contos vencedores em pdf interativo - A Irmandade
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CONTOS VENCEDORES DO PRÊMIO<br />
HENRY EVARISTO<br />
DE LITERATURA FANTÁSTICA<br />
Diagramação de Afonso Luiz Pereira<br />
Capa de Thato Bordin
Esta antologia não t<strong>em</strong> fins lucrativos, sendo sua<br />
distribuição totalmente gratuita, com o objetivo de divulgar<br />
os trabalhos dos m<strong>em</strong>bros da comunidade literária do site<br />
A <strong>Irmandade</strong>. No entanto, todos os textos publicados neste<br />
ebook são de propriedade intelectual de seus respectivos<br />
autores. A reprodução por meio de qualquer outra mídia, para<br />
fins comerciais ou não, só poderá ser feita com a autorização<br />
dos mesmos.
SUMÁRIO<br />
CONTOS VENCEDORES
APRESENTAÇÃO<br />
Apresentação<br />
A <strong>Irmandade</strong> é b<strong>em</strong> mais do que um site literário<br />
especializado no gênero Terror. É, antes, o meio pelo<br />
qual se expressam “homens e mulheres que precisam<br />
dividir os seus t<strong>em</strong>pos entre as agonias de um dia-adia<br />
estafante e ‘pé-no-chão’ e um mínimo de minuto<br />
para se deixar<strong>em</strong> viajar nas asas de uma imaginação<br />
exacerbada e maravilhosa; e esta imaginação, caro<br />
leitor, pode nos levar longe; pode nos conduzir a<br />
mundos assombrosos onde habitam mil espécies<br />
de coisas insanas, onde se escond<strong>em</strong> ninhos de<br />
víboras diabólicas, que são moradas de abominações<br />
horrendas e s<strong>em</strong> espaço nesse nosso pequeno mundo<br />
ordinário. Uma imaginação que gera monstros e<br />
belezas frias, palpáveis apenas nos mundos oníricos,<br />
mas que, vez por outra, pod<strong>em</strong> saltar de algum canto<br />
escuro ou de alguma floresta sombria para este<br />
lado da matéria, querendo devorar almas e mundos<br />
”.( Henry Evaristo, Introdução à coletânea<br />
“<strong>Irmandade</strong> das Sombras”, CBJE, p. 8 e 9.)<br />
Mas não é somente isto a <strong>Irmandade</strong>. Nela não<br />
há lugar para o egoísmo esnobe. Ela busca, igual e<br />
essencialmente, revelar ao mundo novos talentos,<br />
compartilhar ideias, fomentar o gosto e a troca de<br />
6
APRESENTAÇÃO<br />
experiências literárias, o que o faz estimulando a<br />
produção de narrativas fantásticas e, b<strong>em</strong> assim,<br />
divulgando amplamente um vasto leque de talentosos<br />
escritores. Foi o que fez, por um período curto, mas<br />
intenso, Henry Evaristo, <strong>em</strong> seu blogue “Câmara dos<br />
Tormentos”.<br />
Para que o legado e a missão de Henry se<br />
multipliqu<strong>em</strong>, o “Prêmio Henry Evaristo de<br />
Literatura Fantástica”, de periodicidade anual, foi<br />
instituído visando a fomentar a produção literária<br />
no gênero do terror <strong>em</strong> nosso País. E obteve, s<strong>em</strong><br />
dúvida, na sua primeira edição, êxito absoluto <strong>em</strong><br />
seu desiderato. O concurso contou com quase uma<br />
centena de <strong>contos</strong> inscritos e isto, certamente,<br />
tornou ainda mais expressiva a justa homenag<strong>em</strong><br />
que se rende a um dos maiores nomes da literatura<br />
fantástica nacional.<br />
O livro que traz<strong>em</strong>os a lume reúne as dez<br />
narrativas vencedoras do certame, extraídas de um<br />
universo de 92 <strong>contos</strong> recebidos, lidos atentamente,<br />
filtrados de acordo com a prioridade de critérios<br />
estabelecidos no regulamento, relidos e discutidos<br />
ponderadamente entre os seus avaliadores, M<strong>em</strong>bros<br />
Fundadores do site literário A <strong>Irmandade</strong>.<br />
Quer<strong>em</strong>os agradecer cada participante do Prêmio<br />
Henry Evaristo de Literatura Fantástico e, também,<br />
aos parceiros Flavio de Souza, Tânia Souza, Paulo<br />
Soriano, Rochett Tavares, Alfer Medeiros, Afonso<br />
Luiz Pereira, Lino França Jr., Ramon Bacelar,<br />
7
APRESENTAÇÃO<br />
Cristiano Rosa, Victor Meloni, que contribuíram<br />
com a realização do evento, doando ex<strong>em</strong>plares<br />
para a pr<strong>em</strong>iação <strong>em</strong> livros e, também, às editoras<br />
(Aleph, Argonauta, Draco, Estronho e Literata)<br />
que confiaram e apostaram no projeto.<br />
A todos os participantes do Prêmio Henry Evaristo<br />
de Literatura Fantástica, obrigado! Aos leitores que,<br />
porventura, esbarrar<strong>em</strong> nesta antologia, tenham uma<br />
boa leitura.<br />
8
HENRY EVARISTO<br />
Escrito por Paulo Soriano<br />
HENRY EVARIST0<br />
Escrito por Paulo Soriano<br />
É s<strong>em</strong>pre difícil escrever sobre alguém que, de<br />
alguma forma, enreda as nossas <strong>em</strong>oções.<br />
Não é s<strong>em</strong> motivo que se diz<strong>em</strong> suspeitos os que<br />
test<strong>em</strong>unham acerca de fatos que envolv<strong>em</strong> amigos<br />
ou inimigos. No primeiro caso, depõe-se “a favor”;<br />
no segundo, “contra”. Encontrar o equilíbrio <strong>em</strong><br />
tais situações é tarefa que exige um esforço sobrehumano.<br />
Creio que sou – e não simplesmente fui –<br />
amigo de Henry Evaristo t<strong>em</strong>po suficiente para <strong>em</strong>itir<br />
um parecer sobre sua pessoa, e é de seu imenso<br />
caráter que extraio o ex<strong>em</strong>plo e, b<strong>em</strong> assim, a força<br />
necessária para superar minha natural suspeição e<br />
dizer o que há de ser dito.<br />
O medo é uma sensação necessária e ancestral.<br />
Mais r<strong>em</strong>oto que o hom<strong>em</strong>, tão pr<strong>em</strong>ente e pungente<br />
quanto a sede e a fome, é o medo requisito<br />
indispensável à sobrevivência das espécies mais<br />
9
HENRY EVARISTO<br />
Escrito por Paulo Soriano<br />
evoluídas. Ele suscita o alerta de que algo de terrível<br />
nos espreita e assedia e que, portanto, é preciso<br />
reagir imediatamente. Mas tal primitiva <strong>em</strong>oção<br />
transcendeu o imperativo da sobrevivência ao<br />
humanizar-se. Não foi à toa que Lovecraft escreveu<br />
que o medo é a mais intensa e antiga das <strong>em</strong>oções<br />
humanas; e que, dos medos, o do desconhecido é o<br />
mais intenso. Henry Evaristo sabia disso melhor que<br />
ninguém; e, melhor que ninguém, deu prova disso.<br />
Sobre Henry, cujas linhas impactantes deixavamme<br />
quase s<strong>em</strong>pre boquiaberto, escrevi um texto que<br />
não cheguei a publicar. E n<strong>em</strong> mesmo a concluir.<br />
A pedido de meu amigo – uma das pessoas mais<br />
brilhantes que conheci –, eu me pus a redigir<br />
uma introdução ao seu único livro – Um salto na<br />
escuridão –, mas Henry faleceu antes que eu<br />
concluísse a minha missão. Mercê do meu transtorno<br />
e de minha profunda tristeza, que ainda perduram, o<br />
texto continua inacabado. Dói-me profundamente –<br />
e s<strong>em</strong>pre me atormentará – o r<strong>em</strong>orso de não ter<br />
aprontado a introdução quando Henry ainda estava<br />
entre nós, a nos encantar com a sua inteligência<br />
penetrante, sua fina ironia, seu cáustico humor. Fica<br />
o consolo de que registrei algumas gotas acerca do<br />
imenso caudal literário do amigo escritor e, antes<br />
que elas se dispers<strong>em</strong>, segue um tímido borrifo:<br />
Quando o dia entenebrece, quando sangra o<br />
horizonte rasgado pelo vento cálido, e as copas<br />
das árvores altaneiras dançam silenciosamente o<br />
10
HENRY EVARISTO<br />
Escrito por Paulo Soriano<br />
fulgor escarlate, que anuncia a chegada das trevas<br />
abissais, toda a floresta se recolhe num súbito e mudo<br />
<strong>em</strong>brutecimento. Tudo se cala. Tudo se paralisa. Um<br />
clima de angustiante expectativa subjuga a melancolia<br />
que só o ocaso sói transpirar. Há o prenúncio de que<br />
algo de terrível há de se esgueirar sob a hedionda<br />
tessitura duma miríade de galhos e cipós retorcidos.<br />
Finalmente, quando a treva exerce a sua absoluta<br />
suserania, elava-se das entranhas da mata cerrada<br />
um clangor absurdo, que se não sabe se humano ou<br />
animal, e toda expectativa é sepultada pelo medo<br />
palpável, pelo horror pungente, denso e penetrante,<br />
da contextura de uma neblina negra e atroz.<br />
Teriam os horrores silenciosos, que se escond<strong>em</strong><br />
sob a densidade indevassável da Floresta Amazônica,<br />
induzido um espírito taciturno, e especialmente<br />
inteligente, a perscrutar o mundo com singular<br />
argúcia, e nele vislumbrar pavores outros, invisíveis<br />
aos olhos das pessoas comuns? E, <strong>em</strong> seguida, a<br />
incutir, com a pena de um grande mestre, e a tinta<br />
carregada de horrores, no espírito do leitor, o medo<br />
<strong>em</strong> seu aspecto mais substancial?<br />
É b<strong>em</strong> possível que sim. Pois o que permeia a<br />
obra do escritor acriano Henry Evaristo é, sobretudo,<br />
o prenúncio do horror. É o presságio do terrível.<br />
Henry sabe muito b<strong>em</strong> que é justamente no limiar de<br />
um fato especialmente tenebroso que reside o medo.<br />
E explora este momento que antecipa o fatídico com<br />
maestria inigualável. Ninguém melhor que Henry<br />
11
HENRY EVARISTO<br />
Escrito por Paulo Soriano<br />
sabe fazê-lo, resida ou não a causa dos t<strong>em</strong>ores <strong>em</strong><br />
fatores sobrenaturais...<br />
Henry foi – e, para mim, continuará sendo – um<br />
grande escritor. Mas, talvez, esta não seja, dentre<br />
a suas inúmeras facetas – Evaristo era escritor,<br />
instrumentista, compositor, historiador e professor<br />
– a única altaneira. Que Henry era um hom<strong>em</strong> de<br />
imenso e singular talento, ninguém duvida. Mas<br />
era, sobretudo, um ser humano extraordinário, um<br />
amigo a toda prova, especialmente sincero, humano<br />
e fiel. Caráter e talento muitas vezes se distanciam.<br />
Mas, <strong>em</strong> Henry Evaristo, mais que se imbricavam:<br />
mesclavam-se e fundiam-se para resultar e dar a<br />
exata dimensão de um grande hom<strong>em</strong>.<br />
(Saudades, irmão! Muitas e muitas saudades...)<br />
Paulo Soriano<br />
12
A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />
Henry Evaristo<br />
A Coisa do Jardim<br />
Zoológico<br />
Henry Evaristo<br />
Naquele dia resolvi que gostaria muito de poder<br />
explorar as trilhas selvagens que se estendiam ao redor do<br />
parque. Eram como trajetos postos à disposição do público<br />
para que ele pudesse, ao mesmo t<strong>em</strong>po, experimentar o<br />
contato direto com a natureza e se exercitar praticando<br />
caminhadas saudáveis. Em verdade, o lugar era também<br />
um centro cultural onde ocorriam apresentações musicais,<br />
mostras de teatro, artes plásticas, cin<strong>em</strong>a e, logicamente,<br />
a exposição de animais de faunas variadas <strong>em</strong> jaulas<br />
espalhadas ao longo das trilhas que adentravam o terreno<br />
e iam findar muitos quilômetros adiante, numa área de<br />
fazendas e matadouros.<br />
No dia 21 de abril de 1990 eu não saí do interior<br />
do parque antes que ele fechasse. Fiquei vagando pelas<br />
trilhas, refletindo sobre probl<strong>em</strong>as que me absorveram tão<br />
completamente a ponto de me fazer<strong>em</strong> perder o horário.<br />
Por volta das vinte horas, me vi no meio da floresta escura<br />
cercado pelo silêncio que parecia brotar da ausência de<br />
pessoas no local; e pela estranha vida que s<strong>em</strong>pre se<br />
propaga pelas matas depois que escurece. Oh, só sabe do<br />
13
A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />
Henry Evaristo<br />
que falo aquele que já esteve <strong>em</strong> situação s<strong>em</strong>elhante!<br />
As florestas, à noite, se ench<strong>em</strong> de uma vida<br />
assombrosa. Silvos medonhos se espalham pelo ar,<br />
vindos sabe-se lá de onde; galhos se part<strong>em</strong> como que<br />
pisoteados por coisas que andam <strong>em</strong> meio às trevas. E<br />
estranhas vozes parec<strong>em</strong> soar b<strong>em</strong> às suas costas, de<br />
repente, no escuro. Então, quando você se volta, aturdido,<br />
com o coração saltitando <strong>em</strong> velocidade homicida,<br />
descobre que não há nada, pelo menos não mais, além<br />
de galhos e folhas, galhos e folhas que pod<strong>em</strong> muito b<strong>em</strong><br />
esconder coisas pavorosas. Aquele que quiser realmente<br />
experimentar o horror, mergulhe, como eu fiz, numa<br />
floresta escura após o anoitecer. Não é a toa que os<br />
homens medievais acreditavam que seus bosques eram<br />
povoados por d<strong>em</strong>ônios carniceiros.<br />
Quando percebi a situação insólita <strong>em</strong> que me<br />
<strong>em</strong>brenhara, voltei-me imediatamente na direção da saída<br />
da trilha <strong>em</strong> que estava. O imenso corredor que o caminho<br />
descortinava diante de mim encontrava-se completamente<br />
envolto pelas trevas. Ainda podia avistar, no céu, réstias<br />
de luz solar, mas não era o suficiente para proporcionar<br />
nenhum tipo de alívio para toda aquela escuridão. Pude<br />
ver algumas luzes dos postes que cobriam a extensão<br />
inicial da trilha; luzes esbranquiçadas que se projetavam<br />
para baixo como raios triangulares b<strong>em</strong> definidos. Segui<br />
nesta direção.<br />
Observei que enquanto andava, com passos realmente<br />
apressados, passavam por mim algumas jaulas que n<strong>em</strong><br />
mesmo havia percebido quando fizera o caminho de ida.<br />
Percebi também um cheiro forte e acre que se espalhava a<br />
partir destas "gaiolas" imensas; e diminuí o ritmo de meus<br />
passos, num primeiro momento, ao ouvir um som horrível<br />
que se propagou de repente pelo ar frio da noite. Era, s<strong>em</strong><br />
14
A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />
Henry Evaristo<br />
dúvida, um rosnar feroz, animalesco, ameaçador. Vinha do<br />
escuro no interior da jaula e, ao olhar fixamente para a<br />
escuridão, imediatamente avistei múltiplos pares de olhos<br />
que me fitavam avermelhados. Não sei o que me passou<br />
pela cabeça na ocasião, mas creio, hoje, depois de tantos<br />
anos, que não andava muito b<strong>em</strong> das ideias já naquele<br />
t<strong>em</strong>po. Digo isso por que, quando deveria <strong>em</strong>pregar ainda<br />
mais vigor <strong>em</strong> minhas passadas <strong>em</strong> direção à saída da<br />
trilha, e s<strong>em</strong> dúvida alguma começar a gritar desde já, eu<br />
resolvi parar. Segurei na barra protetora, que mantém os<br />
visitantes a uma distância segura das feras aprisionadas,<br />
e fitei novamente o interior.<br />
Eram lobos! Uma cela repleta de lobos! Espécimes<br />
extraordinários, enormes e de cores que não pude discernir<br />
na escuridão. No entanto, todos estavam tão quietos,<br />
acuados a um canto de sua morada forçada. Foi somente<br />
quando me inclinei ainda mais próximo que pude perceber<br />
um outro animal lá dentro. Um outro lobo ou fosse lá o<br />
que fosse... Um animal quadrúpede que, postado aos pés<br />
das barras de ferro, me fitava com aparente animosidade.<br />
Quando o percebi, estava já com a cabeça quase encostada<br />
na proteção da jaula. E hoje fico imaginando se aquela<br />
besta tivesse enfiado as garras para fora e me agarrado<br />
pelo pescoço...<br />
Não pude ver nitidamente seu dorso, mas pelo<br />
volume escuro de sua cabeça, com certeza era um animal<br />
de grande porte, incomum eu diria, até mesmo para os<br />
lobos mais desenvolvidos.<br />
Ela não fazia movimentos. Ficava lá, parado, me<br />
observando. Enquanto isso os outros animais pareciam<br />
sofrer com sua presença. Soltavam pequenos uivos<br />
lamentosos e passavam as garras pelo chão. Mas nunca,<br />
<strong>em</strong> hipótese alguma, saiam de suas posições ousando<br />
15
A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />
Henry Evaristo<br />
aproximar-se da fera escura perto das grades.<br />
Resolvi seguir meu caminho. A curiosidade inicial<br />
estava novamente dando lugar ao medo de outrora. Não<br />
gostei do olhar que a coisa me lançou quando percebeu<br />
que eu começara a me afastar. E, antes de me virar para<br />
continuar a andar, a vi <strong>em</strong>preender um movimento súbito<br />
para frente e começar a se levantar. Novamente apressei o<br />
passo. Agora queria me distanciar urgent<strong>em</strong>ente daquele<br />
lugar.<br />
Não avançara mais que c<strong>em</strong> metros quando ouvi um<br />
som pavoroso ás minhas costas. Não era nenhum uivo,<br />
n<strong>em</strong> grito sobrenatural, ou rosnar dantesco, como pod<strong>em</strong><br />
estar imaginando os amigos. Eram os ruídos, os rangeres<br />
metálicos, que as grades da jaula <strong>em</strong>itiam ao ser<strong>em</strong><br />
escaladas por alguma coisa pesada que quisesse saltar<br />
para fora da morada dos lobos.<br />
Não posso descrever a sensação de pavor e de<br />
estarrecimento que experimentei quando percebi que<br />
algo havia deixado o interior escuro de onde estivera<br />
espreitando e estava agora solto na mesma trilha que eu.<br />
Mesmo assim, vendo que os postes de luz estavam agora<br />
b<strong>em</strong> mais perto, e podendo já avistar a guarita onde dois<br />
guardas assistiam TV, resolvi me virar para olhar o que<br />
quer que fosse.<br />
Primeiro vi o caminho escuro atrás de mim. Minhas<br />
vistas d<strong>em</strong>oraram um pouco a enxergar aquilo que estava<br />
mais adiante. Depois vi as matas ao redor, açoitadas pelo<br />
vento e cobertas com as trevas mais densas.<br />
Depois avistei o local onde estivera, <strong>em</strong> frente à<br />
jaula dos lobos. Havia uma sombra parada lá. Uma sombra<br />
volumosa, de cerca de dois metros de altura. Sei disso por<br />
16
A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />
Henry Evaristo<br />
que ela estava de pé! Ereta! E olhava fixamente para o<br />
interior do lugar de onde saíra.<br />
Andei mais para adiante e parei novamente na orla<br />
entre o início da trilha e a luminosidade proporcionada<br />
pelos postes. Da guarita do portão principal saltaram os<br />
vigias correndo <strong>em</strong> minha direção.<br />
A sombra continuava lá, <strong>em</strong> sua mesma posição.<br />
Mas agora me fitava, sei que me fitava, mesmo com<br />
toda aquela escuridão... Pois seus dois olhos vermelhos<br />
faiscavam contra o reflexo das luzes brancas dos postes<br />
de iluminação!<br />
Não ouso descrever as formas da coisa. Até hoje<br />
guardei este segredo b<strong>em</strong> guardado comigo, mas nunca<br />
deixei que nenhum de meus filhos frequentasse o jardim<br />
zoológico municipal. Na primeira oportunidade, mandei-os<br />
estudar na capital.<br />
Sei que minhas decisões foram acertadas tanto com<br />
relação a meus filhos como com relação a mim mesmo<br />
no dia fatídico. Foi minha resolução <strong>em</strong> me afastar que<br />
provavelmente me salvou pois, alguns meses depois,<br />
a comunidade de nossa pequena cidade se quedou<br />
aterrorizada por uma onda de desaparecimentos de<br />
pessoas nas imediações do zoológico.<br />
Às vezes, quando estou só, tarde da noite, e a<br />
insônia de velho não me deixa conciliar o sono, sentome<br />
na cama e, enquanto observo minha esposa ressonar<br />
<strong>em</strong> seu oblívio inocente, me vêm à mente as palavras<br />
gritadas pelos vigias para dentro da trilha escura. Lá, onde<br />
avistaram, como eu mesmo, o animal que provavelmente<br />
devia ter aprendido como saltar para fora da jaula onde<br />
deveria viver confinado. Com certeza não foi um animal<br />
17
A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />
Henry Evaristo<br />
que os dois homens viram. Viram o mesmo que eu! E<br />
suas palavras me arrepiam diante das possibilidades tão<br />
aterradoras:<br />
"Senhor, venha para cá!” Eles gritaram. “O parque já<br />
está fechado!"<br />
"Ai é perigoso! O senhor os está perturbando!"<br />
Também l<strong>em</strong>bro de como a fera lançou um outro olhar<br />
para mim, de dentro da escuridão e depois, nos dando as<br />
costas e caminhando encurvada, desapareceu na floresta.<br />
18
CONTOS VENCEDORES DO PRÊMIO<br />
HENRY EVARISTO<br />
DE LITERATURA FANTÁSTICA
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
Felício tinha os olhos injetados pelo pavor, as mãos<br />
tomadas por incontrolável tr<strong>em</strong>or, e, fazia dias,<br />
não falava. No desespero da súbita perda da faculdade<br />
da fala, gesticulava angustiado, e tentava inutilmente<br />
articular palavras que não encontravam <strong>em</strong> suas cordas<br />
vocais a ressonância necessária para que ele se fizesse<br />
inteligível. Pobre Felício! Fosse alfabetizado, com certeza<br />
poderia se utilizar da escrita para descrever o que de fato<br />
tinha acontecido àquela noite. Letras e garranchos, para<br />
ele, eram a tudo a mesma coisa, não representavam nada.<br />
O povo da pequena Oiticica, onde quase nada de<br />
extraordinário acontecia, <strong>em</strong> principio teve até curiosidade<br />
<strong>em</strong> saber que espécie de mal o havia acometido. Depois,<br />
com o t<strong>em</strong>po, deixaram para lá. Fosse uma pessoa<br />
importante, tivesse recursos, certamente o levariam para<br />
a Capital para ser submetido a minuciosos exames com os<br />
melhores médicos. Mas Felício, coitado, não passava de<br />
um pobre diabo que não tinha onde cair morto.<br />
A verdade sobre o que lhe ocorrera, só ele conhecia.<br />
20
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
E, se a revelasse, ele b<strong>em</strong> o sabia, seria severamente<br />
punido, pois o que fizera, mais do que pecado, poderia<br />
até ser considerado como crime hediondo. Todavia, Felício<br />
estava - por Deus como estava - disposto a fazê-lo, desde<br />
que tivesse de volta a sua voz e a sua paz de espírito. No<br />
fundo do coração, ele estava envergonhado e arrependido<br />
do seu ato. Sim, s<strong>em</strong> dúvida nenhuma, ele merecia um<br />
castigo. Qu<strong>em</strong> sabe já não estava sendo castigado pelo<br />
que fizera? O mesmo se aplicava ao criador de porcos<br />
Jer<strong>em</strong>ias. Mas o seu parceiro, como irão saber mais<br />
adiante, tivera outra sorte não menos triste.<br />
A brilhante ideia de profanar a carneira de Dom<br />
Francesco Maggio fora dele, Felício. Que Jer<strong>em</strong>ias, um<br />
xucro, que <strong>em</strong>bora soubesse ler, não era lá de pensar<br />
muito. Em principio, Felício até pensou <strong>em</strong> fazer o serviço<br />
sozinho para não correr riscos. Mas, ao constatar que a<br />
tampa de mármore do túmulo do bispo era tão pesada que<br />
um hom<strong>em</strong> sozinho não conseguiria r<strong>em</strong>ovê-la, convidou<br />
Jer<strong>em</strong>ias para pescar traíra no banhado, e lá convenceu-o<br />
de que devia ajudá-lo. A troco de quê? Ora, Jer<strong>em</strong>ias, por<br />
mais tolo que fosse, não ia trabalhar de graça. Felício<br />
logo descobriu que ele se apaixonara de um par de<br />
botinas que estava exposto há meses na vitrina da Casa<br />
Independência, a ponto de passar quase todos os dias <strong>em</strong><br />
frente à loja para admirar o produto.<br />
“As botinas serão suas se me fizer este favor,<br />
parceiro!” — prometeu Felício. E Jer<strong>em</strong>ias engoliu a isca<br />
que n<strong>em</strong> um bagre bobo.<br />
A lua cheia, lá nas alturas, era um medalhão de prata<br />
fosca, quando os parceiros marcharam rumo ao c<strong>em</strong>itério<br />
decididos a por <strong>em</strong> prática seu macabro plano. Eram<br />
duas sombras que se esgueiravam sorrateiras por entre<br />
jazigos antigos e covas simples. Felício ia à frente, as<br />
21
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
mãos enluvadas <strong>em</strong> sacos plásticos, já que, como era de<br />
se esperar, depois de quase um mês sepultado, os restos<br />
mortais do prelado estivess<strong>em</strong> <strong>em</strong> avançado estado de<br />
decomposição. Atrás de si, portando uma alavanca, ia o<br />
grandalhão Jer<strong>em</strong>ias.<br />
Um odor rançoso e putrefato infectou, num minuto, a<br />
atmosfera cálida do campo santo, quando os profanadores<br />
ergueram a pesada campa. Felício sentiu que seu estômago<br />
se revirava, mas aguentou firme. Jer<strong>em</strong>ias, acostumado<br />
aos odores da pocilga onde alimentava sua vara de porcos,<br />
não estranhou muito.<br />
Sob o espectro pálido do luar, um espetáculo insólito:<br />
milhares, quiçá milhões, de pequenas larvas da tapurus<br />
se refestelavam com as carnes fartas de Dom Francesco,<br />
indiferentes à presença dos dois intrusos.<br />
“O anel de esmeralda!” — conteve-se para não gritar<br />
eufórico Felício, enquanto arrancava, s<strong>em</strong> cerimônia, a<br />
jóia do dedo médio esquerdo já descarnado do defunto<br />
notável.<br />
“Sua <strong>em</strong>inência não vai mais precisar dele, Jer<strong>em</strong>ias!”<br />
— riu.<br />
Felício, mais que exultante, de algum modo sentia-se<br />
vingado da indiferença e do desprezo com que era tratado<br />
pelos seus vizinhos. Pensavam que era um parvo por não<br />
ter estudo? Pois que continuass<strong>em</strong> pensando. Enquanto<br />
eles estavam indo com a farinha, já estava ele de volta<br />
com o angu.<br />
Tinha tudo muito b<strong>em</strong> planejado. No dia seguinte,<br />
logo cedo, iria comprar as benditas botinas prometidas<br />
ao Jer<strong>em</strong>ias, e <strong>em</strong>barcaria no primeiro comboio rumo<br />
à capital. Lá, um primo seu iria acompanhá-lo até um<br />
22
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
avaliador experimentado. Um comprador que não dava a<br />
mínima pela procedência do produto, e negociaria o anel.<br />
Encheria as turras. Arrumaria a vida. Tiraria o pé da lama.<br />
Nada mais a fazer ali, recolocaram com cuidado a<br />
campa sepulcral, e decidiram abandonar o local.<br />
Andavam rápido, desviando-se dos túmulos, quando,<br />
sob o arco do portão encimado por uma cruz antiga de<br />
cimento, Felício, s<strong>em</strong> se voltar, comentou com o parceiro:<br />
“Tudo nos conformes, né Jer<strong>em</strong>ias?”.<br />
Embora pudesse sentir sua presença, seu arfar<br />
pesado, seus passos, estranhou que o companheiro não<br />
lhe respondesse. E, ao voltar-se, se surpreendeu que ali<br />
não estivesse.<br />
“Deixe de brincadeira besta, hom<strong>em</strong>!” — ralhou <strong>em</strong><br />
um tom um pouco mais alto, imaginando-o escondido<br />
atrás de algum túmulo.<br />
“Visag<strong>em</strong> não me assusta não! Medo mais eu tenho é<br />
dos vivos!”.<br />
Felício enfezou-se.<br />
“Jer<strong>em</strong>ias, seu idiota!” — berrou irritado — “Vamos<br />
cair fora logo dessa merda de lugar!”.<br />
Não houve resposta. N<strong>em</strong> sombra do outro.<br />
Perdida a paciência, Felício tomou novamente o rumo<br />
do túmulo do bispo disposto a enquadrar o criador de<br />
porcos.<br />
“Que hora mais imprópria para brincar, hom<strong>em</strong>!”.<br />
23
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
Jer<strong>em</strong>ias também não estava lá. Sobre a alva campa<br />
de Dom Ramiro, porém, avistou as suas roupas rotas, o<br />
seu chapéu surrado, as suas alpargatas de rabicho, ao<br />
lado da alavanca fornida <strong>em</strong> aço.<br />
Uma corrente de ar frio, fenômeno incomum<br />
naquelas paragens naturalmente áridas, fez-se sentir. E<br />
Felício, as pernas tomadas de súbita fraqueza, mesmo<br />
não querendo acreditar, desconfiou que algo de incomum<br />
estivesse prestes a acontecer. Subitamente, uma nuv<strong>em</strong><br />
de chumbo eclipsou o luar e dela, descendo <strong>em</strong> vertical,<br />
apresentou-se um vulto paramentado de estola e casula.<br />
A mitra dourada equilibrada sobre o crânio de pelo ralo, o<br />
báculo do poder episcopal na mão esquerda. Felício sentiu<br />
gelar o sangue.<br />
A lua voltou a aparecer. À luz dos seus raios, Felício<br />
pode enxergar nitidamente as faces descarnadas e os<br />
ossos podres de Dom Francesco Maggio. O espectro fez um<br />
sinal <strong>em</strong> sua direção com a mão direita, e ordenou-lhe com<br />
uma voz rouquenha e gutural, que parecia vir dos abissais<br />
do inferno, que devolvesse o anel episcopal. Felício, <strong>em</strong><br />
pânico, quis pedir socorro, mas dentro daquele sórdido<br />
pesadelo, o grito agrilhoado na masmorra profunda das<br />
suas entranhas não lograva se libertar.<br />
“Devolva-me o meu anel, ó excomungado!” — repetiu<br />
o defunto ressurrecto por algum desígnio sobrenatural.<br />
Felício, tomado pelo terror, deixou cair sobre o<br />
passeio coberto de limo o lenço no qual envolvera o anel<br />
surrupiado ao morto. Instantânea e providencialmente,<br />
a poderosa energia selenita dos raios que banhavam a<br />
frieza mórbida das lápides enfileiradas fez com que suas<br />
pernas finalmente recobrass<strong>em</strong> os movimentos e, mesmo<br />
s<strong>em</strong> uma ord<strong>em</strong> clara do seu cérebro, o levass<strong>em</strong> para<br />
24
<strong>em</strong> longe dali.<br />
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
Foi assim, desta maneira insólita, que Felício perdeu<br />
a capacidade da fala.<br />
No dia seguinte, o povoado s<strong>em</strong>pre tão tranquilo e<br />
s<strong>em</strong> grandes novidades, acordou com um boato que,<br />
verificou-se depois, tinha algum fundamento. Marcelino<br />
Nogueira, o Sete Palmos, que há anos des<strong>em</strong>penhava<br />
a função de coveiro do povoado, capinava um canto do<br />
campo santo quando descobriu violada a última morada<br />
do venerável bispo Dom Francesco Maggio, que, <strong>em</strong>bora<br />
exercesse seu apostolado na diocese de uma cidade maior,<br />
manifestara <strong>em</strong> testamento o desejo de ser enterrado <strong>em</strong><br />
sua natal Oiticica.<br />
Uma comissão composta de autoridades locais,<br />
entre elas o vigário Ariosto Petrônio, o boticário Pompeu<br />
Lobato e dona Maricota L<strong>em</strong>es, diretora do Grupo Escolar<br />
Belizário de Souza, se incumbiu de investigar o estranho<br />
caso. Só a ela foi permitida o acesso à bizarra cena do<br />
crime. A exceção era Marcelino Sete Palmos, a qu<strong>em</strong> coube<br />
a ingrata função de botar as mãos na massa esfarelada e<br />
inanimada, de revistar o esquife.<br />
Em princípio, certificou-se que nada de valor havia<br />
sido subtraído do túmulo. Os investigadores viram-se<br />
<strong>em</strong>pacados, todavia, na hipótese da profanação como<br />
parte de um ritual de magia negra, apresentada pelo padre<br />
que, quando jov<strong>em</strong>, tivera a oportunidade de estudar<br />
casos desta natureza na Universidade do Vaticano.<br />
Foi Marcelino qu<strong>em</strong> percebeu que, a despeito de<br />
haver falecido há quinze dias, Don Francesco não exalava<br />
o odor nauseabundo dos cadáveres apodrecidos. Era um<br />
defunto fresco.<br />
25
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
“Era um hom<strong>em</strong> santo” — buscou uma explicação de<br />
cunho místico o padre Ariosto — “digno de beatificação”.<br />
“Parece até que Dom Francesco r<strong>em</strong>oçou...” —<br />
observou dona Maricota – “E engordou”.<br />
Com o olho clínico de qu<strong>em</strong> convivia há muito t<strong>em</strong>po<br />
com os convocados a descer à mansão dos mortos,<br />
Marcelino Sete Palmos ouvia com atenção as conjecturas<br />
e suposições, enquanto analisava o de cujus. Quando a<br />
questão voltou à estaca zero do impasse, pediu licença<br />
para dar a sua modesta opinião:<br />
“Desculp<strong>em</strong>-me a intromissão, mas, olhando b<strong>em</strong>,<br />
este corpo aí não é o do nosso saudoso Dom Francesco.”.<br />
Houve imediatamente, como era de se esperar, um<br />
reboliço geral. Os m<strong>em</strong>bros da comissão se entreolharam<br />
confusos.<br />
“Marcelino!” — ralhou o austero boticário Lobato —<br />
“Como se atreve a dizer uma bobag<strong>em</strong> dessas, hom<strong>em</strong>?”.<br />
“Digo e provo, seu Lobato!” — agachou-se junto ao<br />
corpo o coveiro — “Olh<strong>em</strong>!”.<br />
Levantando a mitra episcopal e deixando a descoberto<br />
a cabeça do morto, o coveiro tocou-lhe de leve a testa:<br />
“Dom Francesco era calvo, não era?”.<br />
Todos assentiram que sim, concordando, pois com<br />
o prelado haviam convivido muitas décadas. Alguns até<br />
tinham sido batizados e casados por ele.<br />
“E esta cicatriz aqui, que vai do pescoço à base da<br />
orelha direita?”.<br />
26
Lobato.<br />
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
“Fui eu qu<strong>em</strong> saturou o ferimento” — adiantou-se<br />
“Então só pode ser o...” — tapou a boca, horrorizada,<br />
dona Marieta.<br />
“Ele mesmo!” — ergueu-se triunfante Marcelino Sete<br />
Palmos. — “Esse corpo aí, minha gente, é do Jer<strong>em</strong>ias dos<br />
porcos!”.<br />
Para que não se acirrasse ainda mais confusão, <strong>em</strong><br />
consenso, a comissão resolveu manter tudo <strong>em</strong> segredo.<br />
Que se enterrasse ali aquela história. Para todos os efeitos,<br />
era Dom Francesco qu<strong>em</strong> repousava naquele jazigo de<br />
mármore com inscrições <strong>em</strong> latim.<br />
O padre Ariosto, convicto de que haviam tomado a<br />
melhor decisão, convocou todos a uma prece e, no papel<br />
que lhe cabia, encomendou a Deus aquela pobre alma.<br />
Que Jer<strong>em</strong>ias ali permanecesse, até o dia do Juízo, quando<br />
todos haveriam de prestar contas dos seus atos.<br />
Quanto ao Felício, diz<strong>em</strong>, só voltou a falar novamente<br />
duas horas antes de falecer, quando finalmente confessou<br />
sua culpa. Até aquele dia, porém, tinha sido visto s<strong>em</strong>pre<br />
a vagar aparvalhado pelas ruas estreitas de Oiticica, s<strong>em</strong><br />
conseguir se livrar dos passos ritmados pela batida dura<br />
do cajado que o seguiam por onde quer que fosse, s<strong>em</strong><br />
lhe dar trégua, ou um instante sequer de paz.<br />
27
PROFANADORES<br />
Chico Pascoal<br />
CHICO PASCOAL é escritor cearense radicado <strong>em</strong> São<br />
Paulo, com <strong>contos</strong> e po<strong>em</strong>as publicados sites e revistas<br />
literárias tais como Veropo<strong>em</strong>a, Bestiário, Portal<br />
Literal, Veredas (Brasil), Minguante e Letrário<br />
(Portugal), Navona Editorial (Espanha) . Participou<br />
das seguintes antologias: Contos Imediatos (Ficção<br />
Científica da Editora Terracota, 2009), Cursed City,<br />
História Fantástica do Brasil – Inconfidência, Saci<br />
e os Mestre do Terror, Sexo Livros e Rock in Roll,<br />
D<strong>em</strong>ônios VII – Avareza (Editora Estronho), FC do B –<br />
Ficção Cientifica do Brasil – Panorama 2011 (Editora<br />
Tarja) , Literatura Futebol Clube (Editora Multifoco,<br />
2012), H2Horas (Cronópios/Dulcinéia Catadora -2010)<br />
Autor de literatura minimalista, foi pr<strong>em</strong>iado <strong>em</strong> diversos<br />
concursos de mini<strong>contos</strong>, nano<strong>contos</strong> e poesia haicai.<br />
Leitor apaixonado, t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre à mão um livro; seja de<br />
autor nacional ou estrangeiro. Que a literatura<br />
Escreve no blogue: http://microrelatosdocheeko.blogspot.<br />
com<br />
28
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
Escreve com teu sangue e verás que sangue é espírito.<br />
Nietzsche<br />
Nunca soube de alguém que tenha vivido uma<br />
experiência igual ou, ao menos, s<strong>em</strong>elhante a<br />
esta. É quase certo que vocês, leitores, jamais passaram<br />
por uma situação tão odiosa e intrigante quanto a minha.<br />
Vou descrevê-la para homenagear aqueles que mantêm<br />
opiniões precipitadas e céticas perante a palavra. Já posso<br />
até ouvir os rumores de críticos e leigos ao confrontar<strong>em</strong><br />
tal narrativa.<br />
Entes incrédulos...<br />
Imagin<strong>em</strong>, pois, a seguinte situação: imagin<strong>em</strong> dividir<br />
um espaço restrito com seu pior inimigo. Imagin<strong>em</strong> tê-lo<br />
29
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
tão próximo de si a ponto de ouvir seus pensamentos e<br />
angústias. Imagin<strong>em</strong> suportar suas imprecações e ameaças<br />
s<strong>em</strong> poder revidar. Imagin<strong>em</strong> o quão degradante é para o<br />
hom<strong>em</strong> não poder seguir o caminho das sombras.... Acho<br />
que peço d<strong>em</strong>ais – o bom senso de vocês os imped<strong>em</strong> de<br />
imaginar algo s<strong>em</strong>elhante. O claustro é um lugar infernal,<br />
sobretudo se nele estiver aquele que você mais odeia.<br />
Tudo começou na escuridão imposta por uma venda.<br />
Quando alguém a tirou, não pude distinguir o que estava<br />
ao meu redor. Minha cabeça girava e doía. Aos poucos, as<br />
manchas colidiram-se. Imagens distintas aproximavamse.<br />
Estava amarrado numa cadeira dentro dum sótão<br />
minúsculo. A luz de um abajur revelou-me dois estrados,<br />
uma escrivaninha e alguns cobertores. Outros objetos<br />
foram aparecendo: livros numa mesa de cabeceira, um<br />
cantil com água, folhas avulsas e outros fragmentos<br />
esparramados no chão. Mais tarde, vi que eram bolas de<br />
papel.<br />
Não havia nenhuma janela. O ar morno e pesado era<br />
quase irrespirável. Esse incômodo talvez se acentuasse<br />
devido ao meu esforço <strong>em</strong> desatar os nós que me prendiam<br />
à cadeira. Lutei esbaforido, mas, no fim, acabei caindo,<br />
imóvel. Na posição que estava, divisei um vulto perto da<br />
porta. Seria o hom<strong>em</strong> que havia tirado minha venda? A luz<br />
do abajur não alcançava as sombras que o consumiam. Ele<br />
riu ironicamente. Seus gestos mexeram-se nas trevas.<br />
Ouvi um, dois, três, quatro passos...<br />
Hermes Ávila, meu pior inimigo, revelava-se diante<br />
de mim! Julguei estar delirando... Cerrei meus olhos<br />
fort<strong>em</strong>ente. Abri-os... Realmente, era o maldito escritor!<br />
“Não pense que foi meu desígnio trazê-lo para este<br />
lugar”, disse ele, adivinhando-me. Suas palavras eram<br />
30
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
repugnantes! Eu me contorcia, amarrado à cadeira, e<br />
vociferava várias injúrias.<br />
Ávila levantou-me. Disse que também fora raptado<br />
e trazido para cá. “Mentira!”, gritei. No entanto, juroume<br />
por sua honra que dizia a verdade. Segundo ele, tinha<br />
sido sequestrado muito antes que eu. Assim que me<br />
reconheceu, quis matar-me. Contudo, debaixo da porta,<br />
apareceram palavras que coibiram sua fúria. Hermes<br />
pegou um envelope sobre a escrivaninha e tirou um papel<br />
com uma ameaça datilografada. Dizia a mensag<strong>em</strong> que,<br />
se um de nós atentáss<strong>em</strong>os contra a vida do outro, ambos<br />
seríamos mortos por eles...<br />
Eu era incapaz de acreditar nessa história, afinal,<br />
seu porta-voz era meu pior inimigo... mas havia algo que<br />
me inculcava. Se Hermes era o mentor do meu sequestro,<br />
por que eu continuava vivo? Estr<strong>em</strong>eci... Será que estava<br />
diante dum sádico? Para minha surpresa, ele desatava<br />
os nós que me prendiam. Pude mover-me livr<strong>em</strong>ente,<br />
mas estava fraco. Ávila jamais se importaria com isso<br />
– atingiu-me com um potente soco! Tentei revidar, mas<br />
meus m<strong>em</strong>bros não se moviam. Acabei desmaiando...<br />
Quando acordei, vi-o entregue aos manuscritos<br />
dispersos sobre a escrivaninha.<br />
— Como da outra vez, não te matei por causa da<br />
ameaça daquele papel. Confesso que fiquei mais tentado<br />
que antes, mas ainda preciso viver para concluir este<br />
conto – disse ele s<strong>em</strong> desviar seus olhos da escritura.<br />
Não respondi. Arranhei meu ódio <strong>em</strong> silêncio. Ainda<br />
estava fraco. Se houvesse outro confronto, ele não<br />
conseguiria conter sua ânsia de matar. Recostei-me com<br />
dificuldade na parede. Lá estava ele, o detestável Ávila!<br />
31
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
E pensar que ele tinha sido meu melhor amigo... Sim,<br />
acredite: Hermes fora meu amigo! Quando jovens, era<br />
ele que avaliava meus textos ingênuos. Sua maturidade<br />
literária surgiu precoc<strong>em</strong>ente, deixando-me muito aquém<br />
de sua verve intelectual. Hermes nunca me disse, mas<br />
achava minha literatura horrível. No entanto, s<strong>em</strong>pre teve<br />
paciência e filantropia – sugeria modificações, formulava<br />
elogios pitorescos e corrigia os desníveis da linguag<strong>em</strong>.<br />
Seus textos, ao contrário, tinham um estilo breve e<br />
conciso, s<strong>em</strong> pedantismos. Ele sabia aliar perfeitamente o<br />
simples e o solene. No começo, eu o admirava. Era meu<br />
amigo um notável escritor! No entanto, com o t<strong>em</strong>po,<br />
apesar de nunca ter tido corag<strong>em</strong> de admitir isso, houve<br />
uma ponta de inveja. Era como se eu estivesse manchado<br />
pela culpa de ter esse sentimento dentro de mim...<br />
Ávila era o orador da turma e eu, seu seguidor mais<br />
próximo. A vassalag<strong>em</strong> dava-me prestígio. Os mestres<br />
elogiavam-me por causa da ex<strong>em</strong>plar companhia. Eu<br />
desfrutava os púlpitos junto com meu amigo. Entretanto,<br />
mais pontas surgiram. A inveja doía muito! Pensei <strong>em</strong><br />
contar tudo, dimensionar minha angústia. Por duas ou<br />
três vezes, estive perto dessa atitude. Porém, t<strong>em</strong>ia<br />
que Hermes não me compreendesse. Minha situação era<br />
alarmante. Invejava-o cada vez mais e, cada vez mais,<br />
tinha vergonha disso.<br />
Minha mancha tornou-se um <strong>em</strong>brião volátil e<br />
pegajoso. A criatura desenvolvia-se rapidamente... seus<br />
batimentos cardíacos já se confundiam com os meus. N<strong>em</strong><br />
mesmo um estetoscópio distinguiria a variante. Ninguém<br />
os escutava, somente eu. Tentei isolar a inflexão da<br />
massa disforme. Reitero que tinha vergonha disso. Porém,<br />
descobri que havia cometido um terrível engano. Meu<br />
propósito de extinguir o som amaldiçoado acelerou seu<br />
32
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
compasso! Não consegui resistir. Tornei-me um autômato<br />
com dois corações inexistentes...<br />
O vigia noturno ressonava <strong>em</strong> seu posto, enquanto<br />
as rosas de Ávila eram pisoteadas. Um murmúrio cego<br />
evadiu-se. Ventos alíseos profanaram a noite, rasgando<br />
sua veste de luto. Um dos homens rosnou uma praga. O<br />
frio inquietava-o. Logo que a porta cedeu, fez-se uma luz<br />
no segundo andar. Uma lanterna desferiu seu lume na<br />
sala vazia. Do térreo percebia-se o atrito da esferográfica<br />
com a alvura do papel. Hesitei <strong>em</strong> acompanhar os outros<br />
dois. Estava trêmulo e meus olhos ardiam. Os comparsas<br />
subiram.<br />
Gritos misturaram-se ao lamento frio da noite.<br />
Quando ergui minha cabeça, vi Hermes sendo carregado<br />
pelos cúmplices. Ele estava desacordado, porém um brilho<br />
opaco teimava <strong>em</strong> seus olhos. Assim que desceram as<br />
escadas, notei que o escritor havia despertado. Quando<br />
vislumbrou minha presença não houve nenhuma contração<br />
<strong>em</strong> seu rosto. No entanto, oculto na face estática, fluía<br />
um ódio convulsivo! Ávila não tentou libertar-se das<br />
mãos opressoras. Deixou-se ser levado... Precavi meus<br />
comparsas de cuidados e orientações. Após a surra,<br />
deveriam deixá-lo num local r<strong>em</strong>oto, s<strong>em</strong> condições de<br />
pedir socorro.<br />
Dias febris vieram. Queria adormecer meu<br />
arrependimento, afugentá-lo da consciência. Todos<br />
estavam apreensivos com o desaparecimento de Ávila. A<br />
s<strong>em</strong>ana findara e nenhum vestígio do escritor. Indagações<br />
atingiram-me como setas. Todos estavam preocupados.<br />
Minha ligação com Hermes trazia-me incômodos. N<strong>em</strong> eu<br />
sabia onde meus cúmplices o deixaram... Desconhecia até<br />
mesmo o verdadeiro motivo que norteara minha perfídia.<br />
Durante as horas mais escuras, ficava à beira do sono,<br />
33
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
execrando minha inveja. Ao amanhecer, não havia nenhum<br />
ímpeto que me pusesse fora do leito.<br />
No entanto, boas novas me reanimaram – a polícia<br />
encontrara Ávila amarrado dentro duma casa abandonada.<br />
Disseram-me que fora uma denúncia anônima... Senti um<br />
misto de alívio e repulsa. Meu amigo estava livre, mas seria<br />
eu qu<strong>em</strong> cumpriria a sentença... Porém, fiquei atônito ao<br />
saber que Hermes dissera “homens encapuzados” <strong>em</strong> seu<br />
depoimento. Pensei que houvesse amizade nessa atitude.<br />
Era a oportunidade de me justificar. Finalmente, revelaria<br />
minha inveja. Contudo, o escritor deixou de ir às aulas.<br />
Não o via mais nos lugares que frequentávamos, n<strong>em</strong><br />
mesmo <strong>em</strong> sua casa. Eu insistia <strong>em</strong> procurá-lo, mas Ávila<br />
fugia...<br />
Certa vez, porém, consegui cercá-lo. “Nunca mais<br />
quero vê-lo”, foram suas únicas palavras. Ele não permitiu<br />
que eu explicasse meus motivos secretos. Amargo<br />
(mas duplamente incerto), Hermes afastou-se de mim...<br />
Alcancei-o, cheguei mesmo a tocá-lo. Desci à comiseração,<br />
inflando a retórica das desculpas. Também acho que foi<br />
um ato leviano, desesperado. Nego generalizar que, de<br />
certo modo, ingenuidade e ódio são parecidos. Não é o<br />
teor o similar, n<strong>em</strong> o sentido, mas o índice mútuo que os<br />
rege. O que principia o ódio é a ingenuidade, flagrada <strong>em</strong><br />
determinadas atitudes, e o que principia a ingenuidade é<br />
o ódio, pois o que lhe sucede é o terror inábil e cônscio da<br />
angústia.<br />
Não preciso reiterar com minúcias que a insistência<br />
pelo perdão afrontava o escritor. Seu olhar sanguíneo já<br />
evidenciava isso. Não suportando minha presença, Ávila<br />
<strong>em</strong>purrou-me, lançando xingamentos e ameaças. Já não<br />
havia amizade, só o resquício dum fulcro intróito. Nossas<br />
distâncias recuaram ainda mais. Longe do escritor, n<strong>em</strong><br />
34
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
percebi que seu revide estava ao meu lado. Ávila roubou<br />
a única mulher que amei, mas não a amou – efetuou sua<br />
vingança, alinhavada nas falsas carícias. Sua maldade<br />
pr<strong>em</strong>editada desvaneceu meu arrependimento. Hermes<br />
tornou-se meu pior inimigo...<br />
Aos poucos, as imagens do passado dissiparam-se...<br />
Arrastei-me para o estrado vazio. Ávila continuava<br />
entretido com seu manuscrito. Sua sombra projetava-se<br />
<strong>em</strong> mim. Era um núcleo negro num círculo de luz, uma<br />
célula difusa. Tive a impressão que ele vacilava. A inércia<br />
de sua esferográfica alongava-se, reticente. Ele esfregava<br />
suas mãos, soltando elipses no ar. Impaciente, esmurrou<br />
a escrivaninha. No mesmo instante, virou-se para trás.<br />
Fingi que dormia...<br />
Abri os olhos. Por enquanto, estava seguro. Hermes<br />
ressonava no outro estrado. Seu comportamento revelava<br />
que eu não era o único alvo de seu ódio. Fiquei curioso<br />
sobre o assunto tratado <strong>em</strong> sua narrativa. Era estranho.<br />
Ele s<strong>em</strong>pre mostrara desenvoltura <strong>em</strong> seus textos. Não<br />
acreditava que era isso... Será que as musas abandonaram<br />
Ávila?<br />
Sentei-me no estrado. Estava inquieto. A exaustão<br />
havia passado. A luz do abajur irradiava centelhas <strong>em</strong><br />
meus olhos. Pela primeira vez, pensei <strong>em</strong> sede, fome e<br />
t<strong>em</strong>po. Não tive fome, n<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po, mas tive sede. Nenhum<br />
dos raptores trouxera comida. Talvez houvesse alguma<br />
provisão <strong>em</strong> meio ao lusco-fusco. Era irrelevante, eu não<br />
queria comer. Segundos, minutos, horas – desconhecia<br />
se era noite ou dia, ou se havia um relógio no sótão.<br />
Entretanto, a ansiedade secava-me a boca, deixando-a<br />
árida, insuportável. Bebi toda a água que restava no cantil.<br />
35
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
Era minha chance de eliminar Hermes. Eu me<br />
aproveitaria de sua inconsciência para sufocá-lo até a<br />
morte. Soturno, caminhei <strong>em</strong> sua direção. Eram passos<br />
custosos, medidos. Nenhum ruído poderia despertá-lo.<br />
Ajoelhei-me diante de seu corpo... No entanto, a ameaça<br />
datilografada impediu-me. Suas palavras agudas coibiram<br />
meu ódio. Sentei na cadeira do escritor e respirei fundo.<br />
Ávila mexeu-se. Sobreveio um silêncio opressor...<br />
Pensei que Hermes tinha acordado. Depois de<br />
algum t<strong>em</strong>po, notei que ele ainda dormia. Se o escritor<br />
me flagrasse sentado <strong>em</strong> sua cadeira, a mensag<strong>em</strong><br />
datilografada não o impediria de me matar. Sobre a<br />
escrivaninha figurava sua escritura. A curiosidade era<br />
irresistível. Não pude suportar. Espiei suas palavras...<br />
Sua narrativa não tinha um título. Iniciava-se da<br />
seguinte forma: “Os caminhos alargam-se quando conheço<br />
a mim mesmo, pois conhecendo a mim mesmo, posso<br />
entender o outro e compartilhar com ele de uma mesma<br />
essência”. O final do conto também se resumia nessas três<br />
linhas. Isso porque não houve nenhuma história, nenhuma<br />
colocação além desse fragmento. Uma folha com inúmeros<br />
círculos mostrava a escassez de ideias. Foi difícil acreditar<br />
que meu inimigo era incapaz de escrever uma história.<br />
Na mesa de cabeceira, encontrei uma Bíblia, um livro<br />
de po<strong>em</strong>as byronianos e alguns tratados filosóficos de<br />
Nietzsche. Sobre a escrivaninha havia uma série de folhas<br />
com citações transcritas desses ex<strong>em</strong>plares. Entretanto,<br />
com ressalva das passagens bíblicas, não encontrei<br />
nenhum elo entre a frase de Ávila e os trechos copiados.<br />
As palavras do escritor eram incompreensíveis. Eu não via<br />
nenhum caminho abrir-se para um sujeito que nunca quis<br />
ouvir minhas justificativas.<br />
36
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
Hermes revirou-se... Dissolvi minha reflexão.<br />
Qualquer ruído deixava-me angustiado. A iminência de<br />
alguma perfídia amedrontava-me. Eu ficava cada vez<br />
mais nervoso, como se estivesse sendo comprimido<br />
numa esfera viscosa... De algum modo, escaparia desse<br />
claustro! Vasculhei todas as gavetas da escrivaninha.<br />
Talvez encontrasse algo para me ajudar na fuga.<br />
Um objeto brilhava diante do abajur – era um punhal<br />
de luz fria! Ávila iria me matar com essa lâmina... Eu<br />
regozijava por frustrar seu intento. De posse dessa arma,<br />
libertar-me-ia, derramando o sangue de meu pior inimigo!<br />
Hipocrisia, insegurança, angústia... Minha vida lúbrica<br />
já não possuía nenhum valor. Entretanto, não permitiria<br />
que meus raptores a ceifass<strong>em</strong>. Eu mesmo a extinguiria!<br />
Nunca, ideias tão insanas assombraram minha consciência!<br />
Meu desejo imediato era matar Hermes e, <strong>em</strong> seguida, me<br />
suicidar...<br />
No entanto, decidi poupá-lo até que acordasse. Antes<br />
de morrer, Ávila teria que ver meus olhos queimando de<br />
ódio! Rastejei até meu estrado. Estava ansioso, quase<br />
delirava. Hermes contorcia-se. Algum pesadelo afligia-o<br />
<strong>em</strong> sua zona escura. Passei a observá-lo, pensativo...<br />
Tínhamos somente uma característica <strong>em</strong> comum: a<br />
vingança. A vingança <strong>em</strong> nossos modos enrustidos, a<br />
vingança ferina, a vingança quase telepática... A vingança!<br />
Éramos homens especulares, ambos amaldiçoados.<br />
Anát<strong>em</strong>as encarnados num ódio recíproco. Nosso Deus<br />
não se manifestava, permanecia s<strong>em</strong>pre incógnito. Por<br />
mais que ofertáss<strong>em</strong>os a palavra, Ele não aparecia.<br />
Sabíamos que nossa divindade jamais se revelaria. No<br />
entanto, mesmo não podendo distingui-Lo, nossa busca<br />
aproximavá-nos Dele. Ávila já não conseguia aproximarse<br />
da divindade. Estávamos com as mesmas angústias –<br />
37
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
não dominávamos a palavra. A vingança não era o único<br />
desejo que tínhamos <strong>em</strong> comum...<br />
Hermes despertou. Minhas mãos estavam úmidas e<br />
molhavam a lâmina oculta. Fechei os olhos. Novamente,<br />
fingi que dormia. Ele se acomodou <strong>em</strong> sua cadeira<br />
e começou a redigir seu texto. Sua caneta deslizava<br />
mansamente pela página; já não havia longos intervalos.<br />
O escritor restabelecera seu pacto com a palavra. Erguime,<br />
segurando o punhal, e caminhei <strong>em</strong> sua direção. Ele<br />
virou-se, espantado. Tarde d<strong>em</strong>ais... Furioso, cravei meu<br />
ódio <strong>em</strong> seu peito!<br />
Ávila<br />
livre...<br />
tombou, enrijecido. Finalmente, eu estava<br />
Ofegante, caí sobre a cadeira do morto. Minha<br />
consciência titubeava, ofuscada. Súbitos borrões<br />
desfiavam a luz. Era difícil diluir as alternâncias. No<br />
entanto, não desmaiaria por causa da fadiga. Somente<br />
o suicídio fecharia meus olhos. Resoluto, lutei contra a<br />
inconsciência. De quando <strong>em</strong> quando, faíscas acendiamse<br />
mais duradouras e compridas. Por fim, minha razão<br />
despontou, luminosa. Pena que não há luz etérea s<strong>em</strong> um<br />
vale sombrio!<br />
Prestes a cortar minha jugular, senti um líquido<br />
viscoso escorrendo <strong>em</strong> meu peito... A luz do abajur incidiu<br />
<strong>em</strong> meus dedos molhados de sangue! O brilho prateado da<br />
lâmina estava coberto por uma mancha rubra e sinuosa...<br />
Minha fraqueza era o prenúncio da morte! Meus olhos<br />
procuravam Hermes. Ele não jazia no vão onde caíra!<br />
A escrivaninha, os manuscritos, os livros... Aos poucos,<br />
tudo se camuflava numa cortina de névoa. Ainda pude<br />
ver a porta do sótão abrir-se e dela surgir Ávila, rodeado<br />
por homens estranhos... O escritor inclinou-se e disse<br />
38
pausadamente:<br />
nós...<br />
ANÁTEMA<br />
Rafael Peres<br />
— Enfim, tua carne se fez verbo e habitou entre<br />
Rafael Peres nasceu <strong>em</strong> Patos de Minas, Minas Gerais, <strong>em</strong><br />
1986. É graduado <strong>em</strong> Letras. Autor de artigos publicados<br />
nas revistas Crátilo e Perquirere, periódicos disponíveis<br />
no site www.unipam.edu.br. Publicou os <strong>contos</strong> A Peste:<br />
porcos e corpos, pela editora Valer/Sesc, e Hell, na<br />
antologia Caminhos do medo - volume II, pela editora<br />
Andross. Mantêm o blog voodoscorvos.blogspot.com<br />
39
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
“É verdade que todos são iguais perante Deus, tanto um como o<br />
outro são amados pelo Senhor”.<br />
(Gl 3:27,18)<br />
Itália.<br />
Cantos gregorianos preench<strong>em</strong> a afinada acústica<br />
das paredes de pedra, indo perder-se na abóboda ornada<br />
com pinturas de anjos e santos. Os incensos e velas dão<br />
ao ar o respeito e serenidade da oração que os fiéis estão<br />
imersos, no improperium entre a comunhão e a reflexão.<br />
O jov<strong>em</strong> padre Dellaveno medita, <strong>em</strong> seu altar, sob o calor<br />
das velas, enquanto pede a Deus salvação para as almas<br />
aflitas no mundo. Mas, no topo desta lista de pedidos por<br />
paz e redenção, está ele.<br />
Então, de repente, a placidez dos cantos católicos é<br />
40
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
riscada pelo retumbar estridente de pratos metálicos. Um,<br />
dois, três...Os fiéis começam a erguer suas cabeças e mirar<br />
na direção do barulho incomum. Uma musiquinha de fundo<br />
se sobressai, com nuances circenses, hipnotizantes. Uma<br />
primeira carruag<strong>em</strong> passa <strong>em</strong> frente às portas da igreja, e<br />
seu esplendor torce ainda mais pescoços. Algumas até se<br />
levantam, para ver se não imaginavam coisas.<br />
O padre Dellaveno fica atônito no seu palanque,<br />
assistindo à caravana passar, a música e as rodas de<br />
madeiras a esmagar pedras roubam toda a melodia serena<br />
dos monges, além da atenção dos fiéis.<br />
E o burburinho logo começa. Pessoas quer<strong>em</strong> ver<br />
melhor, enquanto outras resmungam, indignadas, por<br />
tal perturbação. Outras, mais efusivas, reclamam de<br />
uma solução para o padre, que logo se vê na obrigação<br />
de ir cerrar as portas. Isso atiça ainda mais o falatório,<br />
pois crianças presentes ficam curiosíssimas para assistir<br />
à caravana bizarra passar, querendo arrastar seus pais,<br />
que, at<strong>em</strong>orizados, os repreend<strong>em</strong> aos murmúrios. Logo,<br />
a capela de pedra mais parece um ninho de abelhas, com<br />
o zumzumzum amplificado e ensurdecedor. Enquanto puxa<br />
as duas portas de madeira, o jov<strong>em</strong> Dellaveno vê as cores,<br />
verde e violeta, que cobr<strong>em</strong> a lona da diligência, <strong>em</strong> listras<br />
sólidas. O dourado da carruag<strong>em</strong> principal lhe atiça os<br />
pelos, assim como o vermelho das letras caprichosamente<br />
desenhadas, que anunciam o nome do espetáculo, dentro<br />
da gargalhada de um palhaço:<br />
“Paradise Circus”<br />
— Que insulto! Ouve muitos resmungando as suas<br />
costas.<br />
Anões negros <strong>em</strong> suntuosos trajes persas passam,<br />
41
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
chamando a atenção de sua anarquia à população, que já<br />
sai à rua, interessada. Um deles sorri para Dellaveno, e<br />
seus dentes podres lhe eriça a nuca, fazendo-o terminar<br />
de cerrar as portas com as mãos suadas.<br />
O silêncio novamente se faz. Os fiéis olham o rosto<br />
pálido do padre, e ele tenta aprumar-se para transparecer<br />
confiança, no entanto, as crianças quer<strong>em</strong> saber, s<strong>em</strong><br />
pudor, o que ele vira. Isso o deixa nervoso e esquivo e<br />
enquanto foge de tais perguntas, nota apenas uma pessoa<br />
que não está agitada, ou com o rosto voltado para si. De<br />
cabelos louros, senta-se serenamente numa das primeiras<br />
fileiras, como se ainda imersa <strong>em</strong> oração, diante do caos.<br />
Enquanto retorna, o padre t<strong>em</strong> de pedir calma<br />
e atenção à missa. No ponto mais alto, porém, ele<br />
novamente olha para aquela fileira, onde não repara<br />
outrora na moça...<br />
Mas seu acento está vazio.<br />
O circo não se instalou num lugar de destaque. Tal<br />
um animal peçonhento, deixou seu rastro pela luz, mas<br />
foi na escuridão que encontrou abrigo. Pousou num<br />
dos subúrbios, próximo à costa, na zona de armazéns<br />
abandonados e não mais fez propagandas, como se não<br />
esperasse seu publico através delas. Tais os espetáculos<br />
de antigamente, a simples curiosidade inerente do ser<br />
humano os atrairia por conta própria a seu encontro.<br />
Por conta, e risco...Pensou Dellaveno, enquanto se<br />
r<strong>em</strong>exia na cama, tentando esquecer as cores fortes da<br />
lona gravados <strong>em</strong> sua mente.<br />
Assim, na intimidade do sono, ninguém diria que o<br />
jov<strong>em</strong> seguia o oficio eclesiástico. Rapaz b<strong>em</strong> delineado, de<br />
s<strong>em</strong>blante agradável e que vivia tirando suspiros das fiéis<br />
42
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
mais novas, engordando o seu rebanho durante as missas.<br />
Ele achava graça, mas respeitava tal comportamento. Era<br />
a juventude e ele já esteve no meio dessa erupção de<br />
hormônios descontrolados. Agradecia por ter chegado até<br />
ali imaculado.<br />
Imaculado?<br />
Assustou-se com a voz, mas não a ponto de despertar.<br />
Acreditou, <strong>em</strong> seu estado de vigília, que tratava-se de um<br />
fruto da sua inconsciência, e se vira para o lado, tentando<br />
dormir. Porém, ao invés de tocar os lençóis, Dellaveno<br />
sente entre seus dedos fios de cabelo compridos.<br />
Percorre-os e toca um braço, que logo se transforma<br />
numa curva maliciosa, que termina numa coxa macia.<br />
Seus dedos lentamente desc<strong>em</strong> para o delta da moça s<strong>em</strong><br />
rosto, guiados por uma vontade primitiva. Quando sente a<br />
respiração dela mais afoita, nota que algo não está certo<br />
naquele sonho. Então seus pelos se encrespam e sente<br />
sua própria ereção, ao som do sino anunciando a meianoite.<br />
Suado e excitado, desperta, sozinho na cama.<br />
É manhã de sol, tão agradável e serena que Dellaveno<br />
n<strong>em</strong> se l<strong>em</strong>bra mais da incômoda caravana circense do<br />
dia anterior. Cercado por suas fiéis, ele também usa a<br />
conversa para esquecer o estranho e constrangedor<br />
sonho. Mas uma delas toca no assunto novamente.<br />
— Um circo de horrores, por Dio! Uma imoralidade!<br />
— O senhor não pretende fazer nada, padre?<br />
Dellaveno surpreende-se com a indagação. A verdade<br />
43
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
é que ele se arrepia só com a ideia de um circo de horrores,<br />
e o motivo não t<strong>em</strong> a ver com medos infantis...mas não<br />
pode dizer isso a suas fiéis. Ele deve ser o hom<strong>em</strong> que<br />
enfrentará a situação, s<strong>em</strong> deixar aquela gota de suor<br />
brotada do nervosismo por causa de bizarrices de um<br />
picadeiro lhe denunciar.<br />
Contudo, antes que possa dizer algo sua perspectiva<br />
é sobrepujada pela visão daquela cabeleira loura a sair da<br />
capela, tão serena que ainda parece estar orando. Antes<br />
de ganhar a rua, ela desvia seu rosto brev<strong>em</strong>ente para ele,<br />
e seus olhos escuros lhe l<strong>em</strong>bram alguém, assim como os<br />
fios claros faz<strong>em</strong>-no sentir a brisa marítima de alguma<br />
praia californiana. Curioso, pois sua pele é alva como a de<br />
um chumaço de algodão.<br />
Ele lhe desejou bom dia e espera ouvir sua voz,<br />
mas ela apenas acena de volta e logo desaparece por<br />
uma esquina. Reconhece a voz de suas fiéis de longe,<br />
tentando lhe chamar a atenção, mas ela já se dispersou<br />
irr<strong>em</strong>ediavelmente, enquanto se l<strong>em</strong>bra do sonho que<br />
teve. Arrepende-se de tais pensamentos e pede desculpas,<br />
dizendo que t<strong>em</strong> trabalho a fazer na sacristia.<br />
Na noite seguinte, pouco antes da meia-noite,<br />
Dellaveno novamente se r<strong>em</strong>exe na cama, agitado com<br />
o som circense que invade seus pensamentos. Não há<br />
possibilidade de estar ouvindo a balbúrdia do Paradise<br />
Circus, pois o mesmo se instalou muito longe dali. Mas os<br />
risos e a folia medonha de criaturas por trás de grades<br />
e expostos <strong>em</strong> sombrias salas decoradas deslizam pelas<br />
margens de sua consciência entorpecida, procurando uma<br />
brecha fatal para entrar de vez.<br />
Em fragmentos de imagens desconexas, ele vê, na<br />
escuridão profunda do interior dos corredores, olhos<br />
44
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
brilhantes através de uma jaula. Uma mão cheia de garras<br />
e escamosa como um jacaré escapa pelas barras de ferro,<br />
tentando destruí-las <strong>em</strong> vão. O susto o faz recuar e ele<br />
ouve um som metálico no chão. Olha através da fresta de<br />
uma porta e vê uma mulher pela metade sobre uma mesa<br />
redonda, apenas do tamanho para comportar seu corpo<br />
até o quadril. T<strong>em</strong> uma xícara de chá nas mãos e olha<br />
debilmente para baixo, onde a colher com a qual mexia<br />
a bebida jaz, inalcançável. Olha para Dellaveno com uma<br />
expressão boba e pergunta:<br />
— E agora?<br />
Ele tropeça, querendo sair dali e cai <strong>em</strong> sua própria<br />
cama, seguro pelos braços da mesma mulher misteriosa.<br />
Não vê seu rosto, é impossível, coberto por todos<br />
aqueles fios louros, mas sente seus lábios roçando nos<br />
seus, s<strong>em</strong> deixar, porém, que ele aprofunde o beijo. Logo<br />
lhe oferece seu corpo perfeito, e ele, s<strong>em</strong> conseguir ir<br />
contra seus desejos primitivos, a possui.<br />
O relógio da catedral novamente bate o sino da<br />
meia-noite, fechando o dia. A zero hora, o jov<strong>em</strong> padre<br />
desperta entre g<strong>em</strong>idos ofegantes que transformam-se<br />
rapidamente num grito estrangulado. Corre a acender<br />
o abajur, mas termina por cair no chão: suas calças de<br />
pijama estão arriadas, onde o meio de suas pernas está<br />
completamente lambuzado do gozo inconsciente. Se veste<br />
rapidamente, como se houvesse uma plateia a assistir o<br />
patético espetáculo, abafando um grito maior ao esconder<br />
o rosto entre as mãos tr<strong>em</strong>ulas.<br />
— Oh, Padreterno!<br />
45
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
E termina a noite ajoelhado <strong>em</strong> frente à cama,<br />
pedindo redenção para sua alma.<br />
No terceiro dia, os fiéis estranharam a palidez e<br />
olheiras fundas do padre Dellaveno. Seu s<strong>em</strong>blante sombrio<br />
combina com as palavras de chumbo que pronuncia<br />
<strong>em</strong> seu sermão, contra os pecados da imoralidade e da<br />
afronta a Deus. Algumas pessoas ficam constrangidas,<br />
como se o jov<strong>em</strong> pároco estivesse lhes espreitando os<br />
pecados mais sórdidos por baixo das saias recatadas ou<br />
ternos b<strong>em</strong> passados. Cada um deles consegue ver a si<br />
mesmo na ode católica e desafiadora e até se olham, de<br />
esguelha, pensando se o padre não teria descoberto as<br />
intenções desejadas ou concretizadas de visitar<strong>em</strong> o circo<br />
dos horrores para dar uma espiadinha.<br />
Seria um dia de muita penitência a pagar,<br />
silenciosamente.<br />
Apenas uma pessoa continua com a mesma expressão<br />
inflexível. E Dellaveno a olha, fulminante, como se ela<br />
tivesse culpa por infiltrar-se <strong>em</strong> seus sonhos imorais. No<br />
momento <strong>em</strong> que as pessoas deixam os cantos gregorianos<br />
preencher<strong>em</strong> os pensamentos culpados, ela o olha com<br />
seus incomuns olhos escuros. Eles têm uma mensag<strong>em</strong><br />
subjetiva, e parece ao rapaz, um espelho para seu próprio<br />
ato constrangedor. Então, como se uma unha comprida<br />
tivesse riscado a superfície de um vidro, o padre desperta<br />
para uma l<strong>em</strong>brança longínqua e desagradável.<br />
E como se concluído o intento perturbador, a moça<br />
novamente abaixa a cabeça e ora.<br />
46
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
Sozinho, após a celebração, Dellaveno usa o telefone<br />
da paróquia para uma ligação a sua antiga universidade,<br />
na cidade de Veneza, na tentativa de localizar seus amigos<br />
daquela época. O vermezinho que o incomodava t<strong>em</strong> a<br />
ver com eles...Descobrira que um voltara para os Estados<br />
Unidos e o outro residia numa cidade próxima, que ele<br />
decidiu visitar, para fugir ainda dos apelos dos fiéis para ir<br />
ao Paradise Circus, e afastar aquela imoralidade deles...ou<br />
a tentação por ela.<br />
Ao final da tarde, Alphonso Palerno, o velho dono da<br />
mercearia próxima à capela de Dellaveno, enxuga copos,<br />
enquanto olha uma foto muito antiga, <strong>em</strong>oldurada e<br />
deixada entre as teias de aranha e garrafas <strong>em</strong>poeiradas<br />
de vinho barato.<br />
Observa o contorno estóico do riso do palhaço central<br />
da foto, quando leva um susto com a voz do padre a suas<br />
costas.<br />
— Conhaque, Alphonso, por favor.<br />
O velho estranha o pedido. Dellaveno, se não fosse<br />
padre, já seria um rapaz b<strong>em</strong> ajuizado. Mas agora ele<br />
parece como se corrido da polícia, afoito e vermelho.<br />
Serve o trago a ele.<br />
— Tudo b<strong>em</strong>, padre?<br />
Ele nada diz. Dentro de sua mente transcorr<strong>em</strong><br />
pensamentos melindrosos. Acabara de voltar da cidade<br />
<strong>em</strong> que seu amigo de república residia e descobre que<br />
sua nova morada já não é mais com os pais, mas sim no<br />
c<strong>em</strong>itério da cidade. Um incêndio terrível no escritório onde<br />
trabalhava. Sua mãe, aos prantos, só conseguia l<strong>em</strong>brar-<br />
47
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
se de como os olhos dele derreteram, simplesmente<br />
derreteram no fogo!<br />
Ela se sentiu no direito de confortá-lo, uma vez que<br />
ele fora muito bom para os dois amigos de quarto, ao<br />
colocar juízo na cabeça deles naqueles t<strong>em</strong>pos difíceis e<br />
tentadores da faculdade.<br />
— Você foi uma boa influência para aquelas duas<br />
almas.<br />
— Brent já sabe? – Brent era o outro rapaz com qu<strong>em</strong><br />
dividia o quarto e que voltara para a Califórnia. Isso gerou<br />
um novo surto de pranto na mãe de Tiago, que l<strong>em</strong>brouse<br />
quão trágico fora também o destino deste rapaz.<br />
— Diz<strong>em</strong> que ficou preso pelos cabelos nas pedras,<br />
durante um mergulho. Nada o fazia se soltar até que seus<br />
pulmões explodiram!<br />
E chorou, chorou e chorou...<br />
A bebida desceu rasgando. Dellaveno tentava<br />
minimizar o choque com a notícia da morte dos dois<br />
amigos, mas não há como esquecer. Não apenas disso,<br />
mas do turbilhão que viera junto, das l<strong>em</strong>branças nefastas<br />
que invadiram sua boa casa de fé com um bafo infernal<br />
pela soleira da porta.<br />
Você fora uma boa influência!<br />
Ela não podia estar mais enganada.<br />
Tentando se acalmar, o padre olha na mesma direção<br />
que o velho Alphonso e sua nuca se eriça. E não estava<br />
vendo o Paradise Circus tal como ele passara <strong>em</strong> sua rua,<br />
48
dias antes?<br />
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
— O circo do Barthold Laszlo já é velho conhecido da<br />
estrada, diz<strong>em</strong> que é assombrado. – murmurou o dono da<br />
venda, ao perceber o interesse do rapaz pela imag<strong>em</strong>.<br />
Dellaveno fitou a foto com a mesma acidez com que<br />
fitara a moça naquela manhã.<br />
— É apenas um circo de horrores, sádico, que não<br />
devia explorar a deformação das pessoas dessa maneira.<br />
– mas não sabia se acreditava mais <strong>em</strong> suas palavras. —<br />
De onde é essa foto?<br />
— Estive nos arredores da Romênia quando eles<br />
saíram para assombrar as ruas do mundo. Os romenos<br />
sab<strong>em</strong> ser violentos quando botam alguma coisa na<br />
cabeça. Só não sei por que eles tinham que vir assombrar<br />
a nossa “bota”.<br />
A foto mostrava a mesma carruag<strong>em</strong> e uma sorte<br />
de estranhos integrantes, cujo personag<strong>em</strong> central era<br />
um senhor corpulento e baixinho, de olhos enigmáticos e<br />
ornado de uma cartola esquisita.<br />
Eu era apenas um garoto... Alphonso sussurrou,<br />
mas Dellaveno pouco deu importância. Barthold Laszlo,<br />
era esse o nome que devia procurar e tão logo deu uma<br />
última espiada na foto, esbarrou com a silhueta da moça<br />
loura passando na ponta da rua, longe, <strong>em</strong> direção ao<br />
sul da cidade. O mesmo caminho que o Paradise Circus<br />
seguira.<br />
— Barthold Laszlo é o dono?<br />
—Sim, mas... – e Alphonso, ainda divagando, voltouse<br />
para Delaveno a fim de lhe esclarecer que aquele fora<br />
49
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
um retrato tirado a mais de 60 anos e Laszlo já estava sob<br />
sete palmos de terra há pelo menos metade deste t<strong>em</strong>po,<br />
mas o padre já havia desaparecido porta afora.<br />
Jovens...<br />
Dellaveno percorre as ruas da cidadela italiana s<strong>em</strong> ver<br />
mais nada além da cabeleira loura. Ele se recorda do modo<br />
sereno como ela voltou-se para ele, o sol, e o brilho negro<br />
de seus olhos a contrastar com o dourado dos cabelos. E<br />
agora ele entende o que lhe atiçava como um vermezinho:<br />
ambos lhe faziam l<strong>em</strong>brar de seus amigos da faculdade.<br />
Amigos mortos. Uma recordação que de boa, <strong>em</strong> poucas<br />
horas tornara-se terrível. E principalmente pelo que trazia<br />
com ela... Perdido nestes pensamentos, surpreendeu-se<br />
<strong>em</strong> como ofegava, almejando a possibilidade de alcançar<br />
a moça, de olhá-la mais de perto e saber como aquilo era<br />
possível.<br />
Parou. Não, o que estava fazendo, alimentar aquele<br />
sentimento de urgência era como dar vazão ao que andava<br />
acontecendo com ele durante as noites daquela s<strong>em</strong>ana.<br />
Respirou fundo e sentiu o odor da maresia. Ao olhar ao<br />
redor, surpreendeu-se com o cenário. O cheiro de madeira<br />
salinada mesclava-se ao de poleiros de aves e um silêncio<br />
palpável. Viu a moça muito longe, mas não o suficiente<br />
para desistir de segui-la. Ela, de alguma maneira, parecia<br />
manter-se à vista justamente para ele saber seu paradeiro.<br />
— Por Dio! – e continua. Porém, logo nota que quanto<br />
mais anda nos corredores de armazéns, mais eles parec<strong>em</strong><br />
iguais, como se o fim da rua se juntasse ao começo da<br />
mesma, num labirinto s<strong>em</strong> fim. Cansado, Dellaveno para,<br />
apoiando-se <strong>em</strong> uma parede para enxugar o suor. O<br />
50
crepúsculo já se adianta e logo anoiteceria.<br />
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
Foi então que ele viu a tocha iluminando a lona<br />
violeta. Uma tocha incomum, de fogo azul.<br />
Aproxima-se tentando definir qual é o truque ali, mas<br />
assusta-se com o adorno de crânio <strong>em</strong> meio às chamas<br />
iluminando a entrada do circo. O letreiro t<strong>em</strong> seu brilho,<br />
mas não é chamativo como imaginou. Grande, Paradise<br />
Circus impunha um t<strong>em</strong>or que o padre pouco sentira na<br />
vida.<br />
A bilheteria, com suas cortinas balouçantes, está tão<br />
vazia quanto a janela de uma casa assombrada.<br />
O som dos passos dela, que ele se acostumou a ouvir<br />
depois do longo percurso <strong>em</strong> seu encalço, lhe chamou a<br />
atenção para o pátio, entre o piso de pedras. Sua hesitação<br />
deu lugar a um novo par de passadas, como um convite<br />
silencioso a entrar no estranho circo.<br />
Uma vez lá, o padre nada mais ouve que denuncie a<br />
presença da moça. Os sons se tornam g<strong>em</strong>idos guturais<br />
e estalos secos, que lhe arrepiavam a espinha e lhe<br />
provocam sobressaltos desagradáveis. Mas o corredor do<br />
picadeiro montado está vazio, iluminado apenas pela lua<br />
cheia que vinha nascendo, e pelas tochas geladas.<br />
Quando ia perguntar se havia alguém ali, um som<br />
metálico o arrepiou. É uma bicicletinha que v<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua<br />
direção e naquela meia luz, mais parecia andar sozinha.<br />
Só muito perto ele entendeu pelo que aquele pequeno<br />
veículo era guiado.<br />
Um boneco de massa. Se parece muito com um, as<br />
formas delgadas e fofas, a máscara que cobria o rosto<br />
a lhe dar uma expressão estática e débil. Ele circulou<br />
51
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
Dellaveno como uma criança brincalhona, mas o padre<br />
sentia arrepios cada vez que ouvia aquela roda girando e<br />
g<strong>em</strong>endo. Por fim, desistindo de entender a criaturinha,<br />
ele abriu a boca para a repreender, mas ela disparou na<br />
direção que veio, dobrando um corredor de tendas. Seu<br />
gorrinho vermelho dava a Dellaveno a impressão de que<br />
ele queria ser seguido.<br />
Porém, o espanto foi com a visão que teve <strong>em</strong> seguida.<br />
Era como se a foto de Alphonso tivesse se materializado<br />
<strong>em</strong> cores. Seu rosto ficou lívido de espanto, quando uma<br />
risada potente veio surgindo de algum lugar daquela boca<br />
enorme.<br />
—“É verdade que todos são iguais perante Deus,<br />
tanto um como o outro são amados pelo Senhor!!!”<br />
E cantou os capítulos e versículos da qual a frase<br />
do livro de Gálatas fora tirada, abrindo um sorriso ainda<br />
maior dentre a fumaça de um charuto.<br />
Laszlo.<br />
Dellaveno engoliu a seco a <strong>em</strong>oção forte e<br />
inexplicável que sentiu. A sua frente o velho palhaço se<br />
apresentava, e todas as criaturas abjetas que ele devia<br />
ter por baixo das tendas calaram-se, deixando o anfitrião<br />
com seu convidado.<br />
— Não é verdade, meu caro padre?<br />
Dellaveno engoliu a seco a ironia e o medo.<br />
— Claro... – o homenzinho carrancudo o fez seguir<br />
por dentro de uma lona, cujo corredor ele já conhecia<br />
de seus nefastos sonhos. O suor escorreu, e de repente<br />
ele esperou ouvir o som de garras vindo de uma jaula na<br />
52
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
escuridão e a mulher pela metade confusa com a colher<br />
no chão.<br />
Mas tudo o que havia era o soturno barulho da brisa<br />
marítima soprando por baixo do piso elevado de madeira.<br />
— Então, meu caro senhor, presumo que não veio<br />
nos prestigiar.<br />
— Senhor Laszlo, não acredito que nada aqui seja<br />
passível de exposições...<br />
— Ah não? Hmmm...e o que me diz do caráter do<br />
ser humano, meu caro, da natureza humana <strong>em</strong> sua forma<br />
mais abissal?<br />
— Não sei se entendo, senhor...<br />
— Claro que não, senhor Dellaveno, uma vez que<br />
não compreendeu ainda que, <strong>em</strong> nosso circo, as atrações<br />
não estão dentro da lona...e sim fora.<br />
O padre espantou-se com Barthold Laszlo<br />
pronunciando seu nome e ainda mais com essa sentença,<br />
saída da boca cheia de fumaça. Ele riu, deliciando-se com<br />
cada gota do suor nervoso do jov<strong>em</strong>.<br />
— Veja, minha filha t<strong>em</strong> ido as suas missas, e aprecia<br />
suas palavras... de castigo e redenção. São inspiradoras!<br />
Ao dizer isso, como se materializada das sombras,<br />
o jov<strong>em</strong> padre viu a moça loura que perseguiu até ali,<br />
logo atrás do palhaço. Está com o mesmo aspecto sereno.<br />
Porém, de seus olhos um brilho soturno deixa-o com a<br />
mesma sensação de nostalgia e medo. Algo nela não está<br />
certo.<br />
— Qual o seu nome? – ele pergunta, ignorando<br />
53
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
Laszlo. Este deu um sorriso rasgado e respondeu, <strong>em</strong><br />
deboche.<br />
— Pobre Amélie, ela não ainda não fala.<br />
E então, Dellaveno percebeu de onde vinha aquele<br />
constante ar tranquilo: seus lábios eram tais o de uma<br />
boneca. Uma boquinha deformada por uma incrível<br />
imobilidade.<br />
Tal a moça <strong>em</strong> seus sonhos.<br />
Não...olhe um pouco melhor, e sua mente também<br />
vai começar a vê-la além disso...<br />
E como se ouvisse a própria voz do palhaço lhe dizer,<br />
os olhos da moça brilham intensos nas chamas azuis e<br />
tudo o que t<strong>em</strong>eu durante o dia com a notícia horrenda da<br />
morte de seus amigos concretizou-se nas formas daquele<br />
rosto...<br />
Voltou muitos anos atrás...voltou ao delito que o fazia<br />
orar todas as vezes que pedia por perdão às almas do<br />
mundo, e colocava a sua no topo da lista.<br />
Tentou abafar um g<strong>em</strong>ido, um grito de horror,<br />
enquanto Barthold Laszlo ria, e a moça atrás dele ria<br />
pelos olhos, o que dava a sua expressão um ar ainda mais<br />
macabro de triunfo.<br />
Dio mio, no...!<br />
— É verdade que todos são iguais diante de Deus,<br />
Dellaveno, é verdade!?<br />
E quando sentiu as risadas preenchendo o ar como<br />
a fumaça de seu charuto, Dellaveno tropeçou nos próprios<br />
pés e caiu.<br />
54
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
Sobressaltou-se, <strong>em</strong> sua cama. Agarrou os lençóis e<br />
acreditou ter despertado de mais um sonho nefasto, onde<br />
seus amigos cúmplices de um delito da época da faculdade<br />
apareciam mortos. Tudo por causa daquela t<strong>em</strong>porada<br />
execrável de espetáculos de horrores pelos canais de<br />
Veneza, <strong>em</strong> que, encontraram um espécime tentador:<br />
uma moça de corpo esbelto e delicioso, porém, de rosto<br />
quase inexistente. Seus cabelos, ralos como de uma velha<br />
não escondiam a boca que parecia a de uma bonequinha<br />
de porcelana, por isso era a única parte visível sobre a<br />
máscara de órbitas vazias que usava. Eles queriam saber o<br />
que havia por trás dela e quando descobriram, resolveram<br />
dar uma lição na criatura por ser tão diferente. Como era<br />
possível alguém não ter olhos, n<strong>em</strong> cabelos, e querer viver<br />
entre eles, pessoas normais?<br />
Depois de muita bebedeira, violência e sexo com<br />
a garota, ela acabou por não sair mais do chão, tão<br />
desfigurada quanto já era. Então chamaram Dellaveno,<br />
pedindo ajuda para esconder o inconveniente.<br />
— Não era grande coisa, só mais uma escória que a<br />
sociedade varria para debaixo do tapete, não é, meu b<strong>em</strong>?<br />
Dellaveno arregalou os olhos, ouvindo a voz b<strong>em</strong><br />
atrás de si. Tr<strong>em</strong>eu e se agarrou ainda mais ao travesseiro,<br />
tentando evitar pensar no dia <strong>em</strong> que ajudara seus amigos<br />
a dar<strong>em</strong> sumiço no corpo frágil daquela pobre garota,<br />
que ele não hesitou <strong>em</strong> largar numa caçamba de lixo nos<br />
becos sujos da romântica Veneza. Tudo <strong>em</strong> nome de Deus<br />
e da moralidade, <strong>em</strong>bora, no fundo de sua alma casta,<br />
se r<strong>em</strong>exess<strong>em</strong> sentimentos estranhos de desejo ao ver<br />
aquele corpo nu e senti-lo <strong>em</strong> seus braços, enquanto se<br />
desfazia dele.<br />
55
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
Os mesmos braços que agora o envolviam lentamente,<br />
enquanto tr<strong>em</strong>ia na cama, b<strong>em</strong> longe do Paradise Circus<br />
pousado na baia, mas muito perto do verdadeiro picadeiro:<br />
sua vida. Ouviu-a sussurrar dentro de seu cérebro e cada<br />
palavra era como um baforar gélido de morte:<br />
Vocês me acharam uma monstruosidade s<strong>em</strong><br />
tamanho. Agora eu tenho os cabelos de seu amigo para<br />
me sentir mais bonita. Mas ainda não podia ver como as<br />
pessoas me encaravam, então vim visitar seu outro amigo<br />
e lhe dizer que o perdoaria, se ele me desse seu poder de<br />
enxergar...- e aqui ele se encolheu com a risada maligna<br />
– talvez eu tenha exagerado, mas...ele foi muito bom <strong>em</strong><br />
doá-los para mim! E agora...agora eu só preciso da voz...<br />
Da sua voz...<br />
E sua mão tênue levou o rosto horrorizado de<br />
Dellaveno para o seu. A imobilidade de sua boca quebrouse<br />
no momento <strong>em</strong> que o padre <strong>em</strong>itiu seu último som,<br />
um grito estridente de horror. Amélie engoliu-o com um<br />
beijo gigantesco e animal.<br />
Horas depois, ao alvorecer, as tendas marchavam<br />
para fora da cidade, silenciosamente. As pessoas<br />
não entendiam, não houvera anúncios, n<strong>em</strong> noites<br />
de espetáculos, só uma estranha sensação de ter<strong>em</strong><br />
mexido com suas noites de um jeito anormal, fosse por<br />
pensamentos ou atos violentos e obscenos.<br />
Qu<strong>em</strong> parecia mesmo exultante com o espetáculo<br />
era nada menos que Barthold Laszlo, que olhava as ruas<br />
através de sua janela oculta na carruag<strong>em</strong> mais luxuosa.<br />
Ainda com o charuto na boca e olhos sobrenaturais,<br />
perguntava a filha se tinha sido um bom show. Ela,<br />
sorridente, disse, com a voz que ainda acostumava-se a<br />
56
usar, que sim.<br />
O PASSADO VOLTA<br />
Verônica S. Freitas<br />
— Claro, papai. Foi um show dos diabos.<br />
E sorriu, com seus novos lábios.<br />
VERÔNICA S. FREITAS nasceu <strong>em</strong> 87 e é natural de<br />
Guaratinguetá/SP, morando atualmente <strong>em</strong> Aparecida/SP.<br />
Funcionária pública, se graduou <strong>em</strong> Gestão Empresarial<br />
e t<strong>em</strong> <strong>contos</strong> <strong>em</strong> diversas antologias, entre elas: Cursed<br />
City - Onde as almas não têm valor, Steampink, 4<br />
livros da coleção VII D<strong>em</strong>ônios, Brinquedos...eles<br />
matam! e Quando o saci encontra os mestres do<br />
horror, lançadas pela Editora Estronho. Publicou também<br />
<strong>em</strong> Crônicas da Fantasia e SOS Titanic, da Editora<br />
Literata.<br />
Contatos por <strong>em</strong>ail: ventosoturno@yahoo.com.br,<br />
Twitter: @Beronique2010<br />
blog: brisanoturna.blogspot.com.<br />
57
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
Só havia vida onde clareava a luz dos enormes<br />
faróis, e ela era opaca <strong>em</strong> seus tons de asfalto<br />
e terra batida. Além das janelas ensebadas, o mundo se<br />
perdia <strong>em</strong> escuridão de um lado e de outro, trevas que<br />
só iam e iam, até se misturar<strong>em</strong> ao negro da noite s<strong>em</strong><br />
estrelas. O motor a diesel resmungava um ronco estável,<br />
de pista livre, s<strong>em</strong> o castigo imposto pela dança de<br />
<strong>em</strong>breagens do tráfego pesado e engarrafado.<br />
Era este o principal motivo do caminhoneiro preferir<br />
fazer sua rota à noite. Na estrada deserta, ao som de suas<br />
velhas fitas com clássicos do sertanejo oitentista, horas<br />
se passavam <strong>em</strong> questão de minutos e os quilômetros<br />
que o separavam de seu destino ficavam rapidamente<br />
para trás. Ao contrário da maioria de seus colegas, ele<br />
não via mau negócio <strong>em</strong> abrir mão da suposta segurança<br />
da luz do dia. À noite não havia motoqueiros apressados<br />
58
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
ziguezagueando <strong>em</strong> seu caminho, ou motoristas incautos<br />
arriscando perigosas manobras na contramão. Ao menos,<br />
não tantos quanto havia de dia.<br />
Isso s<strong>em</strong> contar a t<strong>em</strong>peratura da estrada à noite, no<br />
geral muito mais agradável. Não que reclamasse do t<strong>em</strong>po<br />
que passava ao volante de seu velho companheiro, um<br />
Mercedes-Benz 1313 com mais anos de estrada que sua<br />
filha tinha de vida, mas quando um dia normal de trabalho<br />
se traduzia a oito ou dez horas ininterruptas naquela<br />
boleia abafada, o mínimo de conforto a mais se traduzia<br />
<strong>em</strong> um fator muito importante.<br />
— Atento... atento... - uma voz irrompia do Rádio<br />
PX no alto da cabine. - Olavo está <strong>em</strong> QAP? É o Caetano<br />
chamando. Atento, atento, Olavo está <strong>em</strong> QAP?<br />
— Positivo. Na escuta, esparadrapo. - respondeu<br />
Olavo na língua dos homens da estrada, enquanto<br />
des<strong>em</strong>baraçava o fio espiralado do aparelho.<br />
— Tudo b<strong>em</strong>, meu velho?<br />
— Tudo, o quê o senhor manda?<br />
— Tá muito longe?<br />
— Tô descendo a serra agora. Um frio que você não<br />
vai imaginar.<br />
— E eu não sei? Passei um aperto nessas bandas daí<br />
anteont<strong>em</strong>. Agora eu tenho a boa pra você quebrar esse<br />
gelo. Um queijinho coalho, uma loura suada.. copiou?<br />
— Copiei. Mas não.. - disse Olavo, olhando para a foto<br />
afixada sobre o espelho retrovisor. - Fica pra próxima. Tô<br />
indo pra casa.<br />
59
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
Dizer aquelas palavras fez o caminhoneiro sorrir, os<br />
olhos indo da estrada para o retrato, e para a estrada à<br />
frente outra vez. A imag<strong>em</strong> mostrava uma bela mulata<br />
que abraçava uma menina que também sorria, faceira.<br />
Sua família, para a qual ele estava prestes a voltar, após<br />
tantas s<strong>em</strong>anas.<br />
Visto de longe, o caminhão era uma pequena mancha<br />
luminosa atravessando a escura imensidão da madrugada,<br />
rompendo seu silêncio com o ronco do motor e as velhas<br />
baladas sertanejas que Olavo trazia <strong>em</strong> seu toca-fitas.<br />
Logo, o caminhoneiro alcançou, às margens da rodovia,<br />
o que sabia ser o último posto de abastecimento que<br />
encontraria antes da etapa final daquela viag<strong>em</strong>.<br />
No lugar, onde além do posto funcionava também<br />
uma lanchonete, estavam estacionados outros três<br />
caminhões. Assim que Olavo des<strong>em</strong>barcou pôde observar,<br />
com certo desgosto, o momento <strong>em</strong> que um colega subia à<br />
boléia acompanhado de uma adolescente vestida com uma<br />
camiseta e um microshort jeans. Havia outras como ela<br />
rondando o lugar à espera de caminhoneiros com dinheiro<br />
de sobra e consciência de menos, prontos para alugar<br />
um pouco daquela fachada de inocência. Era impossível<br />
para Olavo não pensar <strong>em</strong> sua própria filha, e um arrepio<br />
gelado afligia suas entranhas quando <strong>em</strong> sua mente surgia<br />
a mera visão dela <strong>em</strong> um lugar daqueles.<br />
Olavo se dirigiu até o balcão:<br />
— O de s<strong>em</strong>pre? - perguntou-lhe um senhor velho e<br />
obeso encarregado da barraca.<br />
Olavo acenou com a cabeça. Seu pedido de costume<br />
consistia de um café, puro, s<strong>em</strong> açúcar, e uma fatia de<br />
pão com manteiga na chapa. O café veio rápido; devia<br />
60
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
estar pronto há horas, esperando <strong>em</strong> alguma garrafa<br />
térmica encardida. O velho agachou-se atrás do balcão,<br />
sacou de lá uma bisnaga ressecada, cortou-a ao meio com<br />
uma velha faca de serra, lambuzou manteiga nas duas<br />
metades, e enfim, levou as fatias até a chapa no outro<br />
lado da barraca.<br />
Distraído por aquela cena rotineira, Olavo d<strong>em</strong>orou<br />
a perceber a aproximação da moça. Em um primeiro<br />
momento, não passava de uma silhueta contra a luz dos<br />
faróis de uma das carretas. Quando chegou mais perto,<br />
Olavo pôde ver uma jov<strong>em</strong> vestida de maneira simples,<br />
s<strong>em</strong> qualquer maquiag<strong>em</strong> no rosto moreno, e cujos olhos<br />
castanhos pareciam procurar os seus. Era bela, e jov<strong>em</strong>,<br />
mas não tão jov<strong>em</strong> quanto as meninas que vira há pouco.<br />
Caminhava a passos lentos sobre o chão de terra batida,<br />
diretamente até ele.<br />
— Boa noite. - disse a moça.<br />
— Boa noite. Olha - adiantou-se Olavo - vai me<br />
desculpar, mas não estou interessado..<br />
— O quê?<br />
— Se quiser, eu te pago um lanche aqui. Você está<br />
com fome? Não precisa... sabe...<br />
— Ah, não.. - a moça exibiu um sorriso s<strong>em</strong> graça. -<br />
Não tenho fome. Na verdade eu estou tentando chegar <strong>em</strong><br />
uma cidade chamada Montes Calmos, o senhor conhece?<br />
— Conheço sim. Nunca estive lá, mas sei que fica na<br />
próxima saída pela estrada.<br />
— Então, será que o senhor poderia me dar uma<br />
carona? Já vim com outro colega seu até aqui, mas ele vai<br />
61
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
pernoitar aqui mesmo, e eu tenho urgência <strong>em</strong> chegar.<br />
Olavo pensou por um instante. Fitou a cintura da<br />
moça com o canto dos olhos, atento à qualquer volume<br />
suspeito, ainda que fosse um mero telefone celular. Já<br />
ouvira mais de uma história a respeito de beldades como<br />
aquela sendo usadas como iscas por quadrilhas de ladrões.<br />
— Olha, moça, gostaria de poder ajudar, mas as<br />
regras da minha firma são rígidas. Se alguém aqui na<br />
parada bate pra eles que eu aceitei uma caronista, pode<br />
ficar ruim pro meu lado....<br />
— Tudo b<strong>em</strong>. - a garota franziu os lábios, visivelmente<br />
frustrada. - Desculpe ter incomodado o senhor.<br />
A garota deu as costas para o caminhoneiro. Seu<br />
pão tostado acabava de ser servido, mas Olavo continuou<br />
olhando a garota que se afastava, enquanto seus<br />
pensamentos seguiam um rumo o qual ele já sabia no que<br />
resultaria.<br />
— Espera. - disse ele.<br />
Olavo havia chegado à conclusão de que se fosse<br />
sua filha ali, ele gostaria muito que fosse alguém de sua<br />
própria índole a oferecer-lhe ajuda, ao invés de algum de<br />
seus colegas que poderiam ver a moça com olhos mais<br />
maliciosos.<br />
— Deixa eu terminar de comer, que eu te levo.<br />
A garota sorriu e tornou a se aproximar. Olavo bebeu<br />
o café e devorou o pão <strong>em</strong> questão de segundos, logo não<br />
havia mais que um cotoco amanteigado, que ele tornou a<br />
oferecer a jov<strong>em</strong>.<br />
62
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
— T<strong>em</strong> certeza que não quer? A viag<strong>em</strong> ainda leva<br />
umas duas horas.<br />
— Não, obrigada. - respondeu ela, encolhida sob os<br />
próprios braços cruzados. - Não sinto fome.<br />
Olavo pagou pelo lanche e despediu-se do dono da<br />
barraca, saindo com a garota atrás de si. Ainda receoso<br />
como estava com sua própria atitude, Olavo não pôde<br />
perceber o momento que o velho esticou-se para fora da<br />
barraca e, com um olhar de estranheza, acompanhou-o<br />
<strong>em</strong> todo o trajeto até o caminhão.<br />
Os dois já estavam na estrada havia meia-hora,<br />
quando Olavo decidiu quebrar o silêncio. Atravessavam<br />
um trecho de estrada livre, margeada <strong>em</strong> ambos os lados<br />
por uma vastidão descampada. A pergunta que ele fez à<br />
garota não poderia ser mais básica:<br />
— Qual o seu nome?<br />
— Marcela. - respondeu ela, olhando distraidamente<br />
pela janela.<br />
— Marcela.. - repetiu Olavo, após o que a boléia<br />
voltou a mergulhar <strong>em</strong> silêncio.<br />
Ele não estava realmente interessado <strong>em</strong> saber da<br />
vida da garota. Cogitou até tornar a pôr o sertanejo no<br />
toca-fitas para tocar, mas pensou se o estilo de música<br />
não a incomodaria. No fim das contas, preferiu continuar<br />
o papo.<br />
— E você é de Montes Calmos mesmo? - perguntou.<br />
— Não, sou da capital. - Marcela sorriu. - Estou indo<br />
ver uma pessoa.<br />
63
— Parente seu?<br />
— Mais ou menos.<br />
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
Subitamente, as rodas dianteiras da carreta se<br />
chocaram contra pequena depressão da pista, fazendo<br />
a cabine sacolejar bruscamente. Com o susto, a garota<br />
cravou as unhas no painel à frente.<br />
— Me perdoa! - exclamou Olavo, preocupado. - Você<br />
se machucou?<br />
— Não, foi só o susto mesmo.<br />
— Essa estrada está toda esburacada assim. Fica<br />
atenta aí, viu?<br />
— Tá bom, pode deixar. - Marcela colocou a mão<br />
contra o peito, tentando recuperar o fôlego.<br />
— Deve ser sua primeira vez por essas bandas, né.<br />
- sugeriu o caminhoneiro. - Não tá acostumada a esse<br />
pedaço.<br />
— É sim.<br />
— Olha... não faz isso que você fez lá atrás assim<br />
não, viu menina. Ficar dando sopa <strong>em</strong> lugar de hom<strong>em</strong>.<br />
Foi sorte você ter pedido ajuda pra mim. Um outro aí podia<br />
ficar mal-intencionado.<br />
Marcela apenas voltou-se para Olavo, <strong>em</strong> silêncio. Ele<br />
fitou os olhos castanhos da jov<strong>em</strong> pelo espelho retrovisor,<br />
ligeiramente, receoso por não saber ao certo se tinha<br />
mesmo o direito de repreendê-la. Mas então, para seu<br />
alívio, Marcela esboçou um leve sorriso, e perguntou,<br />
apontando para a foto sobre o espelho:<br />
64
— É a sua família?<br />
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
— Aham. Meu cristal e minha cristalina.<br />
— O quê? - estranhou a caronista, arqueando as<br />
sobrancelhas.<br />
— Me desculpa, isso é gíria de caminhoneiro. -<br />
esclareceu Olavo. - Quer dizer minha esposa e minha<br />
filhota.<br />
— Ela é muito linda. - Marcela tomou a foto <strong>em</strong> suas<br />
mãos, deslizando o indicador pela imag<strong>em</strong> da menina. -<br />
Quantos anos t<strong>em</strong>?<br />
— Minha filha? Sete aninhos. Carolina. É a minha<br />
princesinha.<br />
Um par de faróis anônimos passaram pelo caminhão,<br />
no sentido inverso. Olavo franziu os olhos, evitando a<br />
luminosidade ofuscante. Mais uma das manhas de qu<strong>em</strong> já<br />
tinha experiência de estrada.<br />
— Essa vida de caminhoneiro às vezes acaba comigo.<br />
- lamentou Olavo. - Mas eu tô indo pra casa. Vou chegar lá<br />
de manhãzinha e fico até a hora do almoço. Aí depois eu<br />
volto pra central de abastecimento e começa tudo outra<br />
vez...<br />
— Ela deve sentir muito a sua falta. - disse Marcela.<br />
— Falo com ela todos os dias pelo celular. Ela diz que<br />
quando crescer quer ser caminhoneira que n<strong>em</strong> o pai.<br />
Olavo riu, e Marcela riu também. Então, o s<strong>em</strong>blante<br />
da garota se fechou, subitamente.<br />
— Sinto muita falta do meu pai.<br />
65
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
— Ele... é falecido? - perguntou Olavo, percebendo o<br />
tom de voz dela.<br />
Ela, porém, nada disse. Continuou olhando para<br />
baixo, para a foto da família de Olavo. Ele então percebeu<br />
que Marcela esforçava-se, <strong>em</strong> vão, para conter o choro.<br />
Arrependido de ter feito a pergunta, Olavo pensou <strong>em</strong> dizer<br />
algo para confortá-la, mas... o quê diria? A moça ainda<br />
era uma total estranha. Talvez agora fosse simplesmente<br />
melhor respeitar seu silêncio e...<br />
Olavo sentiu um calafrio. A onda gelada surgiu <strong>em</strong><br />
algum lugar entre seu coração e o estômago e espalhouse<br />
rapidamente por todo corpo, como o estalo que o<br />
corpo sente ao despertar quando ainda se está prestes<br />
a dormir. Ele soube que algo muito ruim estava prestes a<br />
acontecer, um segundo antes da cabine ser tomada pelo<br />
futum nauseabundo de rosas velhas e putrefação, como<br />
uma manhã de velório. Seu coração disparou, mas o único<br />
pensamento era manter as mãos firmes ao volante. Não<br />
podia olhar para o lado, não queria olhar para o lado, pois<br />
no fundo já sabia o que estava acontecendo.<br />
Ele já tinha ouvido as histórias.<br />
Ainda assim, como se não mais fosse o senhor de sua<br />
própria vontade, Olavo voltou-se para o banco do carona,<br />
deparando-se com o horror na forma de um rosto pálido<br />
e inchado, trancado <strong>em</strong> um s<strong>em</strong>blante rancoroso, de<br />
desesperada agonia, g<strong>em</strong>endo <strong>em</strong> um pranto angustiado<br />
ao encará-lo com olhos que não fitavam coisa alguma,<br />
olhos cadavéricos, a escorrer<strong>em</strong> como um par de manchas<br />
negras ao longo das bochechas apodrecidas.<br />
Marcela estava morta, mas continuava chorando.<br />
— Ai meu Deus do céu! - gritou ele, quase perdendo<br />
66
o controle do caminhão.<br />
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
Então, houve uma freada brusca e <strong>em</strong> um piscar<br />
de olhos, não havia mais nada. N<strong>em</strong> o cheiro de morte,<br />
n<strong>em</strong> Marcela. Olavo estava sozinho na cabine, como era<br />
na maioria das noites. A foto de sua família, porém, não<br />
estava onde costumava estar sobre o espelho retrovisor,<br />
mas sim sobre o banco do carona. Sua respiração estava<br />
tão alta e acelerada que mal conseguia ouvir os próprios<br />
pensamentos confusos. Receoso e com o coração a sair<br />
pela boca, Olavo tomou a foto <strong>em</strong> mãos, percebendo-a<br />
coberta por uma fina camada oleosa como limo, e fria<br />
como se tivesse acabado de ser tirada de uma geladeira.<br />
Largou-a outra vez sobre o banco. Sua vontade era<br />
de abrir a porta da cabine e sair correndo, mas sabia que<br />
se o fizesse poderia não ter corag<strong>em</strong> de subir outra vez. Já<br />
ouvira histórias como aquela tantas vezes, e ao contrário<br />
de outros jamais duvidou que pudess<strong>em</strong> ser verdade. Pelo<br />
contrário, toda vez que l<strong>em</strong>brava, s<strong>em</strong>pre rezava a Deus<br />
para que o mantivesse protegido das forças ocultas que<br />
perambulavam por esse mundo.<br />
Deus não atendera seu pedido.<br />
Os minutos passaram e Olavo continuou ali, parado,<br />
com as mãos no volante. Os arredores da estrada<br />
continuavam mergulhados no breu, exceto onde a luz de<br />
seus faróis clareavam a noite com uma névoa amarelada.<br />
Foi quando o caminhoneiro percebeu que, por coincidência<br />
ou não, parara diante de uma placa sinalizadora, onde uma<br />
seta indicando uma curva para direita era acompanhada<br />
pelos dizeres:<br />
“Montes Calmos - 2 km”.<br />
A constatação fez com que, pouco a pouco, o pânico<br />
67
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
que dominava a mente de Olavo cedesse espaço a um<br />
sentimento mais racional, a curiosidade. Era impossível,<br />
por mais que tentasse racionalizar seu caminho para fora<br />
daquele terror, negar que acabara de ter sido tocado<br />
pelo mundo sobrenatural. Mas, talvez não fosse apenas<br />
um capricho obscuro do destino. Talvez houvesse um<br />
propósito para tudo aquilo.<br />
De algum ponto indistinto do passado, imortalizado<br />
na foto que repousava sobre o banco do carona, sua<br />
filha Carolina continuava a dedicar-lhe um sorriso largo e<br />
revigorante. Como se seguisse um delicado fio reluzente<br />
através de um escuro labirinto, Olavo retornou ao exato<br />
instante quando, na parada, avistou Marcela indo <strong>em</strong>bora<br />
sozinha e sensibilizou-se com a ideia de que ela também<br />
pudesse ser filha de um pai preocupado. Era essa imag<strong>em</strong>,<br />
a da criança perdida na noite, que sua mente fazia <strong>em</strong>ergir<br />
daquela outra, a dos olhos mortos, aquela que Olavo<br />
desejava apagar para s<strong>em</strong>pre de suas l<strong>em</strong>branças.<br />
Qu<strong>em</strong> era Marcela? Ou melhor.. qu<strong>em</strong> havia sido?<br />
Ela era mesmo real?<br />
E se fosse.. por quê ele e não outro qualquer?<br />
A última pergunta fez Olavo l<strong>em</strong>brar-se de suas<br />
próprias palavras para a moça e da sorte que esta tinha<br />
por ser ele e não outro a levá-la até seu destino. Um raio<br />
de sol solitário despontou no leste, no exato instante <strong>em</strong><br />
que o caminhoneiro percebia ter, talvez, encontrado parte<br />
da resposta que procurava para a experiência que acabava<br />
de mudar sua vida. B<strong>em</strong> como percebia só haver um lugar<br />
<strong>em</strong> que poderia elucidar o resto do mistério.<br />
O caminhão cruzou a entrada da cidade quando o sol<br />
terminava de se erguer no horizonte. Olavo estacionou<br />
68
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
<strong>em</strong> um terreno baldio vizinho à placa de boas-vindas<br />
aos visitantes, e prosseguiu a pé. Montes Calmos, um<br />
município ribeirinho com menos de trinta mil habitantes,<br />
vivia um princípio de manhã preguiçoso, como o da maioria<br />
das cidades pequenas. O dia despertava com um límpido<br />
céu azul, e estava tudo tão quieto que era possível ouvir<br />
o grasno de um bando de garças voando à quilômetros<br />
de distância. Embora Olavo jamais tivesse estado ali<br />
antes, sentiu-se aconchegado pelo verde das calçadas<br />
arborizadas e pelo canto dos pássaros que ressoavam<br />
pelas avenidas ainda desertas da cidade.<br />
A noite anterior tomava ares de um pesadelo distante.<br />
Dez minutos se passaram, antes que Olavo cruzasse<br />
com o primeiro morador local, uma senhora idosa, de<br />
lenço na cabeça, a contornar a pracinha central de Montes<br />
Calmos. Pensou <strong>em</strong> abordá-la, mas sabia que era inútil. Em<br />
um lugar como aquele, o comércio local, por mais modesto<br />
que fosse, s<strong>em</strong>pre era o centro dos acontecimentos. Se<br />
quisesse ter qualquer chance <strong>em</strong> descobrir a verdade<br />
sobre Marcela, se é que havia uma, precisaria esperar.<br />
E assim ele esperou, até que as lojas começaram<br />
a abrir as portas. Partindo da pracinha <strong>em</strong> que estava,<br />
Olavo visitou uma padaria, uma farmácia, e uma loja de<br />
materiais de construção. Em cada uma contou a mesma<br />
história: estava vindo da capital, e uma conhecida havia<br />
pedido para que localizasse uma jov<strong>em</strong> chamada Marcela,<br />
que haveria chegado <strong>em</strong> Montes Calmos alguns dias antes.<br />
— Desculpe, senhor, mas não conheço não. -<br />
respondeu um.<br />
— Nunca vi. - afirmou outro.<br />
— Conheço uma Marcela, mas é mais velha. E loira.<br />
69
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
Olavo fornecia uma descrição precisa da garota, mas<br />
s<strong>em</strong> sucesso. Ninguém a conhecia. Foi assim, de loja <strong>em</strong><br />
loja, perdendo as horas da manhã <strong>em</strong> voltas ao redor da<br />
cidade. Já era o meio da tarde quando o caminhoneiro<br />
enfim se deu por vencido, ao ouvir um derradeiro “não”,<br />
desta vez de um rapaz jov<strong>em</strong>, que servia copos de cachaça<br />
do outro lado do balcão de uma barzinho. Chegou a nutrir<br />
certa esperança pela hesitação inicial do moço à descrição<br />
que fizera de Marcela, mas foi <strong>em</strong> vão.<br />
No fim das contas, não havia um propósito maior.<br />
O que sucedera na noite anterior não fora mais que<br />
um acaso, um episódio aleatório dentre tantos que as<br />
histórias contam sobre o que existe na fronteira negra<br />
entre este mundo e aquele outro. A ele só cabia, agora,<br />
arrumar um jeito de continuar vivendo com suas dúvidas.<br />
Frustrado, Olavo retornou para o caminhão e tomou<br />
outra vez o caminho para casa. Assim, quando a noite<br />
tornou a chegar, ele já estava b<strong>em</strong> longe, na segurança e<br />
tranquilidade de seu lar, cochilando no sofá com sua filha<br />
a tiracolo.<br />
Olavo não sabia, n<strong>em</strong> poderia saber, que para o<br />
rapaz, o mesmo com qu<strong>em</strong> por último conversara <strong>em</strong> sua<br />
breve estadia <strong>em</strong> Montes Calmos, aquela não seria uma<br />
madrugada tranquila.<br />
O jov<strong>em</strong> pediu ao dono do bar para sair mais cedo,<br />
alegando uma indisposição física, e a maneira como suava<br />
frio acabou por corroborar sua mentira. Sua cabeça girava,<br />
e no caminho até o pequeno apartamento que alugava ele<br />
olhou por sobre o ombro mais de uma vez, <strong>em</strong> um estado<br />
de absoluta paranóia. Chegou procurando sua mochila, e<br />
jogou dentro dela suas roupas. Até ali parecia estar tudo<br />
b<strong>em</strong>, mas ele não poderia arriscar. Haviam o descoberto.<br />
70
Ele precisava sair daquela cidade.<br />
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
Decidiu esperar a cobertura da noite para partir, s<strong>em</strong><br />
saber que a noite o esperava também. Estava a postos<br />
para sair, mas quando tentou abrir a porta, l<strong>em</strong>brou-se<br />
que a havia trancado ao entrar. Pior, suas chaves não<br />
estavam no bolso do velho jeans como havia imaginado.<br />
Soltando um palavrão, jogou a mochila no chão e começou<br />
a tirar tudo de dentro, a procura do molho. Foi quando um<br />
ligeiro tilintar metálico, vindo do banheiro, chamou sua<br />
atenção.<br />
Receoso, o rapaz levantou-se e seguiu o repentino<br />
ruído, encontrando por fim suas chaves jogadas no chão<br />
ao lado da pia. Afirmando a si mesmo que provavelmente<br />
teria caído durante sua correria, ele agachou-se no chão<br />
frio para pegá-las. Neste momento, um cheiro horrível<br />
invadiu-lhe as narinas, forte e ocre como carniça.<br />
Provavelmente estava exalando do ralo, pensou ele, s<strong>em</strong><br />
dar muita importância ao fato. Afinal, estava de partida.<br />
Aquele apartamento já não era mais probl<strong>em</strong>a seu.<br />
Ao retornar para a sala, contudo, viu que não estava<br />
sozinho.<br />
Já era tarde na madrugada, então ninguém viu quando<br />
o rapaz saiu correndo pela porta do prédio, <strong>em</strong> pânico,<br />
deixando a mochila no chão do apartamento e a chave<br />
ainda presa à fechadura da porta. Ele corria e olhava para<br />
trás, os olhos arregalados de pavor, a calça encharcada<br />
com a própria urina, e a voz presa na garganta travada,<br />
incapaz de gritar por socorro. Continuou correndo, o mais<br />
rápido que pôde, mas cada vez que olhava para trás, via<br />
que a coisa... ela... continuava <strong>em</strong> seu encalço.<br />
Então, houve um clarão luminoso, e tudo acabou.<br />
71
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
O motorista não teve t<strong>em</strong>po de reagir. O hom<strong>em</strong><br />
simplesmente surgiu no meio da pista, completamente<br />
desorientado. O ônibus ainda seguiu por duzentos metros<br />
antes de frear completamente, deixando pelo asfalto uma<br />
trilha de sangue e vísceras.<br />
Dias depois, Olavo estava novamente <strong>em</strong> uma parada,<br />
fazendo seu lanchinho noturno. Havia um televisor ligado<br />
na barraca, mas o volume estava tão baixo que mal era<br />
possível entender o que dizia o âncora do telejornal da<br />
madrugada. Esperando servir<strong>em</strong> seu café, o caminhoneiro<br />
desviou por um instante o olhar da TV, surpreendendo a si<br />
mesmo pela breve e tola esperança que teve de ver surgir,<br />
vindo de lugar nenhum, o rosto daquela que transformara<br />
sua vida para s<strong>em</strong>pre.<br />
Olavo não havia contado a ninguém sobre Marcela,<br />
n<strong>em</strong> pretendia. Não havia noite, porém, <strong>em</strong> que não<br />
pensasse nela. Não com medo da repugnante aparição,<br />
mas sim com pena da menina que podia ser sua filha, que<br />
na certa havia sido a preciosa cristalina de alguém, e que<br />
talvez ainda estivesse perdida <strong>em</strong> alguma estrada escura,<br />
esperando achar o caminho de casa.<br />
Naquele instante, no televisor para o qual ninguém<br />
agora prestava atenção, o apresentador acabava de<br />
noticiar o inusitado desdobramento de um caso de<br />
homicídio ocorrido na capital do estado. Um hom<strong>em</strong>,<br />
morto por atropelamento na cidade de Montes Calmos<br />
na s<strong>em</strong>ana anterior, havia sido identificado como um<br />
suspeito foragido, acusado pelo brutal assassinato de sua<br />
namorada, anos atrás.<br />
O nome dela era Marcela.<br />
72
O CAMINHO DE VOLTA<br />
André Soares Silva<br />
ANDRÉ SOARES DA SILVA, Carioca, funcionário público,<br />
estudante de Letras da UFRJ, 28 anos, escreve desde<br />
os 15. Começou no mundo da literatura escrevendo<br />
fanfictions inspiradas no seriado Arquivo X, ainda no final<br />
dos anos 90. Hoje <strong>em</strong> dia é um apaixonado pela arte de<br />
escrever, seja na forma de <strong>contos</strong>, roteiros para cin<strong>em</strong>a<br />
ou romances. Atuou junto a OTP Filmes como consultor<br />
na roteirização de curtas-metragens, participou da<br />
antologia “Contos Fantásticos”, do site A <strong>Irmandade</strong>, e<br />
“Solarpunk”, da Editora Draco, a ser lançada <strong>em</strong> breve.<br />
Seu primeiro romance, “Simuum – O Conto do Sol”,<br />
encontra-se no momento <strong>em</strong> fase de análise junto à<br />
editoras. Atualmente, trabalha <strong>em</strong> seu próximo projeto,<br />
um thriller sobrenatural que pretende ser o início de uma<br />
trilogia.<br />
73
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
— Sorva... Sorva<br />
E o vinho não bastava, aquela voz continuava <strong>em</strong><br />
minha mente.<br />
Levantei-me do sofá, <strong>em</strong> que estivera desde que o<br />
sol começara a se pôr, esperando o telefone tocar. Mas<br />
nenhum som se fez além do maldito sussurro...Sorva.<br />
Enfim quando tocou e ouvi a voz de meu amigo do<br />
outro lado da linha tranquilizei-me, pois assim teria um<br />
motivo para sair de casa.<br />
Em passos pesados entrei no chuveiro, esperando<br />
apenas que a água escorresse quente por minhas costas,<br />
me encharcando, tão quente que queimava minha pele...<br />
Queimava... Queimava, como se o inferno tivesse se<br />
diluído sobre mim.<br />
O fogo sorvendo minha carne.<br />
Saí do chuveiro, prostrando-me diante do espelho,<br />
74
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
o peito nu e repleto de cicatrizes, as marcas do t<strong>em</strong>po<br />
<strong>em</strong> que passei buscando, e encontrando, ao invés do que<br />
procurava, somente as sombras que me perseguiriam...<br />
Sorva... Sorva... Mais uma vez aquela voz soprando <strong>em</strong><br />
meus ouvidos.<br />
Não perdi t<strong>em</strong>po.<br />
A noite me deixava s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po. Curta e soberana.<br />
Capaz de ruminar o mais lascivo dos seres.<br />
Tinha de me encontrar com Hiago o quanto antes,<br />
a necessidade de vê-lo aumentava, e estar entre o<br />
burburinho da cidade, ajudaria a ter o estranho comando,<br />
já conhecido, longe de meus ouvidos. Peguei minha<br />
jaqueta de couro, vesti as botas e saí de casa.<br />
Caminhando por aquelas ruas quase vazias, eu<br />
começava a achar que apenas a jaqueta não seria o<br />
suficiente para enfrentar o frio da noite.<br />
As árvores confundiam-se pelo vento, exalando um<br />
ar úmido que inundava o fim das chuvas de inverno.<br />
E o início das noites naquela cidade era negro, como<br />
meus passos, que, no entanto, nada mais representavam<br />
do que ecos de gritos abafados.<br />
Abraçando-me para estancar o gelo do vento, que<br />
<strong>em</strong>baraçava meu cabelo molhado, ouvi algo mover-se além<br />
dos galhos. Olhei para o alto. Estranhos olhos negros me<br />
observavam com tamanha curiosidade! Senti minha alma<br />
ser presa nas sombras de seu olhar, e minhas verdades<br />
encurraladas por sua sentinela.<br />
Ignorando a gralha-cinzenta que me seguia, como se<br />
me anunciasse com seu pio insolente, continuei a caminhar.<br />
75
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
Em minha mente a voz ainda sussurrava... Sorva... Sorva.<br />
Até que encontrei o burburinho do bar.<br />
Hiago já me esperava <strong>em</strong> uma mesa. Mas ele não<br />
estava sozinho.<br />
Como haveria de ser, estava acompanhado de duas<br />
moças, sendo que uma delas, engalfinhara-se por debaixo<br />
de sua jaqueta, fingindo se aquecer, afinal estava com<br />
poucas tiras cobrindo-lhe o corpo... Inevitavelmente<br />
l<strong>em</strong>brei-me do velho ditado de que certas moças não<br />
sent<strong>em</strong> frio. Mas não foi nela que meus olhos se detiveram.<br />
E antes de dizer boa noite, ouvi o silêncio.<br />
Aquele ser que parecia mesclar-se à bruma letal<br />
bebeu um gole de vinho e uma única gota escorreu de<br />
seus lábios, tal orvalho <strong>em</strong> sombras.<br />
— Théo! –Hiago se levantou, erguendo o vermute,<br />
parecia surpreso por me ver ali, como se tivesse se<br />
esquecido de que ele mesmo havia me ligado para<br />
encontrá-lo. Sua jaqueta surrada estava manchada de<br />
sangue, um pouco abaixo da costela, mas como era de seu<br />
feitio, ele deveria ter iniciado a noite perto de alguma rua<br />
escura, com alguém que achava que poderia comandá-la<br />
melhor do que ele. Essa s<strong>em</strong>pre fora uma das vantagens<br />
de ser amigo de Hiago, ninguém poderia comandar melhor<br />
o inferno das noites do que ele.<br />
— Parece que cheguei tarde, Hiago, você já encontrou<br />
companhia. – sorri pelo canto dos lábios, mas não obtive a<br />
atenção desejada.<br />
— Sua presença nunca se faz tarde, Théo. Essa é<br />
Ariane – a moça que usava um espartilho vermelho barato,<br />
igual a seus lábios, cumprimentou-me com um sorriso que<br />
76
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
pareceu incomodar meu amigo. – e esta é L<strong>em</strong>ony.<br />
Alguns olhares parec<strong>em</strong> impregnados pelo ópio, o<br />
dela, era o próprio ópio que impregnava meu olhar.<br />
Diante dela fiz-me objeto.<br />
Sentei-me junto aos três e servi o vermute que nos<br />
aqueceria. A conversa fluiu entre eu e Hiago, ignorando<br />
as interrupções da moça que o acompanhava, enquanto a<br />
outra, no entanto, continuava <strong>em</strong> sua mudez dúbia.<br />
Por algum t<strong>em</strong>po tentei atrair sua atenção, mas<br />
<strong>em</strong> sua timidez ou indiferença, respondia apenas com<br />
resmungos. Ela olhava para o fim da rua, como se<br />
esperasse algo. No salão próximo dali acontecia o baile do<br />
Dia dos Pais dado todos os anos pelo prefeito e a primeira<br />
dama.<br />
— Não quis ir à festa deste ano Hiago? – provoquei-o.<br />
— O prefeito e a primeira dama prefer<strong>em</strong> que eu<br />
fique longe, eles t<strong>em</strong> mais dois filhos lá para completar<strong>em</strong><br />
a família. – eu sorri ao l<strong>em</strong>brar que Hiago era o filho<br />
mais velho do prefeito da cidade, sendo um dos maiores<br />
probl<strong>em</strong>as que o pai tinha que resolver nesta.<br />
— E vocês, moças? – disse olhando para L<strong>em</strong>ony.<br />
— Não receb<strong>em</strong>os o convite. Mas espero que me tir<strong>em</strong><br />
para dançar. – dessa vez seus olhos ébrios ressurgiram,<br />
como se até então estivess<strong>em</strong> distantes de sua própria<br />
consciência, voltando somente para me amortalhar. Ela<br />
nada mais disse. Levantou-se e deu-me a mão. – Leve-me<br />
para casa, Théo.<br />
Quando segurei sua mão, gélida pelo vento, a voz <strong>em</strong><br />
77
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
minha mente voltou com intensidade... Sorva... Sorva...<br />
L<strong>em</strong>ony, <strong>em</strong> seu vestido de lã cinza que lhe cobria<br />
os braços finos, conduziu-me para longe do barulho da<br />
irritante música que insistia <strong>em</strong> tocar no bar, até que nos<br />
aproximamos do fim da cidade, <strong>em</strong> frente à minha casa.<br />
Ela sentou-se à beira do portão enferrujado. Retirou<br />
as sapatilhas e acariciou as urzes com as pontas dos<br />
pés, como se tentasse recuperar algo há muito perdido.<br />
Fitei-a por todo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que esteve ali, até que ouvi o<br />
gralhar do pássaro diante das sombras. Levantei-me para<br />
espantar a ave, mas assim que me aproximei, notei que<br />
trazia algo no bico, uma pedra talvez, porém antes que<br />
eu pudesse me aproximar mais de sua escuridão ela alçou<br />
voo. Por uma última vez naquela noite ouvi, <strong>em</strong> bulício, a<br />
voz novamente a me atormentar...<br />
Sorva...<br />
Com a desculpa do frio levei L<strong>em</strong>ony para dentro, seus<br />
olhos negros e curiosos incomodavam-me, pois traziam a<br />
sensação do abismo que me cobria. Por um momento ela<br />
hesitou <strong>em</strong> entrar <strong>em</strong> minha casa, compreendi que eu a<br />
acabara de conhecer, mas ainda assim tinha a sensação<br />
de que era ela qu<strong>em</strong> me chamava para adentrar a névoa<br />
de seus lábios.<br />
Naquela noite, a boca de L<strong>em</strong>ony silenciou a voz<br />
que comandava minha mente. O estranho formigamento<br />
de seu corpo a friccionar minha boca, o ópio a preencher<br />
meus lábios, a neblina a evocar os olhos da noite. E sobre<br />
os sortilégios de sua pele ela orquestrou meus obscuros<br />
desejos.<br />
Adormeci.<br />
78
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
Junto à madrugada um pio estridente me acordou.<br />
Olhei para o lado e vi que as cortinas brancas sibilavam.<br />
Levantei-me rumo à janela aberta, e mais uma vez vi<br />
aqueles olhos negros e curiosos a me fitar<strong>em</strong>, mas antes<br />
que pudesse me aproximar, a gralha voou. Foi apenas<br />
quando me vi só, que notei a ausência de L<strong>em</strong>ony. A<br />
chamei por toda a casa, mas só o eco frio respondeu. Não<br />
me dei ao trabalho de fechar a janela, pois algo <strong>em</strong> meus<br />
tormentos dizia que somente a bruma que adentrava,<br />
poderia me levar de volta ao sono. Porém, antes de me<br />
deitar olhei-me no espelho da penteadeira e notei que<br />
estranhamente uma cicatriz, feito um risco, juntara-se<br />
<strong>em</strong> meu peito com equimoses, s<strong>em</strong> que eu houvesse me<br />
machucado para tê-las.<br />
Adormeci.<br />
Quando levantei com a voz me perturbando, uma<br />
t<strong>em</strong>pestade ruminava a tarde. Tentei ligar para Hiago,<br />
mas meu telefone estava mudo. Mais uma vez, sentei-me<br />
no sofá à espera que o whisky que tinha <strong>em</strong> mãos pudesse<br />
calar aquela doce e morfética voz.<br />
Assim que a chuva cessou e o sol se pôs, arrisqueime<br />
no frio para tentar encontrar Hiago, afinal ele era<br />
minha ponte para L<strong>em</strong>ony, mas quando atravessava o<br />
portão cinza, vi entre as casas e ruínas do fim da rua - a<br />
sombra dela <strong>em</strong> meio à névoa de chuviscos que se fazia.<br />
Por sete noites L<strong>em</strong>ony esteve <strong>em</strong> meus braços, fui<br />
ludibriado pelo granizo de seus lábios, sentindo minha pele<br />
queimar ao inferno de seu toque. Por sete noites eu a tive<br />
nua até os ossos... E por todas as noites ela se desfez no<br />
deserto de meu sono... Por sete noites a voz deixou de me<br />
atormentar... E por sete madrugadas a ave me despertou<br />
com seu gralhar que parecia querer minha danação.<br />
79
Mas, na última noite, eu não dormi.<br />
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
Enquanto L<strong>em</strong>ony estava comigo, podia sentir a paz<br />
que só se encontra nos vales, como se todas as sombras<br />
dos pecados que me perseguiam foss<strong>em</strong> apagadas – pois<br />
havia o sangue <strong>em</strong> minhas mãos dos anos que a m<strong>em</strong>ória<br />
escassa insistia <strong>em</strong> ofuscar.<br />
O sangue que se espalhava por meu passado, com o<br />
qual tracei o algoz de minha alma, que agora sussurrava<br />
<strong>em</strong> meus ouvidos.<br />
Na última noite <strong>em</strong> que tive L<strong>em</strong>ony e o acalento<br />
de seus negros olhos curiosos junto a mim, permaneci<br />
acordado, pois não queria que ela fosse <strong>em</strong>bora pela<br />
madrugada adentro outra vez. Enquanto ela se vestia,<br />
sentei-me à beira da cama, e defronte ao espelho, a<br />
observava colocar seu habitual vestido cinza de lã, ao<br />
mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que tentava entender as equimoses<br />
e cicatrizes que foram se juntando uma a uma <strong>em</strong> meu<br />
peito. Tentava recordar quando fora a última vez que<br />
havia falado com Hiago, desde a t<strong>em</strong>pestade meu telefone<br />
parecia estar mudo, e somente porque sabia que Hiago<br />
era feito de vestígios, que só se deixava à mostra quando<br />
queria, foi que não me preocupei.<br />
Apenas a contínua ausência de L<strong>em</strong>ony <strong>em</strong> meus dias<br />
é que forjava meus tormentos. E enquanto me perdia nas<br />
dúvidas e a fitava cobrir-se junto à névoa que adentrava<br />
pela janela aberta, vi através do espelho, de repente sua<br />
silhueta desaparecer.<br />
Virei-me chamando seu nome, correndo até onde<br />
segundos antes ela estivera, mas tudo que recebi como<br />
resposta foi novamente o gralhar que queimou meus<br />
ouvidos. Afastando a cortina, encarei de perto os olhos<br />
80
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
negros e curiosos da gralha-cinzenta que retornava com<br />
meus d<strong>em</strong>ônios. Como fizera, nas outras noites, espantei<br />
a ave, que desta vez ao invés de alçar voo, deixou cair no<br />
parapeito da janela a esfera que a vi carregar na primeira<br />
noite.<br />
Na s<strong>em</strong>iescuridão do quarto segurei-a colocando<br />
contra o luar.<br />
Era um olho. Negro e afogado.<br />
Com asco joguei o olho que rolou pelo chão do<br />
quarto, no mesmo instante <strong>em</strong> que a gralha voou para<br />
a penteadeira bicando sua própria imag<strong>em</strong> até quebrar o<br />
espelho. Eu gritei para afugentar aquele maldito pássaro,<br />
quando vi que ele carregava no bico um caco do espelho.<br />
Ela voou <strong>em</strong> círculos sobre minha cabeça, e saiu pela<br />
porta. Eu a segui, atravessando o corredor.<br />
Eu segui os caminhos da gralha, abjurando meus<br />
medos.<br />
Sorva... Sorva... Meus ouvidos queriam sangrar<br />
diante da voz que calava toda a razão. Não... Aos poucos<br />
eu gritava com as dores <strong>em</strong> minha cabeça... Sorva...<br />
Sorva... Mas eu ainda caminhava, pois conseguia ouvir o<br />
pio tão estridente quanto os risos do inferno a me guiar.<br />
Sorva... Sorva... Por mais que tapasse meus ouvidos<br />
a voz não sanava.<br />
Até que me vi diante de um portão.<br />
Cinza e enferrujado, como o de minha casa... Os<br />
detalhes, a estranha s<strong>em</strong>elhança das grades...<br />
A gralha, então, pousou sobre um toco coberto de<br />
81
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
urzes, ela observava como se me esperasse adentrar sua<br />
morada. E era como se eu estivesse no fim da cidade,<br />
na rua que me confinava as noites. O g<strong>em</strong>ido metálico<br />
do portão mostrou-me a neblina que, sorrateira, gelava<br />
minha pele, e qual o frio seco e cinza, pareceu afugentar a<br />
voz que me comandava.<br />
Ao meu redor a escuridão dos anjos de pedra<br />
imperava.<br />
Estava <strong>em</strong> algum lugar no t<strong>em</strong>po. Só não sabia por que<br />
de fato estava ali. Aos poucos meus olhos se abriam para<br />
enxergar tudo aquilo que a gralha tentava me mostrar. Ela<br />
voou por entre as árvores, que mesmo entrelaçando seus<br />
galhos secos, permaneciam <strong>em</strong> silêncio. Seguindo suas<br />
asas, com o frio a cobrir-me feito mortalha, e a neblina a<br />
me cegar... Tropeçando, s<strong>em</strong> ver, nas campas e cruzes...<br />
Caminhei segurando-me na lassidão dos medos de meus<br />
pecados que retornavam... Até que eu a vi pousar.<br />
Sobre o granito de suas patas diversos jornais<br />
esvoaçavam e cobriam uma lápide. Ali me sentei detendo<br />
uma das páginas, junto à gralha, quando li a notícia notei<br />
que era de uma s<strong>em</strong>ana atrás. Anunciava a presença do<br />
prefeito e a primeira dama no baile anual da cidade, ao<br />
menos era o que a foto parecia mostrar. Eu não tinha<br />
porque ler aquela notícia, não tinha porque estar ali,<br />
mas algo me instigava à leitura, algo, como um estranho<br />
formigamento por dentro, uma ânsia que me obrigava a<br />
ler.<br />
E assim o fiz.<br />
No título, o anúncio de que o baile do Dia dos Pais<br />
havia sido cancelado, pois a data havia caído justamente<br />
no aniversário de morte de sete anos do filho mais velho<br />
82
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
do casal, que havia morrido, junto com alguns amigos,<br />
num acidente onde o carro caíra da ponte, afogando-se<br />
no rio, naquela mesma noite. Olhei as datas novamente.<br />
Não... Não... Não! Hiago estava ausente, mas não morto!...<br />
Eu teria sido informado de sua morte... Não, meu amigo<br />
não poderia ter morrido!<br />
Sorva... Sorva... Soprou <strong>em</strong> meus ouvidos. Virei-me<br />
de repente, não havia nada além da escuridão das árvores<br />
a sibilar. Num lapso olhei para o reflexo no caco de espelho<br />
que a gralha deixara ao meu lado, e lá estava ela.<br />
Os olhos negros e afogados.<br />
— Finalmente você me ouviu, Théo!<br />
— L<strong>em</strong>ony! O que está havendo?<br />
— Sorva... Sorva Théo, o que lhe resta.<br />
No negrume, vi surgir as silhuetas <strong>em</strong> sombras, as<br />
almas que eu havia roubado. Em meu peito pude sentir as<br />
cicatrizes se retorcendo <strong>em</strong> feridas. Eu sabia. Meu corpo<br />
queimava.<br />
Meu algoz surgira.<br />
L<strong>em</strong>ony, <strong>em</strong> seu vestido cinza, se aproximou de mim,<br />
mesmo atônito deixei que seus olhos negros e curiosos<br />
me fitass<strong>em</strong> s<strong>em</strong> nada fazer, era como se meus músculos<br />
tivess<strong>em</strong> se congelado, pois eu sabia que meu passado me<br />
aguardava. Então ela me beijou. E eu me l<strong>em</strong>brei. L<strong>em</strong>breime<br />
do primeiro beijo, dado no meio do baile do Dia dos<br />
Pais... De L<strong>em</strong>ony e Ariane chorando, enquanto eu dirigia<br />
furioso, atravessando a ponte. L<strong>em</strong>brei-me de minha briga<br />
com Hiago, da lâmina <strong>em</strong> minhas mãos atravessando suas<br />
costelas...<br />
83
ALMAS MORTAS<br />
Sofia Geboorte<br />
Porque Hiago duvidara de que eu era capaz de comandar o<br />
inferno das ruas melhor do que o próprio diabo!<br />
— Sorva Théo, o que lhe resta. – e no instante seguinte<br />
ela desapareceu diante de meus olhos, só o que ouvi foram o<br />
bater de asas, procurei desesperado, já à espera da maldita<br />
gralha-cinzenta, mas não avistei pássaro algum.<br />
Achei que só o vazio do c<strong>em</strong>itério me ancorasse, mas<br />
diante de mim, por entre os túmulos as almas que eu arrancara,<br />
se aproximavam como sombras. Arrastei-me para o fundo do<br />
túmulo, tr<strong>em</strong>endo, tentando inutilmente me proteger daquelas<br />
sombras, até que senti a fria lápide fechando minhas costas.<br />
As sombras se perderam, deixando-me entregue à<br />
escuridão.<br />
Os pelos de minha nuca eriçaram quando repentinamente<br />
o silêncio tumular foi rompido pelo pio estridente da gralha<br />
pousada no topo da lápide. Afastei-me num salto, encarando o<br />
pássaro. Foi somente nesse instante que li o nome entalhado no<br />
granizo: Théo Campbell.<br />
Dona do blog Relicário de Sangue onde deposita seus<br />
escritos, SOFIA GEBOORTE nasceu no interior de São<br />
Paulo, entre um rio e uma floresta, <strong>em</strong> 1991. Prestes a<br />
se formar <strong>em</strong> Letras (português/francês), dedica-se à<br />
pesquisas que versam sobre o fantástico na literatura<br />
brasileira e francesa, enquanto escreve <strong>contos</strong> de litfan.<br />
84
ENTRE AMIGAS<br />
Eni Allgayer<br />
ENTRE AMIGAS<br />
Eni Allgayer<br />
A aranha andava <strong>em</strong> círculos pela parede. As patas,<br />
recobertas por uma penug<strong>em</strong> negra, lev<strong>em</strong>ente azulada,<br />
movimentavam-se com leveza e sincronia.<br />
Deitada na cama, com uma garrafa de cerveja entre<br />
as mãos, Circe observava o ir e vir da caranguejeira. As<br />
ondas sonoras do bolero de Ravel estr<strong>em</strong>eciam o quarto,<br />
mas ela continuava estática com os olhos presos no<br />
animal.<br />
Imagens antigas lhe vieram à mente. Via-se correndo<br />
pelo jardim da avó, ainda menina, com um vidro de<br />
maionese nas mãos. Dentro dele restava apenas uma<br />
aranha, com os olhos aumentados pela curvatura do vidro.<br />
O riso de satisfação ao perseguir os primos para mostrar<br />
o troféu. Os gritos da mãe, as tias abraçando os filhos e a<br />
avó deitada entre as flores, com uma mão sobre o peito, e a<br />
85
ENTRE AMIGAS<br />
Eni Allgayer<br />
outra, coberta de pequenas aranhas pretas com o abdome<br />
rubro, como cerejas maduras. Depois, a ambulância<br />
chegando com a sirene aberta, luzes vermelhas enfeitando<br />
a tarde. Gente grande chorando feito gente pequena. A avó<br />
de vestido novo, cabelos penteados, repousava no caixão,<br />
calada como uma boneca. Já não havia reclamações,<br />
abraços apertados ou cheiro de alfaz<strong>em</strong>a. No c<strong>em</strong>itério,<br />
a chuva miúda misturando-se às lágrimas. Jogara pétalas<br />
de rosas sobre o caixão colocado numa cova, com a vista<br />
presa no olhar acusador da tia. Aquela que lhe tirara o<br />
vidro das mãos, estilhaçando-o contra o piso. A tia que lhe<br />
batera no rosto, afrontando sua mãe, que a retinha entre<br />
os braços num ninar feito de soluços.<br />
A música parou de chofre machucando-lhe os ouvidos.<br />
O silêncio tinha uma densidade estranha, um peso de<br />
ameaça ou prenúncio de coisa ruim. Circe levantou-se da<br />
cama, tomou mais alguns goles diretamente do gargalo e<br />
se voltou para Pedro. Ah, Pedro, murmurou, esboçando<br />
um leve sorriso.<br />
Ela o amava muito, desde o t<strong>em</strong>po de menina. S<strong>em</strong>pre<br />
fizera as suas vontades. Detestava algumas coisas, mas<br />
submetia-se para agradá-lo. Outras eram feitas com<br />
prazer pecaminoso. Encontros furtivos no galpão de<br />
ferramentas. Ele, o noivo da tia mais nova, barba cerrada,<br />
ela ainda menina, seios mal surgidos sob a camiseta da<br />
escola. Enfiou os dedos <strong>em</strong> seus cabelos desfazendo o<br />
penteado, antes de sentar <strong>em</strong> seu colo, como fazia desde<br />
os nove anos. Ele não esboçou reação. Rolou para a cama<br />
ao seu lado, e assim ficou por mais algum t<strong>em</strong>po, mirando<br />
a aranha na brancura do forro. Suspirou, voltando a<br />
sentar. Emborcou o resto da bebida <strong>em</strong> gole único,<br />
massageando os seios. Os bicos eretos, sensíveis ao tato.<br />
Agora ele é meu, gritou uma vez, e outra, e mais outra.<br />
O sorriso transformado <strong>em</strong> gargalhada e as mãos abertas<br />
86
ENTRE AMIGAS<br />
Eni Allgayer<br />
para recolher as amiguinhas que galgavam as pontas dos<br />
dedos, aninhando-se nas palmas umedecidas. Como que<br />
atraídos por uma essência exótica, elas saiam dos bolsos,<br />
gola e nariz de Pedro como formigas <strong>em</strong> carreirinha. Ela<br />
as contou e recontou, para certificar-se de ter recolhido<br />
a todas. Conhecia cada uma delas, apesar da quantidade.<br />
Por fim, depositou-as numa espécie de aquário e subiu<br />
na mesa para alcançar a caranguejeira, oculta no desvão<br />
entre a sanca e o forro de gesso. Cantarolava quando a<br />
jogou na caixa de vidro para depois descer a tampa.<br />
As pequenas viúvas-negras cercaram a recémchegada<br />
que resistiu por algum t<strong>em</strong>po, mas serenou<br />
como Pedro, aos poucos. Enquanto as aranhas faziam<br />
festa, Circe abriu um alçapão no assoalho da cozinha, sob<br />
o tapete, para guardar a caixa de vidro no ventilado do<br />
porão. Retornou ao quarto, beijou os lábios arroxeados<br />
do amante e, tomou o telefone, discando números<br />
m<strong>em</strong>orizados. A voz trazida da infância fez o anúncio:<br />
— Alô? Emergência? Preciso de uma ambulância. O<br />
titio foi picado por algum inseto. É... Ele está desacordado.<br />
Estou calma, sim senhora. Está b<strong>em</strong>, anote o endereço...<br />
Ah, não esqueça da sirene, gosto de ouvi-la cantar, cantar,<br />
cantar.<br />
ENI ALLGAYER nasceu <strong>em</strong> Tupanciretã, RS, <strong>em</strong><br />
18/01/1946, casada, mãe de 3 filhos e avó de um neto,<br />
iniciou na literatura de ficção <strong>em</strong> 2003, sendo autora de<br />
7 livros individuais, com participação <strong>em</strong> 28 coletâneas<br />
<strong>em</strong> várias cidades do Brasil, quase todas decorrentes de<br />
concursos literários.<br />
87
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
Depois de algumas centenas de metros do tráfego<br />
lento das dezoito horas, o carro da diocese<br />
parou <strong>em</strong> frente à mansão <strong>em</strong> estilo colonial, uma das<br />
últimas naquele bairro de comércio movimentado e ruas<br />
saturadas com prédios de mais de dez andares. A porta<br />
do carona se abriu, e logo o padre Daniel se aproximou<br />
do vestíbulo da casa. Olhou para o segundo andar, e de<br />
um quarto guardado por espessas cortinas <strong>em</strong>anava um<br />
piscar incessante de luz. Também ouviu gritos f<strong>em</strong>ininos,<br />
mas com voz grave, além do barulho de vidro quebrando<br />
contra a parede.<br />
Nada que assustasse o sacerdote, integrante de<br />
uma das ordens menores da Igreja Católica havia cerca<br />
de vinte anos. Já vira de tudo um pouco nesse ofício de<br />
exorcista, exceto aquele a qu<strong>em</strong> supostamente combatia.<br />
Sim, ao longo do t<strong>em</strong>po, padre Daniel se tornou cético<br />
quanto à existência do diabo. No mais das vezes, as<br />
pessoas que a ele recorriam estavam possuídas por<br />
probl<strong>em</strong>as existenciais, psicológicos, psiquiátricos ou até<br />
88
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
mesmo físicos, como quando a mãe de uma menininha de<br />
cinco anos confundiu uma rara afecção cutânea no rosto<br />
da filha com uma possessão d<strong>em</strong>oníaca. Mas o diabo, este<br />
ele nunca confrontara.<br />
Não seria diferente agora com essa família, a qu<strong>em</strong><br />
chegara por intermédio de um certo Sr. Moreira, advogado<br />
criminalista e católico praticante. Os pais sofriam com os<br />
probl<strong>em</strong>as de saúde da filha de treze anos havia muito<br />
t<strong>em</strong>po, mas na noite anterior o quadro se agravara. Ela<br />
passou a se contorcer na cama, mudou o tom de voz e, a<br />
todo o momento que tentavam se aproximar dela, reagia<br />
de forma agressiva.<br />
Antes mesmo que pudesse soar a campainha, o<br />
outro filho do casal, um adolescente de dezessete anos,<br />
atordoado, com as mãos trêmulas e o olhar desvairado,<br />
veio ter com o padre à entrada.<br />
“Ainda b<strong>em</strong> que o senhor chegou! Minha irmã tá<br />
possuída! Nos ajude, por favor!”<br />
****<br />
“Foi um alívio quando o padre chegou. Eu estava no<br />
segundo andar, encostado à janela do quarto da minha<br />
irmã, quando levantei um pedaço da cortina e vi o carro<br />
se aproximando. Tomei corag<strong>em</strong>, atravessei o fogo dos<br />
infernos e desci correndo as escadas.<br />
Ele devia ter quase uns cinquenta anos, um jeito de<br />
cara conservador, sério. Se fosse <strong>em</strong> outra situação, me<br />
daria medo, mas eu já estava morrendo de pavor. Entre o<br />
89
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
padre e o diabo, a escolha fica fácil.<br />
Ninguém imagina que isso vai acontecer na própria<br />
família. Na verdade, há muito t<strong>em</strong>po que eu não<br />
considerava que tinha uma família. As coisas iam mal lá<br />
<strong>em</strong> casa. Meus pais estavam quase se separando. Minha<br />
irmã vivia tendo crises.<br />
Desde pequeno que eu não gostava do meu pai. Ele<br />
bebia e batia muito <strong>em</strong> mim. Na escola, s<strong>em</strong>pre fui um<br />
dos piores alunos, e ele me cobrava muito, queria que eu<br />
me destacasse. Não acho que era pro meu b<strong>em</strong>, não, mas<br />
só pra satisfazer o ego dele, pra aparecer pros amigos do<br />
hospital. A cada reprovação – e foram umas três – ele me<br />
espancava.<br />
Já a minha mãe era meu porto seguro. Ela me<br />
abraçava toda vez que me via chorando pelos cantos.<br />
Tinha a maior paciência pra me ensinar os deveres da<br />
escola. Eu amava minha mãe.<br />
Tudo mudou quando eu tinha uns doze anos. Sei que<br />
ela também sofria com o gênio do meu pai, só que não é<br />
fácil descobrir que a sua mãe t<strong>em</strong> outro cara, que está<br />
enganando todo o mundo. Um dia, cheguei mais cedo da<br />
escola – tinha matado aula – e ouvi uma conversa dela no<br />
telefone com um amante. Mamãe estilhaçou a confiança<br />
que eu tinha nela.<br />
Dali <strong>em</strong> diante, passei a sair direto da escola pra<br />
rua, com alguns colegas mais velhos. Foi um período de<br />
liberdade. Descobri a aventura, o sexo, as drogas... Ah,<br />
as drogas nunca me decepcionaram! Primeiro, a maconha;<br />
depois, a cocaína. E cada vez mais e mais euforia.<br />
Só que depois vinha um período de depressão. E eu<br />
precisava de mais, mas depois de um t<strong>em</strong>po não tinha de<br />
90
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
onde tirar dinheiro. Furtei alguns reais de um comércio,<br />
fui parar na delegacia. Meu pai – muito legal o meu pai –<br />
me liberou com a ajuda de um amigo advogado. E depois<br />
me recebeu <strong>em</strong> casa com o carinho habitual.<br />
Foi só eu me livrar da delegacia e da estupidez do<br />
meu pai que voltei pras drogas. Alguns anos depois, um<br />
conhecido me ofereceu o crack. Como a gente diz, é um<br />
bagulho muito doido! Na primeira vez, já me viciei. E não<br />
parei mais. Quando eu estava na piração, até cachorro<br />
virava jacaré pra mim. Isso mexe com a cabeça.<br />
Passei a não voltar pra casa. Dormia debaixo de<br />
viadutos, <strong>em</strong> cracolândias, nas quebradas da vida. No<br />
início, minha mãe até ia atrás de mim. Depois, teve que se<br />
voltar pros próprios probl<strong>em</strong>as de saúde. Meu pai desistiu<br />
logo, percebeu que minhas crises atrapalhariam d<strong>em</strong>ais o<br />
trabalho dele.<br />
Pequenos roubos e furtos alimentavam o meu vício.<br />
No café da manhã, no almoço e no jantar, o cardápio era<br />
um só: droga. Naquele dia, fumei cinco pedras de crack a<br />
manhã toda. Cheguei <strong>em</strong> casa por volta de umas quatro<br />
da tarde. Estava muito louco. Fui até a cozinha e peguei<br />
uma faca grande b<strong>em</strong> afiada. Queria matar meu pai. Claro<br />
que era o efeito da droga. Eu não ia ter corag<strong>em</strong> pra fazer<br />
isso de cara limpa.<br />
Subi as escadas e fui até o quarto dele. Ninguém. O<br />
quarto da minha mãe? Vazio. De repente, ouvi uma voz<br />
grossa vindo do quarto da minha irmã. Pensei que fosse<br />
um ladrão e corri pra lá de faca <strong>em</strong> punho. Empurrei a<br />
porta, e o cenário era literalmente uma visão do inferno.<br />
Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se contorcia sob os lençóis,<br />
como se alguém tentasse dominá-la, minha irmã rosnava<br />
91
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
palavrões para os meus pais, que estavam ao lado da<br />
cama. Eles n<strong>em</strong> notaram minha aproximação. Cheguei até<br />
a janela pra tentar abrir as cortinas, mas, nesse instante,<br />
minha irmã se voltou pra mim.<br />
‘Vou te matar’ – ela gritou, com os olhos fumegantes.<br />
E os lençóis começaram a levitar, e depois o corpo dela<br />
também, como se viesse ao meu encontro. Num impulso,<br />
atirei a faca contra ela, s<strong>em</strong> direção – deve ter caído<br />
atrás do guarda-roupa. Meus pais me abraçaram, e senti a<br />
minha visão <strong>em</strong>baçar e começar a girar, e então desmaiei.<br />
Devo ter apagado por umas duas horas. Só acordei com o<br />
barulho de carro estacionando à entrada da nossa casa.”<br />
****<br />
“Prostração. Diante daquela cena, não saberia definir<br />
meu sentimento de outra maneira. De um lado, minha filha<br />
num estado indescritível, algo sobrenatural. De outro,<br />
meu primogênito, desmaiado, beijando a lona por causa<br />
da maldição da juventude atual. Se eu pudesse, sumiria<br />
naquele instante mesmo, como uma névoa que vai se<br />
diluindo através da manhã.<br />
Não sei quando comecei a sumir da minha própria<br />
existência. Talvez quando me casei, aos 25 anos, ainda com<br />
muita fome de vida. O amor nos faz abrir mão de muitas<br />
coisas. Talvez quando, depois de formada <strong>em</strong> História e já<br />
com um <strong>em</strong>prego de professora, aceitei os argumentos do<br />
meu marido, um b<strong>em</strong>-sucedido ortopedista, de que não<br />
precisava trabalhar, pois ele manteria as contas de casa<br />
<strong>em</strong> dia. Ou ainda quando engravidei com menos de um<br />
92
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
ano de casamento e passei a me dedicar integralmente ao<br />
meu filho e ao lar. Acredito mesmo que possa ter sido ao<br />
fazer vista grossa para os indícios de traição <strong>em</strong> vermelho,<br />
lilás e laranja que meu querido trazia na gola das camisas<br />
e até nas peças íntimas, isso s<strong>em</strong>pre depois de estafantes<br />
plantões no hospital. Veio a segunda gravidez, e a minha<br />
sentença de prisão estava definitivamente decretada.<br />
Difícil indicar o ponto a partir do qual o amor próprio<br />
não voltaria mais. O primeiro porre do marido que agora se<br />
revelava um alcoólatra? O primeiro tapa depois de tentar<br />
contestá-lo? A primeira vez <strong>em</strong> que surrou nosso filho<br />
pequeno? Não sei. Eu só queria ser amada. Não me refiro<br />
à afeição que meus filhos me dedicavam. S<strong>em</strong>pre fomos<br />
muito ligados. Eu necessitava de amor como mulher.<br />
Encontrei-o na troca de olhares com um vizinho de<br />
rua, um rapaz solteiro que morava com a mãe doente<br />
<strong>em</strong> uma casa no fim da rua. Ele era alguns anos mais<br />
novo que eu, alto, magro, ar de intelectual. S<strong>em</strong>pre que<br />
passava por mim, fazia questão de cumprimentar. Não sei<br />
b<strong>em</strong> ao certo que desculpa usou para puxar conversa, mas<br />
<strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po já estávamos enrolados sob a coberta de<br />
algum quarto de motel. Esses encontros furtivos duraram<br />
alguns poucos anos, depois dos quais meu namorado<br />
se cansou da clandestinidade da nossa relação. Queria<br />
encontrar alguém com qu<strong>em</strong> pudesse fazer planos.<br />
Nos afastamos por um t<strong>em</strong>po, e a separação coincidiu<br />
com o agravamento do quadro do meu filho, adolescente<br />
rebelde, que dava cada vez mais preocupação a mim e a<br />
meu marido. Quando nos d<strong>em</strong>os conta, as drogas já tinham<br />
arrombado a porta de nosso lar e estavam sentadas ali no<br />
sofá, diante de nós, assistindo ao noticiário da noite.<br />
Ao mesmo t<strong>em</strong>po, nossa caçula tinha um estranho<br />
93
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
probl<strong>em</strong>a de saúde: tiques nervosos, sonambulismo,<br />
gagueira, epilepsia. A situação foi se agravando a tal<br />
ponto que a levamos a psicólogos, psiquiatras, terapeutas<br />
alternativos. Nada adiantou.<br />
S<strong>em</strong> meu namorado e rodeada de probl<strong>em</strong>as, me<br />
rendi à depressão. Em pouco t<strong>em</strong>po, eu mesma passei a<br />
consumir caixas de psicotrópicos na tentativa de levantar<br />
o moral. Os tarjas preta não provocavam <strong>em</strong> mim efeitos<br />
colaterais, exceto um: vez ou outra, eu tinha alucinações.<br />
Em certa ocasião, cheguei a pensar ter visto meu pai,<br />
falecido anos antes, ao entrar rapidamente no quarto e<br />
dar de cara com ternos do meu marido pendurados no<br />
guarda-roupa aberto.<br />
Depois de algum t<strong>em</strong>po, meu amor voltou a me<br />
procurar, <strong>em</strong>bora já tivesse outra mulher. Percebi que<br />
agora ele queria só matar saudade do sexo, variar um<br />
pouco. Aceitei, pois não podia impor condições. Mesmo<br />
porque, nossas transas serviam como válvula de escape<br />
de uma panela de pressão prestes a explodir.<br />
Meu derradeiro inferno familiar começou<br />
aproximadamente às onze da noite. Após voltar de mais<br />
um encontro às escondidas, senti meu sangue congelar<br />
ao notar o carro de meu marido na garag<strong>em</strong>. Por que ele<br />
já havia retornado do plantão? O normal seria ele chegar<br />
apenas pela manhã.<br />
Atravessei o amplo salão no térreo s<strong>em</strong> ouvir barulho.<br />
Subi as escadas com cuidado, entrei na minha suíte pé<br />
ante pé. Estava tr<strong>em</strong>endo, tamanha a tensão. Abri o<br />
armarinho do banheiro e logo ingeri duas drágeas de uma<br />
vez. Precisava me acalmar.<br />
Subitamente, explodiu vidro contra a parede do<br />
94
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
quarto da minha filha, na outra extr<strong>em</strong>idade do corredor.<br />
Corri para lá e abri a porta num impulso. Alguém havia<br />
arr<strong>em</strong>essado uma garrafa de uísque <strong>em</strong> direção a um<br />
quadro com a foto dela quando menina. Acendi a luz e<br />
surpreendi meu marido assustado, lívido, à cabeceira da<br />
cama, enquanto minha filha se contorcia e falava palavrões<br />
com uma voz rouca.<br />
Ele estava bêbado. Não tinha n<strong>em</strong> como contestar<br />
minha chegada tardia. Puxou-me pelo braço para fora do<br />
quarto e trancou a porta. ‘É o d<strong>em</strong>ônio, mulher! Nossa<br />
filha está possuída pelo diabo’. Reparei que havia uma<br />
mancha de sangue na manga esquerda da camisa dele.<br />
Tentei abrir a porta, mas ele me impediu. Colei os ouvidos<br />
à madeira e passei a auscultar grunhidos, convulsões,<br />
choques contra o chão e as paredes. Fiquei desesperada,<br />
mas ele não me deixou socorrê-la. Fui até o banheiro e<br />
tomei mais dois tarjas preta.<br />
Ao voltar, meu marido estava à porta do quarto,<br />
como um Cérbero, telefone <strong>em</strong> punho. ‘Moreira, desculpe<br />
ligar a esta hora. Preciso da sua ajuda.’ O auxílio que<br />
ele procurava era espiritual. Nossa pequena estava<br />
end<strong>em</strong>oninhada.<br />
Ficamos <strong>em</strong> vigília a noite inteira. Os barulhos e os<br />
gritos não cessaram. Mal trocamos algumas palavras eu e<br />
meu marido, que <strong>em</strong>endava doses de uísque uma atrás da<br />
outra. Já os meus companheiros fiéis foram os r<strong>em</strong>édios.<br />
Entupi-me deles durante a manhã e a tarde. Pouco antes<br />
das dezesseis, o silêncio imperou lá dentro. Tomamos<br />
corag<strong>em</strong> e entramos.<br />
Recomeçou, então, a algaravia de minha filha.<br />
Palavras desconexas, olhos esbugalhados, movimentos<br />
tensos. Mas agora era diferente. Havia fogo na parte de<br />
95
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
trás da cama. E a cada impropério que proferia, as bonecas<br />
<strong>em</strong> sua estante se movimentavam, como se submetidas<br />
a um pequeno sismo. Não restava dúvida: era caso de<br />
possessão d<strong>em</strong>oníaca.<br />
Encolh<strong>em</strong>o-nos próximo à cama, os dois apavorados,<br />
quando repentinamente meu filho invadiu o cômodo com<br />
uma faca na mão. T<strong>em</strong>i pelo pior. Ele estava transtornado,<br />
e eu não queria que machucasse minha flor. Ela precisava<br />
de ajuda, e não de agressão. Atônitos, nós pais assistimos<br />
ao confronto dos nossos rebentos. O d<strong>em</strong>ônio investiu<br />
contra meu filho, que lançou a faca – graças a Deus – s<strong>em</strong><br />
qualquer precisão.<br />
Rapidamente, o envolv<strong>em</strong>os, e ele desmaiou. Com<br />
nosso filho desacordado, não tiv<strong>em</strong>os como sair dali,<br />
mesmo amedrontados pela cena dantesca diante de nós.<br />
Até a chegada do padre, d<strong>em</strong>os as mãos, rezamos e<br />
torc<strong>em</strong>os para que nada de pior sucedesse.<br />
Quando ouvimos um carro parando perto da entrada<br />
de nossa casa, o d<strong>em</strong>ônio começou a gritar mais alto. O<br />
quarto tr<strong>em</strong>eu. Minha filha passou a atirar contra o teto os<br />
jarros de flores que mantinha <strong>em</strong> sua estante; eu, talvez<br />
numa reação histérica, passei a apertar o interruptor de<br />
luz sofregamente, acendendo e apagando a lâmpada <strong>em</strong><br />
ritmo acelerado. Meu marido quedou estático. Nosso filho,<br />
já reanimado, pulou do lado da janela até a porta e foi<br />
atender o padre.”<br />
****<br />
96
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
“Não gosto de tratar desse assunto. É uma história<br />
de medo, nojo e ignomínia.<br />
Medo de ser descoberto. Não que eu deva satisfações<br />
a qualquer sentimento moral. Às favas o escrúpulo. O ser<br />
humano é ou não é assim? Mas a queda é maior quando<br />
há muito a se perder. E eu tenho uma posição social<br />
destacada, uma reputação pela qual devo zelar.<br />
Conheci minha mulher quando ela ainda estava na<br />
faculdade. Na ocasião, eu lá cursava o mestrado e já tinha<br />
carreira iniciada e b<strong>em</strong> encaminhada na área da ortopedia.<br />
Nosso namoro e posterior casamento ocorreram quase<br />
por inércia. Eu precisava de uma mulher para mostrar à<br />
sociedade. Ela tinha boa formação, era de boa família.<br />
Mulher perfeita para casar, ficar <strong>em</strong> casa e cuidar dos<br />
filhos.<br />
Não que desgostasse da fornicação caseira, mas<br />
desde cedo fui dado a aventuras sexuais. Nunca tive<br />
pudores quanto a isso e s<strong>em</strong> cerimônia admito que traí<br />
minha companheira desde antes do enlace matrimonial.<br />
Além do sexo, ao qual voltarei a fazer referência<br />
mais adiante, uma outra paixão mundana s<strong>em</strong>pre me<br />
dominou: o álcool. Na juventude, as bebidas me serviam.<br />
Em momentos festivos, estavam lá para tornar o ambiente<br />
mais leve, agradável. Com o t<strong>em</strong>po, elas passaram a me<br />
absorver. E como no escorrer da areia de uma ampulheta<br />
invisível, a relação se inverteu: era como se eu me houvera<br />
tornado um fiel de algum culto profano a um deus etílico<br />
e tivesse por obrigação depositar <strong>em</strong> oferenda minha<br />
própria saúde mental.<br />
Somado a um casamento de fachada, o vício é capaz<br />
97
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
de produzir o que socialmente se denomina de crápula. Um<br />
marido infiel e agressivo, um pai severo e cruel, apenas<br />
faces aparentes e odiáveis de um hom<strong>em</strong> infeliz.<br />
Ainda me restava o prazer do sexo, t<strong>em</strong>a ao qual<br />
retorno para explicitar o que poderia ter sido minha<br />
ruína, não fosse uma insólita interferência satânica. Sou<br />
um ninfomaníaco, não resta dúvida. Orgias <strong>em</strong> casas de<br />
suingue, transas com prostitutas, trepadas nos plantões<br />
do hospital, os ménage à trois <strong>em</strong> que experimentei<br />
até brincadeiras homossexuais... Uma extensa lista de<br />
aventuras lascivas, que, entretanto, já não me apresentava<br />
mais novidade. Eu queria uma experiência sexual inédita.<br />
Ao completar sete anos, minha filha recebeu um<br />
presente diferente. Papai colocou-a no colo, pôs a mão por<br />
baixo de seu vestidinho de rendas, deslocou sua calcinha e<br />
acariciou suas partes íntimas. Foi um prazer indescritível.<br />
Para mim, claro.<br />
Para ela, o nojo. A partir daí, passou a ter probl<strong>em</strong>as<br />
de aprendizado, distúrbios da fala, insônia. Não, eu não<br />
parei. Eu queria mais. Contentei-me com esses aperitivos<br />
durante anos. À medida que avançavam as carícias, seu<br />
estado de saúde se deteriorava.<br />
Naquela noite, cheguei mais cedo <strong>em</strong> casa, cabulando<br />
um plantão imaginário, o qual só existiu como desculpa<br />
para a minha tola e infiel esposa – como se eu não<br />
soubesse de seu inútil caso amoroso havia muito t<strong>em</strong>po.<br />
O meu filho já se mudara mesmo para as ruas, de modo<br />
que na mansão estávamos apenas eu e meu brinquedinho<br />
favorito.<br />
Bebi algumas doses de uísque e, já alto, avancei<br />
ao meu parque de diversões. O quarto estava escuro,<br />
98
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
ela já estava dormindo. Caí por sobre o corpo dela, s<strong>em</strong><br />
pruridos, desbragadamente. Foi quando aconteceu uma<br />
reação inesperada.<br />
Ela me afastou com raiva – uma força excessiva<br />
para uma menina de treze anos. Em seguida, cravou os<br />
dentes no meu braço esquerdo, o que provocou uma dor<br />
aguda. Caí para trás gritando. Ficamos ali alguns minutos<br />
<strong>em</strong> silêncio sob a luz da lua que entrava pela janela. Eu<br />
tentando me recompor; ela me olhando fixamente, s<strong>em</strong><br />
piscar, como se mirasse o infinito. Arrisquei mais uma<br />
investida, e ela prontamente se apoderou da garrafa de<br />
uísque que eu deixara sobre a cômoda e arr<strong>em</strong>essou-a <strong>em</strong><br />
direção à parede. Menos de um minuto depois do estrondo,<br />
minha mulher irrompeu no quarto.<br />
Surpreendido pela desagradável presença uxória<br />
e diante do contorcionismo iniciado por minha filha,<br />
ocorreu-me uma desculpa contra a qual soçobra qualquer<br />
tentativa de explicação racionalista: nosso bebê fora<br />
possuído pelo d<strong>em</strong>ônio. Retirei a mulher do cômodo e dei<br />
início a uma atuação digna de Oscar. Recorri ao s<strong>em</strong>pre<br />
solícito Moreira, que me prometeu acionar seus contatos<br />
na diocese a fim de conseguir a visita de um exorcista o<br />
mais rápido possível.<br />
Enquanto eu mergulhava no doze anos, minha mulher<br />
chafurdava nas suas pílulas da felicidade. Lá dentro, nossa<br />
filha continuava a se debater, a ranger os dentes e a falar<br />
palavras incompreensíveis.<br />
Depois de muitas horas de angústia, sobreveio a<br />
tranquilidade. Os sons estranhos pararam. Entramos no<br />
quarto, e, então, aconteceu algo inusitado. É como se a<br />
fantasia virasse realidade. Como se uma mentira fosse<br />
repetida tantas vezes que, ao confrontá-la, já não se<br />
99
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
distinguisse mais entre verdade e imaginação. A menina<br />
estava mesmo possuída.<br />
Ao nos ver entrar, recomeçaram os espasmos. Ela<br />
vomitou uma cachoeira verde, arregalou os olhos e girou<br />
o pescoço b<strong>em</strong> além do que um ser humano normal seria<br />
capaz, numa cena digna de Friedkin.<br />
Assustei-me, pois não encontrava uma explicação<br />
plausível para aquilo tudo. Entrei num estado de torpor,<br />
<strong>em</strong>bora tenha permanecido acordado e saiba que continuei<br />
me movimentando pelo cômodo mecanicamente. Quando<br />
retomei o controle dos meus pensamentos, um padre<br />
estava à porta do quarto.<br />
Ah, o medo, o nojo e a ignomínia! Esta surgirá aos<br />
olhos de qu<strong>em</strong> porventura venha a saber dos detalhes<br />
obscuros desse exorcismo, os quais pretendo deixar<br />
escondidos nos recônditos da minha consciência.”<br />
***<br />
Munido de crucifixo, bíblia e água benta – fazia parte<br />
da pantomima do ritual – padre Daniel se apresentou aos<br />
pais da menina, enquanto esta continuava a pronunciar<br />
palavrões e a se debater sobre a cama. O sacerdote pediu<br />
a todos que se retirass<strong>em</strong>, não antes s<strong>em</strong> ouvir súplicas<br />
da mãe para que salvasse sua filha.<br />
Assim que todos saíram, a garota se acalmou um<br />
pouco, <strong>em</strong>bora tenha continuado a respirar rapidamente,<br />
como que bufando. O padre encostou a mão direita sobre<br />
a testa da jov<strong>em</strong>, e ela se mostrou irritadiça. Depois, ele<br />
100
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
rezou alguns pais-nossos e ave-marias, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />
<strong>em</strong> que espargia algumas gotas de água benta sobre o<br />
leito da enferma. Tratava-se de um eficaz placebo para<br />
aqueles que, por alguma razão, realmente se sentiam<br />
tomados por um d<strong>em</strong>ônio.<br />
Finalmente, tomou as mãos da jov<strong>em</strong> entre as suas,<br />
assentou-as sobre a capa da bíblia, orou mais um pouco e<br />
disse: “Que o espírito ruim que perturba esta jovenzinha<br />
vá <strong>em</strong>bora e ela volte a ter paz. Em nome do Pai, do Filho<br />
e do Espírito Santo. Amém”. A menina adormeceu por pelo<br />
menos meia hora.<br />
Ao abrir os olhos, perguntou ao exorcista: “Qu<strong>em</strong> é o<br />
senhor? O que aconteceu?”.<br />
“Você não se l<strong>em</strong>bra?”.<br />
“Não me l<strong>em</strong>bro de nada.” .<br />
“Descanse agora, minha filha. Você só está um pouco<br />
cansada” – recomendou o padre, com um indisfarçável e<br />
sereno sorriso de satisfação, por mais uma vez ter ajudado<br />
uma família a se livrar do diabo imaginário, <strong>em</strong>bora não<br />
pudesse, e talvez n<strong>em</strong> quisesse, perscrutar os verdadeiros<br />
fantasmas que afligiam aquele lar.<br />
Ainda no andar de cima, fez admoestações aos pais<br />
e ao irmão da menina, garantiu que estava tudo b<strong>em</strong> a<br />
partir de agora e se despediu.<br />
Ao passar pela sala de estar, já na penumbra pelo<br />
contraste entre a escuridão do adiantado da hora e a<br />
profusão de luzes que a invadiam desde os letreiros do<br />
bairro populoso, deteve-se por um instante a admirar uma<br />
foto da família que acabara de ajudar. Sobre o móvel de<br />
mogno, sorriam felizes os cônjuges e os filhos pequenos,<br />
101
O DIABO MORA NESTA CASA<br />
Jorge Eduardo Machado<br />
a garota com não mais de dois anos. Ao girar a cabeça,<br />
pensou ter visto, de relance, uma figura canhestra<br />
sentada sobre uma antiga poltrona forrada com feltro e<br />
prontamente direcionou o olhar para o assento a fim de se<br />
certificar do que vira. Estava vazia. Não passara de uma<br />
ilusão de óptica. Com uma gota de suor frio escorrendo<br />
pela fronte, o padre logo se retirou da mansão, cada vez<br />
mais convencido de que o diabo só existe na imaginação<br />
de mentes enfraquecidas por probl<strong>em</strong>as cotidianos.<br />
Atrás dele, uma gargalhada inaudível aos ouvidos<br />
comuns ecoou pela casa, e voltaram a se estender<br />
invisíveis fios condutores que uniam garras sinistras a<br />
suas marionetes humanas. Talvez o d<strong>em</strong>ônio não estivesse<br />
dentro daqueles a qu<strong>em</strong> o padre ajuda. Muito mais<br />
acertado seria ter procurado <strong>em</strong> volta.<br />
JORGE EDUARDO MACHADO, de 33 anos, é jornalista<br />
formado pela UFRJ, <strong>em</strong> 2002. Repórter com passagens<br />
pelos jornais O Globo, Extra e Folha Dirigida, além da Rádio<br />
Nacional, atualmente é revisor da Empresa Municipal de<br />
Multimeios da Prefeitura do Rio (Multirio). Em 2006, foi<br />
um dos <strong>vencedores</strong> do concurso do jornal O Estado de S.<br />
Paulo, cujo t<strong>em</strong>a foi futebol. O conto O dia <strong>em</strong> que fomos<br />
meninos ficou entre os 11 selecionados, de um universo<br />
de 1.022 concorrentes. Em outro concurso com mais de<br />
200 inscritos, foi um dos 40 selecionados para integrar<br />
a coletânea Palavras das Letras, <strong>em</strong> com<strong>em</strong>oração aos<br />
10 anos do curso de Letras da Universidade Federal de<br />
São Carlos (UFScar). Dessa vez, o conto pr<strong>em</strong>iado foi<br />
A herança. Expõe seus escritos no Recanto das Letras<br />
(www.recantodasletras.com.br/autores/j<strong>em</strong>).<br />
102
MANEQUIM<br />
Reginaldo Costa de Albuquerque<br />
MANEQUIM<br />
Reginaldo Costa de Albuquerque<br />
caminhão da mudança partira com a tarde<br />
O <strong>em</strong>pacotada dentro do baú. De pé e morto de<br />
cansaço, no centro da sala de estar, não sei por onde<br />
começo. A lâmpada ilumina uma porção de caixas de<br />
papelão <strong>em</strong> desord<strong>em</strong> com roupas, livros, utensílios<br />
domésticos e móveis desmontados. Opto pelo colchão da<br />
cama de casal. Acomodo-o no chão de qualquer jeito e<br />
nele me deito exausto, s<strong>em</strong> lençóis ou travesseiro. O sono<br />
estava agarrado nas molas.<br />
Desperto na manhã seguinte e encontro à entrada<br />
do banheiro um manequim f<strong>em</strong>inino, privado de roupas e<br />
acessórios de <strong>em</strong>belezamento, <strong>em</strong> pose elegante. Objeto<br />
que não faz parte dos meus pertences e n<strong>em</strong> me recordo<br />
de tê-lo visto ont<strong>em</strong> na bagunça.<br />
Volto do desjejum na padaria da esquina a uma<br />
quadra daqui e ponho ord<strong>em</strong> nas coisas s<strong>em</strong> nenhum afã.<br />
No intervalo que me concedo para o almoço e merecido<br />
103
MANEQUIM<br />
Reginaldo Costa de Albuquerque<br />
descanso,<br />
imbróglio.<br />
telefono para a transportadora sobre o<br />
“Vamos verificar e entrar<strong>em</strong>os <strong>em</strong> contato com o<br />
senhor novamente” — responde-me solícita a atendente<br />
no outro lado da linha telefônica.<br />
A nova casa, menor que a anterior, se organiza e<br />
ganha a aparência agradável de um lar. As peças, que os<br />
carregadores retiraram do caminhão-baú, reordeno por<br />
todos os cômodos. Caixas vazias e rasgadas espalho pela<br />
varanda e grama do jardim, s<strong>em</strong> o mínimo cuidado. O<br />
vulto de uma barata surge na parede cimentada do muro<br />
e agita as antenas.<br />
No outro dia, amanheço no meu quarto devidamente<br />
arrumado. O boneco de sentinela, com o olhar fixo <strong>em</strong><br />
mim. Noto a expressão de arranjo de um sorriso que não<br />
havia antes. E, definitivamente, eu não o colocara ali!<br />
Surpresa, a mesa com o café está posta: suco, frutas,<br />
leite, gulodices. E n<strong>em</strong> é a data combinada com a diarista<br />
contratada. Depois, caixa de ferramentas, furar paredes,<br />
pendurar quadros, bater pregos, apertar parafusos e<br />
estender os varais de roupas.<br />
No quarto dia, levanto-me tarde. Ao espreguiçarme,<br />
meu braço direito alongado para o outro lado da<br />
cama, que dá para a parede, toca <strong>em</strong> algo frio, duro, e<br />
não é o travesseiro. Vejo o manequim que se introduzira<br />
enquanto eu dormia. Com incontáveis afazeres, deixo-o<br />
estirado. Faxinar e colocar a sujeira nos sacos pretos de<br />
lixo, cultivar algumas flores, podar a laranjeira nos fundos<br />
do quintal. O telefone chama.<br />
“Senhor, informamos que não há registro de<br />
reclamação pela falta de mercadoria por parte dos<br />
104
MANEQUIM<br />
Reginaldo Costa de Albuquerque<br />
clientes” — é a voz da moça da transportadora.<br />
Insisto, mas ela educadamente não dá ouvidos às<br />
minhas ponderações.<br />
“O caminhão saiu vazio da <strong>em</strong>presa para o transporte<br />
da mudança. Certamente, a mercadoria lhe pertence” — e<br />
desliga.<br />
O t<strong>em</strong>po se esvai moroso, com tudo acomodado <strong>em</strong><br />
seu devido lugar. Um pardal desceu na varanda, saltitou<br />
dois ladrilhos, pegou alguma coisa do chão com o bico e<br />
voou levando o dia a reboque.<br />
A impressão é de sétimo dia e acordo s<strong>em</strong> o alarme<br />
do despertador, que tiquetaqueia sonolento <strong>em</strong> cima da<br />
cômoda. O clarão repentino da luz lançada pelo sol penetra<br />
a janela entreaberta e me ofusca a visão. Dormi sobre o<br />
meu lado esquerdo, de frente para a porta do quarto, mas<br />
não a enxergo. Tento levar as costas dos dedos das mãos<br />
para esfregar os olhos, mas não se mex<strong>em</strong>. As pernas<br />
estão estendidas, os braços dobrados, estáticos.<br />
Cismo preocupado com uma sensação inexplicável de<br />
desconforto.<br />
Enquanto o pensamento dá voltas no labirinto da<br />
inquietação, a campainha toca.<br />
Percebo a movimentação de alguém que deixa a<br />
cozinha, atravessa o corredor e atende. Ouço uma fala<br />
abafada de mulher, que permite a entrada.<br />
Angustio-me. Qu<strong>em</strong> é ela? Qu<strong>em</strong> chegou? Quero<br />
participar, mas meu corpo não reage, não obedece às<br />
minhas vontades. Sinto-me rígido, uma pedra.<br />
105
MANEQUIM<br />
Reginaldo Costa de Albuquerque<br />
Rumores de passos se aproximam. Uma mulher alta<br />
surge alheada ao umbral da porta do quarto lixando as<br />
unhas pintadas de uma tonalidade rósea.<br />
O t<strong>em</strong>or se instala. Conheço o talhe do rosto, as<br />
curvas dos lábios. Ilusão?<br />
O manequim se transformara numa mulher real!<br />
Então, dá passag<strong>em</strong> aos mesmos carregadores que<br />
trouxeram a mudança. Minha boca permanece imóvel e<br />
reprime o bosquejo de um protesto.<br />
Ela reclina a cabeça e arregala os olhos negros, que<br />
brilham intensamente. Em seguida, aponta o dedo <strong>em</strong><br />
minha direção com um ligeiro sarcasmo.<br />
“Eis o manequim que vocês entregaram por engano.<br />
Pod<strong>em</strong> levá-lo para o seu verdadeiro dono”.<br />
REGINALDO COSTA DE ALBURQUERQUE t<strong>em</strong> 48 anos,<br />
campo-grandense-MS de coração. Autor pr<strong>em</strong>iado no<br />
Brasil e <strong>em</strong> Portugal, <strong>em</strong> concursos de poesias, sonetos e<br />
<strong>contos</strong>. Autor do livro Sonetos no azul da tarde.<br />
106
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
crepúsculo começava a surgir no céu quando<br />
O Morgan chegou à mansão. Seu irmão fora<br />
recebê-lo na porta. Jonathan parecia ter envelhecido mais<br />
do que o t<strong>em</strong>po permitiria a qualquer pessoa. Mesmo <strong>em</strong><br />
seus plenos trinta anos, cabelos brancos não lhe faltavam<br />
à cabeça. Os olhos esbugalhados, rodeados por olheiras,<br />
mostravam que certamente não dormia há dias. Há cinco<br />
anos os dois não se viam, desde o verão <strong>em</strong> que Jonathan<br />
e Genevra casaram e mudaram-se para aquela mansão<br />
<strong>em</strong> Rotherham.<br />
— Sinto muito por sua perda, Jon – disse Morgan,<br />
quando o cumprimentou. – Genevra era uma pessoa<br />
formidável, eu a conheci ainda na infância. Sua morte me<br />
deixou muito abalado.<br />
107
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
Ele desviou os olhos de Morgan e se virou para a<br />
mansão, <strong>em</strong> silêncio, ignorando os pêsames do irmão.<br />
Morgan permaneceu parado no portão, perguntandose<br />
se fora somente a morte da esposa que transformara<br />
Jonathan <strong>em</strong> alguém tão mal-educado.<br />
Quando entrou na mansão, ele percebeu que a casa<br />
fazia jus ao dono. Havia poeira, e como havia! Morgan<br />
teve acessos de tosse enquanto atravessava a sala e subia<br />
as escadas que levavam ao segundo andar. Jonathan,<br />
mostrando-lhe o quarto, permanecia frio e indiferente ao<br />
resto do mundo.<br />
— Há quanto t<strong>em</strong>po esta casa não é limpa?<br />
— Três meses – respondeu rispidamente.<br />
Genevra morrera há três meses. Não era muito difícil<br />
adivinhar os motivos para Jonathan manter a casa naquele<br />
estado.<br />
— Você se tornou um viúvo muito intrigante, irmão.<br />
— Servirei o jantar <strong>em</strong> uma hora – disse, ignorando<br />
Morgan mais uma vez. S<strong>em</strong> esperar resposta, virou-se e<br />
começou a se afastar. – Fique à vontade.<br />
— Você servirá o jantar? O que aconteceu com os<br />
criados?<br />
— Foram <strong>em</strong>bora – gritou ele no fim do corredor,<br />
desaparecendo de vista.<br />
Morgan voltou-se para o quarto e acendeu as luzes.<br />
Decidira passar uma quinzena <strong>em</strong> Rotherham para<br />
confortar o irmão após do luto. Seus negócios <strong>em</strong> Roma<br />
d<strong>em</strong>oraram mais do que ele esperava. Depois de concluí-<br />
108
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
los ainda gastara um bom t<strong>em</strong>po até chegar a Londres,<br />
entregar seus relatórios e partir para Rotherham. Três<br />
meses era muito t<strong>em</strong>po. Gostaria de ter chegado antes,<br />
pelo menos a t<strong>em</strong>po de acompanhar o funeral de Genevra.<br />
S<strong>em</strong> nenhum conhecido por perto, Jonathan devia ter sido<br />
o único a comparecer. Aquele pensamento era terrível.<br />
Olhou para a janela. Já havia anoitecido. As nuvens<br />
carregadas e escuras cobriam a lua e as estrelas como algo<br />
que parecia cobrir o coração de Jonathan. Talvez fosse o<br />
r<strong>em</strong>orso. Morgan se l<strong>em</strong>brava das brigas encabeçadas por<br />
Genevra. Apesar de amá-la, seu irmão nunca cedia numa<br />
discussão. Talvez os dois estivess<strong>em</strong> brigados quando<br />
ela veio a falecer. E nessa condição, até mesmo Morgan<br />
se sentiria culpado por dentro. Tenho que falar com ele,<br />
concluiu, não posso deixar que faça alguma besteira.<br />
Morgan apagou as luzes e deixou o quarto. O corredor<br />
estava vazio e pouco iluminado. Ele esbarrou na parede<br />
duas vezes antes de acostumar os olhos à escuridão. No<br />
fim do corredor, viu a porta de um cômodo iluminado<br />
entreaberta. Aproximou-se e notou que era da biblioteca.<br />
L<strong>em</strong>brou-se que Jonathan s<strong>em</strong>pre tivera bons livros.<br />
Talvez fosse melhor esperar pelo jantar lendo alguma<br />
coisa. Conferiu o relógio de bolso para ver o t<strong>em</strong>po de que<br />
dispunha e entrou.<br />
A primeira coisa que notou foi o cheiro de mofo<br />
do lugar. Tentou, mas não conseguiu controlar um novo<br />
acesso de tosse. Com dificuldade, arrastou-se para uma<br />
poltrona próxima e cobriu o nariz com a gola da camisa.<br />
Depois de se recuperar, conseguiu prestar atenção ao<br />
redor. Como deduzira no começo, a biblioteca era ampla e<br />
transbordava livros. As prateleiras iam do chão até o teto.<br />
Algumas escadas se erguiam entre elas, para facilitar a<br />
locomoção. Uma pilha de livros velhos juntava-se <strong>em</strong> cada<br />
109
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
canto e outras se erguiam pelo chão. No entanto, o que<br />
mais chamou sua atenção foi o quadro pendurado acima<br />
da lareira. Uma grande pintura a óleo de um menino – um<br />
menino que chorava.<br />
Morgan levantou-se da poltrona e aproximou-se<br />
do quadro. Notou o calor à medida que se aproximava<br />
da lareira – ela fora apagada há pouco. Não mais que<br />
algumas horas talvez. Jonathan estivera ali. Fazendo o<br />
quê? questionou-se.<br />
Morgan olhou para a figura do menino, que de perfil<br />
parecia fitá-lo sombriamente. Talvez foss<strong>em</strong> as lágrimas,<br />
talvez fosse o olhar vazio de suas pupilas dilatadas,<br />
mas algo diferente parecia vir daquele quadro. Morgan<br />
permaneceu longos minutos a observá-lo, de pé, como<br />
se estivesse hipnotizado. Olhou cada detalhe da tela.<br />
Jonathan e Genevra s<strong>em</strong>pre tiveram bom gosto, porém<br />
Morgan nunca havia visto aquela pintura. Talvez a cunhada<br />
houvesse comprado antes de morrer e agora seu irmão a<br />
guardasse como uma triste l<strong>em</strong>brança. Curioso, procurou<br />
por uma assinatura na tela.<br />
G. Bragolin, rabiscada <strong>em</strong> tinta vermelha <strong>em</strong> um dos<br />
cantos. Tentou se l<strong>em</strong>brar das obras dos pintores que<br />
conhecia, mas nenhuma tinha o aspecto de um menino<br />
que chorava.<br />
De onde veio esse quadro?<br />
Morgan ouviu passos na escada. Devia ser Jonathan.<br />
Conferiu o relógio de bolso. Havia se passado dez minutos<br />
depois da hora que seu irmão marcara para o jantar.<br />
Quando o t<strong>em</strong>po passou a correr tão rápido? Jon deve<br />
estar furioso! Morgan virou de costas para o quadro e<br />
correu <strong>em</strong> direção à porta. No entanto, quando a abriu,<br />
110
deparou-se com a figura do irmão.<br />
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
— Esqueceu-se do jantar? – perguntou ele, rud<strong>em</strong>ente.<br />
– O que você está fazendo na minha biblioteca?<br />
— Lendo – mentiu.<br />
Jonathan o olhou intrigado, por um longo t<strong>em</strong>po,<br />
antes de se virar para o corredor. Resmungou qualquer<br />
coisa antes de se dirigir novamente a Morgan.<br />
— Desça – disse ele. – A comida não permanecerá<br />
quente até o fim do outono.<br />
À mesa do jantar, Morgan sentou-se <strong>em</strong> um dos lados,<br />
enquanto seu irmão ocupou a cadeira da ponta. Jon serviulhe<br />
pão e queijo seco, mas mal tocou na comida. Enquanto<br />
bebia vinho, Morgan notou que havia outro prato vazio na<br />
mesa – disposto ao assento da outra ponta. Percebeu que<br />
Jonathan não parava de fitá-lo, num interminável silêncio.<br />
— Era o lugar de Genevra? – perguntou Morgan,<br />
despertando o irmão do transe. Jon o olhou rapidamente,<br />
antes de voltar o olhar para o assento vazio e assentir<br />
com a cabeça.<br />
— Você ainda não se esqueceu dela, não é?<br />
Assentiu novamente.<br />
Morgan se calou. Não sabia o que dizer. Minutos<br />
depois, Jonathan se levantou e trouxe da cozinha um<br />
pato assado. Parecia-lhe bom a princípio, mas a frieza<br />
de seu irmão amargou cada garfada que levara à boca.<br />
Jonathan não provou o pato. Vez ou outra, ele bebericava<br />
a taça de vinho – mas nada mais que isso. Não disse<br />
uma palavra durante o jantar. Morgan pensou <strong>em</strong> fazer<br />
111
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
algum comentário frívolo sobre a comida, pelo menos para<br />
quebrar o silêncio daquela refeição. Mas viu que a seu<br />
irmão não adiantaria. Ele continuava fitando o assento<br />
vazio na outra extr<strong>em</strong>idade da mesa, <strong>em</strong> silêncio.<br />
— Sabe do que você precisa, Jon? – perguntou ele de<br />
repente. – Outra esposa. Alguém que lhe faça esquecer<br />
Genevra.<br />
Jonathan disparou um olhar frio <strong>em</strong> sua direção.<br />
— Não diga absurdos.<br />
— Estou falando sério – Morgan não sabia de onde<br />
retirara corag<strong>em</strong> para dizer aquilo, mas agora que já<br />
o dissera, não importavam mais as consequências. –<br />
Mulheres não faltam <strong>em</strong> Londres. Eu posso lhe apresentar<br />
algumas, da mesma forma como lhe apresentei Genevra.<br />
Tenho certeza de que elas se interessarão por você...<br />
— Eu ainda amo minha esposa – disse ele. – E n<strong>em</strong><br />
todas as mulheres da Inglaterra preencheriam seu lugar.<br />
— Acho que é a minha vez de dizer “não diga absurdos”<br />
– replicou. – Genevra se foi. Milhares de mulheres o<br />
esperam fora desta mansão mórbida e <strong>em</strong>poeirada.<br />
Garanto-lhe que <strong>em</strong> breve você se casará com outra. Uma<br />
que lhe dê filhos. Depois, será fácil para você esquecerse<br />
da primeira esposa. Não se preocupe, Jon, você ainda<br />
encontrará alguém melhor que Genevra...<br />
Jonathan esmurrou a mesa e se levantou.<br />
— Jamais repita isso – repreendeu <strong>em</strong> um tom<br />
severo. – Não na minha frente. Não sob este teto. –<br />
Encarava Morgan com um olhar perturbado, que ele nunca<br />
vira no rosto do irmão. – E l<strong>em</strong>bre-se de duas coisas: não<br />
112
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
existe nenhuma mulher melhor que Genevra; e não existe<br />
nenhuma que eu possa amar além dela.<br />
E, dizendo isso, foi <strong>em</strong>bora. Morgan permaneceu<br />
sozinho na sala de jantar, bebericando o vinho. Durante<br />
um bom t<strong>em</strong>po, ficou como o irmão: fitando o lugar vazio<br />
na mesa s<strong>em</strong> dizer uma palavra.<br />
Uma valsa começou a tocar <strong>em</strong> outro cômodo. Devia<br />
ser Jonathan mergulhando nas amargas l<strong>em</strong>branças do<br />
passado. Morgan se l<strong>em</strong>brava de como seu irmão e sua<br />
cunhada dançavam b<strong>em</strong> juntos. Ele até tentava aprender<br />
os passos, mas nunca se saía tão b<strong>em</strong> quanto eles. À<br />
mesa, Morgan tomou o último gole do vinho e se levantou.<br />
Procurou pelo cômodo de onde vinha a música.<br />
Atravessou a sala, subiu a escada, cruzou mais corredores,<br />
até que chegou ao lugar. Sentado <strong>em</strong> uma poltrona de<br />
uma sala vazia, Jonathan tinha o rosto coberto pelas<br />
mãos. Morgan não conseguiu distinguir se chorava ou se<br />
refletia. A valsa continuava surgindo de algum lugar, por<br />
mais que não visse sinal de vitrola. Aproximou-se do irmão<br />
e pousou a mão <strong>em</strong> seu ombro.<br />
— Perdoe-me, Jon – disse. – Eu não devia ter dito<br />
aquilo.<br />
— Esqueça – respondeu, um pouco mais calmo,<br />
retirando o rosto das mãos. Seus olhos pareciam<br />
marejados. – Já é tarde. É melhor você voltar ao quarto e<br />
dormir. Amanhã será um longo dia...<br />
Morgan ignorou o irmão e sentou-se próximo a ele,<br />
numa poltrona perto da sua.<br />
— Nunca desejei mal a você, Jon. N<strong>em</strong> a você, n<strong>em</strong><br />
a Genevra – confessou. – Pelo contrário, s<strong>em</strong>pre desejei o<br />
113
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
melhor para vocês. Meu irmão e minha amiga, juntos para<br />
s<strong>em</strong>pre. Agora tudo mudou – ela se foi e você está se<br />
comportando dessa maneira. Isso me preocupa.<br />
Aguardou uma resposta do irmão, mas ela não veio.<br />
Os olhos de Jonathan pareciam querer derramar mais<br />
lágrimas. A janela aberta deixava um frio vento de outono<br />
entrar. O inverno chegaria a qualquer momento, quando<br />
eles menos esperass<strong>em</strong>.<br />
— Você está mudado, irmão – disse Morgan. – Não<br />
sei o que aconteceu, ou como aconteceu; mas algo mudou<br />
você. Eu diria prontamente que foi a morte de Genevra<br />
que lhe deixou assim, mas algo me diz que não foi apenas<br />
isso. Então o que foi, Jon? Diga-me!<br />
A valsa se encerrou de repente. Jonathan ergueu o<br />
olhar para Morgan. Os dois se fitaram durante um longo<br />
t<strong>em</strong>po. Mas nenhuma palavra foi dita por ele. O silêncio<br />
entre os dois parecia não ter fim, até Morgan quebrá-lo<br />
mais uma vez.<br />
— Então espero que tenha uma boa noite – foi o que<br />
disse antes de sair. Jon não é mais a pessoa que conheci,<br />
concluiu, meu irmão morreu junto com Genevra...<br />
Foi direto para o quarto e se jogou na cama. Uma<br />
camada de poeira se levantou quando ele o fez. Teve outro<br />
acesso de tosse. Depois de se recuperar, Morgan trocou-se<br />
e deitou, pretendendo dormir. No entanto, não conseguiu<br />
encontrar o sono. Virou-se de um lado para outro mais<br />
de uma vez. Além da cama desconfortável e do cheiro de<br />
poeira nos lençóis, não conseguiu parar de pensar no que<br />
Jonathan se transformara.<br />
Pensei <strong>em</strong> ficar aqui durante uma quinzena, l<strong>em</strong>brouse<br />
Morgan, mas irei <strong>em</strong>bora amanhã, ao amanhecer. A<br />
114
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
pena que sentira do irmão dava lugar à raiva. Que ele<br />
apodreça sozinho pelo resto da vida. Pouco me importa.<br />
Quando finalmente conseguiu dormir, Morgan teve<br />
horríveis pesadelos. Todos eles envolvendo fogo e morte.<br />
Não para menos, assim que se levantou descobriu que<br />
estava coberto de suor. Vestiu as roupas de viag<strong>em</strong> e<br />
colocou um chapéu para disfarçar o cabelo, que durante a<br />
noite tornara-se sujo e <strong>em</strong>baraçado.<br />
Olhou para a janela e viu os primeiros raios de<br />
sol surgindo atrás da colina próxima à mansão. Nuvens<br />
ameaçavam cercá-los. Guardou as poucas coisas que<br />
retirara da mala, arrumou a cama, fechou as cortinas e<br />
partiu do quarto. Não olhou para trás.<br />
As portas do corredor estavam todas fechadas.<br />
Melhor assim, pensou. Não queria ver o irmão outra<br />
vez, tampouco se despedir dele. Arrastou a mala até as<br />
escadas e começou a descê-la. O barulho foi tamanho que<br />
Morgan surpreendeu-se por não ter chamado a atenção<br />
do irmão. Atravessou a sala a passos rápidos e chegou à<br />
entrada. Abrindo a porta e fechando logo <strong>em</strong> seguida, saiu<br />
da mansão s<strong>em</strong> olhar para trás.<br />
O som das folhas sendo sopradas pelo vento despertou<br />
sua atenção. Olhou para o céu e viu que uma t<strong>em</strong>pestade<br />
se aproximava. As de outono s<strong>em</strong>pre eram as piores. O<br />
sol logo sumiria entre as nuvens negras que cresciam no<br />
céu. Morgan precisaria andar rápido se quisesse pegar o<br />
expresso que o levaria até Londres. A t<strong>em</strong>pestade não iria<br />
esperá-lo.<br />
Já atravessava o jardim quando o vento aumentou<br />
de repente. Morgan cobriu os olhos, mas não conseguiu<br />
impedir que seu chapéu voasse. Praguejando para si<br />
115
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
mesmo, deixou a mala no chão e voltou-se para a mansão,<br />
procurando pelo chapéu. Foi encontrá-lo perto da entrada,<br />
pousado sobre um jornal velho e surrado. Tratava-se de<br />
uma edição antiga do The Sun.<br />
Quase mecanicamente, leu o título da manchete,<br />
escrito <strong>em</strong> letras garrafais. A MALDIÇÃO DOS QUADROS<br />
DAS CRIANÇAS QUE CHORAM. Curiosamente, havia uma<br />
foto de uma pintura muito s<strong>em</strong>elhante à da biblioteca de<br />
Jonathan, onde um menino parecia fitá-lo, com lágrimas<br />
escorrendo pelo rosto. Morgan pegou o jornal do chão e<br />
começou a ler a matéria, intrigado.<br />
...tudo começou com um frustrado pintor italiano,<br />
Graham Bragolin...<br />
Morgan já vira aquele nome, só não se recordava de<br />
onde. D<strong>em</strong>orou algum t<strong>em</strong>po até que conseguiu se l<strong>em</strong>brar.<br />
A pintura de Jon! Estava assinada com G. Bragolin!<br />
...e nessa noite, Grahan teve um sonho. Nele, vinte<br />
e oito crianças eram torturadas no inferno e choravam<br />
pedindo cl<strong>em</strong>ência...<br />
Toda aquela história parecia muita confusa.<br />
...ao invés de vender sua alma pelo sucesso, ele<br />
ofereceu<br />
quadros...<br />
as almas daqueles que comprass<strong>em</strong> seus<br />
Enquanto lia, tinha um mau pressentimento sobre<br />
aquilo tudo.<br />
...o que não impedia os compradores de modificar<strong>em</strong><br />
os pactos para o próprio b<strong>em</strong>...<br />
De repente, tudo se encaixou. Morgan deixou o jornal<br />
116
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
cair no chão, de tamanha consternação. Não! tentou gritar<br />
para si mesmo, Jon não fez isso!<br />
Olhou para a mansão à sua frente. Não podia deixar<br />
Jonathan fazer o que ele pensava que estava fazendo.<br />
Deixou o chapéu no chão e começou a atravessar o<br />
jardim. Um relâmpago ricocheteou o céu, seguido por um<br />
estrondoso trovão. Morgan n<strong>em</strong> ligou para sua mala sobre<br />
a grama e entrou na mansão. Não viu sinal de seu irmão.<br />
— Jonathan! – gritou.<br />
O grito ecoou pelas paredes, mas ninguém lhe<br />
respondeu.<br />
S<strong>em</strong> pensar duas vezes, começou a subir as escadas<br />
que levavam ao segundo andar. Tinha absoluta certeza de<br />
onde ele estava.<br />
— Jonathan! – gritou mais uma vez, já no corredor.<br />
Ele não apareceu.<br />
A porta da biblioteca estava destrancada. Morgan<br />
girou a maçaneta, abriu a porta, e entrou. A sensação<br />
mais estranha de sua vida foi entrar aquele lugar. O ar<br />
parecia estar carregado de maldade. Jonathan está aqui,<br />
concluiu, e ele também...<br />
Encontrou-o na frente da lareira, observando o<br />
quadro do menino que chorava com uma expressão vazia<br />
no rosto.<br />
— Morgan... – murmurou, com a voz distante. – Ele<br />
disse que você voltaria...<br />
— Por que você fez isso, Jon? – perguntou, se<br />
aproximando com cautela.<br />
117
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
— Ele prometeu trazê-la de volta... – disse Jonathan<br />
fitando a pintura.<br />
— Não diga isso, Jon. Ninguém pode trazer Genevra<br />
de volta. Ela morreu.<br />
— Ele pode – murmurou, pousando o olhar sobre<br />
Morgan. – Ele é poderoso. Você não sabe o quanto.<br />
— Ninguém é mais poderoso que Deus – e o quadro<br />
pareceu tr<strong>em</strong>er ao som do Seu nome. – Livre-se dele, Jon!<br />
Deixe o quadro, deixe essa casa. Venha <strong>em</strong>bora comigo<br />
para Londres.<br />
— Agora já é tarde, Morgan. Nosso pacto foi selado<br />
a sangue. N<strong>em</strong> eu poderei fugir com minha palavra; n<strong>em</strong><br />
ele. Gene voltará para mim, seja qual for o preço que terei<br />
que pagar.<br />
— E qual é esse preço? – indagou. – Sua alma?!<br />
O menino da pintura pareceu sorrir, enquanto uma<br />
lágrima escorreu pelo rosto de Jonathan. Morgan sentiu<br />
um mau pressentimento.<br />
— Não. A sua.<br />
E seu coração disparou. Deu dois passos para trás.<br />
— Eu?! – gritou, incrédulo. – Você não pode estar<br />
falando a verdade, Jon.<br />
— Somente a alma de uma pessoa viva pode pagar<br />
pela alma de uma pessoa que já morreu – continuou ele,<br />
dando um passo para longe do quadro. O menino parecia<br />
fitá-lo.<br />
— E por que me escolheu?! Eu sou seu irmão,<br />
118
Jonathan!<br />
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
— Desculpe-me, Morgan, mas eu quero que Gene<br />
volte para mim. Ele exigiu a minha alma, mas eu não posso<br />
oferecê-la se quiser ficar com minha esposa. A única que<br />
ele aceitou <strong>em</strong> troca foi a sua. Pensei <strong>em</strong> lhe mandar uma<br />
carta, mas ele disse que você viria me visitar. Cedo ou<br />
tarde você viria. Sinto muito por ter entregado sua alma,<br />
Morgan, mas foi preciso.<br />
Morgan sentiu os pés se prender<strong>em</strong> ao chão. As<br />
mãos perderam o movimento e, quando tentou falar, sua<br />
voz desapareceu. Ficou paralisado. Uma risada diabólica<br />
atravessou o ar, talvez vinda de sua cabeça, talvez do<br />
quadro.<br />
— Jon... – disse uma voz f<strong>em</strong>inina de repente. Uma<br />
mulher surgiu na biblioteca. Tinha a pele pálida, os olhos<br />
verdes e os cabelos negros. Usava um lustroso vestido<br />
vermelho. Ela se aproximou de Jonathan, enquanto este a<br />
olhava fixamente.<br />
— Gene... – murmurou ele, abrindo os braços. Algo<br />
diferente brilhou <strong>em</strong> seus olhos. Os dois se abraçaram e<br />
se beijaram longamente. O menino que chorava no quadro<br />
parecia fitá-los. De repente, uma valsa começou a tocar<br />
– a mesma que ele ouvira antes. O casal se deu as mãos<br />
e começou a dançar. Morgan continuava preso ao chão,<br />
observando tudo aquilo.<br />
Então a parede ao redor do quadro começou a pegar<br />
fogo. Jonathan e Genevra continuaram dançando ao som<br />
da valsa, ignorando completamente o que acontecia ao<br />
redor. As chamas consumiam a parede, mas a pintura da<br />
criança que chorava permanecia intacta. Morgan sentiu<br />
o calor aumentando. Em pouco t<strong>em</strong>po, o fogo chegou<br />
119
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
aos livros. E a partir daí, a biblioteca se transformou no<br />
inferno.<br />
As chamas se multiplicaram pelo lugar, tão rápidas<br />
que foi difícil acompanhá-las. A criança no quadro<br />
continuava chorando, enquanto o casal girava para um<br />
lado e para outro, dançando uma música que parecia não<br />
ter fim. Aquela cena mais se parecia com um pesadelo.<br />
Morgan sentiu os pés se soltar<strong>em</strong> de repente. As<br />
mãos conseguiram se mover e, quando tentou falar, a voz<br />
finalmente saiu.<br />
— Jon! – gritou, <strong>em</strong> meio a fumaça e o fogo da<br />
biblioteca. – Jon, fuja! Venha comigo!<br />
Ele não respondeu. Num último instante, Morgan<br />
vislumbrou seu irmão dançando valsa com Genevra. Pela<br />
primeira vez desde que o reencontrara, ele viu Jonathan<br />
sorrir. E percebeu que a loucura o dominava. As chamas<br />
começaram a consumi-lo, junto com sua esposa, mas ele<br />
continuou sorrindo.<br />
No meio de todo o fogo, o quadro resistia; intacto. A<br />
criança, contudo, já não estava mais nele.<br />
Morgan virou-se para a porta e fugiu da biblioteca<br />
<strong>em</strong> chamas. Desceu os degraus da escada o mais rápido<br />
que pode e depois saiu pela porta. Atravessando o jardim,<br />
olhou para trás. E viu que uma grande fogueira erguia-se<br />
sobre o chão.<br />
— Não é lindo? – disse uma voz infantil. Uma criança<br />
surgiu na sua frente, observando atentamente as chamas<br />
consumir<strong>em</strong> a mansão.<br />
— Qu<strong>em</strong> é você?<br />
120
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
— Você não sabe? – indagou ela, virando-se para<br />
Morgan. Na mesma hora ele reconheceu as pupilas<br />
dilatadas do menino do quadro. No entanto, ali ele não<br />
chorava – e sim sorria.<br />
— O que você quer?<br />
O menino meneou a cabeça.<br />
— Ora, Morgan, caso não se l<strong>em</strong>bre, seu irmão<br />
entregou sua alma para mim. Agora ela é minha para eu<br />
usá-la da forma que quiser.<br />
— Não tenho medo de você – retrucou. – Deus me<br />
protegerá de todo e qualquer mal, inclusive dos seus<br />
pactos.<br />
E começou a rezar desesperadamente <strong>em</strong> voz alta,<br />
tentando se l<strong>em</strong>brar das frases decoradas desde criança. Nunca<br />
precisara tanto delas.<br />
O menino ficou <strong>em</strong> silêncio, olhando-o fixamente.<br />
— Você realmente crê que Deus ouvirá o pedido de alguém<br />
cuja alma pertence a mim? – indagou, um pouco confuso. – Às<br />
vezes os seres humanos são tão engraçados...<br />
De repente, um relâmpago riscou o céu escuro. Ele viu<br />
dois chifres na sombra que a criança projetou. Antes que<br />
Morgan pudesse ter alguma reação, sentiu um toque frio e<br />
molhado <strong>em</strong> seu rosto. Mais outro. E depois outro. Olhou para<br />
cima. Começara a chover. O menino à sua frente fungou o nariz.<br />
Morgan notou o porquê de sua reação. A chuva estava<br />
apagando o incêndio.<br />
— Assim não t<strong>em</strong> graça – resmungou ele.<br />
121
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
— Isso é obra de Deus – comentou ousadamente. A chuva<br />
estava engrossando cada vez mais. Morgan já tinha o cabelo<br />
ensopado. – Ele s<strong>em</strong>pre vencerá você.<br />
O menino o olhou com desdém e começou a rir. Riu alto,<br />
como se houvesse escutado uma ótima piada.<br />
— Vamos ver – disse.<br />
Ergueu a mão esquerda e estalou os dedos.<br />
A chuva então parou. Mas de uma maneira inacreditável. Os<br />
pingos ficaram suspensos no ar, imóveis como se não existisse<br />
gravidade. As chamas, contudo, continuaram consumindo a<br />
mansão.<br />
Morgan estr<strong>em</strong>eceu. Sua cabeça dava voltas e mais voltas.<br />
Ele não sabia o que aconteceria dali <strong>em</strong> diante. Porém, sabia<br />
que não haveria como fugir.<br />
— Por favor, deixe-me ir – suplicou. – Meu irmão está<br />
morto. Não era isso que você queria? Agora você não precisa<br />
mais de mim.<br />
— Você se engana – corrigiu. – Quero que você seja meu<br />
escravo.<br />
O coração de Morgan disparou.<br />
— Eu lhe suplico, deixe-me ser livre – pediu.<br />
— E o que você me daria <strong>em</strong> troca?<br />
— Qualquer coisa!<br />
O Diabo abriu um sorriso e olhou Morgan fixamente.<br />
— Então, nós pod<strong>em</strong>os fazer um pacto.<br />
122
LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />
Pedro Viana<br />
PEDRO VIANA é mineiro, nascido <strong>em</strong> 1996, tomou<br />
gosto por histórias desde pequeno. Gastou quase quinze<br />
anos para perceber que o que mais gosta de fazer na<br />
vida é escrever. Depois disso, começou a perseguir seu<br />
objetivo, escrevendo muito e lendo mais ainda. Possui<br />
um caso sério de dependência de livros. Nos dias que não<br />
t<strong>em</strong> nada para ler, enfrenta fortes crises de abstinência.<br />
É apaixonado pela fantasia e pelo terror. E além da<br />
literatura, aprecia muito o cin<strong>em</strong>a e a música. Pretende,<br />
num futuro próximo, se formar <strong>em</strong> Jornalismo. Por ora,<br />
despacha <strong>contos</strong> para antologias e trabalha na produção<br />
de seu primeiro livro – a ser publicado logo depois que<br />
concluir a faculdade.<br />
123
CAMINHOS PERIGOSOS<br />
Hélio Sena<br />
CAMINHOS PERIGOSOS<br />
Hélio Pena<br />
Quando Raimundo avistou a casa, as sombras<br />
da noite já haviam começado a se derramar sobre o<br />
mundo... O pobre hom<strong>em</strong> caminhara o dia inteiro sob o<br />
sol escaldante da caatinga, sozinho, por estradinhas ora<br />
de barro vermelho, ora de finíssima areia branca; estava,<br />
pois, quase morto de cansaço e fadiga. Por isso, deu<br />
graças a Deus quando avistou aquela casinha perdida no<br />
meio daquele deserto, e tratou de apressar o passo para<br />
chegar lá, antes que a noite caísse de vez.<br />
Enquanto caminhava, observava, admirado, a grande<br />
quantidade de morcegos que esvoaçavam para lá e para<br />
cá, alguns passando b<strong>em</strong> rente a ele. Raimundo nunca<br />
tinha visto tanto morcego junto! Aquilo lhe pareceu coisa<br />
de mau agouro, e, apesar de ser um hom<strong>em</strong> de bastante<br />
corag<strong>em</strong>, não deixou de sentir um ligeiro arrepio na<br />
espinha...<br />
121
CAMINHOS PERIGOSOS<br />
Hélio Sena<br />
Então, para se distrair, começou a assobiar uma<br />
cançãozinha aprendida com o pai, no t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que ele,<br />
Raimundo, era apenas era um menininho inocente, que<br />
sonhava <strong>em</strong> um dia ir <strong>em</strong>bora para o sudeste, ganhar<br />
bastante dinheiro por lá, e voltar milionário para matar a<br />
fome daquela gente pobre do sertão, que tanto precisava<br />
de ajuda!<br />
Era justamente nesse seu sonho grandioso que<br />
Raimundo pensava, enquanto caminhava, assobiando...<br />
A canção misturava-se ao barulho do pedregulho, que<br />
estalava sob os seus chinelos carcomidos, e perdia-se para<br />
além da vegetação seca e retorcida, para além daqueles<br />
serrotes que mais pareciam montanhas-russas da morte,<br />
até diluir-se na enorme imensidão da noite...<br />
...<br />
Quando parou diante da casa, desvaneceu-se do<br />
coração de Raimundo toda e qualquer esperança de<br />
que ali pudesse residir alguém... A casa não passava<br />
de uma tapera velha, com o barro da taipa caindo <strong>em</strong><br />
muitos lugares; a porta e a janela da frente haviam sido<br />
destruídas pelo cupim, deixando entrever o negrume que<br />
reinava no interior do casebre...<br />
Pelo menos t<strong>em</strong> um teto, pensou Raimundo, e é disso<br />
que mais estou precisando nesse momento. Está bom<br />
d<strong>em</strong>ais! Vou pernoitar aqui mesmo e amanhã cedo sigo<br />
viag<strong>em</strong>...<br />
E, s<strong>em</strong> mais delongas, entrou na choupana. Ficou um<br />
122
CAMINHOS PERIGOSOS<br />
Hélio Sena<br />
instante imóvel para acostumar seus olhos à penumbra.<br />
Percebeu então que o casebre era composto por um único<br />
cômodo, e que estava vazio, exceto pelo que parecia<br />
ser<strong>em</strong> cinco ou seis garrafas de vidro espalhadas num dos<br />
cantos... Nada mais!<br />
Com um suspiro de alívio, Raimundo depôs no chão<br />
a cabaça d’água e o saco de estopa que carregava nas<br />
costas. Ali dentro do saco ia o seu tesouro, o grande<br />
motivo daquela viag<strong>em</strong> s<strong>em</strong> fim que ele <strong>em</strong>preendera há<br />
quase três dias...<br />
Amanhã, tornou ele a pensar, amanhã tudo vai ser<br />
diferente. Quero dar esta alegria para os meus filhos,<br />
para a minha mulher, coitados, tão distantes agora... Mas,<br />
deixe estar! A nossa salvação está b<strong>em</strong> pertinho, já posso<br />
até sentir o cheiro da danada. Amanhã, com certeza, tudo<br />
estará diferente!<br />
E, sentando-se ao lado do saco de estopa, chegou a<br />
dizer <strong>em</strong> voz alta:<br />
– Pelo menos um sonho eu tinha que realizar nessa<br />
vida, né?... Pelo menos um!<br />
E, assim dizendo, o viajante sorriu de peito aberto.<br />
Chegou mesmo a gargalhar, como há t<strong>em</strong>pos não fazia.<br />
Estava confiante no futuro. O t<strong>em</strong>po de privações e<br />
tristezas finalmente estava chegando ao fim, e era isso o<br />
que importava, de verdade.<br />
Num gesto mecânico, tirou o chapéu da cabeça e<br />
olhou através da porta. A noite caíra de vez. Os morcegos<br />
horrendos haviam dado lugar a milhões de estrelinhas<br />
cintilantes...<br />
O céu nunca esteve tão bonito como hoje, pensou<br />
123
Raimundo. Nunca, nunca mesmo!<br />
CAMINHOS PERIGOSOS<br />
Hélio Sena<br />
Ele ficou alguns minutos apreciando as estrelas,<br />
totalmente <strong>em</strong>bevecido. Depois meteu a mão no bolso,<br />
retirou o pacote de fumo, e, guiando-se apenas pelo<br />
tato, fez o seu cigarro. Quando riscou o fósforo, a chama<br />
mostrou um rosto precoc<strong>em</strong>ente envelhecido, barba e<br />
cabelos por fazer, com vários fios grisalhos... Havia, no<br />
entanto, algo diferente ali: os olhos, outrora opacos, agora<br />
irradiavam um brilho especial, um brilho que certamente<br />
não era apenas o reflexo do brilho das estrelinhas lá no<br />
céu...<br />
Acabado o cigarro, Raimundo pegou a cabaça, bebeu<br />
dois bons goles d’água e estirou-se no chão; logo estava<br />
ferrado no sono...<br />
...<br />
Ao se deitar, Raimundo não percebe que alguém<br />
se aproximara sorrateiramente da janela, e agora está<br />
olhando fixamente para dentro do casebre...<br />
O estranho ser lá fora está deveras faminto... Sua<br />
aparência, <strong>em</strong> frangalhos, é de alguém que acabou de<br />
levantar da sepultura. Um morto-vivo, uma terrível<br />
assombração!<br />
A criatura chega a g<strong>em</strong>er, sentindo o cheiro da carne<br />
fresca de Raimundo...<br />
E então, instintivamente, ela caminha para a entrada<br />
da choupana...<br />
124
...<br />
CAMINHOS PERIGOSOS<br />
Hélio Sena<br />
Raimundo desperta com a dor lancinante da mordida<br />
no ombro... Tenta se levantar, mas a criatura, dotada de<br />
uma força descomunal, imobiliza-o, enquanto aplica outras<br />
mordidas violentas no corpo do viajante.<br />
Em desespero, Raimundo se l<strong>em</strong>bra da faca na cintura.<br />
Com esforço sobre-humano, consegue puxá-la e espeta o<br />
zumbi na altura do peito. Enlouquecida, a visag<strong>em</strong> aplicalhe<br />
uma mordida que arranca parte da orelha esquerda.<br />
Outra mordida o fere mortalmente no pescoço...<br />
Em transe, Raimundo pensa na mulher, nos filhos, no<br />
saco ali ao lado e, reunindo suas últimas forças, <strong>em</strong>purra<br />
a fera de cima de si. Em segundos fica de pé, e, furioso,<br />
desce o sarrafo sobre o vulto caído ali no chão, cobrindo-o<br />
de facadas, até fazê-lo <strong>em</strong> pedaços...<br />
Findo o massacre, Raimundo sente o corpo desfalecer...<br />
Então desaba no meio daquela carne putrefata, que, de<br />
certa forma, lhe amortece a queda e serve de travesseiro<br />
para um sono profundo e completamente s<strong>em</strong> sonhos...<br />
...<br />
Quando Raimundo acordou, o dia vinha clareando.<br />
Sentou-se, esfregando os olhos.<br />
125
surra.<br />
CAMINHOS PERIGOSOS<br />
Hélio Sena<br />
O seu corpo todo doía, parecia que havia levado uma<br />
Mas sorriu ao avistar o saco de estopa.<br />
– Meu tesouro! – disse ele.<br />
Pôs-se de pé, ajeitou o saco e a cabaça d’água nas<br />
costas, o chapéu na cabeça e saiu do casebre.<br />
Lá fora, lançou um olhar ao redor. Apenas aquela<br />
paisag<strong>em</strong> agreste, tão comum aos seus olhos de sertanejo<br />
calejado, de hom<strong>em</strong> que é antes de tudo um forte.<br />
Ao lado do casebre, avistou, com pesar, um monte<br />
de terra com uma cruz tosca feita de gravetos enfiada <strong>em</strong><br />
cima.<br />
A terra parecia ter sido r<strong>em</strong>exida recent<strong>em</strong>ente...<br />
Com certeza tinha sido obra de algum peba, famoso<br />
comedor de defunto daquelas paragens, ou de qualquer<br />
outro bichinho do mato.<br />
O viajante benzeu-se, pensando <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> poderia<br />
estar enterrado ali...<br />
Depois olhou para o nascente.<br />
O sol, lá na frente, parecia uma gigantesca moeda de<br />
ouro.<br />
Raimundo sorriu mais uma vez.<br />
E, decidido, marchou a passos largos, larguíssimos,<br />
naquela direção...<br />
126
CAMINHOS PERIGOSOS<br />
Hélio Sena<br />
HÉLIO SENA é cearense, professor, autor confesso...<br />
Nasceu <strong>em</strong> Padre Linhares, distrito de Massapê, a<br />
12/09/1975. Figura <strong>em</strong> dezenas de coletâneas de <strong>contos</strong><br />
e po<strong>em</strong>as. Expõe seus trabalhos nos blogs Entre Palavras<br />
e Mini<strong>contos</strong>. Recebeu, entre outras distinções, o Troféu<br />
Macunaíma no XIV Festival Literário de Imperatriz (MA)<br />
e o 1º lugar <strong>em</strong> concurso de crônicas promovido pelo<br />
programa Papo Literário, da TV Ceará (Fortaleza).<br />
Twitter: @helyosena<br />
127
FIM