lei foi cria<strong>da</strong> porque havia uma necessi<strong>da</strong>de, pois poderia haver a lesão a um bem jurídico,<br />

houve uma ação, que em tese era culpável, para isto foi provocado o Poder Judiciário,<br />

através de um órgão responsável pela acusação, que pretendia provar a acusação através de<br />

7


provas, só que, tal prova não teve a participação <strong>da</strong> defesa. Podemos sim afirmar que tal<br />

decisão não tem vali<strong>da</strong>de, pois não respeitou as garantias processuais <strong>da</strong> pessoa que estava<br />

sendo processa<strong>da</strong>.<br />

Assim, num sistema jurídico podem haver vários graus de garantismo e/ou<br />

autoritarismo, dependendo <strong>da</strong> observância de tais princípios acima elencados.<br />

2.3 A Verificação e a valoração <strong>da</strong> prova – poderes jurisdicionais<br />

Vimos, que a teoria do garantismo se assenta em três bases principais, na legali<strong>da</strong>de<br />

estrita, na vali<strong>da</strong>de e efetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s normas e na constante justificação do Estado, que há<br />

de ser feita com base na lei e na Constituição, bem como nos princípios e valores por ela<br />

estabelecidos.<br />

E, quanto ao poder de verificação e valoração do juiz, Ferrajoli identifica quatro<br />

aspectos, que são analisados com base em tais premissas. São poderes do juiz:<br />

- poder de denotação ou verificação jurídica;<br />

- poder de comprovação probatória ou de verificação fática;<br />

- poder de verificação ou discernimento equitativo; e<br />

- poder de disposição ou valoração ético-política.<br />

Os três primeiros poderes são complementares em relação ao último, visto que, se<br />

excederem, geram o poder de disposição, pois poderão se extraviar “até deixarem o campo<br />

livre ao mero arbítrio decisionista.” (FERRAJOLI, L., 2006, p. 114)<br />

8


A ver<strong>da</strong>de processual é alcança<strong>da</strong> através <strong>da</strong> denotação, que se dá através de<br />

inferências dedutivas (ou subsunção) e a comprovação probatória através de inferências<br />

indutivas (ou provas). Sendo que tais ver<strong>da</strong>des (jurídicas e fáticas) serão distingui<strong>da</strong>s entre<br />

a vericabili<strong>da</strong>de (condições de uso dos termos ver<strong>da</strong>deiro e falso, com base em referências<br />

empíricas) e a verificação (aceitação <strong>da</strong>s teses pelos métodos de comprovação e controle).<br />

Assim, só são verificáveis, como ver<strong>da</strong>de, apenas as afirmações que descreverem fatos ou<br />

situações observáveis empiricamente, ou seja, que tenham referências empíricas. Desta<br />

forma, não são verificáveis afirmações ou fatos descritos através de juízos de valor, como<br />

“ofensa à moral”, “desacato à autori<strong>da</strong>de”, etc.<br />

Visto que as condições de verificabili<strong>da</strong>de de uma afirmação dependem <strong>da</strong> semântica<br />

<strong>da</strong> linguagem na qual foi formula<strong>da</strong>, Ferrajoli utiliza-se <strong>da</strong> teoria de Gottab Frege para<br />

distinguir o significado de um signo. Tal teoria afirma que deve-se distinguir a extensão ou<br />

denotação (conjunto de objetos para o qual o signo se aplica) <strong>da</strong> intensão ou conotação<br />

(característica essencial do signo). Assim, a extensão de um termo será tanto maior (ou<br />

menor) quanto menor (ou maior) for sua intensão. Ferrajoli exemplifica utilizando o signo<br />

“homem”, que é mais extenso que “homem de 20 anos” (que tem uma intensão menor) e<br />

menos extenso que “animal” (que tem uma intensão maior).<br />

Diante disto, conclui “que um termo é vago ou indeterminado se sua intensão não<br />

permitir determinar a sua extensão com relativa certeza, quer dizer, se existirem objetos que<br />

não estão excluídos nem incluídos claramente em sua extensão.” (FERRAJOLI, L., 2006, p.<br />

116) Assim, não são verificáveis termos valorativos, por serem vagos ou indeterminados, e<br />

que muitas vezes estão em nossa legislação, como “fútil”, “torpe”, “obsceno”, “mau”,<br />

“vagabundo”, “mendigo”, etc. Pois tais termos, para serem interpretados, dependem,<br />

exclusivamente, do juízo de valor do observador, não são verificáveis através de referências<br />

empíricas, enfim, podem ser falsos ou ver<strong>da</strong>deiros dependendo <strong>da</strong> pessoa que os interpreta.<br />

Assenta Ferrajoli que correlativamente com o princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de estrita está o<br />

princípio <strong>da</strong> jurisdicionali<strong>da</strong>de estrita, sendo que aquele consiste em assegurar a<br />

9


determinabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s denotações jurídicas, enquanto este consiste em assegurar a<br />

determinabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s denotações fáticas. Ou seja, o princípio <strong>da</strong> jurisdicionali<strong>da</strong>de estrita<br />

trata de uma série de regras “de verificabili<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> refutabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s teses que no<br />

processo enunciam os fatos e provas, que tanto aquelas como estas sejam exatamente<br />

individualiza<strong>da</strong>s mediante descrições precisas e sem uso de palavras vagas e valorativas.”<br />

(FERRAJOLI, L., 2006, p. 120)<br />

Conceitos vagos e indeterminados, com palavras equivoca<strong>da</strong>s e com juízos de valores<br />

na descrições de fatos, por constituírem fatores de esvaziamento garantias penais e<br />

processuais, devem ser filtrados e repelidos pelo juiz, ao aplicar o princípio <strong>da</strong><br />

jurisdiconali<strong>da</strong>de estrita. Mas, do contrário, quando o juiz aplica, na decisão do caso<br />

concreto, juízos de valores associado a descrições fáticas, macula, de forma frontal, tal<br />

princípio, o que faz com que macule também, com selo <strong>da</strong> nuli<strong>da</strong>de a sua decisão, por<br />

carecer esta de vali<strong>da</strong>de substancial.<br />

Diante disto, para fins de justificação <strong>da</strong> indução judicial, frente às garantias<br />

processuais, o juiz deve sempre estar atento a três condições, que são:<br />

- a garantia <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prova e <strong>da</strong> verificação;<br />

- a garantia <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de contraprova ou refutação;<br />

- a garantia <strong>da</strong> decisão imparcial e motiva<strong>da</strong> sobre a ver<strong>da</strong>de processual fática contra a<br />

arbitrarie<strong>da</strong>de e o erro.<br />

A primeira diz respeito à garantia <strong>da</strong> prova, ou seja, o fato, para justificar a indução<br />

judicial, deve ter provas que em quali<strong>da</strong>de e quanti<strong>da</strong>de possam proporcionar a<br />

vericabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> tese acusatória, de modo que o juiz possa, no caso de julgar pela<br />

culpabili<strong>da</strong>de, ter elementos suficientes para superar a presunção de inocência. A segun<strong>da</strong><br />

condição diz respeito ao contraditório, ou seja, a possibili<strong>da</strong>de de se poder refutar a prova<br />

apresenta<strong>da</strong> e fazer a contraprova. E a terceira condição trata-se <strong>da</strong> garantia <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

fática, ou seja, para uma tese acusatória ser aceita pelo juízo é necessário que ela seja<br />

10


confirma<strong>da</strong> por várias outras teses e que não seja refuta<strong>da</strong> (ou desmenti<strong>da</strong>) por qualquer<br />

contraprova.<br />

Assim, através de tais condições, se induzirá à decisão judicial a lógica <strong>da</strong><br />

investigação indutiva, reduzindo “ao mínimo o poder de verificação ou denotação fática do<br />

juiz e a arbitrarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua convicção, assegurando a máxima certeza ou segurança<br />

possível <strong>da</strong>s decisões condenatórias”. (FERRAJOLI, L., 2006, p. 145) Tais decisões são<br />

próprias do direito penal mínimo, que garantem que nenhum inocente seja punido.<br />

