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contos vencedores em pdf interativo - A Irmandade

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CONTOS VENCEDORES DO PRÊMIO<br />

HENRY EVARISTO<br />

DE LITERATURA FANTÁSTICA<br />

Diagramação de Afonso Luiz Pereira<br />

Capa de Thato Bordin


Esta antologia não t<strong>em</strong> fins lucrativos, sendo sua<br />

distribuição totalmente gratuita, com o objetivo de divulgar<br />

os trabalhos dos m<strong>em</strong>bros da comunidade literária do site<br />

A <strong>Irmandade</strong>. No entanto, todos os textos publicados neste<br />

ebook são de propriedade intelectual de seus respectivos<br />

autores. A reprodução por meio de qualquer outra mídia, para<br />

fins comerciais ou não, só poderá ser feita com a autorização<br />

dos mesmos.


SUMÁRIO<br />

CONTOS VENCEDORES


APRESENTAÇÃO<br />

Apresentação<br />

A <strong>Irmandade</strong> é b<strong>em</strong> mais do que um site literário<br />

especializado no gênero Terror. É, antes, o meio pelo<br />

qual se expressam “homens e mulheres que precisam<br />

dividir os seus t<strong>em</strong>pos entre as agonias de um dia-adia<br />

estafante e ‘pé-no-chão’ e um mínimo de minuto<br />

para se deixar<strong>em</strong> viajar nas asas de uma imaginação<br />

exacerbada e maravilhosa; e esta imaginação, caro<br />

leitor, pode nos levar longe; pode nos conduzir a<br />

mundos assombrosos onde habitam mil espécies<br />

de coisas insanas, onde se escond<strong>em</strong> ninhos de<br />

víboras diabólicas, que são moradas de abominações<br />

horrendas e s<strong>em</strong> espaço nesse nosso pequeno mundo<br />

ordinário. Uma imaginação que gera monstros e<br />

belezas frias, palpáveis apenas nos mundos oníricos,<br />

mas que, vez por outra, pod<strong>em</strong> saltar de algum canto<br />

escuro ou de alguma floresta sombria para este<br />

lado da matéria, querendo devorar almas e mundos<br />

”.( Henry Evaristo, Introdução à coletânea<br />

“<strong>Irmandade</strong> das Sombras”, CBJE, p. 8 e 9.)<br />

Mas não é somente isto a <strong>Irmandade</strong>. Nela não<br />

há lugar para o egoísmo esnobe. Ela busca, igual e<br />

essencialmente, revelar ao mundo novos talentos,<br />

compartilhar ideias, fomentar o gosto e a troca de<br />

6


APRESENTAÇÃO<br />

experiências literárias, o que o faz estimulando a<br />

produção de narrativas fantásticas e, b<strong>em</strong> assim,<br />

divulgando amplamente um vasto leque de talentosos<br />

escritores. Foi o que fez, por um período curto, mas<br />

intenso, Henry Evaristo, <strong>em</strong> seu blogue “Câmara dos<br />

Tormentos”.<br />

Para que o legado e a missão de Henry se<br />

multipliqu<strong>em</strong>, o “Prêmio Henry Evaristo de<br />

Literatura Fantástica”, de periodicidade anual, foi<br />

instituído visando a fomentar a produção literária<br />

no gênero do terror <strong>em</strong> nosso País. E obteve, s<strong>em</strong><br />

dúvida, na sua primeira edição, êxito absoluto <strong>em</strong><br />

seu desiderato. O concurso contou com quase uma<br />

centena de <strong>contos</strong> inscritos e isto, certamente,<br />

tornou ainda mais expressiva a justa homenag<strong>em</strong><br />

que se rende a um dos maiores nomes da literatura<br />

fantástica nacional.<br />

O livro que traz<strong>em</strong>os a lume reúne as dez<br />

narrativas vencedoras do certame, extraídas de um<br />

universo de 92 <strong>contos</strong> recebidos, lidos atentamente,<br />

filtrados de acordo com a prioridade de critérios<br />

estabelecidos no regulamento, relidos e discutidos<br />

ponderadamente entre os seus avaliadores, M<strong>em</strong>bros<br />

Fundadores do site literário A <strong>Irmandade</strong>.<br />

Quer<strong>em</strong>os agradecer cada participante do Prêmio<br />

Henry Evaristo de Literatura Fantástico e, também,<br />

aos parceiros Flavio de Souza, Tânia Souza, Paulo<br />

Soriano, Rochett Tavares, Alfer Medeiros, Afonso<br />

Luiz Pereira, Lino França Jr., Ramon Bacelar,<br />

7


APRESENTAÇÃO<br />

Cristiano Rosa, Victor Meloni, que contribuíram<br />

com a realização do evento, doando ex<strong>em</strong>plares<br />

para a pr<strong>em</strong>iação <strong>em</strong> livros e, também, às editoras<br />

(Aleph, Argonauta, Draco, Estronho e Literata)<br />

que confiaram e apostaram no projeto.<br />

A todos os participantes do Prêmio Henry Evaristo<br />

de Literatura Fantástica, obrigado! Aos leitores que,<br />

porventura, esbarrar<strong>em</strong> nesta antologia, tenham uma<br />

boa leitura.<br />

8


HENRY EVARISTO<br />

Escrito por Paulo Soriano<br />

HENRY EVARIST0<br />

Escrito por Paulo Soriano<br />

É s<strong>em</strong>pre difícil escrever sobre alguém que, de<br />

alguma forma, enreda as nossas <strong>em</strong>oções.<br />

Não é s<strong>em</strong> motivo que se diz<strong>em</strong> suspeitos os que<br />

test<strong>em</strong>unham acerca de fatos que envolv<strong>em</strong> amigos<br />

ou inimigos. No primeiro caso, depõe-se “a favor”;<br />

no segundo, “contra”. Encontrar o equilíbrio <strong>em</strong><br />

tais situações é tarefa que exige um esforço sobrehumano.<br />

Creio que sou – e não simplesmente fui –<br />

amigo de Henry Evaristo t<strong>em</strong>po suficiente para <strong>em</strong>itir<br />

um parecer sobre sua pessoa, e é de seu imenso<br />

caráter que extraio o ex<strong>em</strong>plo e, b<strong>em</strong> assim, a força<br />

necessária para superar minha natural suspeição e<br />

dizer o que há de ser dito.<br />

O medo é uma sensação necessária e ancestral.<br />

Mais r<strong>em</strong>oto que o hom<strong>em</strong>, tão pr<strong>em</strong>ente e pungente<br />

quanto a sede e a fome, é o medo requisito<br />

indispensável à sobrevivência das espécies mais<br />

9


HENRY EVARISTO<br />

Escrito por Paulo Soriano<br />

evoluídas. Ele suscita o alerta de que algo de terrível<br />

nos espreita e assedia e que, portanto, é preciso<br />

reagir imediatamente. Mas tal primitiva <strong>em</strong>oção<br />

transcendeu o imperativo da sobrevivência ao<br />

humanizar-se. Não foi à toa que Lovecraft escreveu<br />

que o medo é a mais intensa e antiga das <strong>em</strong>oções<br />

humanas; e que, dos medos, o do desconhecido é o<br />

mais intenso. Henry Evaristo sabia disso melhor que<br />

ninguém; e, melhor que ninguém, deu prova disso.<br />

Sobre Henry, cujas linhas impactantes deixavamme<br />

quase s<strong>em</strong>pre boquiaberto, escrevi um texto que<br />

não cheguei a publicar. E n<strong>em</strong> mesmo a concluir.<br />

A pedido de meu amigo – uma das pessoas mais<br />

brilhantes que conheci –, eu me pus a redigir<br />

uma introdução ao seu único livro – Um salto na<br />

escuridão –, mas Henry faleceu antes que eu<br />

concluísse a minha missão. Mercê do meu transtorno<br />

e de minha profunda tristeza, que ainda perduram, o<br />

texto continua inacabado. Dói-me profundamente –<br />

e s<strong>em</strong>pre me atormentará – o r<strong>em</strong>orso de não ter<br />

aprontado a introdução quando Henry ainda estava<br />

entre nós, a nos encantar com a sua inteligência<br />

penetrante, sua fina ironia, seu cáustico humor. Fica<br />

o consolo de que registrei algumas gotas acerca do<br />

imenso caudal literário do amigo escritor e, antes<br />

que elas se dispers<strong>em</strong>, segue um tímido borrifo:<br />

Quando o dia entenebrece, quando sangra o<br />

horizonte rasgado pelo vento cálido, e as copas<br />

das árvores altaneiras dançam silenciosamente o<br />

10


HENRY EVARISTO<br />

Escrito por Paulo Soriano<br />

fulgor escarlate, que anuncia a chegada das trevas<br />

abissais, toda a floresta se recolhe num súbito e mudo<br />

<strong>em</strong>brutecimento. Tudo se cala. Tudo se paralisa. Um<br />

clima de angustiante expectativa subjuga a melancolia<br />

que só o ocaso sói transpirar. Há o prenúncio de que<br />

algo de terrível há de se esgueirar sob a hedionda<br />

tessitura duma miríade de galhos e cipós retorcidos.<br />

Finalmente, quando a treva exerce a sua absoluta<br />

suserania, elava-se das entranhas da mata cerrada<br />

um clangor absurdo, que se não sabe se humano ou<br />

animal, e toda expectativa é sepultada pelo medo<br />

palpável, pelo horror pungente, denso e penetrante,<br />

da contextura de uma neblina negra e atroz.<br />

Teriam os horrores silenciosos, que se escond<strong>em</strong><br />

sob a densidade indevassável da Floresta Amazônica,<br />

induzido um espírito taciturno, e especialmente<br />

inteligente, a perscrutar o mundo com singular<br />

argúcia, e nele vislumbrar pavores outros, invisíveis<br />

aos olhos das pessoas comuns? E, <strong>em</strong> seguida, a<br />

incutir, com a pena de um grande mestre, e a tinta<br />

carregada de horrores, no espírito do leitor, o medo<br />

<strong>em</strong> seu aspecto mais substancial?<br />

É b<strong>em</strong> possível que sim. Pois o que permeia a<br />

obra do escritor acriano Henry Evaristo é, sobretudo,<br />

o prenúncio do horror. É o presságio do terrível.<br />

Henry sabe muito b<strong>em</strong> que é justamente no limiar de<br />

um fato especialmente tenebroso que reside o medo.<br />

E explora este momento que antecipa o fatídico com<br />

maestria inigualável. Ninguém melhor que Henry<br />

11


HENRY EVARISTO<br />

Escrito por Paulo Soriano<br />

sabe fazê-lo, resida ou não a causa dos t<strong>em</strong>ores <strong>em</strong><br />

fatores sobrenaturais...<br />

Henry foi – e, para mim, continuará sendo – um<br />

grande escritor. Mas, talvez, esta não seja, dentre<br />

a suas inúmeras facetas – Evaristo era escritor,<br />

instrumentista, compositor, historiador e professor<br />

– a única altaneira. Que Henry era um hom<strong>em</strong> de<br />

imenso e singular talento, ninguém duvida. Mas<br />

era, sobretudo, um ser humano extraordinário, um<br />

amigo a toda prova, especialmente sincero, humano<br />

e fiel. Caráter e talento muitas vezes se distanciam.<br />

Mas, <strong>em</strong> Henry Evaristo, mais que se imbricavam:<br />

mesclavam-se e fundiam-se para resultar e dar a<br />

exata dimensão de um grande hom<strong>em</strong>.<br />

(Saudades, irmão! Muitas e muitas saudades...)<br />

Paulo Soriano<br />

12


A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />

Henry Evaristo<br />

A Coisa do Jardim<br />

Zoológico<br />

Henry Evaristo<br />

Naquele dia resolvi que gostaria muito de poder<br />

explorar as trilhas selvagens que se estendiam ao redor do<br />

parque. Eram como trajetos postos à disposição do público<br />

para que ele pudesse, ao mesmo t<strong>em</strong>po, experimentar o<br />

contato direto com a natureza e se exercitar praticando<br />

caminhadas saudáveis. Em verdade, o lugar era também<br />

um centro cultural onde ocorriam apresentações musicais,<br />

mostras de teatro, artes plásticas, cin<strong>em</strong>a e, logicamente,<br />

a exposição de animais de faunas variadas <strong>em</strong> jaulas<br />

espalhadas ao longo das trilhas que adentravam o terreno<br />

e iam findar muitos quilômetros adiante, numa área de<br />

fazendas e matadouros.<br />

No dia 21 de abril de 1990 eu não saí do interior<br />

do parque antes que ele fechasse. Fiquei vagando pelas<br />

trilhas, refletindo sobre probl<strong>em</strong>as que me absorveram tão<br />

completamente a ponto de me fazer<strong>em</strong> perder o horário.<br />

Por volta das vinte horas, me vi no meio da floresta escura<br />

cercado pelo silêncio que parecia brotar da ausência de<br />

pessoas no local; e pela estranha vida que s<strong>em</strong>pre se<br />

propaga pelas matas depois que escurece. Oh, só sabe do<br />

13


A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />

Henry Evaristo<br />

que falo aquele que já esteve <strong>em</strong> situação s<strong>em</strong>elhante!<br />

As florestas, à noite, se ench<strong>em</strong> de uma vida<br />

assombrosa. Silvos medonhos se espalham pelo ar,<br />

vindos sabe-se lá de onde; galhos se part<strong>em</strong> como que<br />

pisoteados por coisas que andam <strong>em</strong> meio às trevas. E<br />

estranhas vozes parec<strong>em</strong> soar b<strong>em</strong> às suas costas, de<br />

repente, no escuro. Então, quando você se volta, aturdido,<br />

com o coração saltitando <strong>em</strong> velocidade homicida,<br />

descobre que não há nada, pelo menos não mais, além<br />

de galhos e folhas, galhos e folhas que pod<strong>em</strong> muito b<strong>em</strong><br />

esconder coisas pavorosas. Aquele que quiser realmente<br />

experimentar o horror, mergulhe, como eu fiz, numa<br />

floresta escura após o anoitecer. Não é a toa que os<br />

homens medievais acreditavam que seus bosques eram<br />

povoados por d<strong>em</strong>ônios carniceiros.<br />

Quando percebi a situação insólita <strong>em</strong> que me<br />

<strong>em</strong>brenhara, voltei-me imediatamente na direção da saída<br />

da trilha <strong>em</strong> que estava. O imenso corredor que o caminho<br />

descortinava diante de mim encontrava-se completamente<br />

envolto pelas trevas. Ainda podia avistar, no céu, réstias<br />

de luz solar, mas não era o suficiente para proporcionar<br />

nenhum tipo de alívio para toda aquela escuridão. Pude<br />

ver algumas luzes dos postes que cobriam a extensão<br />

inicial da trilha; luzes esbranquiçadas que se projetavam<br />

para baixo como raios triangulares b<strong>em</strong> definidos. Segui<br />

nesta direção.<br />

Observei que enquanto andava, com passos realmente<br />

apressados, passavam por mim algumas jaulas que n<strong>em</strong><br />

mesmo havia percebido quando fizera o caminho de ida.<br />

Percebi também um cheiro forte e acre que se espalhava a<br />

partir destas "gaiolas" imensas; e diminuí o ritmo de meus<br />

passos, num primeiro momento, ao ouvir um som horrível<br />

que se propagou de repente pelo ar frio da noite. Era, s<strong>em</strong><br />

14


A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />

Henry Evaristo<br />

dúvida, um rosnar feroz, animalesco, ameaçador. Vinha do<br />

escuro no interior da jaula e, ao olhar fixamente para a<br />

escuridão, imediatamente avistei múltiplos pares de olhos<br />

que me fitavam avermelhados. Não sei o que me passou<br />

pela cabeça na ocasião, mas creio, hoje, depois de tantos<br />

anos, que não andava muito b<strong>em</strong> das ideias já naquele<br />

t<strong>em</strong>po. Digo isso por que, quando deveria <strong>em</strong>pregar ainda<br />

mais vigor <strong>em</strong> minhas passadas <strong>em</strong> direção à saída da<br />

trilha, e s<strong>em</strong> dúvida alguma começar a gritar desde já, eu<br />

resolvi parar. Segurei na barra protetora, que mantém os<br />

visitantes a uma distância segura das feras aprisionadas,<br />

e fitei novamente o interior.<br />

Eram lobos! Uma cela repleta de lobos! Espécimes<br />

extraordinários, enormes e de cores que não pude discernir<br />

na escuridão. No entanto, todos estavam tão quietos,<br />

acuados a um canto de sua morada forçada. Foi somente<br />

quando me inclinei ainda mais próximo que pude perceber<br />

um outro animal lá dentro. Um outro lobo ou fosse lá o<br />

que fosse... Um animal quadrúpede que, postado aos pés<br />

das barras de ferro, me fitava com aparente animosidade.<br />

Quando o percebi, estava já com a cabeça quase encostada<br />

na proteção da jaula. E hoje fico imaginando se aquela<br />

besta tivesse enfiado as garras para fora e me agarrado<br />

pelo pescoço...<br />

Não pude ver nitidamente seu dorso, mas pelo<br />

volume escuro de sua cabeça, com certeza era um animal<br />

de grande porte, incomum eu diria, até mesmo para os<br />

lobos mais desenvolvidos.<br />

Ela não fazia movimentos. Ficava lá, parado, me<br />

observando. Enquanto isso os outros animais pareciam<br />

sofrer com sua presença. Soltavam pequenos uivos<br />

lamentosos e passavam as garras pelo chão. Mas nunca,<br />

<strong>em</strong> hipótese alguma, saiam de suas posições ousando<br />

15


A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />

Henry Evaristo<br />

aproximar-se da fera escura perto das grades.<br />

Resolvi seguir meu caminho. A curiosidade inicial<br />

estava novamente dando lugar ao medo de outrora. Não<br />

gostei do olhar que a coisa me lançou quando percebeu<br />

que eu começara a me afastar. E, antes de me virar para<br />

continuar a andar, a vi <strong>em</strong>preender um movimento súbito<br />

para frente e começar a se levantar. Novamente apressei o<br />

passo. Agora queria me distanciar urgent<strong>em</strong>ente daquele<br />

lugar.<br />

Não avançara mais que c<strong>em</strong> metros quando ouvi um<br />

som pavoroso ás minhas costas. Não era nenhum uivo,<br />

n<strong>em</strong> grito sobrenatural, ou rosnar dantesco, como pod<strong>em</strong><br />

estar imaginando os amigos. Eram os ruídos, os rangeres<br />

metálicos, que as grades da jaula <strong>em</strong>itiam ao ser<strong>em</strong><br />

escaladas por alguma coisa pesada que quisesse saltar<br />

para fora da morada dos lobos.<br />

Não posso descrever a sensação de pavor e de<br />

estarrecimento que experimentei quando percebi que<br />

algo havia deixado o interior escuro de onde estivera<br />

espreitando e estava agora solto na mesma trilha que eu.<br />

Mesmo assim, vendo que os postes de luz estavam agora<br />

b<strong>em</strong> mais perto, e podendo já avistar a guarita onde dois<br />

guardas assistiam TV, resolvi me virar para olhar o que<br />

quer que fosse.<br />

Primeiro vi o caminho escuro atrás de mim. Minhas<br />

vistas d<strong>em</strong>oraram um pouco a enxergar aquilo que estava<br />

mais adiante. Depois vi as matas ao redor, açoitadas pelo<br />

vento e cobertas com as trevas mais densas.<br />

Depois avistei o local onde estivera, <strong>em</strong> frente à<br />

jaula dos lobos. Havia uma sombra parada lá. Uma sombra<br />

volumosa, de cerca de dois metros de altura. Sei disso por<br />

16


A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />

Henry Evaristo<br />

que ela estava de pé! Ereta! E olhava fixamente para o<br />

interior do lugar de onde saíra.<br />

Andei mais para adiante e parei novamente na orla<br />

entre o início da trilha e a luminosidade proporcionada<br />

pelos postes. Da guarita do portão principal saltaram os<br />

vigias correndo <strong>em</strong> minha direção.<br />

A sombra continuava lá, <strong>em</strong> sua mesma posição.<br />

Mas agora me fitava, sei que me fitava, mesmo com<br />

toda aquela escuridão... Pois seus dois olhos vermelhos<br />

faiscavam contra o reflexo das luzes brancas dos postes<br />

de iluminação!<br />

Não ouso descrever as formas da coisa. Até hoje<br />

guardei este segredo b<strong>em</strong> guardado comigo, mas nunca<br />

deixei que nenhum de meus filhos frequentasse o jardim<br />

zoológico municipal. Na primeira oportunidade, mandei-os<br />

estudar na capital.<br />

Sei que minhas decisões foram acertadas tanto com<br />

relação a meus filhos como com relação a mim mesmo<br />

no dia fatídico. Foi minha resolução <strong>em</strong> me afastar que<br />

provavelmente me salvou pois, alguns meses depois,<br />

a comunidade de nossa pequena cidade se quedou<br />

aterrorizada por uma onda de desaparecimentos de<br />

pessoas nas imediações do zoológico.<br />

Às vezes, quando estou só, tarde da noite, e a<br />

insônia de velho não me deixa conciliar o sono, sentome<br />

na cama e, enquanto observo minha esposa ressonar<br />

<strong>em</strong> seu oblívio inocente, me vêm à mente as palavras<br />

gritadas pelos vigias para dentro da trilha escura. Lá, onde<br />

avistaram, como eu mesmo, o animal que provavelmente<br />

devia ter aprendido como saltar para fora da jaula onde<br />

deveria viver confinado. Com certeza não foi um animal<br />

17


A COISA DO JARDIM ZOOLÓGICO<br />

Henry Evaristo<br />

que os dois homens viram. Viram o mesmo que eu! E<br />

suas palavras me arrepiam diante das possibilidades tão<br />

aterradoras:<br />

"Senhor, venha para cá!” Eles gritaram. “O parque já<br />

está fechado!"<br />

"Ai é perigoso! O senhor os está perturbando!"<br />

Também l<strong>em</strong>bro de como a fera lançou um outro olhar<br />

para mim, de dentro da escuridão e depois, nos dando as<br />

costas e caminhando encurvada, desapareceu na floresta.<br />

18


CONTOS VENCEDORES DO PRÊMIO<br />

HENRY EVARISTO<br />

DE LITERATURA FANTÁSTICA


PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

Felício tinha os olhos injetados pelo pavor, as mãos<br />

tomadas por incontrolável tr<strong>em</strong>or, e, fazia dias,<br />

não falava. No desespero da súbita perda da faculdade<br />

da fala, gesticulava angustiado, e tentava inutilmente<br />

articular palavras que não encontravam <strong>em</strong> suas cordas<br />

vocais a ressonância necessária para que ele se fizesse<br />

inteligível. Pobre Felício! Fosse alfabetizado, com certeza<br />

poderia se utilizar da escrita para descrever o que de fato<br />

tinha acontecido àquela noite. Letras e garranchos, para<br />

ele, eram a tudo a mesma coisa, não representavam nada.<br />

O povo da pequena Oiticica, onde quase nada de<br />

extraordinário acontecia, <strong>em</strong> principio teve até curiosidade<br />

<strong>em</strong> saber que espécie de mal o havia acometido. Depois,<br />

com o t<strong>em</strong>po, deixaram para lá. Fosse uma pessoa<br />

importante, tivesse recursos, certamente o levariam para<br />

a Capital para ser submetido a minuciosos exames com os<br />

melhores médicos. Mas Felício, coitado, não passava de<br />

um pobre diabo que não tinha onde cair morto.<br />

A verdade sobre o que lhe ocorrera, só ele conhecia.<br />

20


PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

E, se a revelasse, ele b<strong>em</strong> o sabia, seria severamente<br />

punido, pois o que fizera, mais do que pecado, poderia<br />

até ser considerado como crime hediondo. Todavia, Felício<br />

estava - por Deus como estava - disposto a fazê-lo, desde<br />

que tivesse de volta a sua voz e a sua paz de espírito. No<br />

fundo do coração, ele estava envergonhado e arrependido<br />

do seu ato. Sim, s<strong>em</strong> dúvida nenhuma, ele merecia um<br />

castigo. Qu<strong>em</strong> sabe já não estava sendo castigado pelo<br />

que fizera? O mesmo se aplicava ao criador de porcos<br />

Jer<strong>em</strong>ias. Mas o seu parceiro, como irão saber mais<br />

adiante, tivera outra sorte não menos triste.<br />

A brilhante ideia de profanar a carneira de Dom<br />

Francesco Maggio fora dele, Felício. Que Jer<strong>em</strong>ias, um<br />

xucro, que <strong>em</strong>bora soubesse ler, não era lá de pensar<br />

muito. Em principio, Felício até pensou <strong>em</strong> fazer o serviço<br />

sozinho para não correr riscos. Mas, ao constatar que a<br />

tampa de mármore do túmulo do bispo era tão pesada que<br />

um hom<strong>em</strong> sozinho não conseguiria r<strong>em</strong>ovê-la, convidou<br />

Jer<strong>em</strong>ias para pescar traíra no banhado, e lá convenceu-o<br />

de que devia ajudá-lo. A troco de quê? Ora, Jer<strong>em</strong>ias, por<br />

mais tolo que fosse, não ia trabalhar de graça. Felício<br />

logo descobriu que ele se apaixonara de um par de<br />

botinas que estava exposto há meses na vitrina da Casa<br />

Independência, a ponto de passar quase todos os dias <strong>em</strong><br />

frente à loja para admirar o produto.<br />

“As botinas serão suas se me fizer este favor,<br />

parceiro!” — prometeu Felício. E Jer<strong>em</strong>ias engoliu a isca<br />

que n<strong>em</strong> um bagre bobo.<br />

A lua cheia, lá nas alturas, era um medalhão de prata<br />

fosca, quando os parceiros marcharam rumo ao c<strong>em</strong>itério<br />

decididos a por <strong>em</strong> prática seu macabro plano. Eram<br />

duas sombras que se esgueiravam sorrateiras por entre<br />

jazigos antigos e covas simples. Felício ia à frente, as<br />

21


PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

mãos enluvadas <strong>em</strong> sacos plásticos, já que, como era de<br />

se esperar, depois de quase um mês sepultado, os restos<br />

mortais do prelado estivess<strong>em</strong> <strong>em</strong> avançado estado de<br />

decomposição. Atrás de si, portando uma alavanca, ia o<br />

grandalhão Jer<strong>em</strong>ias.<br />

Um odor rançoso e putrefato infectou, num minuto, a<br />

atmosfera cálida do campo santo, quando os profanadores<br />

ergueram a pesada campa. Felício sentiu que seu estômago<br />

se revirava, mas aguentou firme. Jer<strong>em</strong>ias, acostumado<br />

aos odores da pocilga onde alimentava sua vara de porcos,<br />

não estranhou muito.<br />

Sob o espectro pálido do luar, um espetáculo insólito:<br />

milhares, quiçá milhões, de pequenas larvas da tapurus<br />

se refestelavam com as carnes fartas de Dom Francesco,<br />

indiferentes à presença dos dois intrusos.<br />

“O anel de esmeralda!” — conteve-se para não gritar<br />

eufórico Felício, enquanto arrancava, s<strong>em</strong> cerimônia, a<br />

jóia do dedo médio esquerdo já descarnado do defunto<br />

notável.<br />

“Sua <strong>em</strong>inência não vai mais precisar dele, Jer<strong>em</strong>ias!”<br />

— riu.<br />

Felício, mais que exultante, de algum modo sentia-se<br />

vingado da indiferença e do desprezo com que era tratado<br />

pelos seus vizinhos. Pensavam que era um parvo por não<br />

ter estudo? Pois que continuass<strong>em</strong> pensando. Enquanto<br />

eles estavam indo com a farinha, já estava ele de volta<br />

com o angu.<br />

Tinha tudo muito b<strong>em</strong> planejado. No dia seguinte,<br />

logo cedo, iria comprar as benditas botinas prometidas<br />

ao Jer<strong>em</strong>ias, e <strong>em</strong>barcaria no primeiro comboio rumo<br />

à capital. Lá, um primo seu iria acompanhá-lo até um<br />

22


PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

avaliador experimentado. Um comprador que não dava a<br />

mínima pela procedência do produto, e negociaria o anel.<br />

Encheria as turras. Arrumaria a vida. Tiraria o pé da lama.<br />

Nada mais a fazer ali, recolocaram com cuidado a<br />

campa sepulcral, e decidiram abandonar o local.<br />

Andavam rápido, desviando-se dos túmulos, quando,<br />

sob o arco do portão encimado por uma cruz antiga de<br />

cimento, Felício, s<strong>em</strong> se voltar, comentou com o parceiro:<br />

“Tudo nos conformes, né Jer<strong>em</strong>ias?”.<br />

Embora pudesse sentir sua presença, seu arfar<br />

pesado, seus passos, estranhou que o companheiro não<br />

lhe respondesse. E, ao voltar-se, se surpreendeu que ali<br />

não estivesse.<br />

“Deixe de brincadeira besta, hom<strong>em</strong>!” — ralhou <strong>em</strong><br />

um tom um pouco mais alto, imaginando-o escondido<br />

atrás de algum túmulo.<br />

“Visag<strong>em</strong> não me assusta não! Medo mais eu tenho é<br />

dos vivos!”.<br />

Felício enfezou-se.<br />

“Jer<strong>em</strong>ias, seu idiota!” — berrou irritado — “Vamos<br />

cair fora logo dessa merda de lugar!”.<br />

Não houve resposta. N<strong>em</strong> sombra do outro.<br />

Perdida a paciência, Felício tomou novamente o rumo<br />

do túmulo do bispo disposto a enquadrar o criador de<br />

porcos.<br />

“Que hora mais imprópria para brincar, hom<strong>em</strong>!”.<br />

23


PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

Jer<strong>em</strong>ias também não estava lá. Sobre a alva campa<br />

de Dom Ramiro, porém, avistou as suas roupas rotas, o<br />

seu chapéu surrado, as suas alpargatas de rabicho, ao<br />

lado da alavanca fornida <strong>em</strong> aço.<br />

Uma corrente de ar frio, fenômeno incomum<br />

naquelas paragens naturalmente áridas, fez-se sentir. E<br />

Felício, as pernas tomadas de súbita fraqueza, mesmo<br />

não querendo acreditar, desconfiou que algo de incomum<br />

estivesse prestes a acontecer. Subitamente, uma nuv<strong>em</strong><br />

de chumbo eclipsou o luar e dela, descendo <strong>em</strong> vertical,<br />

apresentou-se um vulto paramentado de estola e casula.<br />

A mitra dourada equilibrada sobre o crânio de pelo ralo, o<br />

báculo do poder episcopal na mão esquerda. Felício sentiu<br />

gelar o sangue.<br />

A lua voltou a aparecer. À luz dos seus raios, Felício<br />

pode enxergar nitidamente as faces descarnadas e os<br />

ossos podres de Dom Francesco Maggio. O espectro fez um<br />

sinal <strong>em</strong> sua direção com a mão direita, e ordenou-lhe com<br />

uma voz rouquenha e gutural, que parecia vir dos abissais<br />

do inferno, que devolvesse o anel episcopal. Felício, <strong>em</strong><br />

pânico, quis pedir socorro, mas dentro daquele sórdido<br />

pesadelo, o grito agrilhoado na masmorra profunda das<br />

suas entranhas não lograva se libertar.<br />

“Devolva-me o meu anel, ó excomungado!” — repetiu<br />

o defunto ressurrecto por algum desígnio sobrenatural.<br />

Felício, tomado pelo terror, deixou cair sobre o<br />

passeio coberto de limo o lenço no qual envolvera o anel<br />

surrupiado ao morto. Instantânea e providencialmente,<br />

a poderosa energia selenita dos raios que banhavam a<br />

frieza mórbida das lápides enfileiradas fez com que suas<br />

pernas finalmente recobrass<strong>em</strong> os movimentos e, mesmo<br />

s<strong>em</strong> uma ord<strong>em</strong> clara do seu cérebro, o levass<strong>em</strong> para<br />

24


<strong>em</strong> longe dali.<br />

PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

Foi assim, desta maneira insólita, que Felício perdeu<br />

a capacidade da fala.<br />

No dia seguinte, o povoado s<strong>em</strong>pre tão tranquilo e<br />

s<strong>em</strong> grandes novidades, acordou com um boato que,<br />

verificou-se depois, tinha algum fundamento. Marcelino<br />

Nogueira, o Sete Palmos, que há anos des<strong>em</strong>penhava<br />

a função de coveiro do povoado, capinava um canto do<br />

campo santo quando descobriu violada a última morada<br />

do venerável bispo Dom Francesco Maggio, que, <strong>em</strong>bora<br />

exercesse seu apostolado na diocese de uma cidade maior,<br />

manifestara <strong>em</strong> testamento o desejo de ser enterrado <strong>em</strong><br />

sua natal Oiticica.<br />

Uma comissão composta de autoridades locais,<br />

entre elas o vigário Ariosto Petrônio, o boticário Pompeu<br />

Lobato e dona Maricota L<strong>em</strong>es, diretora do Grupo Escolar<br />

Belizário de Souza, se incumbiu de investigar o estranho<br />

caso. Só a ela foi permitida o acesso à bizarra cena do<br />

crime. A exceção era Marcelino Sete Palmos, a qu<strong>em</strong> coube<br />

a ingrata função de botar as mãos na massa esfarelada e<br />

inanimada, de revistar o esquife.<br />

Em princípio, certificou-se que nada de valor havia<br />

sido subtraído do túmulo. Os investigadores viram-se<br />

<strong>em</strong>pacados, todavia, na hipótese da profanação como<br />

parte de um ritual de magia negra, apresentada pelo padre<br />

que, quando jov<strong>em</strong>, tivera a oportunidade de estudar<br />

casos desta natureza na Universidade do Vaticano.<br />

Foi Marcelino qu<strong>em</strong> percebeu que, a despeito de<br />

haver falecido há quinze dias, Don Francesco não exalava<br />

o odor nauseabundo dos cadáveres apodrecidos. Era um<br />

defunto fresco.<br />

25


PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

“Era um hom<strong>em</strong> santo” — buscou uma explicação de<br />

cunho místico o padre Ariosto — “digno de beatificação”.<br />

“Parece até que Dom Francesco r<strong>em</strong>oçou...” —<br />

observou dona Maricota – “E engordou”.<br />

Com o olho clínico de qu<strong>em</strong> convivia há muito t<strong>em</strong>po<br />

com os convocados a descer à mansão dos mortos,<br />

Marcelino Sete Palmos ouvia com atenção as conjecturas<br />

e suposições, enquanto analisava o de cujus. Quando a<br />

questão voltou à estaca zero do impasse, pediu licença<br />

para dar a sua modesta opinião:<br />

“Desculp<strong>em</strong>-me a intromissão, mas, olhando b<strong>em</strong>,<br />

este corpo aí não é o do nosso saudoso Dom Francesco.”.<br />

Houve imediatamente, como era de se esperar, um<br />

reboliço geral. Os m<strong>em</strong>bros da comissão se entreolharam<br />

confusos.<br />

“Marcelino!” — ralhou o austero boticário Lobato —<br />

“Como se atreve a dizer uma bobag<strong>em</strong> dessas, hom<strong>em</strong>?”.<br />

“Digo e provo, seu Lobato!” — agachou-se junto ao<br />

corpo o coveiro — “Olh<strong>em</strong>!”.<br />

Levantando a mitra episcopal e deixando a descoberto<br />

a cabeça do morto, o coveiro tocou-lhe de leve a testa:<br />

“Dom Francesco era calvo, não era?”.<br />

Todos assentiram que sim, concordando, pois com<br />

o prelado haviam convivido muitas décadas. Alguns até<br />

tinham sido batizados e casados por ele.<br />

“E esta cicatriz aqui, que vai do pescoço à base da<br />

orelha direita?”.<br />

26


Lobato.<br />

PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

“Fui eu qu<strong>em</strong> saturou o ferimento” — adiantou-se<br />

“Então só pode ser o...” — tapou a boca, horrorizada,<br />

dona Marieta.<br />

“Ele mesmo!” — ergueu-se triunfante Marcelino Sete<br />

Palmos. — “Esse corpo aí, minha gente, é do Jer<strong>em</strong>ias dos<br />

porcos!”.<br />

Para que não se acirrasse ainda mais confusão, <strong>em</strong><br />

consenso, a comissão resolveu manter tudo <strong>em</strong> segredo.<br />

Que se enterrasse ali aquela história. Para todos os efeitos,<br />

era Dom Francesco qu<strong>em</strong> repousava naquele jazigo de<br />

mármore com inscrições <strong>em</strong> latim.<br />

O padre Ariosto, convicto de que haviam tomado a<br />

melhor decisão, convocou todos a uma prece e, no papel<br />

que lhe cabia, encomendou a Deus aquela pobre alma.<br />

Que Jer<strong>em</strong>ias ali permanecesse, até o dia do Juízo, quando<br />

todos haveriam de prestar contas dos seus atos.<br />

Quanto ao Felício, diz<strong>em</strong>, só voltou a falar novamente<br />

duas horas antes de falecer, quando finalmente confessou<br />

sua culpa. Até aquele dia, porém, tinha sido visto s<strong>em</strong>pre<br />

a vagar aparvalhado pelas ruas estreitas de Oiticica, s<strong>em</strong><br />

conseguir se livrar dos passos ritmados pela batida dura<br />

do cajado que o seguiam por onde quer que fosse, s<strong>em</strong><br />

lhe dar trégua, ou um instante sequer de paz.<br />

27


PROFANADORES<br />

Chico Pascoal<br />

CHICO PASCOAL é escritor cearense radicado <strong>em</strong> São<br />

Paulo, com <strong>contos</strong> e po<strong>em</strong>as publicados sites e revistas<br />

literárias tais como Veropo<strong>em</strong>a, Bestiário, Portal<br />

Literal, Veredas (Brasil), Minguante e Letrário<br />

(Portugal), Navona Editorial (Espanha) . Participou<br />

das seguintes antologias: Contos Imediatos (Ficção<br />

Científica da Editora Terracota, 2009), Cursed City,<br />

História Fantástica do Brasil – Inconfidência, Saci<br />

e os Mestre do Terror, Sexo Livros e Rock in Roll,<br />

D<strong>em</strong>ônios VII – Avareza (Editora Estronho), FC do B –<br />

Ficção Cientifica do Brasil – Panorama 2011 (Editora<br />

Tarja) , Literatura Futebol Clube (Editora Multifoco,<br />

2012), H2Horas (Cronópios/Dulcinéia Catadora -2010)<br />

Autor de literatura minimalista, foi pr<strong>em</strong>iado <strong>em</strong> diversos<br />

concursos de mini<strong>contos</strong>, nano<strong>contos</strong> e poesia haicai.<br />

Leitor apaixonado, t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre à mão um livro; seja de<br />

autor nacional ou estrangeiro. Que a literatura<br />

Escreve no blogue: http://microrelatosdocheeko.blogspot.<br />

com<br />

28


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

Escreve com teu sangue e verás que sangue é espírito.<br />

Nietzsche<br />

Nunca soube de alguém que tenha vivido uma<br />

experiência igual ou, ao menos, s<strong>em</strong>elhante a<br />

esta. É quase certo que vocês, leitores, jamais passaram<br />

por uma situação tão odiosa e intrigante quanto a minha.<br />

Vou descrevê-la para homenagear aqueles que mantêm<br />

opiniões precipitadas e céticas perante a palavra. Já posso<br />

até ouvir os rumores de críticos e leigos ao confrontar<strong>em</strong><br />

tal narrativa.<br />

Entes incrédulos...<br />

Imagin<strong>em</strong>, pois, a seguinte situação: imagin<strong>em</strong> dividir<br />

um espaço restrito com seu pior inimigo. Imagin<strong>em</strong> tê-lo<br />

29


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

tão próximo de si a ponto de ouvir seus pensamentos e<br />

angústias. Imagin<strong>em</strong> suportar suas imprecações e ameaças<br />

s<strong>em</strong> poder revidar. Imagin<strong>em</strong> o quão degradante é para o<br />

hom<strong>em</strong> não poder seguir o caminho das sombras.... Acho<br />

que peço d<strong>em</strong>ais – o bom senso de vocês os imped<strong>em</strong> de<br />

imaginar algo s<strong>em</strong>elhante. O claustro é um lugar infernal,<br />

sobretudo se nele estiver aquele que você mais odeia.<br />

Tudo começou na escuridão imposta por uma venda.<br />

Quando alguém a tirou, não pude distinguir o que estava<br />

ao meu redor. Minha cabeça girava e doía. Aos poucos, as<br />

manchas colidiram-se. Imagens distintas aproximavamse.<br />

Estava amarrado numa cadeira dentro dum sótão<br />

minúsculo. A luz de um abajur revelou-me dois estrados,<br />

uma escrivaninha e alguns cobertores. Outros objetos<br />

foram aparecendo: livros numa mesa de cabeceira, um<br />

cantil com água, folhas avulsas e outros fragmentos<br />

esparramados no chão. Mais tarde, vi que eram bolas de<br />

papel.<br />

Não havia nenhuma janela. O ar morno e pesado era<br />

quase irrespirável. Esse incômodo talvez se acentuasse<br />

devido ao meu esforço <strong>em</strong> desatar os nós que me prendiam<br />

à cadeira. Lutei esbaforido, mas, no fim, acabei caindo,<br />

imóvel. Na posição que estava, divisei um vulto perto da<br />

porta. Seria o hom<strong>em</strong> que havia tirado minha venda? A luz<br />

do abajur não alcançava as sombras que o consumiam. Ele<br />

riu ironicamente. Seus gestos mexeram-se nas trevas.<br />

Ouvi um, dois, três, quatro passos...<br />

Hermes Ávila, meu pior inimigo, revelava-se diante<br />

de mim! Julguei estar delirando... Cerrei meus olhos<br />

fort<strong>em</strong>ente. Abri-os... Realmente, era o maldito escritor!<br />

“Não pense que foi meu desígnio trazê-lo para este<br />

lugar”, disse ele, adivinhando-me. Suas palavras eram<br />

30


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

repugnantes! Eu me contorcia, amarrado à cadeira, e<br />

vociferava várias injúrias.<br />

Ávila levantou-me. Disse que também fora raptado<br />

e trazido para cá. “Mentira!”, gritei. No entanto, juroume<br />

por sua honra que dizia a verdade. