19.04.2013 Views

Casa de penhores - Isis Baião - Cia. Atelie das Artes

Casa de penhores - Isis Baião - Cia. Atelie das Artes

Casa de penhores - Isis Baião - Cia. Atelie das Artes

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

CASA DE PENHORES<br />

tragicomédia em 2 atos<br />

<strong>de</strong> <strong>Isis</strong> <strong>Baião</strong><br />

<strong>Casa</strong> <strong>de</strong> Penhores<br />

(em sua versão para o francês, Mont-<strong>de</strong>-Piété)<br />

trouxe para o Brasil um dos 7 prêmios do concurso<br />

1997 Onassis International Cultural Competitions - Theatrical Plays,<br />

que teve lugar em Athenas-Grécia.<br />

1


Sinopse<br />

<strong>Casa</strong> <strong>de</strong> Penhores<br />

Tragicomédia em dois atos<br />

<strong>de</strong> <strong>Isis</strong> <strong>Baião</strong><br />

Dora, 45 a 55 anos, datilógrafa <strong>de</strong>sempregada, é cliente assídua da <strong>Casa</strong> <strong>de</strong><br />

Penhores, on<strong>de</strong> empenha as parcas jóias da Mãe, figura onipresente e<br />

comicamente mórbida. É casada com Eduardo, 45 a 55 anos, jornalista mal<br />

pago, bêbado. No sufoco, Dora resolve ganhar a vida confeccionando, para<br />

o Instituto <strong>de</strong> Controle da Mortalida<strong>de</strong>, coroas <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto, cujas flores são<br />

feitas com os vestidos da Mãe, criando assim um novo estilo mortuário. O<br />

Instituto, órgão do Ministério da Saú<strong>de</strong>, aumenta progressivamente as<br />

encomen<strong>das</strong>, mas não paga, levando Dora ao <strong>de</strong>sespero. Sem saída, mas<br />

loucamente <strong>de</strong>terminada, ela apela para uma solução insana e inusitada.<br />

Nesta peça, <strong>Isis</strong> <strong>Baião</strong> “mistura, com um humor às vezes cruel, o absurdo, o<br />

farsesco, o grotesco, o macabro, ligados por uma visão feminina <strong>de</strong> mundo,<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um contexto político-social” (opinião <strong>de</strong> Fred Clark - PhD em<br />

Literatura Brasileira na North Caroline University -, que estuda a obra da<br />

autora)<br />

<strong>Casa</strong> <strong>de</strong> Penhores, em sua versão para o francês, Mont-<strong>de</strong>-Piété, foi uma<br />

<strong>das</strong> sete peças premia<strong>das</strong> pelo 1997 Onassis International Cultural<br />

Competitions - Theatrical Plays, em Athenas (Grécia). Ao concurso,<br />

concorreram 1.470 textos, <strong>de</strong> 76 países.<br />

Elenco mínimo: 3 atrizes e 3 atores<br />

2


1º ATO<br />

CENÁRIOS<br />

CASA DE PENHORES E, DENTRO DESTA, A CASA DE DORA.<br />

2º ATO<br />

IDEM, COM AS MODIFICAÇÕES INDICADAS NO TEXTO.<br />

NO DECORRER DO 2º ATO, A CASA DE DORA VAI FICANDO CADA<br />

VEZ MENOR E MAIS VAZIA, ENQUANTO A CASA DE PENHORES<br />

CRESCE, ENGOLINDO A OUTRA.<br />

3


CENA 1 - NO PREGO<br />

1º ATO<br />

APRESSADOS E ANSIOSOS ENTRAM UM HOMEM E DUAS MULHERES.<br />

FAZEM FILA. EM SEGUIDA, ENTRA DORA, ESBAFORIDA, COLOCA-SE<br />

NO FINAL DA FILA. INQUIETA, OLHA O GUICHÊ VAZIO, METE UMA<br />

BALA NA BOCA, DEPOIS ACENDE UM CIGARRO (DORA SEMPRE<br />

ALTERNA OU MISTURA BALAS E CIGARROS). À SUA FRENTE,<br />

MADAME, SENHORA EMPERTIGADA, ABANA-SE FEROZMENTE COM<br />

UM LEQUE. O HOMEM FAZ CONTAS NUMA MAQUININHA,<br />

BALBUCIANDO NÚMEROS. A PRIMEIRA DA FILA, UMA MULHER<br />

GRÁVIDA, TENTA FAZER CROCHÊ E RESMUNGA. ESSAS PESSOAS<br />

FALAM SOZINHAS OU PENSAM ALTO. E, QUANDO PENSAM ALTO, A<br />

VOZ DOS SEUS PENSAMENTOS SAI EM OFF, SOANDO MAIS ALTO DO<br />

QUE O NORMAL, ENQUANTO SUAS BOCAS APENAS MEXEM.<br />

DORA - (PENSANDO ALTO) "Se a cólera que espuma, a dor que<br />

mora n'alma..." Diabo, on<strong>de</strong> ouvi isso? Maluquice <strong>de</strong> quem madruga... Bem, até<br />

que tem pouca gente hoje... (METE UMA BALA NA BOCA)<br />

MADAME - (PENSANDO ALTO) Se dona Carlota Joaquina, minha<br />

mãe, me visse nessa situação, morreria <strong>de</strong> vergonha! Que humilhação!<br />

(ABANA-SE MAIS FEROZMENTE) On<strong>de</strong> vamos parar? Daqui a pouco as<br />

pessoas <strong>de</strong> bem estarão tão miseráveis quanto a ralé! Que absurdo!<br />

DORA - (PENSANDO ALTO) O<strong>de</strong>io essas balas <strong>de</strong> hortelã! Me<br />

sinto fazendo propaganda <strong>de</strong> pasta <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte na televisão! E me dão uma puta<br />

azia! (TENTA ARROTAR)<br />

HOMEM - (FAZENDO CONTA NA MAQUININHA E<br />

RESMUNGANDO) Sessenta <strong>de</strong> feira, cento e cinquenta e cinco <strong>de</strong><br />

supermercado... (PENSANDO ALTO) Merda <strong>de</strong> mulher que resolveu botar três<br />

fe<strong>de</strong>lhos no mundo... três vampirinhos nojentos nas minhas costas. Comem feito<br />

animais! Bicho ridículo é mulher, umas vacas pari<strong>de</strong>iras...<br />

DORA - (PENSANDO ALTO) "Se a cólera que espuma... " Hum, tô<br />

pirando... Gente estranha essa, parece que tá indo pr'um matadouro! Será que tô<br />

com cara <strong>de</strong> vaca? (SORRI) Balas horríveis. Comprei pensando que eram <strong>de</strong><br />

limão. Gato por lebre. Merda.<br />

DORA MASTIGA RUIDOSAMENTE. MADAME A OLHA COM<br />

DESPREZO E HORROR.<br />

4


MADAME - (PENSANDO ALTO) Gentinha mal educada! Que diria o<br />

Menezes me vendo aqui, ele que está escrevendo um livro sobre a minha árvore<br />

genealógica! (SUSPIRA, ABANA-SE) Um nome sem dinheiro já não vale mais<br />

nada! Ai <strong>de</strong> mim!<br />

M. GRÁVIDA - (PENSANDO ALTO) Não fosse essa barriga, ele teria me<br />

assaltado... Veio por trás, já tava colado em mim - ai, ainda sinto um frio na<br />

espinha!... Deve ter visto a barriga e <strong>de</strong>sistiu... Uma gravi<strong>de</strong>z ainda tem seu<br />

valor...<br />

MADAME - (PENSANDO ALTO) Esses funcionariozinhos se fazem<br />

esperar como se fossem patrões ou generais. Que absurdo!<br />

DORA - (PRA MADAME) Desculpe, acho que já a conheço...<br />

talvez daqui mesmo...<br />

MADAME - (CORTANTE) A senhora está enganada. É a primeira vez<br />

que venho aqui.<br />

DORA - E está gostando? (PENSANDO ALTO, MUITO RÁPIDO)<br />

Meu Deus, que que eu disse!<br />

MADAME - (COLÉRICA) Não estou habituada a esses ambientes!<br />

(PENSANDO ALTO) Atrevida! Não se po<strong>de</strong> dar conversa a essa gentinha!<br />

DORA - Sinto muito.<br />

MADAME CORTA O PAPO VIRANDO-SE TOTALMENTE DE COSTAS<br />

PARA A OUTRA.<br />

DORA - (PENSANDO ALTO) Comendo merda e arrotando caviar!<br />

(PARA SI MESMA, BAIXO) Meu Deus, acho que estou dando pra pensar alto!<br />

(OLHA O RELÓGIO) Vou ter que arrumar atestado médico pra justificar essa<br />

falta. Tipo nojento aquele chefete!<br />

HOMEM - (PENSANDO ALTO, ENQUANTO FAZ CONTAS) Não<br />

vai dar... Não é possível, essa máquina tá exagerando... Máquina nojenta,<br />

corrupta! (ATIRA A MAQUININHA PELA JANELA. OUVE-SE UM BAQUE)<br />

VOZ DE FORA - Aaaaaaiiiii! Filho da puta!<br />

O FUNCIONÁRIO ABRE O GUICHÊ. HÁ UM CERTO ALÍVIO NA<br />

ANSIEDADE GERAL. O FUNCIONÁRIO FAZ UM SINAL. NERVOSA, A<br />

MULHER GRÁVIDA GUARDA O CROCHÊ, SUSPENDE A BATA DE<br />

GRÁVIDA E RETIRAUM PEQUENO EMBRULHO DA BARRIGA, QUE É<br />

FALSA.<br />

FUNCIONÁRIO - (IMPACIENTE) Vamos, minha senhora, o tempo é ouro!<br />

AS PESSOAS NA FILA TAMBÉM SE IMPACIENTAM. MAIS NERVOSA, A<br />

MULHER ENTREGA AO FUNCIONÁRIO O PEQUENO EMBRULHO,<br />

5


CONTENDO UMA PULSEIRA E UM ANEL INSIGNIFICANTES. O<br />

FUNCIONÁRIO JOGA AS JÓIAS SOBRE A BALANÇA.<br />

FUNCIONÁRIO - Cinco gramas. (FAZ UMA CONTA RÁPIDA) Tirando os<br />

juros e comissões... (SUSSURRA ALGUMA QUANTIA)<br />

M.GRÁVIDA - (DECEPCIONADÍSSIMA) Só????<br />

FUNCIONÁRIO - (IMPASSÍVEL) Leva ou fica?<br />

M.GRÁVIDA - É...<br />

HOMEM - Resolva, minha senhora, tem muita gente na fila.<br />

M.GRÁVIDA - É, que jeito?... fica.<br />

ELA RECEBE O DINHEIRO, ENFIA-O NA BARRIGA FALSA E SAI<br />

CABISBAIXA.<br />

HOMEM - Qual a cotação do ouro?<br />

O FUNCIONÁRIO BALBUCIA ALGUM NÚMERO.<br />

HOMEM - Como? Semana passada tava mais alta! (VOLTA A<br />

FAZER CONTAS NA MAQUININHA)<br />

FUNCIONÁRIO - Baixou!<br />

MADAME - Baixou? O ouro, um metal nobre, baixou? Isso é ba<strong>de</strong>rna,<br />

pouca vergonha! Que absurdo!<br />

DORA - Só a temperatura sobe. 40 graus, ouvi no rádio. Calamida<strong>de</strong><br />

pública!<br />

MADAME OLHA DORA COM O MÁXIMO DE DESPREZO.<br />

FUNCIONÁRIO - Meu senhor, por favor, o tempo é ouro!<br />

HOMEM - Estou aqui há meia hora esperando pelo senhor. Agora me<br />

espere. Tenho que refazer algumas contas.<br />

MADAME - (PENSANDO ALTO) Homem organizado! Se o cretino do<br />

meu marido fosse assim organizado, não estaríamos ficando na miséria!<br />

HOMEM - Há previsão <strong>de</strong> quando vai subir?<br />

FUNCIONÁRIO - Imprevisível...<br />

HOMEM - Po<strong>de</strong> subir...<br />

FUNCIONÁRIO - Ou baixar...<br />

HOMEM - O senhor é um baixo astral! (VIRANDO-SE PARA OS<br />

OUTROS) Estão vendo, é por causa <strong>de</strong> tipos como esse que vivemos<br />

intranquilos.<br />

MADAME - O senhor tem toda razão, mas resolva-se, estou com pressa.<br />

O HOMEM ABRE A BRAGUILHA E RETIRA UM BOLO DE JÓIAS. GEME.<br />

6


O FUNCIONÁRIO PESA AS JÓIAS E FAZ CONTAS.<br />

MADAME - (PENSANDO ALTO) Espera infernal! Deixei o "Arthur"<br />

trancado na área <strong>de</strong> serviço. A esta hora já fez cocô na área toda, só pra me fazer<br />

raiva. Cachorro mau caráter!<br />

FUNCIONÁRIO - 255, líquidos. Fica?<br />

HOMEM - E o senhor acha que tenho saco <strong>de</strong> ferro? Essa merda quase<br />

que me arranca os testículos! Quanto disse?<br />

FUNCIONÁRIO - 255, líquidos.<br />

HOMEM - Isto é roubo, extorsão!<br />

FUNCIONÁRIO - Não tenho nada com isso. Sou apenas um funcionário da<br />

casa.<br />

HOMEM - Desse puteiro, o senhor quer dizer!<br />

MADAME - (PARA SI MESMA) Que linguagem! Gentinha baixa!<br />

On<strong>de</strong> estou metida! Que humilhação! (ABANA-SE FRENETICAMENTE)<br />

FUNCIONÁRIO - Leva ou fica?<br />

HOMEM - Espere, <strong>de</strong>ixe eu conferir esta sua conta.<br />

MADAME - (PENSANDO ALTO) O cretino do meu marido vai me<br />

pagar por este vexame!<br />

DORA - (PENSANDO ALTO) Os balangandãs da velha não vão<br />

dar pra pagar meta<strong>de</strong> do aluguel! Família sem jóias é uma inutilida<strong>de</strong> hoje em<br />

dia!<br />

FUNDIONÁRIO - Fica?<br />

HOMEM - Fica com essa porra.<br />

O HOMEM RECEBE O DINHEIRO E SAI RESMUNGANDO E<br />

APALPANDO O SACO DOLORIDO.<br />

MADAME - Quanto estão cobrando <strong>de</strong> juros?<br />

FUNCIONÁRIO - O mesmo, não baixou nem aumentou.<br />

MADAME - O mesmo, qual? O senhor pensa que vivo no prego? É a<br />

primeira vez que venho aqui, primeira e última! Vim porque nesta cida<strong>de</strong><br />

selvagem já não posso usar minhas jóias e nem o cofre está livre <strong>de</strong>sses<br />

assaltantes assassinos. Vim para guardar aqui as minhas jóias. Não pense que<br />

estou matando cachorro a grito. A propósito, an<strong>de</strong> <strong>de</strong>pressa que <strong>de</strong>ixei o meu<br />

dálmata trancado na área <strong>de</strong> serviço e ele é muito sensível.<br />

DORA - (PENSANDO ALTO) Ai, que nojo! "Se a cólera... " Que<br />

saco!<br />

FUNCIONÁRIO - (JÁ EXAUSTO) A senhora ainda não me entregou as jóias.<br />

MADAME - E o senhor ainda não me respon<strong>de</strong>u a pergunta, seu<br />

atrevido. Me responda: quanto pagarei <strong>de</strong> juros?<br />

FUNCIONÁRIO - 24 % <strong>de</strong> juros e comissões.<br />

MADAME - Mais do que nos bancos? O senhor não tem vergonha?<br />

7


FUNCIONÁRIO - Não tenho nada com isso. Sou apenas um funcionário da<br />

casa.<br />

MADAME - O senhor trabalha aqui e não sabe porque cobram juros<br />

maiores do que nos bancos?<br />

FUNCIONÁRIO - Sou apenas um funcioná...<br />

MADAME - E não tem opinião própria?<br />

FUNCIONÁRIO - Bem, acho... bom, aqui a senhora não precisa ter saldo<br />

médio pra receber o empréstimo.<br />

MADAME - Empréstimo? Que empréstimo, se vou <strong>de</strong>ixar as minhas<br />

jóias aqui com o senhor?<br />

FUNCIONÁRIO - Comigo não. Não tenho nada com isso. Por favor, minha<br />

senhora, o tempo é ouro.<br />

MADAME - O ouro não está valendo mais nada, pelo visto. Aquele<br />

senhor tinha razão e se eu fosse homem meteria um soco nessa sua cara cínica.<br />

A CARA DE POBRE COITADO DO FUNCIONÁRIO PERMANECE<br />

IMPASSÍVEL. MADAME RETIRA UM PACOTINHO DE JÓIAS DE ENTRE<br />

OS SEIOS E ENTREGA.<br />

MADAME - Chegue a balança mais para cá. Estou cansada <strong>de</strong> ser<br />

roubada no peso.<br />

FUNCIONÁRIO - 44 gramas, confere? (FAZ A CONTA RÁPIDO E<br />

BALBUCIA UM VALOR) ... tirando os juros e comissões...<br />

MADAME - Se não roubam no peso, roubam nos juros e não se tem a<br />

quem reclamar. Que absurdo!<br />

FUNCIONÁRIO - Leva ou fica?<br />

MADAME - Fica, que já fiquei horas nesta fila. Que insensatez!<br />

ELA RECEBE O DINHEIRO, METE-O ENTRE OS SEIOS E SAI. DORA<br />

APROXIMA-SE DO GUICHÊ.<br />

DORA - Já estão aceitando prata?<br />

FUNCIONÁRIO - Só ouro.<br />

DORA - Não é prata 90, é prata <strong>de</strong> lei, antiga...<br />

FUNCIONÁRIO - Desculpe, só aceitamos ouro.<br />

ELA RETIRA AS JÓIAS DE DENTRO DA MANGA DO VESTIDO E AS<br />

ENTREGA. O FUNCIONÁRIO DESCONFIA DE UMA DELAS, MORDE-A.<br />

DORA - É ouro branco...<br />

FUNCIONÁRIO - Metal ordinário, <strong>de</strong>sculpe. (DEVOLVE A PEÇA E FAZ<br />

CONTAS)<br />

8


DORA - (PENSANDO ALTO) Velha mentirosa. Deve ter<br />

escondido a verda<strong>de</strong>ira.<br />

FUNCIONÁRIO - (BALBUCIA UM NÚMERO) Fica ou leva?<br />

DORA - (DESESPERADA) Só? Não é possível. Há seis meses botei<br />

no prego essas mesmas jóias e recebi mais!<br />

FUNCIONÁRIO - (EXAUSTO) A cotação do ouro baixou. Leva ou fica?<br />

DORA - Ainda tenho dois dias pra pagar o aluguel. Será que não<br />

sobe <strong>de</strong> hoje pra manhã?<br />

FUNCIONÁRIO - Sou apenas um funcionário da casa. Leva ou fica?<br />

DORA - Que jeito! Fica.<br />

RECEBE O DINHEIRO E VAI SAINDO.<br />

DORA - (PENSANDO ALTO E RÁPIDO) "Se a cólera que<br />

espuma, a dor que mora n'alma e <strong>de</strong>strói cada ilusão que nasce. Tudo que punge,<br />

tudo que <strong>de</strong>vora o coração no rosto se estampasse. Se se pu<strong>de</strong>sse o espírito que<br />

chora..."<br />

FUNCIONÁRIO - O próximo...<br />

CENA 2 - CASA DE DORA<br />

ENTRA DORA FALANDO SOZINHA.<br />

DORA - Aviso prévio! Isso bate como sirene <strong>de</strong> alarme em tempo <strong>de</strong><br />

guerra! Daqui um mês estarei sem garantia <strong>de</strong> que posso viver como gente...<br />

(GRITA PARA O INTERIOR DA CASA) Está me ouvindo, tio? Você sabe o<br />

que é uma guerra, não sabe? Pois é, daqui um mês você estará sem talco. Sim,<br />

porque o seu talco é mais supérfluo do que a minha comida, você não acha?<br />

MÃE - (DOS FUNDOS) Não fale assim com o seu tio, Dora.<br />

DORA - Foda-se, minha mãe. (TROCA DE ROUPA ENQUANTO<br />

FALA) Pelo menos receberei uma boa bolada. Férias e fundo <strong>de</strong> garantia, foi o<br />

que a psicóloga me disse. Você sabia, mãe, que as gran<strong>de</strong>s empresas agora têm<br />

uma psicóloga só pra dizer pr'os funcionários <strong>de</strong>mitidos que eles logo logo<br />

arrumarão um novo emprego? Maravilha, né?<br />

MÃE - (DO INTERIOR) Têm o que?<br />

DORA - Uma psicóloga.<br />

MÃE - (APARECENDO) Dora, minha filha, não se meta com essa<br />

gente. Essas psicólogas só prestam pra aconselhar mulher a se separar do marido.<br />

Não viu a Zuleika? Vivia tão bem com o marido... (DESAPARECE)<br />

DORA - (ARRUMANDO A CASA) Não se trata disso, mãe. Foi só<br />

uma terapia rapidinha pra <strong>de</strong>sempregado. Ela fez uma entrevista enorme comigo.<br />

9


Primeiro me perguntou como que eu estava me sentindo. Sabe que que eu<br />

respondi? Ar-ra-sa-da, e buáááá... Depois que acabei <strong>de</strong> chorar, ela me disse que<br />

eu estava encarando uma simples dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira negativa, que eu estava<br />

cheia <strong>de</strong> expectativas catastróficas, que <strong>de</strong>viam ser reflexos da minha infância.<br />

Mãe, eu tive uma infância catastrófica?<br />

MÃE - (DO INTERIOR) Você foi uma criança linda e alegre.<br />

Gostava <strong>de</strong> apagar cigarro em rabo <strong>de</strong> gato. Seu pai fumava muito. Eu sempre<br />

<strong>de</strong>testei cigarros. Você está fumando muito, Dora!<br />

DORA ATRAPALHA-SE. JOGA FORA O CIGARRO. METE UMA BALA<br />

NA BOCA.<br />

MÃE - (DO INTERIOR) Isso, chupe balas, é melhor.<br />

DORA ATRAPALHA-SE NOVAMENTE. IRRITA-SE. COSPE A BALA.<br />

ACENTE OUTRO CIGARRO.<br />

DORA - Bruxa! (RECOMPÕE-SE E CONTINUA A<br />

TRABALHAR) Então ela me disse que a vida está cheia <strong>de</strong> coisas boas, que<br />

aquela empresa não é a única e que esta cida<strong>de</strong> oferece mil oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

emprego a mulheres capazes como eu. Um alto astral a psicóloga, você não acha?<br />

MÃE - (DO INTERIOR) Fora da família, só confie no padre... se<br />

for velho.<br />

DORA - (REPENTINAMENTE ENFURECIDA) Burra, idiota, que<br />

o diabo te leve e te espete o rabo para sempre!<br />

MÃE - (APARECENDO) O talco do seu tio acabou, Dora.<br />

DORA - Sinto muito. Ele vai ter que ficar sem talco.<br />

MÃE - (ENÉRGICA) Você sabe que ele não po<strong>de</strong>!<br />

DORA - Vai ter que po<strong>de</strong>r. Talco é perfumaria e perfumaria é<br />

supérfluo. Muito caro para uma <strong>de</strong>sempregada.<br />

MÃE - (DOCE) Faça um sacrifício pelo seu tio, minha filha.<br />

DORA - Pegue a farinha <strong>de</strong> trigo. Substitue muito bem o talco.<br />

MÃE - Só hoje. Amanhã, eu exijo um talco para o seu tio.<br />

(SAI RESMUNGANDO) Já não se tem carinho nem respeito com os parentes. É<br />

por isso que o mundo está assim. Só é bom o que é novo. As tradições, a moral,<br />

já não têm nenhum valor... (SOME)<br />

DORA - (GRITANDO) Mãe, não gaste muita farinha <strong>de</strong> trigo.<br />

Aprenda a poupar.<br />

MÃE - (DO INTERIOR) Só tem dois <strong>de</strong>dos!<br />

DORA - Pois <strong>de</strong>ixe um.<br />

ENFIA UMA BALA NA BOCA E COMEÇA A PROVIDENCIAR O JANTAR.<br />

ENTRA EDUARDO.<br />

10


DORA - Boa noite, pelo menos.<br />

EDUARDO - Boa noite.<br />

DORA - Recebí aviso prévio.<br />

EDUARDO NÃO REAJE, APARENTEMENTE. DESPE-SE E VESTE UM<br />

PIJAMA VELHÍSSIMO.<br />

DORA - Você me ouviu? Recebí aviso prévio. Significa que daqui a<br />

um mês estarei <strong>de</strong>sempregada.<br />

EDUARDO - Não se preocupe. Eu aguento a barra.<br />

DORA - Aguenta? Como? No mês passado nós tivemos que tirar a<br />

pensão dos teus filhos do meu salário. E sabe quanto <strong>de</strong>ram no prego pelas jóias<br />

da velha? Bem menos do que há seis meses atrás. A cotação do ouro baixou.<br />

EDUARDO - A inflação continua a subir. Este povo não é <strong>de</strong> nada.<br />

DORA - Não me vem com política hoje. Acho que você não<br />

enten<strong>de</strong>u bem. Estou <strong>de</strong>sempregada. Os nossos salários juntos já não davam pras<br />

<strong>de</strong>spesas...<br />

EDUARDO - Sei, sei. Você é mais um <strong>de</strong>sempregado <strong>de</strong> classe média. A<br />

situação do povo é pior.<br />

DORA - Você não tem jeito mesmo!<br />

EDUARDO PEGA UMA BEBIDA, SENTA-SE E ABRE UM JORNAL.<br />

DORA - Eles te pagaram os 40% <strong>de</strong> aumento?<br />

EDUARDO - Ainda não.<br />

DORA - E você não reclamou, não cobrou?<br />

EDUARDO - Claro. Mas não adianta, a revista não está indo bem.<br />

DORA - O dono <strong>de</strong>la está rico!<br />

EDUARDO - Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta!<br />

DORA - Escuta aqui, por que vocês não fazem greve, hein? Como o<br />

pessoal do ABC. Você vive falando nos operários!<br />

EDUARDO - Não diga burrice. Operário é outra coisa. A classe média<br />

não acredita em luta <strong>de</strong> classe. O brasileiro médio só luta pra ser um<br />

"self-ma<strong>de</strong>-man".<br />

DORA - Chega, Eduardo. Só quero saber como que a gente vai se<br />

segurar nos próximos meses... Você já começou a beber essa vodca vagabunda.<br />

Quando era uisque bom, ainda vá lá...<br />

EDUARDO - A classe média está baixando <strong>de</strong> padrão, proletarizou-se.<br />

Foi o que lhe valeu o pacto com o sistema!<br />

DORA - Você vai morrer <strong>de</strong> cirrose e o sistema 'tá se lixando. Vem<br />

jantar, vem.<br />

EDUARDO - Não estou com fome.<br />

DORA - Você nunca está com fome. Bebendo <strong>de</strong>sse jeito...<br />

11


ENTRA A MÃE.<br />

MÃE - A farinha <strong>de</strong> trigo estava com bichos. Tive que passar<br />

farinha bichada no seu tio.<br />

DORA - Melhor, assim aproveitou a farinha. Já não ia servir pra<br />

fazer bolo. Venha jantar.<br />

MÃE - Não estou com fome.<br />

DORA` - Não po<strong>de</strong> estar. Você come o dia inteiro!<br />

MÃE - Só comi uns biscoitos.<br />

DORA - A lata <strong>de</strong> biscoitos!<br />

MÃE - (TRÁGICA) Você me nega biscoitos? A mim que<br />

sacrifiquei a vida por você? Como é triste envelhecer!<br />

EDUARDO - (JÁ MEIO BEBADO) Chantagem emocional! Neurose da<br />

família e alimento da tragédia melodramática pequeno burguesa!<br />

DORA - (CONFUSA) Mãe, não se trata disso. Só quero que você se<br />

alimente melhor. Eduardo, vem jantar, larga esse jornal.<br />

EDUARDO VAI PRA MESA LEVANDO JORNAL E COPO.<br />

MÃE - Dora, você <strong>de</strong>via convencer seu marido a <strong>de</strong>ixar a bebida.<br />

Seu pai não tinha vícios. Um chefe <strong>de</strong> família <strong>de</strong>ve ter um comportamento<br />

exemplar.<br />

DORA - Não adianta, ele quer beber!<br />

MÃE - Minha filha, com jeito uma mulher consegue tudo <strong>de</strong> um<br />

homem...<br />

DORA - Não me venha com essas suas teorias <strong>de</strong> mulher aranha.<br />

Deixe o meu marido em paz. (VIOLENTA) Pare <strong>de</strong> beber, Eduardo, e coma.<br />

(BOTA COMIDA NO PRATO DELE) E larga esse jornal. Já fica às voltas com<br />

jornal o dia inteiro...<br />

MÃE - Bem que eu te disse! Se você tivesse se casado com<br />

um médico ou com um engenheiro... Não soube se dar valor...<br />

DORA - Chega, mãe, chega.<br />

MÃE - Estou apenas dizendo que seu marido é um fracasso. É a<br />

pura verda<strong>de</strong>!<br />

DORA - (NÃO MUITO CONVICTA) Não é verda<strong>de</strong>.<br />

MÃE - É. O homem vale o quanto ganha.<br />

DORA - (CONFUSA) Não é verda<strong>de</strong>. Ele é um gran<strong>de</strong> jornalista, só<br />

que não está sendo valorizado. (COM RAIVA) Eduardo, olha o teu pijama. Já<br />

cansei <strong>de</strong> costurar os rasgões, o tecido tá se <strong>de</strong>smanchando. Isso é pijama <strong>de</strong> um<br />

jornalista?<br />

MÃE - P'ro salário que ele ganha, tá muito bom!<br />

12


DORA - Pare <strong>de</strong> agredir o meu marido. Sou eu que estou sem<br />

emprego, não ele.<br />

MÃE - Você não precisaria ter emprego se o chefe da família não<br />

fosse um bunda mole.<br />

DORA - (FEROZ) Saia daqui, saia!<br />

MÃE - Ainda não acabei <strong>de</strong> comer.<br />

DORA - Já comeu o bastante. Saia!<br />

MÃE - (TRÁGICA) Você não tem pena da sua pobre mãe que está<br />

morrendo!<br />

DORA - Mentira! Você não morre nunca.<br />

A MÃE SAI.<br />

DORA - (PARA EDUARDO) Saia você também.<br />

ELE SAI DA MESA, DISTRAIDAMENTE, LEVANDO O JORNAL E O<br />

COPO. DORA CHORA BAIXINHO, ENQUANTO RETIRA OS PRATOS,<br />

LAVA A LOUÇA, ETC. POR ALGUNS SEGUNDOS, SÓ SE OUVE A ÁGUA<br />

CAINDO DA BICA.<br />

DORA - Você já pagou a pensão dos teus filhos este mês?<br />

EDUARDO - (VOZ BEBADA) Não.<br />

DORA - Não sei porque você fez esses filhos... nem gosta <strong>de</strong><br />

criança!... (ESPERA UMA REAÇÃO QUE NÃO VEM) Também não sei como<br />

fez esses crianças, trepando uma vez por ano... Só muita coincidência e<br />

pontaria... (ESPERA NOVAMENTE) Também não sei pra que se casou <strong>de</strong><br />

novo... não liga pra mulher... Foi só pra ter uma idiota pra te cuidar, fazer tua<br />

comida, passar tua roupa, cuidar dos teus porres... Eduardo, você está me<br />

ouvindo?<br />

ELE GRUNHE.<br />

DORA - Quando que você vai crescer e virar homem? Tô <strong>de</strong> saco<br />

cheio da tua inutilida<strong>de</strong>. É muito fácil sonhar com a alvorada dos povos quando<br />

se tem em casa uma imbecil pra segurar as barras do dia a dia. (ESPERA UMA<br />

REAÇÃO) Tá cheio <strong>de</strong> idéias revolucionárias, mas é um machão como outro<br />

qualquer, não me ajuda em nada. Porra, eu não aguento falar sozinha o tempo<br />

todo! Você é um morto-vivo! Merda, merda, merda!<br />

EDUARDO CONTINUA IMPASSÍVEL.<br />

DORA - (FRAGILIZADA) Eduardo... <strong>de</strong>sculpe. (ESPERA) Diga<br />

alguma coisa. Quer um pouco <strong>de</strong> gelo?<br />

13


ELE NÃO RESPONDE. ELA VAI ATÉ ELE. VÊ QUE ELE ESTÁ IMÓVEL,<br />

O OLHAR PERDIDO NO VAZIO.<br />

DORA - (ANGUSTIADA) Eduardo... você está me vendo?<br />

(ESPERA. DESESPERA-SE) Eduardo, on<strong>de</strong> está você? Diga alguma coisa.<br />

Desculpe, eu não quis te ofen<strong>de</strong>r... pelo amor <strong>de</strong> Deus, me olha! (AGARRA-SE<br />

A ELE) Duda, meu amor, não fica assim longe <strong>de</strong> mim, eu não suporto, eu tenho<br />

medo, eu morro <strong>de</strong> medo... Duda, você tem razão, eu sou uma alienada.<br />

(SACODE-O) Briga comigo, me xinga...<br />

EDUARDO - Estou bebado.<br />

DORA - Não faz mal. Olha pra mim, me diz alguma coisa, diz que<br />

você está comigo... Então faz um discurso político, fala do materialismo<br />

dialético... Então, fala: sou um dos maiores jornalistas <strong>de</strong>ssa merda <strong>de</strong> país!<br />

Então, conta o sequestro do embaixador...<br />

EDUARDO - Pára com isso. (EMPURRA-A)<br />

DORA - Você ainda me ama?<br />

EDUARDO - Me larga. (EMPURRA-A BRUTALMENTE. ELA CAI)<br />

Vou vomitar. (SAI CAMBALEANDO)<br />

OUVE-SE O BARULHO DO VÔMITO.<br />

CENA 3 - NO PREGO<br />

O FUNCIONÁRIO ESTÁ NO GUICHÊ. TEM OLHEIRAS PROFUNDAS,<br />

GESTOS LENTOS, ESTÁ MAIS DÉBIL, A VOZ MAIS FRACA E<br />

MONÓTONA. PARECE QUE FOI AFIXADO NAQUELE GUICHÊ. O<br />

CALOR É SUFOCANTE. ELE TRABALHA E OUVE VOZES.<br />

FUNCIONÁRIO - (FALA E ESCREVE) Um par <strong>de</strong> alianças <strong>de</strong> casamento,<br />

com os nomes Pedro e Salete gravados. (PESA AS ALIANÇAS) Tirando juros e<br />

comissões...<br />

V O Z 1 - (COM UM GEMIDO UTERINO) Desgraçado! Que<br />

a tua mulher te meta um par <strong>de</strong> chifres! Que o teu filho seja morto pela polícia!<br />

Que o teu rabo arda <strong>de</strong> hemorrói<strong>das</strong>! Que...<br />

ELE BALANÇA A CABEÇA E ENXUGA O SUOR DO ROSTO.<br />

FUNCIONÁRIO - (FALA E ESCREVE) Relógio <strong>de</strong> pulso, marca "Seiko",<br />

com <strong>de</strong>feito, dourado, redondo, corrente <strong>de</strong> plástico imitando couro. Tirando os<br />

juros e comissões...<br />

14


V O Z 2 - Que um câncer te coma os intestinos!<br />

ELE TAMPA OS OUVIDOS E VOLTA A ESCREVER.<br />

FUNCIONÁRIO - Um cordão <strong>de</strong> ouro, fininho, com uma medalha <strong>de</strong> Nossa<br />

Senhora Aparecida. A medalha é oca. Tirando...<br />

V O Z 3 - (DESESPERADA) Espera, <strong>de</strong>ixa eu beijar a minha<br />

santinha pela última vez...<br />

O FUNCIONÁRIO ENXUGA O SUOR DO ROSTO. PEGA UM PEQUENO<br />

EMBRULHO. DEMORA A DECIFRAR O SEU CONTEÚDO. JOGA O<br />

OBJETO SOBRE A BALANÇA COM NOJO.<br />

FUNCIONÁRIO - Obturação <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> um <strong>de</strong>nte humano, provavelmente<br />

um canino. Tirando... (A VOZ FALTA. ELE DESMAIA COM A CARA NO<br />

PRATO DA BALANÇA)<br />

CENA 4 - CASA DE DORA<br />

DORA ESTÁ À FRENTE DE UM ESPELHO IMAGINÁRIO, QUE PODE SER<br />

O PRÓPRIO PÚBLICO. OLHA-SE DE VÁRIOS ÂNGULOS.<br />

APROXIMA-SE.<br />

DORA - Deixa eu te ver mais <strong>de</strong> perto, Dora. Será que você está<br />

mesmo ficando velha e não tinha percebido?!... Você se levantava tão bem<br />

dispostas to<strong>das</strong> as manhãs! ... trabalhava o dia inteiro! ... À noite, a tua pele era<br />

quente, tinha brilho... (SORRI, MALICIOSA E COQUETE) ... até ressuscitava<br />

um marido inútil para o ofício... Quantas vezes, Eduardo te possuiu sem saber!<br />

(RI) A tua febre ressuscitava um pau bebado... (RI MAIS, UM RISO<br />

NERVOSO) Um pau bebado, expelindo vodca! Um pau bebado... Tenho o útero<br />

cheio <strong>de</strong> vodca! (PÁRA DE RIR DE REPENTE. OLHA-SE NOVAMENTE DE<br />

PERTO NO ESPELHO IMAGINÁRIO) Mas agora, Dora, você está ficando<br />

velha... já nem querem te dar emprego! "Desculpe, mas a senhora já ultrapassou<br />

o limida da ida<strong>de</strong>..." Aí eu me senti velha, assim, <strong>de</strong> repente!... Bem, até a<br />

Brigitte Bardot ficou velha! Será que ela percebeu isto antes dos patrões?<br />

A MÃE ENTRA. VEM DO INTERIOR DA CASA, NO SEU ANDAR DE<br />

MORTA-VIVA.<br />

MÃE - Dora, você está aí?<br />

DORA - Parece que sim, mãe.<br />

15


MÃE - Tempo maldito! Há três dias que o seu tio não toma sol!<br />

DORA - Deve estar fe<strong>de</strong>ndo.<br />

MÃE - Mentira. Ele foi um homem ilustre.<br />

DORA - Os tempos mudaram.<br />

MÃE - Tempos malditos!<br />

DORA - Esquente-o com o meu secador <strong>de</strong> cabelo.<br />

MÃE - É um <strong>de</strong>srespeito para com um homem ilustre.<br />

DORA - Pois bote ele ao lado do fogão. (NT) Mãe, eu estou ficando<br />

velha?<br />

MÃE - Você é uma mulher <strong>de</strong> meia ida<strong>de</strong>. (SAI)<br />

DORA - O que vem a ser isso? Mãe, e uma mulher <strong>de</strong> meia ida<strong>de</strong><br />

não po<strong>de</strong> trabalhar, ser feliz, viver, como qualquer outra? Me sinto tão bem!<br />

(OLHA-SE NOVAMENTE NO ESPELHO IMAGINÁRIO) É, estou muito bem.<br />

Dora, você está ótima! Pena que os patrões não pensem o mesmo... (DÁ DE<br />

OMBROS)<br />

ENTRA HELENA, A PRIMEIRA MULHER DE EDUARDO.<br />

HELENA - Desculpe, a porta estava aberta...<br />

DORA - No teatro a porta sempre está aberta. É pena que nem<br />

sempre as pessoas entrem... Quantos anos você tem?<br />

HELENA - Não vim aqui pra lhe dizer a minha ida<strong>de</strong>.<br />

DORA - Já sei. Eduardo não pagou a pensão dos teus filhos.<br />

HELENA - Dos nossos, meus e <strong>de</strong>le.<br />

DORA - Meus é que não são.<br />

HELENA - É, ele não quis ter filhos com você. Não sei porque...<br />

DORA - Eu que não quis. Aliás, não quero. Não vou me arriscar a<br />

ter filhos aleijados ou <strong>de</strong>mentes. Ou você não sabe que um pai alcoólatra...<br />

HELENA - Os meus filhos são perfeitos!<br />

DORA - A <strong>de</strong>mência muitas vezes só se manifesta na ida<strong>de</strong> adulta.<br />

As taras também...<br />

HELENA - Você o<strong>de</strong>ia os meus filhos.<br />

DORA - Impressão sua. Aceita uma bala? Leve essas pras crianças.<br />

HELENA - Obrigada. Não gosto que eles comam balas.<br />

DORA MASTIGA UMA BALA, ACENDE UM CIGARRO.<br />

HELENA` - Tenho telefonado todos os dias pro Eduardo. Ele manda<br />

dizer que não está. Nunca aceitei pensão <strong>de</strong>le. Tenho o meu emprego e não<br />

preciso <strong>de</strong> pensão <strong>de</strong> ex-marido, mas preciso que ele aju<strong>de</strong> a criar os filhos <strong>de</strong>le.<br />

DORA - Tem toda razão.<br />

HELENA - Por isso vim aqui.<br />

16


DORA - Mas eu não tenho nada com isso. Mês passado, tirei do meu<br />

dinheiro pra pagar o colégio dos teus filhos. Este mês não estou a fim. Aliás, nem<br />

que estivesse, não po<strong>de</strong>ria, estou <strong>de</strong>sempregada.<br />

HELENA - Problema <strong>de</strong> vocês.<br />

DORA - Nosso, infelizmente.<br />

HELENA - Não vou abrir mão <strong>de</strong>ssa pensão, nem que tenha que botar<br />

o Eduardo em cana.<br />

DORA - Bote. Umas férias na ca<strong>de</strong>ia não fariam mal ao Eduardo.<br />

Pelo menos, limparia o corpo da bebida...<br />

HELENA - Que tipo <strong>de</strong> mulher você é?<br />

DORA - Uma mulher que aguenta um bebado, que você não<br />

aguentou.<br />

HELENA - Ele não bebia tanto quando estava comigo.<br />

DORA - Não? Não mesmo? Então por que você o <strong>de</strong>ixou?<br />

HELENA - Não lhe interessa.<br />

APARECE A MÃE.<br />

MÃE - Dora, não se fala mal do marido pra pessoas estranhas.<br />

DORA - É a ex-mulher <strong>de</strong>le.<br />

MÃE - O marido agora é seu. Eu não queria esse casamento com<br />

homem <strong>de</strong>squitado, mas você quis. Deus te castigou.<br />

DORA - Desquitado não, divorciado.<br />

MÃE - É a mesma porcaria. Cadê o álcool do seu tio?<br />

A MÃE DESAPARECE.<br />

DORA - (CONFUSA, IRRITADA) Pare <strong>de</strong> me ouvir atrás <strong>das</strong><br />

portas, velha bisbilhoteira!<br />

MÃE - (DO INTERIOR) Dora, não pague pensão <strong>de</strong> filhos dos<br />

outros.<br />

DORA - Vá à merda. (METE UMA BALA NA BOCA,<br />

NERVOSA)<br />

HELENA - (SORRI COMPREENSIVA) Igualzinha à minha mãe.<br />

Parecem pari<strong>das</strong> pela mesma mãe!<br />

AS DUAS RIEM.<br />

HELENA - Você está mesmo <strong>de</strong>sempregada?<br />

DORA - Olha alí o monte <strong>de</strong> classificados. Todo dia olho e vou à<br />

luta...<br />

HELENA - Não conseguiu nada?<br />

17


DORA - Todos os empregos são pra moças <strong>de</strong> vinte e poucos anos.<br />

Eles não confiam em mulheres com mais <strong>de</strong> trinta...<br />

RIEM COM DEBOCHE E CUMPLICIDADE.<br />

DORA - Você tem um bom emprego, né? Ministério da Saú<strong>de</strong>?<br />

HELENA - Há 18 anos. Agora estou lotada no Instituto <strong>de</strong> Controle da<br />

Mortalida<strong>de</strong>.<br />

DORA - Não conhecia este!<br />

HELENA` - Pertence ao Ministério da Saú<strong>de</strong>. Foi criado recentemente.<br />

DORA - Ah!... Pra que?<br />

HELENA - Pra controlar a mortalida<strong>de</strong>, que aumentou muito nos<br />

últimos anos. Trabalho no Serviço <strong>de</strong> Prevenção ao Suicídio. Somos 40<br />

funcionários no SPS. Passamos o dia inteiro tentando convencer às pessoas a não<br />

se suicidarem.<br />

DORA - (PERPLEXA) É! Que interessante!<br />

HELENA - Interessante? É um inferno! Temos uma cartilha com 133<br />

argumentos. Nenhum convence. Eles se matam na cara da gente! Estouram os<br />

miolos na cara da gente!<br />

DORA - Que horror! E ninguém toma o revólver?<br />

HELENA - Não adianta. Se tomar o revólver, eles se jogam do 15º<br />

andar, se fechar a janela, eles bebem soda cáustica, não adianta. E a gente ainda<br />

tem que provi<strong>de</strong>nciar coroas <strong>de</strong> flores pra esse bando <strong>de</strong> irresponsáveis...<br />

DORA - E por que as famílias <strong>de</strong>les não fazem isso? Por que vocês?<br />

HELENA - Sei lá. Deve ser pra dizer que o Governo tem o maior<br />

carinho com os seus <strong>de</strong>funtos. É uma loucura. Vivo atrás dos fornecedores <strong>de</strong><br />

coroa <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto...<br />

DORA - Também uns irresponsáveis, imagino.<br />

HELENA - Não, coitados. É que não dão conta. É serviço <strong>de</strong>mais!...<br />

DORA - Espere. Você disse que os fornecedores não dão conta?<br />

Então quer dizer que tá faltando fornecedor?<br />

HELENA - Está.<br />

DORA DÁ UM PULO E ABRAÇA HELENA.<br />

DORA - Você acaba <strong>de</strong> me arrumar um trabalho! (GRITA) Mãe,<br />

arrumei um emprego. Vamos sair da merda. Vamos enriquecer, mãe!<br />

MÃE - (DO INTERIOR) Seu pai sempre teve essa mania, Dora.<br />

Morreu pobre.<br />

HELENA - (PERPLEXA) Que que você vai fazer?<br />

DORA - Coroas <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto. Vou ser sua fornecedora.<br />

HELENA - Não se meta nisso. Você vai enlouquecer. Não é só o<br />

Instituto, a freguesia é enorme...<br />

18


DORA - Tanto melhor. Helena, você me salvou da miséria!<br />

HELENA` - Não se meta nisso. Olha, tô te avisando, escuta, eu não te<br />

contei...<br />

MAS DORA JÁ NÃO A OUVE.<br />

DORA - Vou pagar a pensão dos teus filhos com o primeiro dinheiro<br />

que receber. Você merece. (DÁ-LHE UM BEIJO ESTALADO)<br />

HELENA - Dora, escuta...<br />

DORA - Vou começar a trabalhar agora. Aprendi a fazer flores <strong>de</strong><br />

pano quando era mocinha. Ainda sei.<br />

A MÃE REAPARECE.<br />

DORA - Mãe, vou precisar <strong>de</strong>ste seu vestido roxo, agora! (VAI<br />

DESABOTOANDO O VESTIDO DA MÃE)<br />

MÃE - Dora, você está louca! Pare com isso. Respeite sua mãe,<br />

filha ingrata! Só tenho este ...<br />

DORA - Vista o vestido que você herdou da sua mãe.<br />

MÃE - As traças comeram a meta<strong>de</strong>. Dora, não me dispa na frente<br />

<strong>de</strong> estranhos. Saia, moça, saia.<br />

HELENA, QUE ESTAVA PETRIFICADA, SAI CORRENDO.<br />

MÃE - Dora, você já arrancou as minhas jóias... agora...<br />

DORA - Mãe, vou ganhar muito dinheiro. Vou tirar suas jóias do<br />

prego. Vou lhe dar quantos vestidos roxos você quiser. Mas, agora, preciso <strong>de</strong>ste.<br />

ACABA DE ARRANCAR O VESTIDO DA MÃE. A MÃE ESTÁ AGORA DE<br />

COMBINAÇÃO DE ALÇAS LARGAS. SAI CORRENDO PROS FUNDOS<br />

DA CASA. DORA COMEÇA A TRABALHAR.<br />

EDUARDO ENTRA BEBADO, CANTANDO A INTERNACIONAL<br />

COMUNISTA.<br />

CENA 5 - NO PREGO<br />

O FUNCIONÁRIO TEM OLHEIRAS PROFUNDAS, COR ARROXEADA E<br />

OS CABELOS EM PÉ. ESTÁ IMOBILIZADO PELO PÂNICO. HÁ APENAS<br />

QUATRO CLIENTES EM CENA, MAS O RUÍDO É DE MULTIDÃO<br />

DEVORADORA. CADA UM DOS CLIENTES CARREGA UM OBJETO,<br />

QUE VAI DO SIMPLES LIQUIDIFICADOR À PEÇA MAIS ESTRANHA. OS<br />

19


CLIENTES NÃO TÊM IDENTIDADE COMO NA CENA 1. ELES FAZEM<br />

PARTE DE UMA MASSA CARENTE, PERDIDA, DESESPERADA.<br />

CLIENTE 1 - Abre logo essa merda! (DÁ UM SAFANÃO PARA UM<br />

LADO) Se me empurrar <strong>de</strong> novo, meto-lhe um tiro na cara.<br />

CLIENTE 2 - Moço, <strong>de</strong>ixei o meu filho <strong>de</strong> dois anos trancado no<br />

apartamento. Não posso esperar mais.<br />

CLIENTE 3 - Isso é uma falta <strong>de</strong> respeito. Vou esperar mais cinco<br />

minutos, se não abir essa joça, vou meter o pé...<br />

CLIENTE 2 - Ai, meu pé!<br />

FUNCIONÁRIO - Por favor, não empurrem. Façam fila, por favor. Or<strong>de</strong>m é<br />

progresso. Sem or<strong>de</strong>m não po<strong>de</strong> haver progresso. Por favor...<br />

CLIENTE 1 - Or<strong>de</strong>m coisa nenhuma, seu rato <strong>de</strong> gaveta.<br />

CLIENTE 4 - Fica aí bem sentado e a gente aqui mofando...<br />

CLIENTE 2 - Estamos aqui há três horas...<br />

FUNCIONÁRIO - Não tenho culpa. Sou apenas um funcionário da casa. Estou<br />

esperando or<strong>de</strong>m superior.<br />

CLIENTE 3 - Or<strong>de</strong>m superior, o cacete! Abre essa porra que eu quero<br />

entrar. Vou falar com o chefe. Quero falar com o dono dos porcos.<br />

FUNCIONÁRIO - Impossível. É proibida a entrada <strong>de</strong> pessoas estranhas.<br />

CLIENTE 1 - E há tipo mais estranho do que tu com essa cara <strong>de</strong> fuinha?<br />

CLIENTE 3 - Com quem tu pensa que tá falando, hein, ô meu?<br />

CLIENTE 1 - Isso mesmo. Vou entrar e tu vai se arrepen<strong>de</strong>r se me<br />

impedir...<br />

FUNCIONÁRIO - Por favor. Cumpro or<strong>de</strong>ns...<br />

CLIENTE 4 - O senhor vai se dar mal, vou ligar pro meu tio general.<br />

CLIENTE 3 - Vamos <strong>de</strong>rrubar essa merda, agora!<br />

EMPURRAM O GUICHÊ.<br />

V O Z E S - Derruba! Derruba! Derruba!<br />

TELEFONISTA - (OFF) Chamada urgente. É da <strong>Casa</strong> <strong>de</strong> Penhores. Urgente.<br />

Urgentíssimo. Há ameaça <strong>de</strong> saque e linchamento.<br />

V O Z E S - Lincha, lincha, lincha!<br />

LUZ SÓ SOBRE OS DOIS HOMENS EM CENA, QUE, DE COSTAS,<br />

FALAM AO TELEFONE.<br />

GERENTE - Excelência, <strong>de</strong>sculpe interromper o seu sono...<br />

EXCELÊNCIA - Não <strong>de</strong>sculpo. Vou <strong>de</strong>mití-lo, seu incompetente.<br />

GERENTE - Pelo amor <strong>de</strong> sua veneranda mãe, Excelência, <strong>de</strong>ixe-me<br />

explicar. A situação é calamitosa. A malta ameaça <strong>de</strong>rrubar a <strong>Casa</strong> <strong>de</strong> Penhores e<br />

nos linchar.<br />

20


V O Z E S - Filho da puta, filho da puta, filho da puta!<br />

GERENTE - E xingam a sua veneranda mãe!<br />

EXCELÊNCIA - Bando <strong>de</strong> ba<strong>de</strong>rneiros, escroques, espúrios. Chame a<br />

Polícia.<br />

GERENTE - Já chamei. Não há um policial disponível. A polícia está<br />

atrás dos assaltantes.<br />

EXCELÊNCIA - Pois chame o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, imbecil.<br />

GERENTE - Estão nos morros! Excelência, se me permite, acho que<br />

po<strong>de</strong>remos resolver a situação <strong>de</strong>mocraticamente...<br />

EXCELÊNCIA - Se disser uma asneira...<br />

GERENTE - Talvez, se S.Excia. permitir, se aceitássemos os objetos que<br />

eles querem empenhar...<br />

EXCELÊNCIA - São <strong>de</strong> ouro?<br />

GERENTE - Não, quem ainda tem jóia é porque não precisa empenhar<br />

nada...<br />

EXCELÊNCIA - São valiosos, pelo menos?<br />

GERENTE - Alguns poucos. A maioria é utensílio doméstico,<br />

buginganga...<br />

EXCELÊNCIA - Buginganga? E o senhor está me propondo encher a <strong>Casa</strong><br />

<strong>de</strong> Penhores com bugingangas?<br />

GERENTE - É o que eles têm, Excelência. E, se não aceitarmos, vamos<br />

ter que fechar a casa...<br />

EXCELÊNCIA - Miseráveis! Povinho preguiçoso!<br />

V O Z E S - Derruba, lincha! Filho da puta!<br />

EXCELÊNCIA - Mas como calcular o valor <strong>de</strong>ssas porcarias?<br />

GERENTE - Não há como calcular, são muito diversificados. Daremos<br />

alguns trocados e eles ficarão satisfeitos. Depois, reven<strong>de</strong>remos tudo para as<br />

fábricas. Não será um mau negócio...<br />

EXCELÊNCIA - Bem pensado, bem pensado...<br />

FAZ-SE SILÊNCIO DO OUTRO LADO DA LINHA.<br />

V O Z E S - Lincha!<br />

GERENTE - Excelência, responda, nossas vi<strong>das</strong> estão em perigo...<br />

EXCELÊNCIA - Se o estupro é inevitável, relaxe...<br />

GERENTE - Perfeitamente, Excelência.<br />

VOLTA A LUZ GERAL. OS CLIENTES ESTÃO SUBINDO PELO GUICHÊ<br />

E O FUNCIONÁRIO AGACHOU-SE DO OUTRO LADO.<br />

FUNCIONÁRIO - Vou abrir o guichê agora... por favor, afastem-se... or<strong>de</strong>m,<br />

sem or<strong>de</strong>m não há progresso...<br />

21


ELES DESCEM DO GUICHÊ, MAS CONTINUAM AMEAÇADORAMENTE<br />

AMONTOADOS.<br />

FUNCIONÁRIO - (A VOZ VAI-SE APAGANDO E A LUZ MORRENDO)<br />

Por favor, façam fila... colaborem... pelo amor <strong>de</strong> Deus, da pátria, da família, da<br />

<strong>de</strong>mocracia, da cidadania...(FOCO SÓ SOBRE O FUNCIONÁRIO, AGORA<br />

FALANDO E ESCREVENDO) Bate<strong>de</strong>ira elétrica, marca apagada, mo<strong>de</strong>lo 1964,<br />

cor azul...<br />

O FUNCIONÁRIO CONTINUA TRABALHANDO MAS JÁ NÃO SE OUVE<br />

SUA VOZ.<br />

CENA 6 - CASA DE DORA<br />

DORA TRABALHA AVIDAMENTE, CONSUMINDO BALAS E<br />

CIGARROS. A MÃE ESTÁ DEITADA NO SOFÁ E TEM METADE DO<br />

VESTIDO COMIDO PELAS TRAÇAS. GEME. POR CIMA DELA E EM<br />

OUTROS CANTOS DA CASA, HÁ COROAS DE DEFUNTO.<br />

MÃE - (TRÁGICA) O que será do seu tio sem mim!? O que será<br />

<strong>de</strong> você sem a sua mãe!!!???<br />

DORA - Eu me viro, não se preocupe.<br />

MÃE - Filha ingrata! Quer-se ver livre da pobre mãe doente!<br />

DORA - Não enche o saco, mãe. Tenho muito o que fazer. Que que<br />

você acha d'eu botar esta flor vermelha aqui no meio?<br />

MÃE - É falta <strong>de</strong> respeito para com os mortos. Vermelho é cor <strong>de</strong><br />

prostíbulo e <strong>de</strong> comunista.<br />

DORA - (RI) Besteira. Lembra quando a Carmem Miranda morreu?<br />

Veio lá dos States com a cara toda maquilada, a boca vermelho-sangue, nem<br />

parecia <strong>de</strong>funda...<br />

MÃE - Coisa <strong>de</strong> protestante, coisa do diabo.<br />

DORA - Ora, mãe, protestante também é cristão.<br />

MÃE - (ENÉRGICA) Quem te ensinou isso, menina?<br />

DORA - O Papa!<br />

MÃE - Já não se fazem papas como antigamente!<br />

DORA - (DÁ UMA RISADA) Você quer ser mais realista que o rei.<br />

Cristo tinha um manto vermelho.<br />

MÃE - E sofreu muito.<br />

DORA - Tudo bem, mas vou ter que botar esta flor vermelha aqui.<br />

As roxas acabaram.<br />

22


MÃE - Dora, estou ficando dura!<br />

DORA - É nervoso, mãe, relaxe. (DISTRAIDAMENTE, JOGA<br />

SOBRE A MÃE A COROA QUE ACABOU DE FAZER)<br />

MÃE - O meu joelho direito já não se mexe.<br />

DORA - Falta <strong>de</strong> ginástica. Você nunca fez ginástica! Vou tirar um<br />

pedacinho do seu vestido pra adiantar o serviço...<br />

MÃE - Não, eu te suplico, filha! Sua mãe está moribunda, sua mãe<br />

está morrendo...<br />

DORA - (CORTA UM PEDAÇO DO VESTIDO) Se está morrendo,<br />

não vai precisar mais do vestido. Pare com esta encenação, mãe.<br />

MÃE - (TRÁGICA) Filha <strong>de</strong>snaturada! Desgraçado do meu útero<br />

que gerou tamanho monstro! Que o braço <strong>de</strong> Deus se encarregue da minha<br />

vingança, amaldiçoando toda a tua <strong>de</strong>scendência!<br />

DORA - Não tenho <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, mas isola! (BATE TRÊS VESES<br />

NA MESA), que praga <strong>de</strong> mãe é pior que bula <strong>de</strong> excomunhão papal!<br />

MÃE - Dora, o outro joelho endureceu!<br />

DORA - Tomara que endureça logo a língua. Só assim você pára <strong>de</strong><br />

falar. Devia era estar aqui me ajudando. Você não po<strong>de</strong> ver trabalho que quer<br />

logo morrer.<br />

MÃE - (GEME) Agora foram os intestinos que pararam. A morte<br />

está vindo <strong>de</strong> baixo para cima. (TRÁGICA) Ai <strong>de</strong> mim!<br />

A CAMPAINHA TOCA.<br />

DORA - (GRITA) A porta está aberta!<br />

ENTRA UM MENSAGEIRO.<br />

MENSAGEIRO - Sou do Serviço <strong>de</strong> Proteção às Vítimas <strong>das</strong> Enchentes.<br />

DORA - Pois não.<br />

MENSAGEIRO - Quero encomendar cinco coroas.<br />

DORA - Só? Só morreram cinco pessoas na última enchente? Não<br />

acredito!<br />

MENSAGEIRO - (PROFISSIONAL) Calculamos em cinco mil o número <strong>de</strong><br />

mortos!<br />

DORA - Uma coroa pra cada mil <strong>de</strong>funtos? Que miséria!<br />

MENSAGEIRO - (PROFISSIONAL) Como não foi possível i<strong>de</strong>ntificar os<br />

mortos, nosso Chefe <strong>de</strong>terminou que fosse erguido um monumento ao Afogado<br />

Desconhecido. As coroas <strong>de</strong>stinam-se à inauguração <strong>de</strong>sse monumento. Aqui<br />

está o pedido oficial. Quando po<strong>de</strong>rei vir buscar as coroas?<br />

DORA - Tem urgência?<br />

MENSAGEIRO - Muita urgência.<br />

DORA - Dentro <strong>de</strong> 48 horas.<br />

23


MÃE - Dora, não assuma comprimisso que você não possa<br />

cumprir.<br />

DORA - Não se meta, mãe.(AO MENSAGEIRO) Em 72 horas, é<br />

mais certo.<br />

MENSAGEIRO - Por favor, assine a segunda via do pedido. Aqui, no<br />

"ciente".<br />

DORA ASSINA E O MENSAGEIRO VAI SAINDO.<br />

DORA - O senhor não vai <strong>de</strong>ixar um sinal?<br />

MENSAGEIRO - Que que a senhora disse?<br />

DORA - Um sinal em dinheiro. Preciso comprar material.<br />

MENSAGEIRO - (SUPERIOR) No Serviço Público, não pagamos nada a<br />

dinheiro. Pagamos com or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> pagamento. A senhora receberá uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

pagamento por ocasião da entrega da mercadoria.(SAI)<br />

DORA - Hum, ainda não é chefete e já tem pose <strong>de</strong> diretor! Or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> pagamento! Não estou gostando <strong>de</strong>ssa história! O Instituto <strong>de</strong> Controle da<br />

Mortalida<strong>de</strong> também vai pagar com or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> pagamento. Encomendou vinte<br />

coroas para os suici<strong>das</strong> <strong>de</strong> amanhã.<br />

MÃE - De ontem.<br />

DORA - De amanhã. Fui eu que recebí a encomenda!<br />

MÃE - De ontem. Como que eles vão adivinhar os suici<strong>das</strong> <strong>de</strong><br />

amanhã?<br />

DORA - Ah, eles fazem estatística! Cada dia da semana ou do mês,<br />

não sei muito bem, tem um <strong>de</strong>terminado número <strong>de</strong> suici<strong>das</strong>. A Helena me disse<br />

que eles, quando erram, erram por pouco. Diz-que fim <strong>de</strong> mês nunca tem menos<br />

<strong>de</strong> cem suicídios, <strong>de</strong>clarados!<br />

MÃE - Os homens estão esquecidos <strong>de</strong> Deus, minha filha! Até os<br />

padres - que Deus me perdoe! Ai, Dora, a morte chegou no fígado! Ai, ai, ai <strong>de</strong><br />

mim!<br />

DORA - (RINDO) Você é uma personagem <strong>de</strong> tragédia grega!<br />

MÃE - A minha vida sempre foi uma tragédia, uma luta!<br />

(SUSPIRA)<br />

DORA - Ora, mãe, você nunca fez porra nenhuma nessa vida!<br />

MÃE - E criar você? Você pensa que não <strong>de</strong>u trabalho? Eu queria<br />

que você tivesse um filho pra ver como sofre uma pobre mãe! Dora, minha<br />

filhinha, o que será <strong>de</strong> você sem a sua mãe?!!!<br />

DORA - Tenho mais <strong>de</strong> quarenta aninhos, mãe!<br />

O TELEFONE TOCA.<br />

DORA - (AO TELEFONE) Alô... é sim, po<strong>de</strong> falar... Fábrica <strong>de</strong><br />

que?... Sim, sei, sei... 34 coroas para amanhã? Impossível, meu senhor,<br />

encomenda assim gran<strong>de</strong> tem que ser feita com antecedência... Não, não estou<br />

24


incando. Hoje em dia se po<strong>de</strong> prever essas coisas, é a tecnologia. O senhor sabe<br />

que <strong>de</strong> vez em quando há escapamentos <strong>de</strong> gases na sua fábrica. Então verifique<br />

a constância <strong>de</strong>sses escapamentos, faça uma estatística do número <strong>de</strong> mortos e<br />

po<strong>de</strong>rá ter uma previsão. Se no mês que vem, por exemplo, <strong>de</strong>verão morrer mais<br />

uns trinta e poucos, faça a encomenda agora. Se faltar uma ou duas coroas... O<br />

que? Vá você, seu... (BATE O TELEFONE) Covar<strong>de</strong>, xinga e <strong>de</strong>sliga. (RI) Me<br />

mandou à puta que pariu, mãe.<br />

A MÃE NÃO REAJE. DORA ESTRANHA AQUELE SILÊNCIO.<br />

DORA - O cara lhe xingou, mãe.(A MÃE NOVAMENTE NÃO<br />

RESPONDE) Mãe?... (CORRE ATÉ ELA) Mãe!... (GRITA) Mãe...<br />

(SACODE-A) Mãe, não faça isso, não brinque com isso... Mãããeeee, não faça<br />

isso comigo, não morra, eu não posso viver sem você... Minha mãezinha...<br />

MÃE - (ABRE OS OLHOS) Estou morrendo, filha...<br />

DORA - (BERRANDO) Não, mãe, reaja, reaja, minha mãezinha...<br />

MÃE - Traga o seu tio...<br />

DORA - Não, você não vai morrer, você não po<strong>de</strong> morrer...<br />

MÃE - Traga, quero me <strong>de</strong>spedir <strong>de</strong>le...<br />

DORA - (SE DESCABELANDO) Não, não, nãããooo, isso não po<strong>de</strong><br />

estar acontecendo comigo... minha mãezinha, minha santa mãezinha...<br />

MÃE - Dora, acalme-se. Morrer não é ruim... mas não esqueça a<br />

sua mãe...<br />

DORA - Eu nunca te esquecerei, nunca. Juro.<br />

MÃE - Agora traga o seu tio. Você promete que cuidará <strong>de</strong>le como<br />

eu cui<strong>de</strong>i?<br />

DORA - Prometo.<br />

MÃE - Jure.<br />

DORA - Juro.<br />

MÃE - Vá buscar o seu tio. Depressa!<br />

DORA - Vou, mas não morra agora, espere eu voltar...<br />

MÃE - Eu espero, vá...<br />

EM PRANTOS, DORA SAI CORRENDO E VOLTA ABRAÇADA AO TIO,<br />

QUE É UM ESQUELETO. A MÃE BEIJA A CAVEIRA DO TIO,<br />

ENQUANTO DORA A PRANTEIA DESESPERADAMENTE. A CENA<br />

DEVERÁ TERMINAR COM UM FOCO DE LUZ BRANCA SOBRE AS<br />

PERSONAGENS ESTÁTICAS.<br />

FIM DO 1º ATO<br />

25


CENA 7 - CASA DE DORA<br />

2º ATO<br />

A MÃE DEFUNTA, NO CAIXÃO, IMÓVEL, MAS DE OLHOS MUITO<br />

ABERTOS, VIGILANTES. O TIO, PENDURADO NUM CABIDE, PRÓXIMO<br />

AO CAIXÃO. COROAS DE FLORES DE TECIDOS DE PADRONAGENS<br />

DIVERSAS, COLORIDÍSSIMAS, ESPALHADAS PELA CASA.<br />

PENUMBRA. CHOVE. SOPRA UM VENTO FORTE, SIBILANTE.<br />

RIBOMBAM TROVÕES E OS RAIOS JOGAM FLASHES DE LUZ SOBRE A<br />

MÃE E O TIO, ATRAVÉS DA JANELA.<br />

RUÍDOS DE CARROS, BUZINAS, VINDOS DE FORA.<br />

A PORTA SE ABRE, IMPULSIONADA PELO VENTO, E ENTRA UMA<br />

FIGURA DE CAPA PRETA, CORRENDO. A MÃE SE ASSUSTA O TIO SE<br />

TREME TODO.<br />

MÃE - Afasta-te, Satanás!<br />

DORA DÁ UMA GARGALHADA E RETIRA A CAPA COM UM GESTO<br />

RÁPIDO.<br />

LUZES. ELA ESTÁ DE VESTIDO VERMELHO, RADIANTE.<br />

DORA - Já chegou no inferno, mãe?<br />

MÃE - Dora?!<br />

DORA - O mundo <strong>de</strong>saba com Satanás na dianteira! (CORRE,<br />

FECHA A JANELA E A PORTA) Gostou da capa? Roubei <strong>de</strong> um padreco.<br />

Coitado do padreco, saiu correndo atrás <strong>de</strong> mim, tropeçou na batina e caiu <strong>de</strong><br />

cara na lama. (RI)<br />

MÃE - Você parece uma prostituta!<br />

DORA - Estou loucamente feliz! (RODOPIA) Vou ficar rica e já<br />

não tenho você pra me encher o saco... quer dizer, em parte. Ai!, tenho vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sair por aí abraçando todo mundo e gritando: a vida é linda!, linda! Me<br />

tomem, me apertem, me comam! Ai, esse cheiro <strong>de</strong> terra molhada me faz tremer<br />

<strong>de</strong> tesão! (CANTA UMA MÚSICA SENSUAL)<br />

MÃE - Filha ingrata, não botou um dia <strong>de</strong> luto pela morte da pobre<br />

mãe!<br />

DORA - Ai, se eu tivesse um marido tesudo, eu ia comemorar dando<br />

pra ele alí fora, na chuva, gritando que nem gata no cio! Mas on<strong>de</strong> já se viu<br />

marido tesudo!...<br />

26


MÃE - Prostituta!<br />

DORA - Calma, Dora, calma. Agora é hora <strong>de</strong> trabalho. Você ainda<br />

não ficou rica. Não conte com o ovo no cu da galinha. (PEGA UM CADERNO,<br />

LÊ) Vinte coroas para o Ministério da Educação, vinte para o da Cultura -<br />

entrega em trinta dias. Quarenta coroas para o Ministério da Justiça - entrega em<br />

vinte dias... Ih, tá ruço! Ainda nem terminei as cinquenta do Ministério da<br />

Fazenda!<br />

ACENDE UM CIGARRO. COMEÇA A TRABALHAR.<br />

DORA - Vamos, mãos à obra, Dora. Você só conta com você<br />

mesma. Sua mãe, que era uma inútil, agora está imóvel. Seu marido, hum!, é um<br />

intelectual!<br />

CANTAROLA ALGO. SUSPENDE A COROA QUE ESTÁ<br />

CONFECCIONANDO, ADMIRA-A.<br />

DORA - Linda! Um barato! "Dona Dora, a senhora tem a ousadia<br />

dos gran<strong>de</strong>s artistas!", foi o que me disse o vizinho do 203. (RI) Mal sabe ele que<br />

lancei a moda <strong>das</strong> coroas estampa<strong>das</strong> por falta do roxo-liso no meu<br />

guarda-roupa! É, mas vou terminar ficando sem roupa se não começarem a me<br />

pagar! Meta<strong>de</strong> dos meus vestidos viraram flor <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto! Assim que entrar uma<br />

grana, vou mandar fazer uma etiqueta pra valorizar o produto: "Dora Confecções<br />

Moribun<strong>das</strong> Limitada"!<br />

TERMINA DE FAZER UMA COROA, COLOCA-A NO PESCOÇO,<br />

RODOPIA ALEGREMENTE. ARRUMA AS OUTRAS COROAS. ALGUMAS<br />

SOBRE O CAIXÃO DA MÃE.<br />

DORA - Mãe, vou dar um alô aqui no seu caixão. Não que você<br />

mereça, mas... (COLOCA UMA COROA COLORIDÍSSIMA<br />

EMOLDURANDO O ROSTO DA MÃE) Hum, já melhorou o visual!<br />

ENTRA EDUARDO, ENCHARCADO PELA CHUVA. DORA RODOPIA À<br />

SUA FRENTE, COQUETE, A COROA PENDURADA NO PESCOÇO.<br />

DORA - Que tal? Não é linda?<br />

EDUARDO - Um carnaval fúnebre!<br />

DORA - Você não tem senso <strong>de</strong> humor. Todo mundo está adorando<br />

as minhas coroas!<br />

EDUARDO - É, eles precisam <strong>de</strong> um pouco <strong>de</strong> cor pra fazerem <strong>de</strong> conta<br />

que estão vivos! (NT) Sai da minha frente. Me dá uma toalha.<br />

27


DORA - Pare <strong>de</strong> implicar com os meus fregueses. Ai <strong>de</strong> nós se não<br />

fossem eles! São pessoas ótimas!<br />

EDUARDO - Mortas!<br />

DORA - Não é verda<strong>de</strong>. Deix'eu te enxugar pra você não se gripar...<br />

Tira as cuecas também, meu bem...<br />

MÃE - Prostituta!<br />

DORA - Até o pau encharcou... e encolheu!<br />

OS DOIS RIEM. EDUARDO PROTEGE-SE COM A TOALHA.<br />

DORA - Será que ele ainda estica? (BOLINA-O)<br />

EDUARDO - Me <strong>de</strong>ixa, mulher, tô cansado.<br />

DORA - E ainda fala dos mortos! Quer uma birita pra se reanimar?<br />

Que pergunta!<br />

ELA TRAZ PRA ELE DOIS DEDOS DE VODCA.<br />

EDUARDO - Que miséria! (BEBE DE UM GOLE) Cadê a garrafa?<br />

DORA - Tá no finalzinho.<br />

EDUARDO - E o meu pijama?<br />

DORA - Qualé, Eduardo, tá pensando que sou tua babá? Não abusa,<br />

senão perco o bom humor.<br />

EDUARDO SAI DE CENA.<br />

EDUARDO - (OFF) Não acho o meu pijama. Vai ver que virou flor <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>funto!<br />

DORA - Se ele ainda tivesse cor!...<br />

EDUARDO VOLTA. DE PIJAMA E COM A GARRAFA DE VODCA.<br />

DORA - Assim que pintar uma grana, vou comprar um pijama pra<br />

você. Ai, estou exausta! Vou ter que contratar alguém pra me ajudar. Todo dia<br />

aumenta o número <strong>de</strong> encomen<strong>das</strong>. Já tem gente encomendando com três meses<br />

<strong>de</strong> antecedência.<br />

EDUARDO - Melhor negócio neste país, só supermercado!<br />

DORA - Você não leva a sério o meu trabalho. Por puro<br />

preconceito... Acha que estou compactuando com eles (FRISA O "ELES"). E<br />

daí? São eles que me dão trabalho e, bem ou mal, estão aí. Os outros, nem<br />

existem!...<br />

EDUARDO - (SEM TIRAR OS OLHOS DO JORNAL) Eles não<br />

<strong>de</strong>ixam!<br />

28


DORA - Estou <strong>de</strong> saco cheio <strong>de</strong> blá-blá-blá. Quero viver bem, sem<br />

sufoco <strong>de</strong> dinheiro, sem ficar contando tostões no fim do mês...Você, Eduardo...<br />

EDUARDO - Não sou eu que crio os impostos...<br />

DORA - Quero comer bem, me vestir bem, ter grana pra ir ao<br />

cinema, jantar fora...<br />

EDUARDO - ... pra comprar o carro do ano...<br />

DORA - É isso mesmo. É melhor do que ter um fusca <strong>de</strong> porta<br />

amarrada com barbante. Quero um carrão, zero quilômetro, a gasolina! Não há<br />

nenhum pecado em se viver bem, nem mesmo em ser rico. Duda, nós vamos<br />

po<strong>de</strong>r viajar, vamos po<strong>de</strong>r ir aos Estados Unidos, à Europa, à África! Ai, sou<br />

louca pra conhecer a África! (ESPERA. EDUARDO NÃO SE ENTUSIASMA.<br />

CHEIA DE INTENÇÕES) Duda, nós vamos po<strong>de</strong>r visitar os países da União<br />

Soviética!<br />

EDUARDO - Acabou.<br />

DORA - Os países?<br />

EDUARDO - A União.<br />

DORA - (RI. AMOROSA) Duda, meu amor, você precisa me<br />

ajudar. Preste atenção, só um minutinho. (TIRA O JORNAL DA MÃO DELE)<br />

Olha, daqui a pouco eu não vou conseguir mais dar conta <strong>de</strong>sse serviço sozinho.<br />

Vou ter que contratar uma, duas, três, sei lá quantas pessoas pra me ajudar na<br />

confecção...<br />

EDUARDO - Mal começou já tá querendo botar os outros pra trabalhar<br />

pra você, é?<br />

DORA - Espera, ouve. Não quero explorar ninguém, pelo contrário,<br />

vou abrir mercado <strong>de</strong> trabalho, melhorar a vida <strong>de</strong> algumas pessoas...<br />

EDUARDO - Apren<strong>de</strong>u rápido o discurso do patrão!<br />

DORA - Há patrões e patrões. Vou pagar muito bem aos meus<br />

operários. Eles vão ter até participação nos lucros. Gostou? Agora, presta<br />

atenção, pra po<strong>de</strong>r fazer esse negócio direitinho, respeitando todos os direitos do<br />

"povo injustiçado", eu preciso da tua ajuda.<br />

EDUARDO - Tá me gozando?<br />

DORA - Não!<br />

EDUARDO - Então corta essa que eu não entendo <strong>de</strong> coroa <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto.<br />

PEGA O JORNAL. DORA O TOMA NOVAMENTE.<br />

DORA - Espera. Não seja preconceituoso, é um negócio como outro<br />

qualquer! Mas eu não sei fazer negócio, preciso <strong>de</strong> alguém que dirija a fábrica.<br />

Um homem prático, dinâmico, capaz...<br />

EDUARDO - Erro <strong>de</strong> pessoa. Contrate outro.<br />

DORA - (ENÉRGICA) Você po<strong>de</strong> ser tudo isso, basta querer. Além<br />

do mais, a direção <strong>de</strong> um negócio a gente não entrega a qualquer um. É um<br />

29


absurdo que você entregue a outro a direção da fábrica. É dar atestado <strong>de</strong><br />

incompetência!<br />

EDUARDO - Não tenho nada com isso, o negócio é seu!<br />

DORA - Mas o homem é você e somos casados em comunhão <strong>de</strong><br />

bens. O que é meu é seu. Enriqueceremos ou ficaremos na merda juntos. Duda,<br />

pintou a sorte gran<strong>de</strong>, a nossa vez, você não enten<strong>de</strong>u?<br />

EDUARDO - Dora, eu...<br />

DORA - Já sei. Você é um jornalista, um intelectual, mas, olha, você<br />

não vai <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser nada disso. Só vai melhorar <strong>de</strong> vida e po<strong>de</strong>r fazer o que<br />

quer, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> patrão... (DOCE) Duda, eu te peço, por nós, pelos teus<br />

filhos, tira tuas férias na revista e experimenta.<br />

EDUARDO - Agora?<br />

DORA - Sim, agora.<br />

EDUARDO - Mas ainda não tem fábrica!<br />

DORA - Comece a organizar o negócio. Olha, tenho aqui esse bolo<br />

<strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> pagamento e até agora não consegui receber nada. Você conseguirá<br />

com o seu prestígio, seus conhecimentos...<br />

EDUARDO - Não vou pedir favor a esses putrefatos.<br />

DORA - Não é favor. Eles estão nos <strong>de</strong>vendo. Você só vai cobrar<br />

uma dívida.<br />

EDUARDO - Está bem, vou pensar.<br />

DORA - Pense. Uf!<br />

MÃE - Dora, dinheiro não é tudo. Pense no seu tio, que já está<br />

fe<strong>de</strong>ndo!<br />

DORA - Tadinho do tio. Deix'eu te passar um alquinho, tio.<br />

RETIRA O TIO DO CABIDE, ESPANA-O E COMEÇA A LIMPÁ-LO.<br />

A LUZ MORRE.<br />

CENA 8 - CASA DE DORA<br />

CANTAROLANDO, DORA TIRA A POEIRA DOS MÓVEIS, DA MÃE, DO<br />

TIO. O NÚMERO DE COROAS DIMINUIU.<br />

DORA - Mãe, só me resta este vestido que está no corpo. Se não<br />

pintar uma grana, vou ter que usar a sua mortalha...<br />

MÃE - (OLHOS ARREGALADOS) Não!!!<br />

DORA - É o jeito. Não posso parar a confecção agora. Vamos ficar<br />

ricos, mãe. Aí eu te compro uma mortalha belíssima, cheia <strong>de</strong> fios <strong>de</strong> ouro. Tiro<br />

as tuas jóias do prego e boto to<strong>das</strong> em cima <strong>de</strong> você. Você vai "fechar" aí no<br />

30


outro mundo! Vai se casar com algum graudão! Escute, você conhece algum<br />

graudão, algum <strong>de</strong>sses meus fregueses?<br />

MÃE - Conheço.<br />

DORA - Conhece mesmo? Desses que ainda estão na ativa,<br />

mandando?<br />

MÃE - São meus amigos. No outro mundo, somos todos iguais.<br />

DORA - Então Cristo é comunista?<br />

MÃE - Não diga blasfêmias.<br />

DORA - São seus amigos e não tinha me falado, sua velha egoísta?<br />

Peça a eles pra pagar o que me <strong>de</strong>vem.<br />

MÃE - Não peço favores. (FECHA OS OLHOS)<br />

DORA - Mãe, mãe, mãe. Velha sacana, nojenta! É só a gente<br />

precisar <strong>de</strong>la e ela se manda. Pois fique sabendo que se os seus amiguinhos<br />

importantes não me pagarem, vou te tirar até as calcinhas. Escolha: ou fala com<br />

esses caloteiros ou vai se apresentar pra São Pedro com uma mão na frente e<br />

outra atrás.<br />

ENTRA EDUARDO. PARECE DE PORRE.<br />

DORA - Já <strong>de</strong> porre a essa hora, Eduardo? Desse jeito você vai<br />

terminar per<strong>de</strong>ndo o emprego e...<br />

EDUARDO - Pitonisa!<br />

DORA - Que que você disse?<br />

EDUARDO - (AVANÇANDO PRA ELA) Pitonisa! Adivinha! Maga,<br />

medium, megera, bruxa!<br />

DORA - (RECUA) Você nunca foi violento! Que que você tem?<br />

EDUARDO - Estou bêbado.<br />

DORA - Estou vendo. Vá vomitar, vá.<br />

EDUARDO - Não estou bebado. Estou emputecido. Olhaqui o que que<br />

eles me <strong>de</strong>ram junto com as férias. Olha, lê.<br />

DORA - Aviso prévio! Meu Deus! Duda...<br />

EDUARDO - É isso aí. Eles me <strong>de</strong>mitem pra admitirem um incompetente<br />

que tope ganhar um salário mais <strong>de</strong> merda do que o meu. O pior... (EMBARGA<br />

A VOZ)<br />

DORA - Meu amor, você não merece isso...<br />

EDUARDO - O pior é que eu toparia ganhar um salário mais <strong>de</strong> merda do<br />

que o que já ganho. Cheguei a insinuar isso pra eles, mas os putos não toparam e<br />

ainda me aconselharam a não baixar o meu preço...<br />

MÃE - Eles têm razão. Aprenda a se dar valor!<br />

EDUARDO - Ainda bancaram os dignos senhores enquanto eu me<br />

rebaixava. Filhos da puta! Eu <strong>de</strong>i o meu sangue pela porra daquela revista, eu...<br />

(CHORA)<br />

MÃE - Bundão! Homem não chora!<br />

31


DORA - (FEROZ) Fecha a matraca, megera. (DOCE) Duda, um<br />

profissional do seu nível, logo logo arruma outro trabalho...<br />

EDUARDO - Eles não se interessam por qualida<strong>de</strong>. Eles querem nomes,<br />

estrelas. Eu não fiz o meu nome, fiquei lá naquela redação, como um funcionário<br />

público da casa. Ninguém mais se lembra <strong>de</strong> mim.<br />

DORA - E os teus amigos dos tempos da política?<br />

EDUARDO - Po<strong>de</strong> ser que me arrumem algum bico. Mas não tem<br />

nenhum importante. Eles também engordam e envelhecem, como eu. Eu acabei,<br />

Dora.<br />

AGARRA-SE A ELA E CHORA COMO UMA CRIANÇA.<br />

DORA - (AFAGA-O) Chore, meu amor, <strong>de</strong>sabafe... Duda, não<br />

chore, a vida pro homem começa aos quarenta. Até pra mulher, <strong>de</strong>scobri isso.<br />

Estou começando a tomar conta da minha vida. Antes, eu trabalhava para os<br />

outros e estava mofando. Agora, não, estou construindo a minha vida com as<br />

próprias mãos. Não tenho garantias, mas tenho esperanças. Estou gostando tanto<br />

<strong>de</strong> viver! Tanto que tenho tido vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter um filho!<br />

MÃE - Filho, nessa ida<strong>de</strong>! Desfrutável!<br />

EDUARDO - (EM PÂNICO) Dora, não faça isso. Prometa que vai<br />

continuar tomando a pílula, prometa. (ELA SORRI, ELE SE DESESPERA) Não<br />

brinque com isso, eu não posso ser pai, estou <strong>de</strong>sempregado. Já tenho que pagar<br />

pensão pra três, eu não posso... me prometa...<br />

DORA - (MATERNAL) Calma, meu querido, só tenho tipo<br />

vonta<strong>de</strong>! Vamos <strong>de</strong>ixar pra quando a gente ficar rico, tá?<br />

MÃE - Hum, <strong>de</strong>ssa mata num sai mais coelho!<br />

EDUARDO - Essas coroas <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto estão te pirando. Você acredita<br />

mesmo que vamos ficar ricos? Pois sim!<br />

DORA - Acredito. Ainda não pintou nenhuma grana, mas vai pintar.<br />

E já. Senhor diretor da "Dora Confecções Moribun<strong>das</strong> Limitada", à luta! Você<br />

vai começar a trabalhar agora!<br />

EDUARDO - Não, <strong>de</strong>ixa pra amanhã. Estou estourando <strong>de</strong> dor <strong>de</strong> cabeça.<br />

DORA - Tome um analgésico que passa. Nada <strong>de</strong> <strong>de</strong>itar. Vai ficar<br />

pensando besteira e atrasando a vida. Olhaqui as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> pagamento. Vai à<br />

luta. (ENCAMINHA EDUARDO PRA PORTA COM DECISÃO) <strong>Cia</strong>o, amor.<br />

Jogo duro com os caras, hein! (ELE SAI) <strong>Cia</strong>o. (JOGA UM BEIJO). <strong>Cia</strong>aaooo!<br />

(FECHA A PORTA. SUSPIRA EXAUSTA) Tomara que você consiga, Duda!<br />

Se não conseguir, nem sei...<br />

CONTA AS COROAS.<br />

DORA - Treze! Sorte ou azar? O Instituto <strong>de</strong> Controle da<br />

Mortalida<strong>de</strong> encomendou mais cem para os suici<strong>das</strong> <strong>de</strong>ste final <strong>de</strong> mês. Tá ruço!<br />

32


Ih, tio, você tá com um cheirinho meio podre! Vou lhe botar na janela pra pegar<br />

um sol.<br />

MÃE - Cuidado com os urubus no seu tio.<br />

DORA - Velha, você ficou realista <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morta!<br />

MÃE - Já não tenho ilusões! Cresci.<br />

DORA - É, você esticou mesmo. Os mortos esticam. E per<strong>de</strong>m as<br />

ilusões, é? Per<strong>de</strong>m as emoções também, é? Me responda. Preciso saber. Você<br />

tem emoções? (A MÃE FECHA OS OLHOS) Sacana, já se mandou.<br />

(PENDURA O TIO NA JANELA) Não sei porque, mas pensar em pessoas sem<br />

emoções me dá um frio na espinha... E pensar que são elas que mandam na<br />

gente!... Não, Dora, tira isso da cabeça, você tá pirando. Ih, não, isola!<br />

TOCA O TELEFONE<br />

DORA - Alô... De Brasília? Não, eu não atendo mais pedidos <strong>de</strong><br />

Brasília. Essa cida<strong>de</strong> está cheia <strong>de</strong> caloteiros... Não quero nem saber. Descansem<br />

em paz! (DESLIGA O TELEFONE) Mais um ministério moribundo! Nunca<br />

pensei que existissem tantos ministérios, e moribundos! Não tenho nada com<br />

isso. Há uma semana que como arroz, feijão e batata. Isso é o que me interessa.<br />

(METE UMA BALA NA BOCA) Vida mais maluca!<br />

VAI PRA COZINHA. MEXE NO ARMÁRIO.<br />

DORA - O feijão acabou.<br />

COMEÇA A ESCURECER. ELA VAI À JANELA E RETIRA O TIO. FECHA<br />

A JANELA. ACENDE A LUZ. VOLTA PRA COZINHA. ENTRA EDUARDO.<br />

DORA - (ANSIOSA) E então?<br />

EDUARDO - Nada feito.<br />

DORA - Como, nada feito? Explica.<br />

EDUARDO - Eles não vão pagar.<br />

DORA - Não vão pagar? Mas eles compraram, eles me<br />

encomendaram...<br />

EDUARDO - Tinham que ter feito concorrência pública.<br />

DORA - Eduardo, quer explicar essa porra que eu não estou<br />

enten<strong>de</strong>ndo nada?<br />

EDUARDO - No serviço público, qualquer coisa que se compre tem que<br />

ser através <strong>de</strong> concorrência. Várias firmas apresentam propostas e a que oferecer<br />

menor preço, fornece o produto. É isso.<br />

DORA - E que que a gente tem com isso?<br />

EDUARDO - Nada.<br />

DORA - E você não vai fazer nada? Vai se conformar?<br />

33


EDUARDO - Passei o dia feito louco. Fiz o que pu<strong>de</strong>. Os putos mandam<br />

a gente dum lado pra outro que nem bola <strong>de</strong> pingue-pongue.<br />

DORA - Mas isso é um absurdo. A gente vai pagar por um erro<br />

<strong>de</strong>les?<br />

EDUARDO - A gente sempre paga pelos erros <strong>de</strong>les.<br />

DORA - Comigo não! O buraco é mais embaixo.<br />

MÃE - Dora, não entre nessa onda <strong>de</strong> pornografia!<br />

DORA - Vá pro inferno, sua moralista, sua hipócrita. Você e seus<br />

tubarões <strong>de</strong>funtos, esses in<strong>de</strong>centes que beberam o meu sangue e não querem me<br />

pagar. Pois vou tirar a sua mortalha pra fazer mais coroas pra eles. (ARRANCA<br />

A MORTALHA DA MÃE) E, se eles não me pagarem, tiro até as suas calcinhas!<br />

MÃE - Filha maldita! Que tu morras <strong>de</strong> fome e se<strong>de</strong>! Que não<br />

tenhas sossego enquanto viveres! E quando morreres...<br />

DORA ENTOPE A BOCA DA MÃE COM UM PANO.<br />

DORA - Megera, boca do inferno! Agora fecha esses olhos<br />

bisbilhoteiros, senão eu te cego. (A MÃE FECHA RAPIDAMENTE OS<br />

OLHOS) Vai, vai ajustar contas com o diabo.<br />

SENTA-SE, EXAUSTA, DEPRIMIDA.<br />

DORA - Não, eu não mereço isso...<br />

ELA CAI EM PRANTOS.<br />

A LUZ MORRE.<br />

CENA 9 - NO PREGO<br />

O PREGO SOFREU UMA MODIFICAÇÃO: NO LUGAR DO GHICHÊ, HÁ<br />

UM AMONTOADO DE OBJETOS, FORMANDO UM CORPO. NO TOPO<br />

DESSE ESTRANHO CORPO, ESTÁ UMA CABEÇA DE HOMEM, QUE<br />

RESPONDE PELO APELIDO DE "DADDY".<br />

ENTRA DORA, COM TRÊS COROAS ESTAMPADAS. TEM ASPECTO<br />

SOFRIDO, ENVELHECEU. ELA ESTRANHA O AMBIENTE, ACHA QUE<br />

SE ENGANOU DE LOCAL.<br />

DADDY - É aqui mesmo a <strong>Casa</strong> <strong>de</strong> Penhores.<br />

ELA SE ASSUSTA. PROCURA LOCALIZAR A VOZ.<br />

34


DADDY - (DIVERTINDO-SE) Olhe pra cima... até você po<strong>de</strong>r olhar<br />

<strong>de</strong> cima...<br />

DORA O OLHA BOQUIABERTA.<br />

DADDY - Pensa que sou o Anti-Cristo? Sou igual a você, apenas<br />

estamos em planos diferentes... apenas uma questão <strong>de</strong> angulo...<br />

DORA - Prefiro me enten<strong>de</strong>r com o funcionário. Cadê o<br />

funcionário?<br />

DADDY - (TRISTÍSSIMO) Foi <strong>de</strong>spedido no último corte. A <strong>Casa</strong> <strong>de</strong><br />

Penhores vive momentos muito difíceis, minha filha! Depois <strong>de</strong> tantos anos <strong>de</strong><br />

trabalho, estou tendo que aten<strong>de</strong>r no balcão. Eu, o chefe!<br />

DORA - O senhor é o patrão? E vai me aten<strong>de</strong>r pessoalmente?<br />

DADDY - Vou atendê-la pessoalmente, claro.<br />

DORA - Excelência...<br />

DADDY - Po<strong>de</strong> me chamar <strong>de</strong> Daddy, paizinho. É como me chamam.<br />

DORA - Me chamo Dora. Sou sua freguesa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos em que<br />

a <strong>Casa</strong> <strong>de</strong> Penhores só aceitava ouro...<br />

DADDY - Bons tempos! Mas temos que nos adaptar à nova<br />

realida<strong>de</strong>... Em que posso ajudá-la, minha filha?<br />

DORA - Eu não tenho mais o que empenhar. A última coisa que<br />

empenhei foi a gela<strong>de</strong>ira... que nem fez muita falta...<br />

DADDY - Eu compreendo. A situação está terrível, apesar dos nossos<br />

esforços...<br />

DORA - Agora só posso empenhar os meus trabalhos. Sabe, eu<br />

confecciono coroas <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto. Coroas muito especiais, em tecido <strong>de</strong> várias<br />

padronagens. Eu lancei essa moda e as minhas coroas estão sendo disputa<strong>das</strong> por<br />

pessoas muito importantes... Só que não me pagam...<br />

DADDY - É, também as pessoas importantes sofrem dificulda<strong>de</strong>s,<br />

aqui e alhures!<br />

DORA - Então, eu trouxe estas três pra empenhar...<br />

DADDY - Você quer me <strong>de</strong>ixar aqui três coroas <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto?<br />

DORA - É...<br />

DADDY - Mas isso é um agouro! Está me agourando?<br />

DORA - Não, eu não faria isso, Daddy. Veja, são colori<strong>das</strong>...<br />

DADDY - E daí? Que importa a cor, se a gente sabe a utilida<strong>de</strong>? A<br />

senhora só po<strong>de</strong>ria me ofen<strong>de</strong>r mais se xingasse a minha reverenda mãe!...<br />

DORA - Desculpe, eu não tive intenção... Eu não podia imaginar...<br />

Meus fregueses são ministros <strong>de</strong> estado, <strong>de</strong>putados...<br />

DADDY - Problema <strong>de</strong>les. Eu não vou admitir assim a minha morte.<br />

Tenho superstições, horror à urucubaca! Sou um empresário nacional, minha<br />

senhora!<br />

35


DORA COMEÇA A CHORAR.<br />

DORA - Eu não sei o que faça ... Meu marido ficou <strong>de</strong>sempregado...<br />

Já não temos dinheiro nem pra comer...<br />

DADDY - (PATERNAL) Calma, não chore, não posso ver mulher<br />

chorando. Eu entendo. Também tenho sofrido injustiças e até ingratidões! Sou<br />

um trabalhador como você. Um trabalhador que nem sempre recebe remuneção -<br />

ou sequer reconhecimento! - pelo que faz! Vou ajudá-la, custe o que custar.<br />

DORA FUNGA, ENXUGA AS LÁGRIMAS.<br />

DADDY - Você tem umas belas mãos!<br />

DORA - Obrigada.<br />

DADDY - Sou um esteta. A beleza me toca fundo! Gosto <strong>das</strong> suas<br />

mãos!<br />

DORA - Obrigada.<br />

DADDY - Quer empenhá-las?<br />

DORA - Empenhar minhas mãos? ... Mas... mas são os meus<br />

instrumentos <strong>de</strong> trabalho!<br />

DADDY - Não vou cortá-las, nem danificá-las... Não <strong>de</strong>struo o que é<br />

belo. Você só assina um papel, no qual reconhece que suas mãos são minhas, até<br />

que possa saldar a dívida. Não confia em mim?<br />

DORA - Confio, confio... Mas é que pra trabalhar eu tenho<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentir minhas mãos muito presentes, muito minhas... Servem os<br />

pés?<br />

DADDY - Deixe-me vê-los.<br />

DORA TIRA OS SAPATOS E EXIBE OS PÉS.<br />

DADDY - É, são bonitos... não valem tanto quanto as mãos, mas<br />

servem.<br />

DORA - Mas... e o meu marido? Ele não vai gostar <strong>de</strong> ter uma<br />

mulher sem pés...<br />

DADDY - Sem pés? Que idéia! Eu lhe darei um atestado <strong>de</strong><br />

integrida<strong>de</strong> física, incontestável!<br />

DORA - É, se é assim... e quanto o senhor me dá pelos pés?<br />

DADDY - Digamos... bom, consi<strong>de</strong>rando que já somos amigos...<br />

(FALA UMA QUANTIA IRRISÓRIA)<br />

DORA - Só? Isso não dá pra nada!... (VOLTA A CHORAR)<br />

DADDY - Eu sei que é pouco, minha filha. Mas são muitas as pessoas<br />

que precisam <strong>de</strong> ajuda. Minha jornada <strong>de</strong> trabalho tem sido <strong>de</strong> vinte horas. Já tive<br />

um infarto, operei o coração - tenho três safenas! Estou aqui por um milagre <strong>de</strong><br />

36


Deus, só Ele sabe dos meus esforços! Cada um <strong>de</strong> nós tem que apertar um pouco<br />

o cinto em benefício da coletivida<strong>de</strong>, não é mesmo?<br />

DORA - Talvez o senhor tenha razão, mas eu já não tenho o que<br />

apertar...<br />

DADDY - Todos temos. Basta ter boa vonta<strong>de</strong> e otimismo. Por<br />

exemplo, <strong>de</strong>ssa quantia a mais que valeriam os seus pés, você abre mão para que<br />

eu possa ajudar a outro tão necessitado quanto você.<br />

DORA - O senhor parece um padre falando.<br />

DADDY - Um padre à antiga, que os mo<strong>de</strong>rnos são mais discípulos <strong>de</strong><br />

Marx do que <strong>de</strong> Cristo!<br />

DORA - Agora o senhor falou igualzinho à minha mãe.<br />

DADDY - Leve meus respeitos à sua genitora.<br />

DORA - Ela está morta.<br />

DADDY - Que Deus a guar<strong>de</strong>! Vá, amanhã po<strong>de</strong> vir receber o<br />

dinheiro.<br />

DORA - Só amanhã? Mas eu preciso agora, preciso pra ontem...<br />

DADDY - Racionalizamos a burocracia, mas não a erradicamos ainda.<br />

Tenha paciência. (DORA VAI SAINDO) Espere. Nessa mesa aí à sua direita, há<br />

papeletas <strong>de</strong> doação. Preencha uma e assine.<br />

DORA - Doação?<br />

DADDY - Sim, é a maneira <strong>de</strong> dizer. Não se preocupe. Quando você<br />

pagar a dívida, <strong>de</strong>volverei a papeleta. Não confia em mim?<br />

DORA - Que jeito!... Desculpe, confio, não sei...<br />

ASSINA A PAPELETA E SAI.<br />

CENA 10 - PRIMEIRO, CASA DE DORA. DEPOIS, CASA DE DORA E<br />

PREGO, SIMULTANEAMENTE.<br />

JÁ NÃO RESTA QUASE NADA DOS MÓVEIS DA CASA. DORA E<br />

EDUARDO ESTÃO MAIS CANSADOS E ENVELHECIDOS. ELA<br />

TRABALHA. ELE BEBE.<br />

DORA - O material está acabando... Se ao menos eu conseguisse<br />

terminar esta encomenda... É <strong>de</strong> uma empresa particular, po<strong>de</strong> até ser que me<br />

paguem...<br />

EDUARDO - Desiste disso. Neste país, a gente só tem direito a pagar. Já<br />

se nasce <strong>de</strong>vendo. Morre-se <strong>de</strong> fome, <strong>de</strong> medo, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, <strong>de</strong> cabeça baixa, e<br />

rindo, o riso <strong>das</strong> hienas. Somos um povo atavicamente escravo. Meu Deus, que<br />

povinho <strong>de</strong> merda somos nós!<br />

37


DORA - Você disse que ia consultar um advogado. Em vez disso,<br />

fica aí enchendo a cara.<br />

EDUARDO - Já consultei.<br />

DORA - Por que não me disse? Eduardo, por que você não me diz as<br />

coisas? Quer me ver louca?<br />

EDUARDO - (DEBOCHADO) Que tal formarmos um casal tipo<br />

sado-masoquista, bem ao gosto da pequena burguesia? Você me idolatra e eu te<br />

esnobo. Eu sou o homem, o macho, o Deus e você... (CANTANDO) "Você não<br />

passa <strong>de</strong> uma mulher". Que tal, hein?<br />

DORA - Eu não estou brincando. O que disse o advogado?<br />

EDUARDO - Que estamos fodidos. (DÁ UMA GARGALHADA)<br />

Fodidos!<br />

DORA - Bebado! Já te disse que não estou brincando.<br />

EDUARDO - Claro que não. Você já não tem jogo <strong>de</strong> cintura, Dorinha.<br />

Te olha no espelho. Estás os cornos da tua mãe. Olha a tua bochecha, tá caindo<br />

no pescoço. (RI)<br />

DORA AVANÇA PRA ELE EMPUNHANDO UMA TESOURA.<br />

EMPURRA-O. ELE CAI.<br />

DORA - Filho da puta! Inútil! Vou te arrancar os culhões!<br />

EDUARDO - (APAVORADO) Dora, Dorinha, eu tava brincando...<br />

Desculpe, foi uma brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> mau gosto, reconheço... tô bebado...<br />

DORA - Você vive bebado! (ATIRA LONGE A GARRAFA.<br />

APONTA A TESOURA PRO PESCOÇO DELE) Agora fala, seu babaca, fala. O<br />

que disse o advogado?<br />

EDUARDO - Eu não posso falar assim... Olha, me mijei todo...<br />

MÃE - Frouxo!<br />

DORA - Fala assim mesmo, <strong>de</strong> cueca molhada.<br />

EDUARDO - Deixa eu me levantar...<br />

DORA - Levanta, anda!<br />

ELE TENTA SE LEVANTAR, PERDE O EQUILÍBRIO. ELA VAI<br />

AJUDÁ-LO, ELE A AGARRA PELO PESCOÇO.<br />

EDUARDO - O macho aqui ainda sou eu...<br />

ELA DÁ-LHE UM SAFANÃO E VAI EM CIMA DELE, EMPUNHANDO A<br />

TESOURA.<br />

DORA - Covar<strong>de</strong>! Macho porra nenhuma!<br />

MÃE - Dora, não se duvida da macheza do marido!<br />

DORA - Só não te mato pra não te dar alívio. Você vai ter que beber<br />

comigo até a última gota <strong>de</strong>ssa...<br />

EDUARDO - Cuidado, tá empurrando a tesoura...<br />

38


DORA - Fala, <strong>de</strong>sembucha agora!<br />

EDUARDO - Não consigo. Já nem me lembro...<br />

DORA - Vai ter que lembrar, nem que eu tenha que abrir a tua<br />

cabeça.<br />

EDUARDO - Dora, Dorinha, ouve, presta atenção... Olha, será que você<br />

não percebe? Não sou eu o teu inimigo. Eu estou do teu lado, nós estamos no<br />

mesmo barco. Não é a mim que você está querendo matar... (DORA<br />

AMOLECE) Tire esta coisa do meu pescoço, po<strong>de</strong> dar em <strong>de</strong>sgraça.<br />

DORA CAI NUM PRANTO CONVULSO.<br />

DORA - (GRITANDO) Por que que eu não tenho coragem <strong>de</strong> me<br />

matar? Por que?<br />

EDUARDO - Eu me faço a mesma pergunta todo dia... Mas, calma, olha,<br />

pior do que está não po<strong>de</strong> ficar...<br />

MÃE - Po<strong>de</strong>, porque você não quer trabalhar como homem!<br />

EDUARDO - Dora, pare com esse choro... Isso me <strong>de</strong>ixa confuso, não<br />

consigo raciocinar...<br />

DORA - Me abrace. Estou com medo.<br />

ELE A ABRAÇA FROUXAMENTE. ELA SE AGARRA A ELE.<br />

ENTRA O LEILÃO NO PREGO. DADDY FALA SOZINHO, SOB UM FOCO<br />

DE LUZ RETANGULAR, COMO SE ESTIVESSE DENTRO DE UM<br />

APARELHO DE TV.<br />

QUANDO A AÇÃO PASSA PARA A CASA DE DORA, A VOZ DE DADDY<br />

SOME, COMO SE TIVESSE SIDO RETIRADO O SOM DO APARELHO DE<br />

TV.<br />

DADDY - Senhoras e senhores, vamos dar início ao gran<strong>de</strong> leilão<br />

anual da <strong>Casa</strong> <strong>de</strong> Penhores, para o qual estão aqui presentes as mais altas<br />

personalida<strong>de</strong>s dos meios políticos, empresariais e <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>. Conforme<br />

Vossas Senhorias po<strong>de</strong>m observar, é imensa a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> objetos a serem<br />

leiloados hoje. Resolvemos então, para melhor proveito <strong>de</strong> Vossas Senhorias,<br />

leiloá-los em lote. No primeiro lote, temos: um porta-retrato <strong>de</strong> prata antiga,<br />

relíquia <strong>de</strong> uma tradicional família da chamada classe média remediada, hoje em<br />

extinção...<br />

DADDY CONTINUA A FALAR, MAS JÁ NÃO SE OUVE A SUA VOZ.<br />

DORA - Eu quis te matar... estou enlouquecendo...<br />

EDUARDO - É isso que eles querem. Que a gente enlouqueça, se aliene<br />

<strong>de</strong> tudo, se <strong>de</strong>strua...<br />

DORA - Pelo amor <strong>de</strong> Deus, me diz o que disse o advogado...<br />

39


EDUARDO - Disse que processar a União é loucura. O processo vai rolar<br />

durante anos e, ainda que a gente ganhe, não leva...<br />

DORA - Mas não tem uma saída? Duda, eu estou com a roupa do<br />

corpo, nós estamos comendo batata... Não é justo. Eu investi o meu trabalho, a<br />

minha vida nessas coroas... Isso não po<strong>de</strong> ficar assim...<br />

EDUARDO - Ainda temos uma chance, remota... Vamos alegar que o teu<br />

produto é único, não existe similar na praça. Assim elimina o argumento da<br />

concorrência pública que a lei exige.<br />

DORA - É único mesmo. Coroas <strong>de</strong> tecido estampado é invenção<br />

minha!<br />

EDUARDO - E você ainda não registrou a patente.<br />

DORA - Não tive tempo.<br />

EDUARDO - Pois faça isso agora.<br />

DORA - É, vou agora.<br />

LEVANTA-SE MOVIDA POR UM NOVO ENTUSIASMO.<br />

MÃE - Eu falei com um dos meus amigos importantes...<br />

DORA - (CHEIA DE ESPERANÇAS) Falou? Que que ele disse?<br />

MÃE - Que fazer compra sem concorrência pública é corrupção.<br />

DORA - E daí?<br />

MÃE - Ele não se mete em corrupção.<br />

DORA - Safado, hipócrita! Você acredita nisso?<br />

MÃE - (SONHADORA) Um homem muito ilustre!... Olhou nos<br />

meus olhos, pegou nas minhas mãos... parece interessado...<br />

DORA - E você ainda fica se esfregando nesse ladrão!<br />

MÃE - E o filho! Como eu queria que você tivesse se casado com<br />

um rapaz igual aquele! Um rapaz bonito, bem vestido, fino! Igualzinho ao pai.<br />

Está sendo treinado pra substituir o pai!<br />

DORA - Na malandragem! Morre o pai, fica o filho. Isso não tem<br />

fim! (SAI)<br />

DADDY VOLTA A FALAR NO PREGO.<br />

DADDY - ... uma panela <strong>de</strong> ferro, da cozinha popular - em <strong>de</strong>suso -,<br />

excelente receptáculo para plantas na varanda. Uma Coruja <strong>de</strong> Ouro, o maior<br />

premio do cinema nacional, objeto extremamente <strong>de</strong>corativo para uma casa <strong>de</strong><br />

campo. Esta coruja pertenceu a um gran<strong>de</strong> cineasta, que pe<strong>de</strong> para não ser<br />

citado... (SOME A VOZ DE DADDY)<br />

NA CASA DE DORA, ENTRA HELENA. A MÃE ABRE APENAS UM<br />

OLHO.<br />

40


MÃE - Chiiiii! (FECHA RAPIDAMENTE O OLHO)<br />

HELENA - (IRÔNICA) É um prazer te encontrar!<br />

EDUARDO - (IDEM) O prazer é todo meu!<br />

HELENA - Neste edifício não tem interfone, não é? Na revista, eu<br />

chegava na portaria e ouvia o porteiro dizer pelo interfone: ela tá subindo...<br />

EDUARDO - Saí da revista...<br />

HELENA - Eu sei.<br />

EDUARDO - É!<br />

HELENA - Há três meses que você não paga a pensão dos teus filhos.<br />

EDUARDO - Eu sei.<br />

HELENA - E então?<br />

EDUARDO - Nada posso fazer. Estou <strong>de</strong>sempregado.<br />

HELENA - E eu não posso pagar tudo sozinha. Sinto muito, mas vou<br />

ter que te meter na ca<strong>de</strong>ia.<br />

EDUARDO - Tem toda razão. (GOZADOR) Faça-se <strong>de</strong> mim segundo a<br />

vossa vonta<strong>de</strong>.<br />

HELENA - Farei. Você verá.<br />

VAI SAINDO DECIDIDA.<br />

EDUARDO - Helena, espera... a gente nem conversou...<br />

HELENA - Pra que? Você já me <strong>de</strong>u a <strong>de</strong>cisão!<br />

EDUARDO - Espera, não é bem assim... Você tem razão <strong>de</strong> tá puta<br />

comigo... Tenho sido um péssimo pai... Mas não tenho culpa <strong>de</strong> estar<br />

<strong>de</strong>sempregado... Estou procurando trabalho como um louco, mas, a cada dia que<br />

se passa, mais portas se fecham...<br />

HELENA - Não estou nem um pouco comovida. Olhaqui, se você teve<br />

filhos por acaso, azar seu. Eu sempre quis ter esses filhos. Eu amo os meus filhos<br />

e estou disposta a tudo pra garantir a eles uma vida menos fodida do que a tua.<br />

Estou disposta a tudo, a tudo, até a matar!<br />

EDUARDO AGARRA RAPIDAMENTE A TESOURA. HELENA RECUA<br />

ASSUSTADA.<br />

HELENA - Tá me ameaçando?<br />

EDUARDO - Não, tô me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo. É a segunda mulher que me<br />

ameaça <strong>de</strong> morte hoje. Vou <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> mulher. Vou ser veado.<br />

HELENA - Talvez seja só o que você tem pra dar...<br />

EDUARDO - Ainda bem que você se convenceu que só me resta a bunda.<br />

HELENA - Isso não me comove... e não comoverá tampouco o juiz...<br />

EDUARDO - Olha, vamos acabar com essa frescura. Quer mandar me<br />

pren<strong>de</strong>r, manda. Não tenho nada a per<strong>de</strong>r. Só não vai ser legal pros nossos filhos.<br />

Eles vão saber que a mãe botou o pai na ca<strong>de</strong>ia...<br />

41


HELENA - Não tente fazer chantagem comigo.<br />

EDUARDO - Que que você quer que eu faça? Estou <strong>de</strong>sempregado,<br />

fodido... Olha a minha casa, já não tem mais nada...<br />

HELENA - Você adora se fazer <strong>de</strong> vítima. Vítima do sistema! É muito<br />

fácil ser vítima, difícil é ir à luta! Sabe que que eu acho, Eduardo? Você vive<br />

paralizado <strong>de</strong> tanta culpa. Até hoje, você carrega essa culpa masoquista <strong>de</strong> não<br />

ter sido preso, torturado, morto, como os teus amigos. Você queria ser uma<br />

vítima heróica da ditadura, mas sobrou nessa também. Os milicos não te <strong>de</strong>ram<br />

importância.<br />

EDUARDO APERTA A TESOURA. PARECE QUE QUER TRUCIDAR<br />

HELENA. EM VEZ DISSO, SUSPIRA, SORRI COM SUPERIORIDADE.<br />

EDUARDO - Você per<strong>de</strong>u o controle. Olhaí, tá toda trêmula. É falta <strong>de</strong><br />

homem. Arranja um marido que passa.<br />

HELENA - Você não passa <strong>de</strong> um machão vulgar.<br />

EDUARDO - Virou feminista, sapatão?<br />

HELENA - Virei e vou te meter na ca<strong>de</strong>ia. (SAI)<br />

EDUARDO - Vai, vai arrumar homem. (EXPLODE) Merda! Vocês não<br />

vão me <strong>de</strong>struir, seus filhos da puta! (ESPATIFA UM CINZEIRO NA PAREDE)<br />

NO PREGO.<br />

DADDY - Peço a atenção <strong>de</strong> Vossas Senhorias para o sexto lote, que<br />

contém peças verda<strong>de</strong>iramente originais. Um par <strong>de</strong> pés, <strong>de</strong> unhas mal pinta<strong>das</strong>,<br />

calejados pela labuta cotidiana <strong>de</strong> uma jovem trabalhadora, imagem viva da<br />

nossa gente forte e saudável! Um par <strong>de</strong> seios, firmes, orgulhosos, apontando<br />

<strong>de</strong>safiadoramente o futuro! A peça po<strong>de</strong> ser colocada em um elegante e sedutor<br />

banheiro, à guisa <strong>de</strong> torneiras...<br />

GARGALHADAS.<br />

CENA 11 - CASA DE DORA<br />

MADRUGADA. EDUARDO DORME SENTADO NO SOFÁ RASGADO,<br />

SUJO, ÚNICO MÓVEL QUE RESTOU. A MÃE ESTÁ DESPIDA, COM<br />

PANINHOS TAPANDO OS SEIOS E O SEXO. MÃE E TIO ESTÃO<br />

COBERTOS DE TEIAS DE ARANHA. O AMBIENTE É DE ABSOLUTA<br />

DECADÊNCIA.<br />

ENTRA DORA, TRAZENDO PENDURADAS PELO CORPO VÁRIAS E<br />

DESBOTADAS COROAS DE DEFUNTO. DESFAZ-SE DAS COROAS. VAI<br />

42


À COZINHA, PEGA UNS PEQUENOS POTES DE TINTA E UNS PINCÉIS.<br />

VOLTA PRA SALA E COMEÇA A PINTAR AS FLORES DAS COROAS.<br />

MÃE` - Dora, tire essas malditas teias <strong>de</strong> aranha <strong>de</strong> minha cara. Não<br />

estou vendo você direito.<br />

DORA - Ótimo!<br />

EDUARDO - (SONHANDO) Não, você não po<strong>de</strong> ficar, vão te matar...<br />

(GRITA) Juliana, Juliana...<br />

DORA - Eduardo, vai dormir na cama. Eduardo!<br />

ELE ACORDA ASSUSTADO.<br />

DORA - Vai dormir na cama.<br />

ELE CONTINUA ALÍ, APATETADO.<br />

DORA - Vai, continua a sonhar com a tua amante guerrilheira,<br />

enquanto eu arrisco a minha pele...<br />

EDUARDO - Eu te disse pra não ir...<br />

DORA - Não aconteceu nada...<br />

EDUARDO - Mas podia ter acontecido...<br />

DORA - Pulei o portão dos fundos...<br />

EDUARDO - É muito alto?<br />

DORA - Uns três metros.<br />

EDUARDO - Não se machucou?<br />

DORA - Quase me feri nas pontas <strong>de</strong> ferro...<br />

EDUARDO - O filho <strong>de</strong> Rommy Schnei<strong>de</strong>r, lembra-se?<br />

DORA - Morreu espetado...<br />

EDUARDO - No portão da casa do avô, parece...<br />

DORA - Melhor que no portão do cemitério...<br />

EDUARDO - Quantas coroas?<br />

DORA - Uma dúzia.<br />

EDUARDO - Só?<br />

DORA - Já não se enfeitam túmulos como antigamente...<br />

EDUARDO - E na saída, o vigia, não te viu?<br />

DORA - Dormia numa cova.<br />

EDUARDO - De sete palmos?<br />

DORA - Raza.<br />

EDUARDO - Muitas baratas?<br />

DORA - Trouxe três.<br />

MÃE - Dora, tire essas baratas do meu caixão.<br />

DORA - Todo caixão <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto tem barata, mãe.<br />

MÃE - Tem uma entrando nas minhas partes íntimas!<br />

43


DORA - Engula-a.<br />

MÃE - Como ela me o<strong>de</strong>ia! Ai <strong>de</strong> mim! Ai <strong>de</strong> mim! Ai <strong>de</strong> mim!<br />

DORA - Cale-se! O público não gosta <strong>de</strong> tragédia.<br />

EDUARDO - Quantas coroas faltam?<br />

DORA - Vinte. Foi a maior encomenda até agora. É do Ministério<br />

da Fazendo, o mais importante. Estranho, eles não escon<strong>de</strong>m que estão<br />

morrendo...<br />

EDUARDO - Não precisam, continuam mandando!<br />

DORA - Mesmo assim, somos vigiados... grampearam o telefone.<br />

EDUARDO - Eles não per<strong>de</strong>m as velhas manias...<br />

O DIA AMANHECE. ENTRA UM MENSAGEIRO.<br />

MENSAGEIRO - Sou funcionário do Palácio.<br />

DORA - Civil ou militar?<br />

MENSAGEIRO - Eclesiástico. Acabo <strong>de</strong> dar a extrema unção a S.Excia.<br />

DORA - Meus pêsames.<br />

MENSAGEIRO - Não sou da família. Sou apenas um funcionário da <strong>Casa</strong>.<br />

DORA - S. Excia. <strong>de</strong>scansa em paz?<br />

MENSAGEIRO - Está bem, obrigado.<br />

EDUARDO - Não quer se sentar?<br />

MENSAGEIRO - Estou em missão secreta.<br />

EDUARDO - Por que tanto segredo? Todo mundo sabe!<br />

MENSAGEIRO - Nunca se sabe... Mas vamos ao que interessa.<br />

DORA - A nós ou ao senhor?<br />

MENSAGEIRO - À S.Excia., naturalmente.<br />

DORA - Antes <strong>de</strong> qualquer papo, S.Excia. é boa pagadora?<br />

MENSAGEIRO - Evi<strong>de</strong>ntemente, minha senhora.<br />

DORA - E paga com dinheiro vivo?<br />

MENSAGEIRO - Vivo sim, embora podre.<br />

DORA - É, serve. Mas, em nota?<br />

MENSAGEIRO - Não, em or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> pagamento.<br />

DORA - Fora! Fora!<br />

MENSAGEIRO - Não estou enten<strong>de</strong>ndo...<br />

DORA - Out! Out!<br />

MENSAGEIRO - A senhora não enten<strong>de</strong>u. Trata-se <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m!<br />

DORA - Caguei. Fora!<br />

MENSAGEIRO - S.Excia. não admite que se cague na sua honrada cabeça.<br />

DORA - Pois que solte a grana. Sem grana, não tem coroa.<br />

MENSAGEIRO - Um estadista não po<strong>de</strong> prometer o céu, já disse S.Excia.<br />

DORA ` - Pois que prometa o inferno remunerado.<br />

MÃE - Deixe que eu me entendo com S.Excia.<br />

MENSAGEIRO - (PARA A MÃE) Às suas or<strong>de</strong>ns, madame.<br />

44


MÃE - Eu disse que me entendo com S.Excia. Não falo com<br />

criados. Fora! E diga à S.Excia. que a rainha mãe manda-lhe seus respeitos!<br />

(FECHA OS OLHOS)<br />

SAI O MENSAGEIRO. PAUSA.<br />

A MÃE VOLTA A ABRIR OS OLHOS.<br />

MÃE - Falei com S.Excia.<br />

DORA - Ela paga?<br />

MÃE - S.Excia. é muito humana. Ai, que homem charmoso, um<br />

garanhão!<br />

DORA - Nojenta! A gente com fome e ela galinhando!<br />

MÃE - S.Excia. é compreensiva, mas po<strong>de</strong> fazer represálias<br />

quando contrariada na sua vonta<strong>de</strong>.<br />

DORA - Represálias? De que tipo?<br />

MÃE - Imposto sobre as coroas, maxi<strong>de</strong>svalorização do tecido,<br />

expurgo do arame...<br />

DORA - Não, mãe, não! Pelo amor <strong>de</strong> Deus, diga a ele que eu não<br />

tenho mais como conseguir coroas, que já assaltei todos os cemitérios...<br />

MÃE - Vire-se. (FECHA OS OLHOS)<br />

DORA - Mãe, não vá embora, não me abandone assim, sua nojenta...<br />

DESESPERADA, JUNTA GUIMBAS PELA SALA. FAZ UM CIGARRO. AS<br />

MÃOS TREMEM. ACENDE O CIGARRO. SORVE-O PROFUNDAMENTE.<br />

DORA - Eduardo, vamos ao prego.<br />

EDUARDO - Não, isso não...<br />

DORA - Prefere morrer <strong>de</strong> fome?<br />

EDUARDO - Vá você então... eu não posso me comprometer assim...<br />

DORA - Já me empenhei até os <strong>de</strong>ntes. Agora é a sua vez.<br />

EDUARDO - Dora, o mínimo <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong>...<br />

DORA - Dignida<strong>de</strong>! Você não se aguenta <strong>de</strong> pé, seu imbecil.<br />

EDUARDO - Prefiro morrer...<br />

DORA - Vamos. Não temos tempo pra mentiras.<br />

CENA 12 - NO PREGO<br />

DADDY COCHILA.<br />

DORA - Daddy...<br />

45


DADDY DESPERTA ASSUSTADO E CONTINUA UM DISCURSO QUE O<br />

SONO INTERROMPEU.<br />

DADDY - Viajei para o exterior em ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> ro<strong>das</strong> pra fechar um<br />

negócio que <strong>de</strong>u emprego a mais <strong>de</strong> mil pessoas! Voltem os olhos para trás e<br />

vejam o que era e o que é hoje a <strong>Casa</strong> <strong>de</strong> Penhores...<br />

DORA - Daddy, os jornalistas já saíram...<br />

DADDY - Calhor<strong>das</strong>!<br />

DORA - Daddy...<br />

DADDY - Já sei. Veio se empenhar. (RI, CÍNICO) Só falta... Como é,<br />

resolveu?<br />

DORA - Resolvi, não me incomodo mais...<br />

DADDY - Bem, você já não é uma "gatinha", mas ainda arranha...<br />

Deixe-me ver...<br />

DORA LEVANTA A SAIA.<br />

DADDY - Tire a calcinha.<br />

ELA OBEDECE.<br />

DADDY - É, não está mal... Cem "paus".<br />

DORA - Você disse que dava duzentos.<br />

DADDY - Na semana passada. Agora, o produto caiu no mercado. Já<br />

vinha caindo, caiu mais!<br />

DORA - Mas tudo sobe <strong>de</strong> preço...<br />

DADDY - O que tá em falta. O que sobra, <strong>de</strong>sce.<br />

DORA - Mas cem é muito pouco... (TENTA FAZER CHARME)<br />

Você não acha que mereço mais?<br />

DADDY - (DEBOCHADO) Cê tá ótima! Mas tem-se que fazer<br />

justiça... Há pouco, paguei duzentos por uma <strong>de</strong> 25... Você está com 50...<br />

DORA - Quarenta e oito...<br />

DADDY - Muito mal conservados. Só estou fazendo o negócio pra lhe<br />

ajudar. Como é, leva ou fica?<br />

DORA - Fica...<br />

DADDY - Passe amanhã pra receber.<br />

DORA - Meu marido também quer se empenhar...<br />

EDUARDO - Não, eu não quero... (DESPENCA DE FRAQUEZA)<br />

DORA TENTA LEVANTAR EDUARDO.<br />

DORA - Quer sim. Meu marido é um intelectual, um homem muito<br />

inteligente, um dos maiores jornalistas do país...<br />

46


DADDY - (IRÔNICO) Hum, e como se chama o gênio?<br />

DORA - Eduardo Guimarães.<br />

DADDY - Nunca ouvi falar.<br />

DORA - Ele já foi muito conhecido... e é uma gran<strong>de</strong> cabeça...<br />

DADDY - Me parece meio morto...<br />

DORA - Não, ele tá vivo!<br />

ELA TENTA COLOCAR EDUARDO DE PÉ.<br />

DADDY - Não acredito que essa cabeça aí tenha alguma idéia útil.<br />

EDUARDO - (COM AS ÚLTIMAS FORÇAS) Você não me conhece,<br />

seu filho da mãe!<br />

DADDY - Conheço um homem pelos sapatos. Olha o teu sapato.<br />

EDUARDO - Olha o teu rabo, ô macaco!<br />

DORA - Não estraga tudo, ô inutil!<br />

DADDY - Oh, não me incomodo! Seu marido <strong>de</strong>ve ser um <strong>de</strong>sses<br />

tipos sonhadores <strong>de</strong> cabeça dura. Gente boa! Dou cinquenta pela cabeça <strong>de</strong>le. Só<br />

pra ajudar.<br />

EDUARDO - Filho da puta! Não tô à venda... (CAI DESMAIADO)<br />

DORA - Desculpe, Daddy, ele tá meio pirado... é a fome...<br />

DADDY - Oh, já estou acostumado! Passe amanhã pra receber.<br />

DORA ESTAPEIA A CARA DESMAIADA DE EDUARDO. ELE VOLTA A<br />

SI, MAS NÃO CONSEGUE SE LEVANTAR. ELA O ARRASTA. SAEM DE<br />

CENA.<br />

CENA 13 - CASA DE DORA<br />

DORA ESTÁ SENTADA NUMA CADEIRA, IMÓVEL, O OLHAR OPACO.<br />

MEXE COM A BOCA, MASTIGANDO BOLHAS DE AR. A MÃE A OLHA,<br />

COM UMA EXPRESSÃO DA MAIS ABSOLUTA FELICIDADE. EDUARDO<br />

TECE TEIAS COM UM BARBANTE, NUMA ATITUDE DEMENTE.<br />

DORA OUVE VOZES: A VOZ DA MÃE, A DE EDUARDO, A SUA<br />

PRÓPRIA. A PRINCÍPIO, AS FRASES SÃO CLARAS, TÊM SENTIDO.<br />

DEPOIS, COMEÇAM A SE MISTURAR E SE TORNAM QUASE<br />

ININTELIGÍVEIS ATÉ O MOMENTO EM QUE DORA COMEÇA A SENTIR<br />

OS SINTOMAS DA EXPLOSÃO - A DESCRIÇÃO DAS SENSAÇÕES É<br />

ENTÃO CLARA.<br />

FOCO BRANCO SOBRE A MÃE DURANTE A SUA PRIMEIRA FALA<br />

GRAVADA. A EXPRESSÃO DE FELICIDADE CRESCE DURANTE A<br />

FALA.<br />

47


MÃE - (VOZ OFF) Dora, parece que o seu joelho começou a<br />

endurecer... Foi assim que aconteceu comigo! A morte me pegou <strong>de</strong> baixo para<br />

cima. Depois do joelho, vêm as ca<strong>de</strong>iras, o intestino, o fígado, o coração...<br />

EDUARDO - (V.OFF) Tentei filar a bóia na casa <strong>de</strong> uns amigos...<br />

DORA - (V. OFF) Não <strong>de</strong>u pra trazer nada?<br />

EDUARDO - (V.OFF) Eles não tinham. Dora, tô trêmulo.<br />

MÃE - (V. OFF) O intestino já endureceu, filha? Que bom que<br />

você vem pra perto <strong>de</strong> sua mãe! Cadê o álcool do seu tio, Dora?<br />

DORA - (V. OFF) Se a cólera que espuma...<br />

AS VOZES AGORA SE MISTURAM.<br />

V. GRAVADAS - Cadê o álcool cadê o álcool S.Excia pergunta pelas coroas<br />

que encomendou você tem quarenta e oito horas pra mandar as coroas se não<br />

mandar já sabe Dora não comemos há três dias faça alguma coisa o coração já<br />

endureceu, filha? <strong>de</strong>ixe essa mania boba <strong>de</strong> viver Dora Dora vamos ao prego vem<br />

filhinha vem filha ingrata S.Excia. disse que paga as coroas cadê as coroas <strong>de</strong><br />

S.Excia? Dora cê tá os cornos da tua mãe Dora sai daí menina tem teia <strong>de</strong> aranha<br />

<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>ssa cama será que o vizinho arranja um pouco <strong>de</strong> café? se a cólera que<br />

espuma a dor <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>ssa mania boba <strong>de</strong> viver filha se a cólera se a cólera...<br />

UM ESTALO, SEGUIDO DE RUÍDOS ESTRANHOS. OS RUÍDOS VÃO<br />

AUMENTANDO DE INTENSIDADE À MEDIDA QUE DORA DESCREVE<br />

SUAS LOUCAS SENSAÇÕES.<br />

VIBRANTE, ENLOUQUECIDA, DORA FALA E SE EXPRESSA TAMBÉM<br />

COM O CORPO: SEGURA A PERNA, PROTEGE A CINTURA, ADMIRA<br />

SEUS PEDAÇOS NO ESPAÇO, CORRE PARA JUNTAR OS SEUS<br />

PEDAÇOS E, FINALMENTE, TORCE-SE NO RISO.<br />

DORA - Essa corrente elétrica subindo pela perna ai na cintura não<br />

tenho cócegas uma explosão meus pedaços no espaço como fogos <strong>de</strong> artifício<br />

olha a cabeça rolando sobre os edifícios a perna direita aterrisou na linha do trem<br />

aquela criança tá soprando o meu estômado meu estômago não é bola menino<br />

ha-ha-ha <strong>de</strong>ix'eu juntar os meus pedaços ha-ha-ha se não tenho cuidado junto<br />

perna com ombro ha-ha-ha-ha-ha- pé com cabeça ha-ha-ha-ha-ha-ha cabeça com<br />

bunda ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha...<br />

SILÊNCIO TOTAL. DORA OLHA EM VOLTA COMO SE ESTIVESSE<br />

ACORDANDO DE UM SONHO. ALGO NELA MUDOU. ESTÁ<br />

LOUCAMENTE LÚCIDA. HÁ UMA ESTRANHA VITALIDADE NO SEU<br />

OLHAR, NO SEU CORPO. ERGUE-SE DE UM PULO E CORRE PARA OS<br />

FUNDOS DA CASA.<br />

48


MÃE - (DESESPERADA) Ah, Dora, <strong>de</strong> novo! Me levem pro<br />

cemitério. Não aguento mais esta casa!<br />

EDUARDO - (CANTA, DEMENTE) Pobre Dora! Dora, Dorinha, tá<br />

louquinha, tá louquinha...<br />

DORA IRROMPE NA SALA, ESFUSIANTE. VESTE A FARDA DE<br />

CORONEL DO TIO, MAS NÃO TROCOU AS SANDÁLIAS DE SALTOS<br />

ALTOS.<br />

DORA - Mãe, diga pra S.Excia. que conseguirei as coroas. Palavra<br />

<strong>de</strong> Dora!<br />

MÃE - (INDIGNADA) Dora, tire a farda do seu tio. É a farda <strong>de</strong><br />

um herói!<br />

DORA - (DEBOCHADA) Escolha: os brios do tio ou a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

S.Excia.<br />

MÃE - A última. O tio enten<strong>de</strong>rá. (NT) Filha, cê tá um belo<br />

coronel!<br />

EDUARDO - Dora, Dorinha, louquinha, louquinha, louquinha...<br />

DORA - Tô bonita mesmo, mãe? (APROXIMA-SE DA MÃE)<br />

MÃE - Linda! Mas bote um pouco <strong>de</strong> perfume. Você fe<strong>de</strong> a mofo.<br />

DORA - O perfume acabou.<br />

EDUARDO - Dora, Dorinha, louquinha, louquinha...<br />

DORA ENFIA A PISTOLA DO TIO NO CINTO E VAI SAINDO.<br />

DORA - A<strong>de</strong>us, mãe!<br />

MÃE - Espere. Tire essas sandálias. Não ficam bem para um<br />

coronel!<br />

DORA - Não tenho sapatos.<br />

MÃE - Pois bote as botas do tio.<br />

DORA - Estão fura<strong>das</strong> <strong>de</strong> balas. Parece que ele só levou tiro nos<br />

pés!...<br />

MÃE - Ora, um herói também corre!<br />

DORA - A<strong>de</strong>us, mãezinha!<br />

MÃE - Honra o teu sangue, filha!<br />

DORA - Quem viver, verá!<br />

MÃE - Deus está conosco!<br />

DORA SAI.<br />

EDUARDO - Dorinha, louquinha...<br />

MÃE - Ai, como os vivos me cansam! A<strong>de</strong>us, mundo ingrato!<br />

49


A MÃE MORRE FINALMENTE, COM UM GESTO BRUSCO DE CABEÇA<br />

PARA O LADO.<br />

EDUARDO LIGA UM VELHO RÁDIO. ENTRA A VOZ DO LOCUTOR DE<br />

UM PROGRAMA CLASSE C.<br />

LOCUTOR(OFF) - Comunicamos o falecimento do empresário Carlos<br />

Henrique Bianchi da Cunha Albuquerque, ocorrido na madrugada <strong>de</strong> hoje. Sua<br />

mulher, filhos e amigos convidam para o velório, que terá início às 14 h, na sala<br />

2 do cemitério São João Batista. Comunicamos o falecimento do empresário<br />

Carlos Henrique Bianchi da Cunha Albuquerque.<br />

ENTRA UMA MÚSICA.<br />

CENA 14 - SET DE UM RICO VELÓRIO.<br />

A VIÚVA CHORA ALTO DEBRUÇADA SOBRE O CAIXÃO DO MORTO.<br />

BURBURINHO DE MUITAS PESSOAS EM OFF.<br />

SURGE DORA, DE FARDA DE CORONEL E SANDÁLIAS ALTAS.<br />

APONTA A PISTOLA.<br />

DORA - Psiu! Quietinhos! Isto é um assalto! Passem as coroas...<br />

não, as senhoras, não, as coroas...<br />

CENA 15 - CASA DE DORA<br />

EDUARDO PREGA EM UM PAINEL MAIS UM RECORTE DE JORNAL.<br />

NO ALTO DO PAINEL, OS TÍTULOS: "SÃO JOÃO BATISTA", "CAJÚ",<br />

"VILA ROSALY"<br />

MÃE - Os vivos não têm o menor caráter quando estão com fome!<br />

Chega, vou para o Além! A<strong>de</strong>us.<br />

EDUARDO JOGA DISTRAIDAMENTE UM LENÇO SOBRE A CARA DA<br />

MÃE.<br />

ENTRA NOVAMENTE A VOZ DO LOCUTOR DE RÁDIO.<br />

LOCUTOR(OFF) - E atenção! Os cemitérios estão em polvorosa e os <strong>de</strong>funtos<br />

intranquilos. Vejam as manchetes <strong>das</strong> páginas policiais <strong>de</strong> hoje: Jornal do Brasil,<br />

"Louca dos Velórios Ataca Novamente", O Globo, "Defunto Assaltado na Gávea<br />

50


Pequena", Tribuna da Imprensa, "Defunto Rico Tem Segurança à Cabeceira", O<br />

Dia, "Coronel <strong>de</strong> Saltos Altos Assalta as Coroas"! (RISINHO) É mole?<br />

CENA 16 - SET DE CEMITÉRIO<br />

MONTADA NA ESTÁTUA DE UM TÚMULO, DORA OPERA UM<br />

MOLINETE. NA PONTA DA LINHA, ILUMINADA, SOBE UMA GRANDE<br />

COROA, COMO SE ASCENDESSE AOS CÉUS.<br />

VOZ DE MULHER - (MARAVILHADA) Milagre!<br />

DORA - Milagre! Mãe, vamos sair da merda, vamos enriquecer, mãe!<br />

DORA DÁ UMA GARGALHADA.<br />

FIM<br />

51

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!