O terceiro poder referenciado, qual seja, o poder de conotação ou discernimento<br />

eqüitativo é o poder de individualização dos fatos e valorações específicas de tais fatos. A<br />

eqüi<strong>da</strong>de, no conceito aristoteano, consiste em suprir a omissão <strong>da</strong> lei aplicando regras<br />

gerais de “justiça universal”, estando de olho não na lei, mas sim no legislador ao suprir<br />

certa lacuna, certa omissão. O equívoco deste recurso à equi<strong>da</strong>de é que se trata de uma<br />

operação extra, ultra ou contra legem. Ocorre que a equi<strong>da</strong>de tem sido utiliza<strong>da</strong>, nas<br />

palavras de Ferrajoli, como uma “muleta <strong>da</strong> justiça”, ou “seja um meio para suprir as<br />

lacunas ou os equívocos evidentes <strong>da</strong> lei , mediante o reenvio ao direito natural”, o que em<br />

muitos casos, sua aceitação tem servido “para favorecer orientações substanciais e<br />

decisionistas contrárias ao princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de e particularmente deletérias no direito<br />

penal, sua repulsa vem enlaça<strong>da</strong> com orientações obtusamente formalistas e abstratamente<br />

legalistas” (FERRAJOLI, L., 2006, p. 150)<br />

Necessário, pois, haver racionali<strong>da</strong>de no uso <strong>da</strong> equi<strong>da</strong>de por parte do juiz. A<br />

utilização <strong>da</strong> equi<strong>da</strong>de de forma racional e garantista se traduz em uma técnica de<br />

conotação, de maneira clara e precisa, dos fatos denotados pela lei. Devendo pois, através<br />

<strong>da</strong> compreensão de to<strong>da</strong>s as circunstâncias, aplicar a lei ao caso concreto. Tanto a<br />

legali<strong>da</strong>de, quanto a equi<strong>da</strong>de são dois aspectos do poder judicial ligado a dimensões<br />

distintas. Mas tal poder de equi<strong>da</strong>de na conotação do fato à denotação legal não pode ser<br />

arbitrário, deve ter como base a verificação fática do delito, suas circunstâncias e<br />

11


características, de forma a afastar as incertezas e vacui<strong>da</strong>des, que poderão tornar a decisão<br />

arbitrária e decisionista.<br />

Agora, por fim, o poder de disposição que é o “que se exerce na presença de espaços<br />

redutíveis, mediante decisões necessariamente referi<strong>da</strong> (também e somente) a valores<br />

distintos <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.” (FERRAJOLI, L., 2006, p. 158) É fruto de carências e imperfeições<br />

do sistema que pressupõe “opções ou juízos de valor dos quais não é possível qualquer<br />

caracterização semântica, mas apenas caracterizações pragmáticas, liga<strong>da</strong>s à obrigação <strong>da</strong><br />

decisão.” (FERRAJOLI, L., 2006, p. 159).<br />

Quando em um sistema houver espaços para definições vagas e imprecisas, mais<br />

crescerá o poder de disposição judicial. Traduzindo-se este em um poder arbitrário e<br />

discricionário, que dá vazão ao decisionismo judicial. Quando não forem observa<strong>da</strong>s as<br />

regras para o alcance <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de processual, quando não forem observa<strong>da</strong>s as garantias,<br />

bem como o princípio de refutação <strong>da</strong> tese acusatória, não haverá possibili<strong>da</strong>de de haver<br />

juízos cognitivos, mas sim juízos potestativos, onde haverá a livre cognição não sobre a<br />

ver<strong>da</strong>de processual, mas sim sobre outros valores.<br />

Trata-se, pois, o poder de disposição, poder que tem origem na carência <strong>da</strong>s garantias<br />

e no predomínio de modelos penais arbitrários que se manifesta sobre valores distintos <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de processual. Estes valores, denominados de valores éticos-políticos, “são espaços de<br />

discricionarie<strong>da</strong>de políticas os espaços de insegurança, abertos de diversos modos pela<br />

indeterminabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de processual.” (FERRAJOLI, L., 2006, p. 161) Assim, o<br />

poder de disposição na<strong>da</strong> mais é que a autonomia do juiz para integralizar os espaços<br />

vazios deixados pela lei com valores éticos-políticos.<br />

Como já referido, o poder de disposição aparecerá quando o juiz sobrepuser os limites<br />

específicos de ca<strong>da</strong> um dos outros três poderes (de verificação jurídica fática e equitativa),<br />

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proferindo decisões basea<strong>da</strong>s em valores éticos-políticos, de caráter decisionista, destituí<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong>s garantias e sem o alicerce nas ver<strong>da</strong>des processuais.<br />

3 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E ATIPICIDADE MATERIAL<br />

