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Noris Biga Kim Yun - Universidade Presbiteriana Mackenzie : Index

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

ASTÚCIA DA RAZÃO ECONÔMICA: A FASCINANTE ALQUIMIA DO MERCADO<br />

E O SUBJACENTE SISTEMA IDOLÁTRICO DE BODES EXPIATÓRIOS<br />

<strong>Noris</strong> <strong>Biga</strong> <strong>Kim</strong> <strong>Yun</strong> (IC) e Rodrigo Franklin de Sousa (Orientador)<br />

Apoio: PIBIC CNPq<br />

Resumo<br />

O presente artigo investiga se no capitalismo moderno existem práticas produtoras de violência, as<br />

quais se assemelham aos rituais religiosos de sacrifício. Todos os anos milhões de pessoas morrem<br />

na miséria, de doenças totalmente evitáveis e que foram erradicadas há décadas nos países<br />

desenvolvidos. Outros bilhões de pessoas sobrevivem em condições precárias, abaixo do que é<br />

considerado digno. Investigando essa realidade mais a fundo, pode-se perceber que o capitalismo, a<br />

despeito de ser caracteristicamente secular, possui pontos de contato com a religião. Neste sistema<br />

econômico, o mercado é tido como todo-poderoso sobre o destino do homem, guiando-o<br />

racionalmente por meio de uma astuta mão invisível rumo ao progresso e ao desenvolvimento pleno.<br />

Essa crença é fruto do fetiche do mercado, ou, de acordo com a Bíblia, da idolatria. A partir dessa<br />

concepção, pode-se fazer uma comparação entre as mortes geradas pelo capitalismo e os rituais de<br />

sacrifícios religiosos. O bode expiatório, figura central nos sacrifícios, evita a generalização da<br />

violência e, assim, a desintegração da sociedade. Analogamente as vítimas hodiernas da miséria,<br />

seriam os sacrifícios sobre os quais se sustenta o capitalismo. Isto é, a pobreza não é uma realidade<br />

combatida pelo pleno desenvolvimento do mercado, mas sim, um elemento indispensável para o<br />

funcionamento do mesmo: são os sacrifícios exigidos pelo mercado idolatrado.<br />

Palavras-chave: idolatria, mercado, sacrifício<br />

Abstract<br />

This article investigates whether one can detect in modern capitalism practices conducive to violence,<br />

which somehow resemble the religious rites of sacrifice. Every year, millions of people die in misery, or<br />

from preventable diseases which have been eradicated in developed countries. Other billions of<br />

people live in precarious conditions, well below acceptable standards. Once this reality is investigated,<br />

it is possible to argue that capitalism, in spite of being inherently secular, does hove points of contact<br />

with religion. In this economic system, the market is conceived as holding power over human destiny,<br />

as well as guiding humankind rationally by means of an astute invisible hand towards progress and full<br />

development. This belief stems from a market fetish or, in biblical terms, from idolatry. From this<br />

conception, it is possible to compare the deaths generated by capitalism and religious rites of<br />

sacrifice. The scapegoat, a central figure in sacrifices, prevents the generalization of violence and thus<br />

the disintegration of society. By analogy, today’s victims of misery can be seen as the sacrifices upon<br />

which capitalism is sustained. That is, poverty is not a reality fought by the full development of the<br />

market, rather, it is an indispensable element for its functioning: it generates the sacrifices demanded<br />

by the idolized market.<br />

Key-words: idolatry, market, sacrifice<br />

1


INTRODUÇÃO<br />

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

O capitalismo alcançou êxito na promoção da prosperidade e desenvolvimento a vários<br />

países do planeta. Seus benefícios são inegáveis. Entretanto, as benesses desse sistema<br />

econômico não foram distribuídas de forma igualitária a todos os quadrantes do globo. Pelo<br />

contrário, o sistema sustentou a riqueza de uma minoria na crescente pauperização da<br />

maioria. Bilhões de seres humanos vivem em absoluta miséria. Todos os anos, milhões de<br />

pessoas morrem vítimas da pobreza.<br />

Sob esta perspectiva, problematizou-se a questão: há no capitalismo hodierno práticas<br />

produtoras de violência, as quais se assemelham aos rituais religiosos de sacrifício?<br />

A presente pesquisa trabalha a hipótese de que existe uma relação entre o problema da<br />

extrema pobreza e a ideologia capitalista. As vítimas da miséria não são um produto do<br />

acaso em vias de serem alcançadas pelo capitalismo, mas um corolário do mesmo. Em<br />

outras palavras, a despeito do sistema econômico vigente, o capitalismo, ser<br />

caracteristicamente secular, há pontos de contato com a religião. Um deles é a existência de<br />

fenômenos e práticas simbólicas que podem ser descritas como análogas à prática religiosa<br />

do sacrifício. Estes sacrifícios simbólicos seriam realizados em nome do bem estar geral, e<br />

as vítimas seriam os pobres.<br />

O objetivo geral foi a abordagem, de forma explicativa, da prática simbólica capitalista dos<br />

sacrifícios, explicitando suas estruturas organizacionais e funcionais, seus fundamentos<br />

ideológicos, além de identificar os motivos e as vítimas a serem imoladas. Para estes<br />

propósitos os seguintes objetivos específicos são pretendidos:<br />

a) Caracterizar os rituais religiosos de sacrifício, investigando seus fundamentos, motivos,<br />

objetivos, estrutura, dentre outros.<br />

b) Comparar as mortes geradas pelas atividades econômicas capitalistas com os rituais<br />

sacrificais religiosos. Isto é, identificar o que é caracterizado como sacrifício do sistema<br />

capitalista, como é seu funcionamento, como se estrutura, qual o motivo e o fundamento<br />

ideológico, e quem são as vítimas.<br />

c) Investigar o envolvimento cristão com estas práticas sacrificais. Isto é, a introdução de um<br />

conceito revolucionário, a qual inviabiliza o mecanismo sacrifical: a inocência da vítima; mas,<br />

também, a sua atuação em prol dos valores capitalistas.<br />

REFERENCIAL TEÓRICO<br />

O sistema econômico em voga, o capitalismo, ocupa o lugar central da civilização hodierna.<br />

A palavra capitalismo foi incorporada ao vocabulário em meados de 1860, expressando<br />

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

novas idéias econômicas, políticas e valorativas. Rompendo-se com o antigo regime<br />

europeu – fundamentado na tripartição social entre clero, nobreza e terceiro estado; no<br />

sistema político do absolutismo monárquico; e no mercantilismo – o capitalismo ascendeu<br />

até alcançar a hegemonia mundial atual. O triunfo do capitalismo, segundo Eric Hobsbawm<br />

(2010):<br />

Foi o triunfo de uma sociedade que acreditou que o crescimento econômico<br />

repousava na competição da livre iniciativa privada, no sucesso de comprar tudo<br />

no mercado mais barato (inclusive trabalho) e vender no mais caro. Uma<br />

economia assim fundamentada e, portanto, repousando naturalmente nas sólidas<br />

fundações de uma burguesia composta daqueles cuja energia, mérito e<br />

inteligência os elevou a tal posição, deveria – assim se acreditava – não somente<br />

criar um mundo de plena distribuição material mas também de crescente<br />

esclarecimento, razão e oportunidade humana, de avanço das ciências e das artes,<br />

em suma, um mundo de contínuo progresso material e moral. Os poucos<br />

obstáculos ainda remanescentes no caminho do livre desenvolvimento da<br />

economia privada seriam levados de roldão. (p. 21 e 22)<br />

As idéias de Adam Smith influenciaram, de maneira decisiva, o capitalismo. Contudo, para<br />

compreender seu conceito de “mão invisível” é preciso retroceder aos primeiros anos do<br />

século XVIII e abordar o pensamento de Bernard Mandeville. Este filósofo holandês<br />

escreveu um texto cujo título era A fábula das abelhas. Nesta obra, Mandeville argumenta<br />

que o comportamento egoísta de cada abelha acaba produzindo o resultado benéfico – o<br />

mel – para toda a colméia. Deste mesmo modo, segundo ele, deveria ocorrer com o homem.<br />

O egoísmo de cada indivíduo, ocupado somente consigo, acabaria por produzir<br />

involuntariamente e automaticamente o bem estar geral. “Os defeitos dos homens na<br />

sociedade depravada podem ser utilizados com vantagem para a sociedade civil, e<br />

podemos fazer com que venham a ser elevados a virtudes morais: os vícios privados fazem<br />

o bem público.” (MANDEVILLE apud GUILLEBAUD; 2003; p. 66)<br />

Este princípio é basilar na concepção de Adam Smith da mão invisível, a qual carregará de<br />

sentido a prática do livre comércio e propulsionará a ascensão do mercado para a<br />

hegemonia na civilização contemporânea. Uma pessoa agindo unicamente de acordo com<br />

seus próprios interesses e segurança pessoal investe seus recursos, e “ao dirigir essa<br />

atividade de modo que sua produção tenha o maior valor possível, não pensa senão no<br />

próprio ganho” (SMITH, 2003, p. 567). O fundamental é que o indivíduo “é levado por uma<br />

mão invisível a promover um fim que não era, em absoluto, sua intenção de promover”<br />

(SMITH, 2003, p. 567) que é o bem público. Para Smith, a ausência de intenção na<br />

realização do bem geral é fundamental, pois “ao buscar seu interesse particular, não raro<br />

promove o interesse da sociedade de modo mais eficaz do que faria se realmente se<br />

prestasse a promovê-lo” (idem p. 567).<br />

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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

O progresso, o bem social, sob a égide do livre mercado produz um efeito colateral de<br />

excluir parte da população em sua marcha. Essa característica é estrutural. Bauman (2005)<br />

atesta:<br />

A produção de “refugo humano”, ou mais propriamente, de seres humanos<br />

refugados (os “excessivos” e “redundantes”, ou seja, os que não puderam ou não<br />

quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para ficar), é uma produto<br />

inevitável da modernização, e um acompanhante inseparável da modernidade. É<br />

um inescapável efeito colateral da construção da ordem (cada ordem define<br />

algumas parcelas da população como “deslocadas”, “inaptas” ou “indesejadas”) e<br />

do progresso econômico (que não pode ocorrer sem degradar e desvalorizar os<br />

modos anteriormente efetivos de “ganhar a vida” e que, portanto, não consegue<br />

senão privar seus praticantes dos meios de subsistência. (p. 12)<br />

Gunnar Myrdal, em 1963, criou o conceito de subclasse, o qual designava as “vítimas da<br />

exclusão da atividade produtiva” (BAUMAN, 2008, p. 169). Estas se encontram<br />

desempregadas não por falta de aptidão ou falha moral, “mas pura e simplesmente pela<br />

falta de emprego para todos os que dele necessitavam, desejavam-no e eram capazes de<br />

assumi-lo” (BAUMAN, 2008, p. 169). A subclasse é “um produto coletivo da lógica<br />

econômica” (idem, p. 169).<br />

Como se pode constatar a partir da afirmação de Bauman supracitada, a desigualdade faz<br />

parte inerente da própria lógica do capitalismo. Mais ainda, ela é “uma preferência ou uma<br />

decisão inicial de natureza política. [...] O retorno da desigualdade é uma escolha, isto é um<br />

projeto” (GUILLEBAUD; 2003; p. 155).<br />

Esse projeto é impessoal. Todavia, é o projeto do próprio processo civilizatório. Ele está no<br />

centro do tipo de sociedade que se construiu e de seus valores. Este fato é um grande<br />

contra-censo. “Querendo pôr o egoísmo de cada um a serviço de todos, ela acaba por<br />

legitimá-la. Ou melhor, faz desse egoísmo uma ‘virtude’ econômica e, finalmente uma<br />

‘virtude’ pura e simplesmente” (GUILLEBAUD; 2003; p. 66). Com efeito, promover o bem<br />

estar geral utilizando-se o egoísmo de cada um como o motor principal e único é um<br />

paradoxo. “A democracia de mercado coloca exatamente em seu centro aquilo mesmo que<br />

ameaça sua sobrevivência” (GUILLEBAUD; 2003; p. 66). Construiu-se e desenvolveu-se a<br />

presente sociedade justificando-a com objetivos de promoção do bem estar para a<br />

generalidade do corpo social por meio do eficiente combustível do egoísmo. Isto é o mesmo<br />

que erigir “um ‘mal’ em princípio organizador e faz ipso facto o elogio daquilo mesmo que ela<br />

terá que, simultaneamente, combater” (GUILLEBAUD; 2003; p. 66). Esse projeto moralista,<br />

deste modo, assume caráter quimérico.<br />

O mercado, regido pelo egoísmo, como excelente – segundo o contexto supracitado – motor<br />

organizador social promove um fato inédito: “Já conhecemos alguma vez na História uma<br />

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

civilização em que o ‘vício’ (para usar o próprio termo de Mandeville) seja seu principal<br />

alicerce?” (GUILLEBAUD; 2003; p. 67). A civilização contemporânea adota em seu centro,<br />

como “virtude” mor, aquilo mesmo que a generalidade das sociedades passadas condenou<br />

como “vício” vil. “O ‘vício’ da cupidez terá que ser, ao mesmo tempo, celebrado por sua<br />

eficácia produtiva e combatido por sua periculosidade social. Programa esquizofrênico”<br />

(GUILLEBAUD; 2003; p. 67)<br />

“É esta, dizem-nos, a alquimia fascinante do liberalismo, uma alquimia suficientemente<br />

poderosa para converter chumbo em ouro, a cupidez em altruísmo” (GUILLEBAUD; 2003; p.<br />

65). Diante dos acontecimentos diários, muito bem veiculados pela mídia; do panorama<br />

latino americano, e mundial, de desigualdades absurdas, observa-se a presente civilização,<br />

com todo seu saber e tecnologia, como quimérica. Com isto, não se quer negar os avanços<br />

técnicos e sociais adquiridos. Estes são muitos e presentes em diversas áreas. Isto é um<br />

fato inegável. Todavia, sem se deixar levar euforicamente pela aparência superficial dos<br />

acontecimentos, pressente-se que – para usar as palavras de Guillebaud – “alguma coisa de<br />

absurdo está em ação em algum lugar” (2003; p. 67). Esse absurdo é justamente colocar o<br />

vício de cupidez no centro do projeto civilizatório sob o pretexto de promover o altruísmo.<br />

Considerem-se as definições elencadas a seguir. Para Berger a alienação é o processo pelo<br />

qual “o mundo social e o eu socializado defrontam-se com o indivíduo como facticidades<br />

inexoráveis análogas às da natureza” (2004; p. 97). “A diferença essencial entre o mundo<br />

sociocultural e o mundo da natureza – a saber, o fato de que aquele foi feito pelos homens,<br />

mas este não – é obscurecida” (idem; 2004; p. 97).<br />

Além disso, Bauman (2008) diz acerca do fetiche:<br />

Um produto profundamente humano elevado à categoria de autoridade sobrehumana<br />

mediante o esquecimento ou a condenação à irrelevância de suas<br />

origens demasiado humanas, juntamente com o conjunto de ações humanas que<br />

levaram ao seu aparecimento e que foram a condição sine qua non para que isso<br />

ocorresse. (p. 23)<br />

Karl Marx percebeu o fetichismo na mercadoria, “analisando-a, vê-se que ela é algo muito<br />

estranho, cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas” (2010; p. 92), e completa:<br />

A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do<br />

próprio trabalho dos homens, apresentado-as como características materiais e<br />

propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a<br />

relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao<br />

refleti-la como relação social existente, à margem deles. Entre os produtos do seu<br />

próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam<br />

mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos<br />

sentidos. [...] Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume<br />

a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile,<br />

temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro<br />

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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm<br />

relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da<br />

mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isso de fetichismo, que está<br />

sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias.<br />

(p. 94)<br />

Marx deste modo criticou o “fetichismo da mercadoria”: “o hábito de, por ação ou omissão,<br />

ignorar ou esconder a interação humana por trás do movimento das mercadorias. Como se<br />

estas, por conta própria, travassem relações entre si a despeito da mediação humana”<br />

(BAUMAN; 2008; p. 22)<br />

Hegel considerava que a História em marcha utilizava-se de uma astúcia, quer seja a de<br />

subordinar o mal a serviço do bem. Tudo conspirava, segundo ele, para o avanço irresistível<br />

da História, mesmo os piores males, “quer se tratasse de violência, da rivalidade entre<br />

nações ou do apetite de poder, tudo conspirava secretamente para a vitória final do logos,<br />

isto é, da razão em marcha” (GUILLEBAUD; 2003; p. 65). Esta marcha era tão poderosa<br />

que até mesmo a ignorância dos homens podia ser, como que por mágica, transformada em<br />

bem. “Se os homens não compreendiam a História que estavam vivendo, nem por isso<br />

deixavam de estar sendo levados, e magnificamente, por seu curso” (GUILLEBAUD; 2003; p.<br />

65) cujo destino último era o pleno desenvolvimento e o expurgo da miséria que sempre<br />

teima em acometer a humanidade. Hegel cria na astúcia da razão histórica, a História é<br />

dotada de razão, como se fosse um ser racional e que conduz o homem poderosa e<br />

irresistivelmente.<br />

Entretanto, a História é um produto humano e nada mais que humano. Ela é construída por<br />

relações sociais deveras complexas e inextricavelmente interconectadas e dinâmicas as<br />

quais não podem ser circunscritas em um objeto, sem correr o risco de fossilizá-la. “Toda<br />

sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo” (BERGER; 2004; p. 15).<br />

“A sociedade é um fenômeno dialético por ser um produto humano, e nada mais que um<br />

produto humano, que no entanto retroage continuamente sobre o seu produtor” (idem; p. 15),<br />

produzindo-o. A História no sentido hegeliano de marcha sociocultural é fetichizada por<br />

omitir suas origens profundamente humanas. A concepção hegeliana de História é alienante<br />

porque não é dialética. “O mundo do homem é imperfeitamente programado pela sua<br />

própria constituição. É um mundo aberto. [...] este mundo não é simplesmente dado,<br />

prefabricado para ele. O homem precisa fazer um mundo para si” (idem; p. 18). Hegel<br />

apresenta a História como marcha rumo ao desenvolvimento sociocultural da humanidade, e<br />

deste modo, do próprio homem, concebendo-a como todo-poderosa sobre o destino do<br />

homem e sobre a construção do mundo humano, como se fosse um ente racional<br />

independente do homem. Não reconhece que a História em si é um produto humano e nada<br />

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

mais que isto. História é um fetiche em Hegel. Utilizando-se a crítica de Marx, omitem-se ou<br />

ignoram-se as interações humanas por trás do movimento histórico. Esta é concebida como<br />

se fosse possuidora de vida própria, e que age sobre o homem.<br />

É bastante conhecida a idéia hegeliana da tese e antítese. À primeira sempre se opõe a<br />

segunda, e do embate entre as duas, origina-se a síntese. Todavia, em algum momento<br />

essa síntese se torna uma tese recomeçando o ciclo. Isso é apresentado como um dado<br />

natural, uma lei pela qual a História se guia. Ora, acontece que tanto a tese, a antítese<br />

quanto a síntese são produtos humanos e nada mais que isso. Ao serem apresentados<br />

como leis naturais, omitindo-se suas origens demasiadamente humanas, Hegel fetichiza a<br />

tese, a antítese e a síntese.<br />

Karl Marx, então ao levantar sua concepção do Materialismo Dialético apresenta o mundo<br />

feudal, o capitalismo e a sociedade comunista como sendo, respectivamente, a tese, a<br />

antítese e a síntese. O coração da interpretação de Marx da História é o critério materialista<br />

entendido por ele como o motor do progresso histórico. Quando a tese se instala, ela<br />

mesma produz as contradições internas que promoverão a sua superação. O<br />

desenvolvimento econômico é o centro da História. Ela move a humanidade, e a economia<br />

move a História. O centro do devir histórico é totalmente humano, mas isso é omitido no<br />

resultado final quando surge o conceito de História em Hegel. Esta é fetichizada. Marx cria<br />

que os operários cientes da lei natural da dialética deveriam se unir e promover o fim do<br />

capitalismo constituindo-se como síntese. Esse processo é totalmente humano, e difícil de<br />

conciliar com a astúcia da razão histórica. Com efeito, Marx cria que os homens fazem a<br />

história, mas em condições determinadas e sem saberem que a fazem. Contrariando Hegel,<br />

ou o idealismo espiritualista hegeliano, Marx cria que a História não era a manifestação do<br />

Espírito, mas cria que “em condições determinadas e não escolhidas por eles, os homens<br />

produzem materialmente sua existência e dão sentido a essa produção material” (CHAUÍ;<br />

2008; p. 249). Isto é, os seres humanos é que são os criadores da sociedade, da História.<br />

O fetiche da História – isto é o processo que transformou a História de produto sociocultural<br />

humano para algo oriundo do mundo da natureza, de certa forma independente do homem,<br />

como uma entidade dota de astúcia e razão, apagando-se as origens demasiadamente<br />

humanas da mesma – não é algo exclusivo do pensamento hegeliano. Observa François<br />

Furet “que a História substituiu Deus tornando-se todo-poderosa sobre o destino humano,<br />

mas é no século XX que vão ser vistas as loucuras políticas nascidas desta substituição”<br />

(apud; GUILLEBAUD; 2003; p. 41)<br />

Neste exato sentido, o capitalismo é análogo ao sistema hegeliano. “um mal a serviço do<br />

bem? Não é, exatamente, o princípio organizador que fundamenta o mercado?”<br />

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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

(GUILLEBAUD; 2003; p. 65). Todavia, o capitalismo sustenta que o mercado – não a<br />

História – orquestrado pela livre iniciativa dos indivíduos, buscando nada mais que seus<br />

interesses egoístas, é que promoverá a caminhada rumo ao desenvolvimento da sociedade.<br />

Esse é o ideal básico da sociedade burguesa constatada por Hobsbawm e teorizada por<br />

Smith. Isto significa crer na astúcia da razão econômica. Que o Mercado é tão poderoso,<br />

que transformará até mesmo o mais vil dos vícios, a mais desprezível das misérias em bem.<br />

A ambição desmedida, a desigualdade social, a violência, a ignorância são matérias primas<br />

através das quais o mercado milagrosamente produz o bem, e o progresso, enquanto, ao<br />

mesmo tempo, expurga pouco a pouco as indigências humanas. O Mercado marcha<br />

irresistivelmente rumo ao progresso e arrasta a humanidade. O Mercado é concebido como<br />

a História em Hegel, dotada de racionalidade, como se fosse um ente onipotente, onisciente<br />

e onipresente. Substituiu-se, deste modo, Deus pelo mercado, no regime capitalista<br />

colocando-o como todo-poderoso sobre o destino da humanidade, arrastando-a para o<br />

desenvolvimento.<br />

A ONU divulgou em seu site As faces da pobreza os Números da crise, na qual consta que<br />

mais de um bilhão de pessoas no mundo vivem com menos de um dólar por dia. Outros 2,7<br />

bilhões de pessoas vivem com menos de dois dólares por dia. Em países em<br />

desenvolvimento, todos os anos morrem cerca de onze milhões de crianças, a maioria com<br />

menos de cinco anos, além de mais seis milhões morrerem devido a causas totalmente<br />

evitáveis como a malária, diarréia e a pneumonia. No mundo, anualmente morrem cerca de<br />

seis milhões de crianças, a maioria antes de completar cinco anos, de má nutrição. Mais de<br />

um milhão de crianças morrem na África devido à malária, ou seja, uma a cada trinta<br />

segundos. No mundo, mais de 800 milhões de pessoas sofrem com a fome crônica, das<br />

quais 300 milhões são crianças. Dentre essas, apenas oito por cento são vítimas<br />

esporádicas da fome, sendo mais de noventa por cento as que sofrem de fome prolongada<br />

e de deficiência grave de micronutrientes. A cada 3,6 segundos uma pessoa morre de fome<br />

no mundo, a maioria é de crianças com menos de cinco anos.<br />

Mais de 2,6 bilhões de pessoas não têm acesso a saneamento básico e mais de um bilhão<br />

não têm acesso a fontes de água própria para consumo. Quarenta por cento da população<br />

mundial não tem acesso a uma simples latrina. Cerca de cinco milhões de pessoas, a<br />

maioria crianças, morrem de doenças relacionadas à qualidade da água. Mais de quarenta<br />

por cento das mulheres africanas carecem de acesso ao ensino básico. Se uma menina<br />

receber instrução durante seis ou mais anos a taxa de sobrevivência ao parto aumentam<br />

significativamente. A AIDS propaga-se com o dobro de rapidez em meninas não instruídas.<br />

Os filhos de uma mulher que frequentou o ensino primário durante cinco anos apresentam<br />

uma taxa de sobrevivência quarenta por cento superior aos filhos das mães sem nenhuma<br />

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

instrução. Uma mulher da África subsaariana tem uma possibilidade em 16 de morrer<br />

durante a gravidez ou parto, enquanto que na América do Norte, o mesmo risco é de cerca<br />

de uma em 3.700. Mundialmente, 529 mil mulheres morrem devido a complicações<br />

relacionadas com a gravidez, isso significa 1.400 mulheres por dia; uma mulher a cada<br />

minuto. Quase metade dos partos não é assistida por profissionais da saúde nos países em<br />

desenvolvimento.<br />

Acontece que se “utilizam 10 mil litros de água para cultivar o algodão necessário à<br />

confecção de uma única camiseta” (GOLEMAN; 2009; p.20), isto é, existe água suficiente<br />

para todos. Segundo a FAO no Relatório do Desenvolvimento Humano de 2003, 5,2 bilhões<br />

de dólares por ano alimentariam 214 milhões de pessoas que mais urgentemente precisam<br />

de alimentos. Mas, ao mesmo tempo, os membros do G-8 estão entre os 10 maiores<br />

exportadores de armas do mundo, juntos representam 85 por cento das exportações<br />

mundiais, somando 90,6 bilhões de dólares. Ainda segundo a mesma entidade, desde os<br />

anos 1970 a produção de alimentos triplicou nos países em desenvolvimento, superando o<br />

crescimento populacional. Isso significa que se todo alimento produzido no mundo fosse<br />

igualmente distribuído, cada habitante do planeta teria acesso a 2.760 calorias diariamente,<br />

800 calorias a mais do que as 1.970 calorias abaixo das quais é caracterizada a fome.<br />

Tanto a História quanto o mercado são fetichizados ao serem instalados como todo-<br />

poderosos sobre o destino humano, e considerados como dotados de uma razão, e<br />

concebidos quase como entidades conscientes cheio de sutilezas metafísicas e argúcias<br />

teológicas – usando-se a linguagem de Marx. Lembrando-se das definições de Berger<br />

acerca da alienação, de Marx e Bauman sobre o fetiche, recorre-se à Bíblia. Abaixo, segue<br />

a transcrição de um trecho do livro de Isaías da Bíblia de Jerusalém – versão utilizada<br />

doravante – capítulo 44, versículos 9 ao 20.<br />

Os que modelam ídolos nada são, as suas obras preciosas não lhes trazem<br />

nenhum proveito! Elas são as suas testemunhas, elas que nada vêem e nada<br />

sabem, para a sua própria vergonha. Quem fabrica um deus e funde um ídolo que<br />

de nada lhe pode valer? Certamente, todos os seus devotos ficarão<br />

envergonhados, bem como os seus artífices, que não passam de seres humanos.<br />

Reúnam-se todos eles e apresentem-se; todos eles se encherão de espanto e de<br />

vergonha!<br />

O ferreiro faz o machado na brasa, trabalha-o a martelo, fá-lo com a força de seu<br />

braço. Acaba faminto e sem forças; por não ter bebido água, sente-se esgotado. O<br />

carpinteiro estende o cordel, esboça a imagem com o giz, trabalha-a com o cinzel<br />

e a desenha com o compasso, dá-lhe a forma humana, a beleza de um ser<br />

humano, a fim de que habite uma casa. Cortou cedros, escolheu um terebinto e<br />

um carvalho, permitindo que crescessem vigorosos entre as árvores da floresta;<br />

plantou um abeto que a chuva fez crescer. Os homens o empregam para queimar;<br />

ele mesmo tomou dele para aquecer-se; pôs-lhe fogo e assou pães. Com outra<br />

parte fez um deus e o adorou, fabricou um ídolo e se prostrou diante dele. Uma<br />

metade ele queimou ao fogo; com ela fez um assado, que come até saciar-se.<br />

Aquece-se ao fogo e diz: ‘Que delícia! Aqueci-me e vi a luz.’ Com o resto faz um<br />

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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

deus – o seu ídolo –, prostra-se diante dele e o adora e lhe dirige súplicas,<br />

dizendo: ‘Salva-me, porque tu és o meu deus.’<br />

Eles nada sabem nem entendem, porque os seus olhos são incapazes de ver e os<br />

seus corações não conseguem compreender. Nenhum deles tem conhecimento<br />

ou inteligência para dizer: ‘A metade queimei ao fogo, com ela assei pão sobre a<br />

brasa, assei carne e a comi; com o resto fazia uma coisa abominável, prostrandome<br />

diante de um pedaço de lenha!’ Ele que se apascenta de cinzas, o seu<br />

coração ludibriado o desencaminha: ele não consegue salvar a sua vida nem é<br />

capaz de dizer. ‘Aquilo que tenho na mão não será apenas uma mentira?”<br />

Este texto das Escrituras descreve o processo profundamente humano por trás da produção<br />

dos ídolos, o qual, todavia, é omitido, esquecido, apagado da percepção. Um produto<br />

humano, nada mais que humano transformado em algo inumano, no caso um deus. O<br />

profeta protesta contra – segundo uma linguagem mais moderna – a perda da dialética e o<br />

esquecimento dos processos totalmente sociais por trás dos ídolos, diante dos quais o<br />

homem se prostra. O homem fez o ídolo, mas ele apaga isso de sua memória, e o ídolo é<br />

tido como algo independente dele, oriundo de um mundo misterioso e que lhe é superior.<br />

Ídolo é o produto humano sem a dialética, alienado, é o objeto sem a lembrança de suas<br />

origens profundamente humanas, é um fetiche, diante do qual o homem se prostra. Fetiche<br />

e alienação, neste aspecto são análogos à idolatria. Por isso, sustenta-se, a partir da crítica<br />

contida na passagem do livro de Isaías, que a História em Hegel é um ídolo, e o mercado no<br />

capitalismo também. Deste modo, pode-se falar em idolatria da História, bem como do<br />

Mercado.<br />

A advertência bíblica é bastante clara. É ilusão crer e prostrar-se diante de ídolos. São<br />

vazios, ocos. “Então todo homem se torna estúpido, sem compreender, todo ourives se<br />

envergonha dos ídolos, porque o que ele fundiu é mentira, não há sopro [vital] neles! São<br />

vaidade, obra ridícula” (Jeremias 10:14-15).<br />

O Mercado se torna deus, dotado de astúcia, e promotor do progresso humano. Onipotente<br />

e onipresente, onisciente para, até mesmo, transformar a cupidez em altruísmo, as<br />

violências, a ignorância, as vicissitudes, em progresso. Pode-se considerar o que Karl Barth<br />

(1996) diz:<br />

Não existe ser humano que de maneira consciente, inconsciente ou subconsciente,<br />

não tenha seu Deus ou seus deuses como objeto de seu desejo e confiança mais<br />

elevados, como base de sua vinculação e compromisso mais profundos. Nesse<br />

sentido, qualquer ser humano é teólogo. E não há nem religião, nem filosofia, nem<br />

cosmovisão que – quer seja profunda, quer superficial – não se relacione com<br />

alguma divindade, interpretada e circunscrita desta ou daquela forma, e que,<br />

portanto, não seja teologia. Isto se aplica não só a situações nas quais se tenta<br />

fazer valer positivamente ou pelo menos deixar valer tal divindade como<br />

quintessência da verdade e do poder de algum princípio supremo, mas também a<br />

situações nas quais se nega a existência dessa divindade: nestes casos, o que<br />

acontece em termos práticos é que exatamente a dignidade e função da divindade<br />

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

são transferidas à “natureza”, a um impulso vital inconsciente e amorfo, à “razão”,<br />

ao progresso, ao ser humano de pensamento e ação progressistas, ou, quiçá, a<br />

um “nada” redentor, considerado destino último do ser humano. Também tais<br />

ideologias aparentemente “atéias” são teologias. (p. 9)<br />

A idolatria do Mercado ao mesmo tempo omite as dimensões humanas por trás do mesmo,<br />

bem como legitima os graves problemas sociais, o vício de cupidez, a sobrevivência do mais<br />

forte e a eliminação do “menos apto”, sob o pretexto de que todas essas coisas é que<br />

produzirão, guiados por uma mão invisível dotado de astúcia e razão, o progresso social.<br />

“Na sociedade de consumidores, os ‘inválidos’ marcados para a exclusão (uma exclusão<br />

final, irrevogável, sem apelação) são ‘consumidores falhos’” (Bauman; 2008; p. 75). Como<br />

os princípios do consumo pode simplesmente ser adotado por todos, “acredita-se que<br />

obedecer aos preceitos dependa apenas da disposição e do desempenho individuais. Em<br />

função desse pressuposto, toda ‘invalidez social’ seguida de exclusão só pode resultar, na<br />

sociedade de consumidores, de faltas individuais” (Bauman; 2008; p. 75). A exclusão desses<br />

‘inválidos sociais’ na sociedade de consumidores é feita pelo mercado, que mais uma vez<br />

assume conotações de ente dotado de razão.<br />

Mais uma vez cita-se Guillebaud (2003):<br />

Adivinhamos que existe um denominador comum, uma coerência secreta, uma<br />

ligação entre todos esses reflexos ou comportamentos. Uma ligação que temos<br />

dificuldade em definir, mas que faz tremer algo recôndito, mergulhado nas<br />

profundezas de nossa memória coletiva; algo reprimido, um ritual ancestral que<br />

nos recusamos a nomear: o sacrifício. (p. 258)<br />

Para René Girard o comportamento humano é mimético. A aprendizagem remete-se à<br />

imitação. Consequentemente, os indivíduos de uma mesma sociedade desejam as mesmas<br />

coisas. Essa situação é um campo fértil para a discórdia, para a crise mimética. A disputa<br />

pelos objetos cobiçados acaba por produzir a violência, a qual é um elemento presente em<br />

todas as sociedades. A violência se tornaria generalizada e caótica se um mecanismo não<br />

atuasse e fornecesse um escape para a agressividade ávida por sangue. “Só é possível<br />

ludibriar a violência fornecendo-lhe uma válvula de escape, algo para devorar,” (GIRARD;<br />

2008; p.15). O sacrifício, o bode expiatório, é a vítima a ser imolada, para a qual é<br />

canalizada toda a sede agressiva de uma sociedade, mantendo-a coesa e garantindo a sua<br />

existência. A origem das sociedades, segundo Girard, remete a um sacrifício original, e<br />

todos os demais, subsequentes, o revivem. Girard (2008) tece o seguinte comentário:<br />

Se o sacrifício conclui os ritos, é preciso que ele apareça nas sociedades<br />

religiosas como a conclusão da crise mimética encenada por esses ritos. Em<br />

numerosos ritos, a assistência inteira deve tomar parte da imolação que se<br />

assemelha demais a uma espécie de linchamento. Mesmo onde a imolação é<br />

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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

reservada a um sacrificador único, é em regra geral em nome de todos os<br />

participantes que ele atua. É a unidade da comunidade que se afirma no ato<br />

sacrificial e essa unidade surge no paroxismo da divisão, no momento em que a<br />

comunidade se sente dilacerada pela discórdia mimética, entregue à circularidade<br />

interminável das represálias vingativas. À oposição de cada um contra cada um<br />

sucede-se bruscamente a oposição de todos contra um. À multiplicidade<br />

caótica dos conflitos particulares sucede-se de repente a simplicidade de um<br />

antagonismo único: toda a comunidade de um lado, e de outro a vítima. Não é<br />

difícil compreender no que consiste essa resolução sacrificial; a comunidade<br />

encontra-se inteiramente solidária, em detrimento de uma vítima não somente<br />

incapaz de se defender, mas totalmente impotente para suscitar vingança; seu<br />

abate não poderia provocar novos distúrbios e fortalecer a crise, pois ela une<br />

todos contra si própria. O sacrifício não é apenas uma violência a mais, uma<br />

violência acrescentada a outras violências, mas é a última violência, é a<br />

última palavra da violência. – grifo nosso. (p. 45 e 46)<br />

O estilo de vida hodierno elevou grandemente a potencialidade da crise mimética. O<br />

materialismo é a ideologia dominante, e que nega a busca por um sentido ontológico para a<br />

vida e interpreta os fenômenos de forma puramente material. O consumismo extremo<br />

massificado pela mídia é o que dá sentido às vidas das pessoas contemporâneas. A<br />

sobrevivência do mais forte; o acúmulo de bens como um fim em si mesmo; o status<br />

proveniente da dominação do próximo; dentre outros, todos juntos, têm potencial para gerar<br />

uma realidade extremamente violenta. Contudo, os bodes expiatórios cumprem seus papéis.<br />

“O sacrifício polariza sobre a vítima os germes da desavença espalhados por toda parte,<br />

dissipando-os ao propor-lhes uma saciação parcial.” (GIRARD; 2008; p. 19).<br />

O intermediário, isto é a vítima a ser imolada, pode ser identificado com as vítimas da<br />

pobreza dos dias hodiernos, as quais são a paga reservada por contrato social recôndito e<br />

impessoal ao sustento das relações econômicas sacralizadas. Para que a sociedade<br />

contemporânea e seu sistema econômico sobrevivam, é preciso o sacrifício de uma parcela<br />

da população. Seguindo a lógica dos sacrifícios, essas vítimas são culpadas, e a falta delas<br />

é serem fracas. Assim, “Os fracos e os fracassados devem perecer: primeiro princípios de<br />

nossa filantropia. E realmente se deve ajudá-los nisso” (NIETZSCHE; 2008; p. 19). O<br />

mercado tem exercido um papel central na vida moderna, e sendo regido pela livre<br />

concorrência, privilegia a sobrevivência somente dos mais fortes.<br />

A violência assume conotações claras. Não há um objeto que possua um valor a priori, e<br />

que é cobiçado pelos indivíduos. A crise mimética surge da disputa por um objeto destituído<br />

de valor em si mesmo. É a lei da oferta e procura. Quanto maior for a demanda por um<br />

objeto, um produto, e menor for a sua disponibilidade, mais valioso e cobiçado esse produto<br />

se torna. O valor de um objeto não é intrínseco ao mesmo, depende do valor que os<br />

indivíduos lhe atribuem. Girard (2008) comenta:<br />

Na crise sacrifical, não se deve relacionar o desejo a nenhum objeto determinado,<br />

por mais precioso que pareça é preciso orientar o desejo para a própria violência,<br />

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

mas nem por isto é necessário postular um instinto de morte ou de violência. Em<br />

todos os desejos que observamos não há somente um objeto e um sujeito, há um<br />

terceiro termo, o rival, ao qual se poderia tentar, por sua vez, dar uma primazia.<br />

Não se trata aqui de identificar prematuramente este rival, dizendo, como Freud: é<br />

o pai, ou como as tragédias: é o irmão. Trata-se de definir a posição do rival no<br />

sistema que ele forma com o objeto e o sujeito. O rival deseja o mesmo objeto que<br />

o sujeito. Renunciar à primazia do objeto e do sujeito para afirmar a do rival só<br />

pode significar uma coisa. A rivalidade não é o fruto da convergência acidental de<br />

dois desejos para o mesmo objeto. O sujeito deseja o objeto porque o próprio rival<br />

o deseja. Desejando tal ou tal objeto, o rival designa-o ao sujeito como desejável.<br />

O rival é o modelo do sujeito, não tanto no plano superficial das maneiras de ser,<br />

das idéias etc., quanto no plano mais essencial do desejo.<br />

Uma vez que seus desejos primários estejam satisfeitos, e às vezes mesmo antes,<br />

o homem deseja intensamente, mas ele não sabe exatamente o quê, pois é o ser<br />

que ele deseja, um ser do qual se sente privado e do qual algum outro parece-lhe<br />

ser dotado. O sujeito espera que este outro diga-lhe o que é necessário desejar<br />

para adquirir este ser. Se o modelo, aparentemente já dotado de um ser superior,<br />

deseja algo, só pode se tratar de um objeto capaz de conferir uma plenitude de ser<br />

ainda mais total. Não é por meio de palavras, mas de seu próprio desejo que o<br />

modelo designa ao sujeito o objeto sumamente desejável. (p. 184)<br />

O desejo para Girard é, desta forma, mimético. O desejo do sujeito orientado e determinado<br />

pelo desejo do rival gera a crise mimética, a qual desemboca na violência. Na sociedade<br />

moderna, essa crise mimética é assimilada ao cotidiano por diversas ideologias como o<br />

darwinismo social, a livre concorrência, a lei da oferta e procura, dentre outros. O desejo<br />

mimético é amplamente desenvolvido, e sutilmente alimenta o elevado grau de consumo<br />

que fundamenta a economia capitalista. Esse desejo é elevado a alturas superlativas pela<br />

atuação midiática, massificando-o e criando demandas artificiais por toda sorte de produtos.<br />

Diariamente, a mídia exibe modelos humanos os quais ditam as tendências do que é<br />

desejável. Esses modelos podem ser considerados analogamente aos rivais concebidos por<br />

Girard. A extrema rapidez com que esses modelos mudam, acaba por criar uma intensa<br />

insatisfação, e uma busca obsessiva e frenética pelos padrões destinados a serem<br />

reproduzidos por imitação, mas que são extraordinariamente fugazes e que custam dinheiro,<br />

isto é, demandam consumo.<br />

Na sociedade contemporânea, essa crise mimética é incentivada pelos postulados<br />

econômicos e ideologias sociais. A violência é absorvida ao cotidiano. Ela é medida pelo<br />

grau de investimentos na área militar. O mundo gastou, em 1983, por volta de 25 600<br />

dólares por cada soldado; enquanto o gasto com a educação de crianças, no mesmo ano,<br />

foi 57 vezes menor: apenas 450 dólares por criança. Para cada pessoa, 45 dólares foram<br />

gastos em pesquisa militar, enquanto apenas 11 dólares foram gastos com pesquisas<br />

médicas. A Guerra do Golfo custou 1 bilhão de dólares por dia. O dinheiro gasto, em dez<br />

dias dessa guerra, seria suficiente para vacinar todas as crianças dos países em<br />

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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

desenvolvimento contra as principais doenças evitáveis, durante dez anos (BARRERE; 1992;<br />

p. 248).<br />

A banalização da violência pode torná-la generalizada e descontrolada, ameaçando as<br />

estruturas sobre as quais se sustenta a sociedade. Girard (2008) analisa o processo de<br />

vingança relacionado à violência:<br />

Por que, em qualquer lugar onde grassa, a vingança do sangue constitui uma<br />

ameaça intolerável? Face ao sangue derramado, a única vingança satisfatória é o<br />

derramamento do sangue criminoso. Não há diferença nítida entre o ato que a<br />

vingança pune e a própria vingança. Ela é concebida como uma represália, e cada<br />

vingança invoca uma outra. Muito raramente o crime punido pela vingança é visto<br />

como o primeiro: ele é considerado como a vingança de um crime mais original.<br />

A vingança constitui portanto um processo infinito, interminável. Quando a<br />

violência surge em um ponto qualquer da comunidade, tende a se alastrar e a<br />

ganhar a totalidade do corpo social, ameaçando desencadear uma verdadeira<br />

reação em cadeia, com consequências rapidamente fatais em uma sociedade de<br />

dimensões reduzidas. A multiplicação das represálias coloca em jogo a própria<br />

existência da sociedade. Por este motivo, onde quer que se encontre, a vingança<br />

é estritamente proibida. (p. 27)<br />

As sociedades primevas lançavam mão de mecanismos de controle da violência. Um dos<br />

principais era o sacrifício religioso. A vítima a ser imolada absorve sobre si as desavenças<br />

oferecendo uma saciação parcial, uma interrupção no ciclo vicioso da vingança. Ao invés da<br />

violência ser banalizada e tornar-se generalizada, ela é canalizada sobre o bode expiatório e<br />

toda a sociedade se volta contra ele. Nesse sistema, o sacrifício pode ser um animal, ou,<br />

também, um ser humano. “O fato de que algumas sociedades tenham sistematizado a<br />

imolação de certas categorias de seres humanos não tem nada de surpreendente.”<br />

(GIRARD; 2008; p. 22)<br />

Contudo, na sociedade hodierna, não há um ciclo incontrolável e generalizado de vingança<br />

claramente visível. Com a secularização, os rituais religiosos de sacrifício parecem banidos.<br />

Substituiu-se o sacrifício pelo sistema judiciário. Girard (2008) argumenta:<br />

Há um circulo vicioso da vingança, e é difícil imaginar seu peso nas sociedades<br />

primitivas. Para nós esse círculo não existe. Qual a razão desse privilégio? Uma<br />

resposta categórica para tal questão surge no plano das instituições: é o sistema<br />

judiciário que afasta a ameaça da vingança. Ela não a suprime, mas limita-a<br />

efetivamente a uma represália única, cujo exercício é confiado a uma autoridade<br />

soberana e especializada em seu domínio. As decisões da autoridade judiciária<br />

afirmam-se sempre como a última palavra da vingança. (p. 28)<br />

A vingança se torna um instrumento exclusivo do poder público. Contudo, com o<br />

agigantamento da crise mimética, e a degeneração moral da sociedade em prol dos lucros e<br />

dos avanços tecnológicos e científicos, coloca-se em dúvida a eficiência dessas instituições<br />

judiciárias. A violência é maior do que o poder público de combatê-la. Os milhões de<br />

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

pessoas que morrem de fome todos os anos, a despeito de o mundo ser perfeitamente<br />

capaz de alimentá-las, e os bilhões gastos com armamentos que não aumentam a paz,<br />

muitos outros exemplos atestam a ineficácia dos sistemas judiciários. Guillebaud (2003) diz:<br />

O Direito Penal tende a tornar-se – com a lei do mercado – o último mecanismo<br />

regulador de uma sociedade desprovida de crenças fortes e de valores realmente<br />

partilhados. Em outros termos, a taxa de ocupação das prisões torna-se<br />

inversamente proporcional ao vigor das convicções comuns. Quanto mais estas se<br />

enfraquecem, mais se enchem as prisões. Por trás de uma ordem moral, cujo<br />

pretenso “retorno” é denunciado com a insistência que conhecemos, dissimula-se<br />

uma evolução bastante real, que é a seguinte: a instalação de uma ordem penal<br />

que é a sua imagem invertida ou seu sucedâneo. Paradoxo singular: a<br />

permissividade generalizada conduz, assim, automaticamente, a um aumento da<br />

população penitenciária. À medida que a anomia e a entropia ganham espaço,<br />

uma espécie de totalitarismo judiciário, um enrijecimento da vida social por efeito<br />

da obsessão processual fazem o papel de camisa-de-força social. O fenômeno é<br />

ainda mais inquietante por vir acompanhado de uma dês-legitimação progressiva<br />

da norma, já que nada mais serve verdadeiramente de fundamento neste contexto<br />

de “ontologia debilitada”. (p. 260)<br />

A moral, relegada ao campo do individual, não promove mais a coesão social. O poder<br />

judiciário é fragmentado ao extremo, e está apto a oferecer somente o ressarcimento de<br />

interesses privados que se sentem injustiçados. A justiça hodierna não é primariamente<br />

coletiva. A justiça privatizada, e a fragmentação dos valores em incontáveis espectros são<br />

diametralmente opostas às qualidades necessárias aos mecanismos de controle da<br />

violência. Esta tende a se generalizar e a ameaçar a própria integridade da sociedade. A<br />

erradicação da mesma deve oferecer uma saciação parcial ao desejo de vingança e<br />

promover a coesão social. Deste modo, a solução deve ser essencialmente coletiva, a qual<br />

é oposta às características do sistema judiciário em voga.<br />

Deste modo, é possível afirmar que o sistema judiciário não atua de forma unilateral no<br />

controle social da violência gerada pela crise mimética. O sistema sacrifical que parecia<br />

banido pela lenta evolução da valorização do ser humano, e pelo reconhecimento, após<br />

séculos de lutas, dos direitos humanos universais, surge, hoje, como prática decisiva na<br />

erradicação da crise mimética.<br />

Outro aspecto dos sacrifícios modernos é a mudança de caráter religioso para o secular.<br />

Não há um ritual sacrifical delineado e francamente público. Como atesta Assmann (1989):<br />

A linguagem que utilizamos (“processo vitimário”), além de justificável diante dos<br />

fatos, sugere uma possível ponte com o pensamento de René Girard, que se<br />

expressa em linguagem parecida com a nossa. [...] Será que a velha necessidade<br />

de “bodes expiatórios” – isto é, de vítimas expiatórias que estabeleçam<br />

reconciliações – se metamorfoseou a tal ponto, no plano ideológico e no plano<br />

prático, que aquilo, que outrora requeria processos ostensivos e publicamente<br />

assumidos, se submergiu e integrou de tal modo no cotidiano das relações<br />

mercantis, que funciona agora como processo silencioso, permanente e<br />

praticamente inadvertido? Lançamos esta provocação porque, admitida essa<br />

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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

metamorfose da vítima expiatória por obra também (embora não apenas) do<br />

paradigma econômico, o necessário “Basta de sacrifícios!” adquire uma urgência e<br />

uma dramaticidade ainda maiores. (p. 303)<br />

O sacrifício é uma característica sui generis do liberalismo e também do neoliberalismo. Ela<br />

é evocada e defendida, se bem que veladamente, na obra daquele que é considerado o<br />

fundador do projeto liberal:<br />

Quando o Governo, para remediar os transtornos de uma carestia, ordena aos<br />

negociantes que vendam o trigo a um preço que supõe razoável, impede-os com<br />

isso de levar o trigo ao mercado, o que poderá por vezes causar a fome mesmo<br />

no início da estação, ou, se o levam, possibilita à população – e com isso lhe<br />

facilita – consumir o trigo de modo tão rápido que a fome necessariamente<br />

sobrevirá antes do final da estação. A ilimitada e irrestrita liberdade do<br />

comércio de trigo, única medida preventiva eficaz para evitar a desgraça da<br />

fome, é assim o melhor paliativo para os transtornos da carestia – os<br />

transtornos de uma verdadeira escassez não podem ser neutralizados, mas<br />

apenas atenuados. Não há atividade econômica que mais mereça a plena<br />

proteção da lei, que dela mais necessite, pois nenhuma outra está tão<br />

exposta ao ódio da população.<br />

Em anos de escassez, os estratos inferiores da população atribuem seu<br />

sofrimento à avareza do comerciante de trigo, que se torna o objeto de seu ódio e<br />

indignação. Portanto, ao invés de lucrar com essa situação, ele corre o perigo<br />

de se ver totalmente arruinado e de ter seus armazéns saqueados e<br />

destruídos pela violência da população. Todavia, é em anos de escassez,<br />

quando os preços estão altos, que o comerciante de trigo conta auferir a maior<br />

parte de seus ganhos. – grifo nosso. (SMITH; 2010; vol. 2; p. 664)<br />

Eunice Ostrensky ao prefaciar a obra de Adam Smith (2003), comenta de maneira<br />

peremptória para o presente trabalho acerca da passagem supracitada:<br />

Chegamos ao cerne do debate sobre o comércio de grãos em particular, e ao do<br />

sistema de perfeita liberdade geral. De um lado, os partidários da intervenção do<br />

Estado no mercado de trabalho e de grãos advogam a necessidade de defender o<br />

direito de sobrevivência dos mais pobres em situações extremadas; de outro, há<br />

os teóricos para quem essa intervenção, mesmo nas piores circunstâncias,<br />

representa um sacrifício das leis. No fundo, o que está em jogo não é apenas a<br />

liberdade de comércio, mas a suspensão das leis que garantem o direito à<br />

propriedade – neste caso, o direito do agricultor a seu trigo. Criada a<br />

instabilidade das posses, fatalmente a riqueza nacional se ressentirá; até<br />

mesmo o direito de propriedade estará em perigo. Em vez de milhares de<br />

pobres a morrer à míngua, talvez uma nação inteira a perecer sob a ameaça<br />

da desordem social. Contra esse perigo, “a única medida preventiva eficaz” é “a<br />

ilimitada e irrestrita liberdade do comércio de trigo”: “Não há atividade econômica<br />

que mais mereça a plena proteção da lei, que dela mais necessite, pois nenhuma<br />

outra está exposta ao ódio da população.” – grifo nosso. (SMITH; 2003; p. XIII e<br />

XIV)<br />

Ameaçado o direito de propriedade, a sociedade de consumidores se vê em perigo. Os<br />

milhares de pobres a morrer à míngua são o preço a se pagar para que a civilização não se<br />

dissolva em um mar de violências e desordem social. Por isso, o comércio de trigo – e no<br />

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

geral todo o comércio –, livre e irrestrito é o maior remédio contra a dissolução de toda a<br />

sociedade. A intervenção do Estado em prol da assistência aos necessitados representaria,<br />

na verdade, um verdadeiro desastre. Para salvar a todo o corpo social é preciso<br />

salvaguardar, em primeiro lugar, a propriedade privada, mesmo às custas de uma parcela<br />

da população, que, visto o objetivo de se salvar a maioria, são um preço aceitável a se<br />

pagar. A manutenção de toda a sociedade é primaz sobre o sacrifício de uma parcela da<br />

mesma. Há uma singular aproximação com a linguagem de Girard. Entre o perecimento de<br />

todos e alguns, não há alternativa, a não ser escolher a segunda opção. Ao invés da<br />

violência descontrolada e generalizada, a sociedade se volta contra os bodes expiatórios, na<br />

concepção de todos contra um, no lugar de todos contra todos que causaria o colapso social.<br />

Enquanto milhões morrem à míngua – crê-se e sustenta-se – que, concomitantemente,<br />

muito mais são salvos pelo livre comércio. As conotações sacrificais, segundo a concepção<br />

de Girard são evidenciadas. Se alguns milhões morrem, deve-se continuar em frente para<br />

proteger toda a sociedade da dissolução:<br />

Uma sociedade incerta acerca da sobrevivência de seu modo de ser desenvolve<br />

uma mentalidade de fortaleza sitiada. Os inimigos que cercam suas muralhas são<br />

seus próprios “demônios interiores”: os medos reprimidos e ambientes que<br />

permeiam a vida diária, a “normalidade”, mas que, para tornar suportável a<br />

realidade diária, devem ser esmagados e empurrados para fora da cotidianidade<br />

vivida e fundidos a um corpo estranho – um inimigo tangível dotado de um nome,<br />

um inimigo que se possa enfrentar, e enfrentar novamente, e até esperar vencer.<br />

(BAUMAN; 2008; p. 163)<br />

Esses “demônios” são conduzidos, como os bodes expiatórios, para fora das muralhas<br />

citadinas. Eles carregam os medos interiores da própria civilização, e são os inimigos a<br />

serem abatidos; carregam a miséria, a indigência, a violência, as causas dos problemas<br />

ambientais, a prostituição dentre outros, sendo conduzidos para fora. Considere a seguinte<br />

passagem bíblica:<br />

Receberá da comunidade dos israelitas dois bodes destinados ao sacrifício pelo<br />

pecado, e um carneiro para o holocausto. Depois de haver oferecido o novilho do<br />

sacrifício pelo seu próprio pecado e de ter feito o rito de expiação por si mesmo e<br />

pela sua casa, Aarão tomará os dois bodes e os colocará diante de Iahweh na<br />

entrada da Tenda da Reunião. Lançará a sorte sobre os dois bodes, atribuindo<br />

uma sorte a Iahweh e outra a Azazel 1 . Aarão oferecerá o bode sobre o qual caiu a<br />

sorte ‘De Iahweh’ e fará com ele um sacrifício pelo pecado. Quanto ao bode sobre<br />

o qual caiu a sorte ‘De Azazel’, será colocado vivo diante de Iahweh, para se fazer<br />

com ele o rito de expiação, a fim de ser enviado a Azazel, no deserto. (Levítico 16:<br />

5 – 10)<br />

1 “Azazel, como bem parece ter compreendido a versão siríaca, é o nome de um demônio que os<br />

antigos hebreus e cananeus acreditavam que habitasse o deserto, terra árida onde Deus não<br />

exerceria a sua ação fecundante” (BÍBLIA DE JERUSALÉM; 2006; p. 183 e 184 – comentário de<br />

roda-pé, letra ‘c’)<br />

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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

Essa passagem bíblica exemplifica muito bem a figura do bode expiatório, que é sacrificado<br />

ou conduzido ao deserto – para fora dos muros citadinos – portando os pecados do povo. A<br />

derradeira questão é que no caso analisado pelo presente trabalho não se tratam de bodes<br />

de verdade, mas de seres humanos. “Somos da opinião de que a exigência do sacrifício de<br />

vidas humanas é parte constitutiva da peculiar forma de idolatria a que esse paradigma [do<br />

mercado] obriga seus observantes” (ASSMANN; 1989; p. 292).<br />

No cerne da mensagem cristão reside a crença em Jesus como Filho de Deus, encarnação<br />

divina no mundo, para tirar os pecados do mundo. “Como ovelha foi levado ao matadouro; e<br />

como cordeiro, mudo ante aquele que o tosquia, assim ele não abre a boca. Na sua<br />

humilhação foi-lhe negada a justiça. E a sua geração, quem é que a narrará? Porque a sua<br />

vida foi eliminada da terra” (Atos 8: 32 – 33). Segundo essa crença, Jesus foi sacrificado<br />

como vítima expiatória, nos mesmos moldes da crise gerada pela ameaça de violência<br />

generalizada, e perigo de dissolução social teorizada por Girard. A grande novidade é a<br />

característica inerente dessa vítima, isto é a sua inocência: “cordeiro sem defeitos e sem<br />

mácula Cristo” (1Pedro 1: 19); “odiaram-me sem motivo” (João 15: 25), diz Jesus.<br />

Contrariando os sacrifícios religiosos, nos quais o bode expiatório é sacrificado portando<br />

todos os pecados do povo, sendo considerado, deste modo, culpado; o sacrifício de Jesus<br />

Cristo apresenta a inocência da vítima. “Toda violência doravante revela o que a paixão de<br />

Cristo revela, a gênese imbecil dos ídolos sangrentos, de todos os falsos deuses das<br />

religiões, das políticas e das ideologias” (GIRARD; 2004; p. 275). “Os caçadores de bruxas<br />

caem sob o golpe desta revelação, assim como os burocratas totalitários da perseguição”<br />

(idem; p. 275). “Podemos enfim mostrar a inanidade de todos os deuses violentos, explicar e<br />

condenar como nulidade toda mitologia” (idem; p. 269).<br />

MÉTODO<br />

A pesquisa é de natureza explicativa. O procedimento utilizado para a coleta de informações<br />

foi a pesquisa bibliográfica e documental. Recorreu-se às bibliotecas, à internet e aos<br />

periódicos. A análise de dados foi realizada qualitativamente através da leitura de textos e<br />

documentos, da comparação de autores, e da interdisciplinaridade entre filosofia, sociologia,<br />

economia e religião.<br />

RESULTADOS E DISCUSSÃO<br />

O capitalismo, a despeito de ser inerentemente secular, possui convergências com a religião.<br />

Esse sistema econômico organiza-se ao redor da crença na astúcia da razão econômica<br />

que por meio da mão invisível guiaria a humanidade rumo ao desenvolvimento. O mercado<br />

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<strong>Universidade</strong> <strong>Presbiteriana</strong> <strong>Mackenzie</strong><br />

é fetichizado e idolatrado, concebido como um ente dotado de razão e independente do<br />

homem. As origens humanas por trás das relações mercantis são apagadas e o homem se<br />

submete às vontades do mercado que possui as rédeas da história humana.<br />

A idolatria do mercado possui o corolário de produzir a morte de milhões de seres humanos,<br />

os quais perecem na mais absoluta miséria, além de outros bilhões de pessoas que tentam<br />

sobreviver em condições subumanas. Essa realidade, longe de ser fruto do acaso ou da<br />

imperfeição das sociedades humanas, é consequência e parte inerente do sistema<br />

econômico. São a paga, ou os sacrifícios necessários para a manutenção do status quo.<br />

A novidade apresentada pelo cristianismo é a inocência da vítima, ou do bode expiatório. A<br />

violência não é dissipada pela imolação de vítimas sacrificais, mas pela prática do amor ao<br />

próximo. Acontece que esse conceito, bastante característico do cristianismo foi assimilado<br />

pelo capitalismo. Ora, se no cristianismo o amor ao próximo é praticado a partir do exemplo<br />

de Cristo de alteridade e amor a Deus, no capitalismo sustenta-se que a forma mais<br />

eficiente de praticar o amor ao próximo, é centrar-se exclusivamente nos interesses<br />

individuais.<br />

Desnudar, trazendo à luz essa característica subjacente do capitalismo é de suma<br />

importância para solucionar o problema da aguda desigualdade social, que culmina na<br />

morte de muitas pessoas. A prática desenfreada do mercado, e a falência de valores sociais<br />

para a exacerbação dos desejos e interesses individuais não tem gerado apenas sacrifícios<br />

de vidas humanas, mas também, tem exigido cada vez mais dos recursos naturais. Da<br />

forma como está organizada e é praticada, o capitalismo, com sua ideologia, encontra-se<br />

em choque com os interesses sociais das gerações hodiernas e futuras.<br />

Entretanto, essa afirmativa não significa a nulidade no capitalismo, ou do mercado. O que se<br />

questiona é a fetichização do mercado e a crença no mercado como ente dotado de astúcia<br />

racional, entregando a este ídolo as rédeas do destino humano. Tudo isto ao preço de<br />

inúmeras vidas humanas.<br />

CONCLUSÃO<br />

Os objetivos específicos atingidos por este trabalho foram caracterizar os rituais religiosos<br />

de sacrifícios; comparar as mortes geradas pelas atividades econômicas capitalistas com os<br />

sacrifícios religiosos; e a relação do cristianismo com o sacrifício. Tudo isso com o objetivo<br />

geral de abordar, de forma explicativa, a prática simbólica capitalista dos sacrifícios,<br />

explicitando suas estruturas organizacionais e funcionais, seus fundamentos ideológicos,<br />

além de identificar os motivos e as vítimas a serem imoladas. Crê-se que esta finalidade<br />

também foi alcançada.<br />

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REFERÊNCIAS<br />

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011<br />

ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz J. A idolatria do mercado. São Paulo: Vozes,<br />

1989.<br />

BARRERE, Martine. Terra: Patrimônio comum. São Paulo: Nobel, 1992.<br />

BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. 5 ed. São Leopoldo: Sinodal, 1996.<br />

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.<br />

_____________. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.<br />

BERGER, Peter L. O dossel sagrado. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2004.<br />

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.<br />

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. 7 reimpressão. São Paulo: Ática, 2008.<br />

GIRARD, René. A violência e o sagrado. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.<br />

_____________. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. São Paulo: Paz e Terra,<br />

2008.<br />

_____________. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.<br />

GOLEMAN, Daniel. Inteligência Ecológica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.<br />

GUILLEBAUD, Jean Claude. A reinvenção do mundo. Rio de Janeiro: Bertrand, 2003.<br />

HOBSBAWM, Eric J. A era do capital. 15 ed. São Paulo: Paz e terra, 2010.<br />

MARX, Karl. O capital. Vol. 1. 27 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.<br />

NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo. 2. Ed. São Paulo: Escala, 2008.<br />

SMITH, Adam. A riqueza das nações. Vol. 1. São Paulo: Martins fontes, 2003.<br />

_____________. A riqueza das nações. Vol. 2. São Paulo: Martins fontes, 2010.<br />

ONU. Números da crise. Disponível em:<br />

< http://www.pnud.org.br/milenio/numeroscrise.php> Acesso em 16 abr. 2011.<br />

ONU. Relatório do desenvolvimento humano de 2003. Disponível<br />

em:. Acesso em<br />

16. abr. 2011.<br />

Contato: noris_yun@yahoo.com.br e rodrigo.sousa@mackenzie.br<br />

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