O princípio <strong>da</strong> insignificância tem como pressuposto o princípio <strong>da</strong> “utili<strong>da</strong>de penal”,<br />

onde só é idôneo punir quando a conduta for efetivamente lesiva a terceiros. Assim só<br />

condutas efetivamente lesivas podem justificar a pena e podem, materialmente, serem<br />

criminaliza<strong>da</strong>s. Ressalta Ferrajoli que “condutas meramente imorais ou estados de ânimo<br />

pervertidos, hostis, ou, inclusive, perigosos” devem ser rechaçados pelo direito penal frente<br />

a secularização do direito e sua conseqüente separação <strong>da</strong> moral.<br />

A ação do direito penal só é justifica<strong>da</strong> para fatos ou condutas que realmente são<br />

lesivas para terceiros. Do contrário corresponderiam em grave atentado contra a liber<strong>da</strong>de<br />

do ci<strong>da</strong>dão. Tendo como base o teorema: Nullum crimen sine injuria, ou seja, não há crime<br />

sem lesivi<strong>da</strong>de, se a conduta não chegou a atingir ou ameaçar o bem jurídico protegido pela<br />

norma, efetivamente, não há crime. O delito pode até ser típico formalmente, por exemplo,<br />

o agente pode ter subtraído uma garrafa térmica de um estabelecimento comercial, mas tal<br />

garrafa térmica, devido ao seu valor (cerca de R$ 35,00), não terá o condão de lesar o<br />

patrimônio <strong>da</strong> empresa, para a empresa será totalmente insignificante. Assim, tal conduta é<br />

atípica materialmente, pois devido ao valor do bem, não ameaça ou fere o bem jurídico<br />

protegido pela norma, que no caso é o patrimônio. Não há justificativa para a atuação do<br />

direito penal frente aos princípios <strong>da</strong> “intervenção mínima” e <strong>da</strong> ultimo ratio.<br />

Tal princípio <strong>da</strong> insignificância, no caso de furto simples, tem sido acolhido pela<br />

jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul 1 , nas palavras no Des. Aramis<br />

Nassif extraí<strong>da</strong>s de seu voto na Apelação Crime Nº 70019063015:<br />

1 FURTO. DENÚNCIA. REJEIÇÃO. RES FURTIVA AVALIADA EM R$ 31,83. CRIME DE BAGATELA.<br />

ATIPICIDADE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Há evidente equívoco na afirmação de que, reconhecido o princípio <strong>da</strong><br />

insignificância, chegue-se à impuni<strong>da</strong>de ou descriminalização de condutas. É que os crimes de bagatela são figuras típicas<br />

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Há evidente equívoco na afirmação de que, reconhecido o princípio <strong>da</strong><br />

insignificância, chegue-se à impuni<strong>da</strong>de ou descriminalização de<br />

condutas. É que os crimes de bagatela são figuras típicas que, na<br />

aparência, amol<strong>da</strong>m-se ao modelo típico, mas, identificado tratarem-se de<br />

ofensas a bens jurídicos sem reprovação ou censura social, dispensam a<br />

necessi<strong>da</strong>de de atuação do direito penal. Serve como um instrumento de<br />

restrição à amplitude injusta do tipo penal, destina<strong>da</strong> à resposta àquelas<br />

condutas relevantes e marca<strong>da</strong>s pela nocivi<strong>da</strong>de ao meio social onde é<br />

pratica<strong>da</strong>, assegurando e viabilizando a aplicabili<strong>da</strong>de do princípio <strong>da</strong><br />

proporcionali<strong>da</strong>de entre a pena e a gravi<strong>da</strong>de do fato incriminado.<br />

No caso, o princípio <strong>da</strong> insignificância (ou bagatela) age com o fim de<br />

descriminalizar a conduta, que por sua irrelevância e falta de lesivi<strong>da</strong>de ao bem jurídico<br />

protegido pela norma, não pode ser objeto do direito penal. Assim é substancialmente<br />

atípica, pois, do contrário, a pena seria mais <strong>da</strong>nosa do que benéfica, indo de encontro,<br />

frontalmente, as garantias do ci<strong>da</strong>dão. Nas palavras de Luis Flávio Gomes (GOMES, L. F.,<br />

2002, p. 145):<br />

É neste âmbito que vigora com to<strong>da</strong> a intensi<strong>da</strong>de o princípio do direito<br />

penal fragmentário (só serve para tutelar lesão significativa aos bens<br />

jurídicos), assim como o do direito penal como ultimo ratio <strong>da</strong> sistema<br />

(princípio <strong>da</strong> subsidiarie<strong>da</strong>de), isto é, só de vê intervir quando outros<br />

ramos do direito não forem capazes de tutelar adequa<strong>da</strong>mente o bem<br />

jurídico.<br />

que, na aparência, amol<strong>da</strong>m-se ao modelo típico, mas, identificado tratarem-se de ofensas a bens jurídicos sem reprovação<br />

ou censura social, dispensam a necessi<strong>da</strong>de de atuação do direito penal. Serve como um instrumento de restrição à<br />

amplitude injusta do tipo penal, destina<strong>da</strong> à resposta àquelas condutas relevantes e marca<strong>da</strong>s pela nocivi<strong>da</strong>de ao meio<br />

social onde é pratica<strong>da</strong>, assegurando e viabilizando a aplicabili<strong>da</strong>de do princípio <strong>da</strong> proporcionali<strong>da</strong>de entre a pena e a<br />

gravi<strong>da</strong>de do fato incriminado. Em se tratando de res furtiva avalia<strong>da</strong> em R$ 31,83, sem que haja maior censura que a<br />

ordinária para o delito, deve ser reconhecido o crime co mo meramente bagatelar e, assim, resultar em sua atipici<strong>da</strong>de.<br />

Admissível a rejeição <strong>da</strong> denúncia pela atipici<strong>da</strong>de quando reconhecido o principio <strong>da</strong> insignificância. Recurso Improvido.<br />

(Apelação Crime Nº 70019063015, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aramis Nassif, Julgado<br />

em 30/05/2007)<br />

FURTO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. CRIME BAGATELAR. Os crimes de bagatela são figuras típicas que, na<br />

aparência, amol<strong>da</strong>m-se ao modelo típico, mas, uma vez identificado tratar-se de ofensa a bens jurídicos sem reprovação ou<br />

censura social, dispensam a necessi<strong>da</strong>de de atuação do direito penal. Serve como um instrumento de restrição à amplitude<br />

injusta do tipo penal, destina<strong>da</strong> à resposta àquelas condutas relevantes e marca<strong>da</strong>s pela nocivi<strong>da</strong>de ao meio social onde é<br />

pratica<strong>da</strong>, assegurando e viabilizando a aplicabili<strong>da</strong>de do princípio <strong>da</strong> proporcionali<strong>da</strong>de entre a pena e a gravi<strong>da</strong>de do fato<br />

incriminado. Há evidente equívoco na afirmação de que, reconhecido o princípio <strong>da</strong> insignificância, chegue-se à<br />

impuni<strong>da</strong>de ou descriminalização de condutas. Apelo Ministerial Improvido. (Apelação Crime Nº 70019214824, Quinta<br />

Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aramis Nassif, Julgado em 23/05/2007)<br />

14


Ocorre que, tal princípio, <strong>da</strong> insignificância e bagatela, não é aplicado pela<br />

majoritária jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS ao furto quando na conduta estiver<br />

presente alguma qualificadora.<br />

4 FURTO QUALIFICADO E PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA –<br />

APLICAÇÃO DO PODER DISPOSITIVO<br />

Quanto presente alguma <strong>da</strong>s qualificadoras do tipo penal de furto (§ 4º do art. 155 do<br />

Código Penal) tem entendido o Tribunal de Justiça do RS, pelo menos em sua maioria, que<br />

não há como aplicar o princípio <strong>da</strong> insiginificância 2 . Reproduziremos parte do voto do Des.<br />

Vladimir Giacomuzzi na Apelação criminal nº 70018978221:<br />

foi preso em flagrante no interior do Restaurante Daniel, em Palmeira <strong>da</strong>s<br />

Missões, que violou quebrando o vidro <strong>da</strong> janela e tendo nas mãos<br />

dinheiro e cheques que pretendia subtrair. O acusado, que havia a pouco<br />

deixado o Presídio local, admitiu a imputação, fazendo restrição, no<br />

2 FURTO QUALIFICADO NA FORMA TENTADA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. APELAÇÃO. Nega-se<br />

provimento ao apelo defensivo quando, como no caso, correta e justa se mostra a sentença que condena agente preso em<br />

flagrante no interior do estabelecimento comercial por ele violado com o propósito de furto, tendo, para tanto, quebrado o<br />

vidro <strong>da</strong> janela, sem aplicação o princípio <strong>da</strong> insignificância. (Apelação Crime Nº 70018978221, Terceira Câmara<br />

Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vladimir Giacomuzzi, Julgado em 17/05/2007)<br />

FURTO QUALIFICADO. 1. PALAVRA DA VÍTIMA. PROVA SUFICIENTE DA AUTORIA. CONDENAÇÃO<br />

MANTIDA. 2. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. 3. DISPONIBILIDADE DA ‘RES<br />

FURTIVAE”. PARTE DOS BENS NÃO RESTITUÍDOS. NÃO CONFIGURAÇÃO DA TENTATIVA. 4.<br />

QUALIFICADORA. CONCURSO DE AGENTES. ISONOMIA NO TRATAMENTO PENAL. APLICAÇÃO DA<br />

MAJORANTE DO CRIME DE ROUBO. 5. MENORIDADE. ATENUANTE OBRIGATÓRIA. PENA AQUÉM DO<br />

MÍNIMO. POSSIBILIDADE. 5. EXCLUSÃO DA PENA DE MULTA. IMPOSSIBILIDADE. PRINCIPIO DA<br />

INDERROGABILIDADE DA PENA. 1. A palavra <strong>da</strong> vítima, subsidia<strong>da</strong> por outros elementos informativos <strong>da</strong> prova, tais<br />

como a apreensão <strong>da</strong> ‘res” com o agente, merece ser prestigia<strong>da</strong> e autoriza, nas circunstâncias, a condenação. 2. Não se<br />

fala em aplicação do princípio <strong>da</strong> insignificância em razão <strong>da</strong> circunstância exasperadora do concurso de agentes, que<br />

implica no desvalor <strong>da</strong> conduta, além do desvalor do resultado 3. A consumação do delito de roubo, por ser crime contra o<br />

patrimônio, depende <strong>da</strong> observância <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> posse que o agente tem do bem, havendo possibili<strong>da</strong>de do autor<br />

dispor <strong>da</strong> res furtivae, mesmo preso em flagrante logo após a subtração dos bens, por não serem restituídos na sua<br />

totali<strong>da</strong>de à vítima, não há falar em crime tentado. 4. A qualificadoras do crime de furto que versa sobre o concurso de<br />

agentes deve ter o mesmo tratamento (isonomia na consideração <strong>da</strong> pena) que a majorante do crime de roubo para a<br />

fixação <strong>da</strong> pena, para efeitos <strong>da</strong> satisfação dos princípios constitucionais <strong>da</strong> proporcionali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> isonomia. 5. A multa<br />

não pode deixar de ser aplica<strong>da</strong> pelo juiz, sob pena de violação ao princípio <strong>da</strong> inderrogabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pena, visto que é um<br />

imperativo legal. Recurso <strong>da</strong> defesa parcialmente provido. Recurso do Ministério Público improvido. (Apelação Crime Nº<br />

70017464900, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aramis Nassif, Julgado em 16/05/2007)<br />

15


entanto, à qualificadora <strong>da</strong> quebra de obstáculo. A prova foi bem<br />

examina<strong>da</strong> na sentença e a condenação do réu, ora apelante, realmente se<br />

impunha. O princípio <strong>da</strong> insignificância não tem aplicação, no caso. Não<br />

tivesse o agente sido contido em sua ação criminosa poderia ter<br />

determinado prejuízo ain<strong>da</strong> maior à vítima, no caso limitado a um pouco<br />

mais de cem reais.<br />

Verifica-se que na decisão acima, o julgador não aplicou o princípio <strong>da</strong><br />

insignificância visto a eventual “possibili<strong>da</strong>de” de poder ter havido um prejuízo maior à<br />

vítima. Ou seja, decidiu com base em mera eventuali<strong>da</strong>de, em mera possibili<strong>da</strong>de, decisão<br />

esta manifesta<strong>da</strong>mente ilegítima, pois não permite refutação alguma. Enfim, com base em<br />

hipóteses se criminalizou uma conduta, que, com base em <strong>da</strong>dos empíricos, era atípica<br />

materialmente.<br />

Mas, a fun<strong>da</strong>mentação corrente nos votos que não aceitam a aplicação do princípio <strong>da</strong><br />

insignificância quando o furto é qualificado é que com o avento <strong>da</strong> qualificadora há um<br />

maior desvalor <strong>da</strong> conduta do agente e também um maior desvalor do resultado, que<br />

impede a aplicação do princípio bagatelar.<br />

Tais decisões são dispositivas, pois extravasam os limites <strong>da</strong> estrita jurisdicioanli<strong>da</strong>de<br />

que é imposto pelo sistema de garantias previsto por nossa Constituição. Vejamos um<br />

exemplo: Pedro entra em um supermercado e furta uma garrafa térmica, como visto, neste<br />

caso, teria aplicação o princípio <strong>da</strong> insignificância no sentido de descriminalizar à conduta,<br />

pois não houve tipici<strong>da</strong>de material por ausência de lesão ao bem jurídico protegido pela<br />

norma. Mas, se Pedro e Paulo entram na loja e furtam a mesma garrafa térmica, há<br />

entendimento corrente no Tribunal de Justiça do RS, que neste caso, visto o concurso de<br />

agentes (inciso IV do § 4º do art. 155 do Código Penal) a conduta dos agentes deve ser<br />

criminaliza<strong>da</strong>, não havendo à aplicação do princípio <strong>da</strong> insignificância, visto que o desvalor<br />

<strong>da</strong> conduta e o desvalor do resultado são maiores.<br />

Mas, pergunta-se: Tanto no primeiro, como no segundo exemplo houve lesão ou<br />

ameaça de lesão ao bem jurídico protegido pela norma? Uma garrafa térmica tem o condão<br />

de ameaçar o patrimônio de um supermercado? Se os agentes não fossem flagrados ou<br />

16


pegos de qualquer modo, o supermercado sentiria a falta <strong>da</strong> garrafa térmica? A resposta<br />

para to<strong>da</strong>s as perguntas é não.<br />

Vejamos um outro exemplo envolvendo a mesma garrafa térmica: Paulo escala um<br />

muro de um supermercado e furta uma garrafa térmica ou arromba a porta dos fundos de<br />

um supermercado para furtar a garrafa térmica. Nestes casos, se fizéssemos as mesmas<br />

perguntas anteriores, as respostas continuariam sendo não. Não haveria nestes casos lesão<br />

ao patrimônio do supermercado que justificasse uma ação penal. A não aplicação do<br />

princípio <strong>da</strong> insignificância ao furto qualificado constitui a criminalização de uma conduta<br />

tendo por base um juízo de valor sobre as circunstâncias de um delito, mais precisamente,<br />

sobre as circunstâncias qualificadoras. Ora, se não há lesão, não há crime. Circunstâncias<br />

qualificadoras não têm o condão de, por si só, criminalizar uma conduta.<br />

Como vimos, quanto aos poderes do juiz, tem ele o poder de denotação, ou seja, de<br />

interpretação ou verificação jurídica; de comprovação probatória, ou seja, de verificação<br />

fática; e de interpretação equitativa que serve como princípio que auxilia o juiz a integrar a<br />

“intensão” do termo a fim de denotá-lo à norma. Tais poderes tem seus limites nos<br />

princípios <strong>da</strong> estrita legali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> estrita jurisdicionali<strong>da</strong>de, a fim de preservar as<br />

garantias servindo como um freio aos abusos e ao arbítrio. Assim, tais poderes só poderão<br />

ser exercidos através de bases empíricas suficientes, em que proporcione a verificação e a<br />

refutação probatórias. Quando a decisão se fun<strong>da</strong> em valorações ético-políticas sobre a<br />

norma ou sobre o fato, há um extravasamento dos poderes conferidos à jurisdição, sendo tal<br />

decisão fruto do poder de disposição do juízo. Isto porque quando há uma valoração éticopolítica<br />

do fato, não há espaço para refutação, por ser vago e impreciso o seu significado.<br />

Quando se diz que um ato é desvalorado, que um ato é mau, que um ato é amoral, tais<br />

conceitos ficam adstritos ao arbítrio exclusivo do julgador, pois se tratam de termos vagos e<br />

imprecisos, sem bases empíricas e, portanto, impossíveis de serem refutados. Qual a<br />

refutação possível quando se conclui que tal fato é crime pelo desvalor <strong>da</strong> conduta e pelo<br />

desvalor do resultado? Qual foi o parâmetro utilizado para valorar a conduta? Enfim,<br />

constitui-se de termo vago e impreciso, de verificação impossível.<br />

17


Voltando ao nosso exemplo do furto <strong>da</strong> garrafa térmica, quando praticado com<br />

rompimento de obstáculo ou por escala, poderia, em tese, aplicando o princípio <strong>da</strong><br />

insignificância quanto ao crime de furto, devido a falta de lesão ao bem jurídico protegido,<br />

subsistir os delitos subsidiários, como o de <strong>da</strong>no ou de invasão de domicílio. Mas, o que<br />

contraria o princípio <strong>da</strong> estrita jurisdicionali<strong>da</strong>de é criminalizar a conduta visto as<br />

qualificadoras do tipo penal, considerando que estas desvalorizam a conduta e o resultado.<br />

CONCLUSÃO<br />

Uma norma (lei ou decisão), só será váli<strong>da</strong> se seu conteúdo for produzido dentro <strong>da</strong><br />

estrita legali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> estrita jurisdicionali<strong>da</strong>de. Pois do contrário, mesmo vigente, não terá<br />

vali<strong>da</strong>de por contrariar as garantias e direitos individuais estabelecidos na Constituição. O<br />

princípio <strong>da</strong> jurisdicionali<strong>da</strong>de estrita exige do julgador uma racionali<strong>da</strong>de rigorosa na<br />

decisão, tal racionali<strong>da</strong>de somente será alcança<strong>da</strong> quando forem obedeci<strong>da</strong>s as garantias<br />

processuais <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prova e <strong>da</strong> verificação; <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de refutação; e <strong>da</strong><br />

decisão imparcial e motiva<strong>da</strong> sobre a ver<strong>da</strong>de processual fática (empírica).<br />

Assim, o julgador com o fim de preservar tais garantias, poderá ter somente como<br />

base <strong>da</strong> decisão a análise de fatos e circunstâncias empiricamente verificáveis, pois só estas<br />

são aptas à verificação de seu significado por ter um conteúdo específico e determinado.<br />

Possibilitando, conseqüentemente, a sua refutação, o que é uma garantia processual.<br />

Conceitos vagos e imprecisos, com base em valores éticos-políticos não possibilitam<br />

a refutação, pois condicionam a verificação ao arbítrio exclusivo do observador, o que<br />

contraria o princípio <strong>da</strong> estrita jurisdicionali<strong>da</strong>de. A utilização de tais valores como objeto<br />

<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> decisão são fruto <strong>da</strong> aplicação do poder de disposição <strong>da</strong> jurisdição,<br />

18


que surge <strong>da</strong> inobservância dos limites estabelecidos aos outros poderes (de denotação<br />

jurídica, de verificação fática e de verificação eqüitativa) frente ao princípio <strong>da</strong> estrita<br />

jurisdicionali<strong>da</strong>de. É um poder arbitrário e autoritário, que faz tábua rasa <strong>da</strong>s garantias<br />

processuais.<br />

A decisão de criminalizar uma conduta, que materialmente é atípica, com base no<br />

desvalor <strong>da</strong> conduta e no desvalor do resultado quanto às circunstâncias qualificadoras do<br />

delito, se traduz, na prática, na aplicação do poder dispositivo do juízo. Visto que desvalor<br />

<strong>da</strong> conduta e desvalor do resultado são valores ético-políticos, que ficam adstritos somente<br />

ao campo de observação do julgador. Por serem conceitos vagos e imprecisos<br />

impossibilitam a sua refutação, tornando a norma (decisão) arbitrária e autoritária.<br />

Diante <strong>da</strong> inobservância <strong>da</strong>s garantias processuais, <strong>da</strong> utilização de conceitos vagos e<br />

imprecisos, de valores éticos-políticos como desvalor <strong>da</strong> conduta e desvalor do resultado,<br />

conferem a tais decisões (que não aplicam o princípio <strong>da</strong> insignificância ao furto<br />

qualificado) o selo <strong>da</strong> invali<strong>da</strong>de, pois contrariam as garantias individuais, sendo, portanto,<br />

inconstitucionais.<br />

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REFERÊNCIAS<br />

BARRETO, Vicente de Paulo (Coordenador). Dicionário de Filosofia do Direito.<br />

São Leopoldo: Editora Unissinos, 2006.<br />

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão.Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi<br />

Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomaes. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista<br />

dos Tribunais, 2006.<br />

GOMES, Luiz Flávio. Lei <strong>da</strong>s Armas de Fogo. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista<br />

dos Tribunais, 2002.<br />

DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19º ed. São<br />

Paulo: Malheiros Editores, 2000.<br />

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito<br />

Penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.<br />

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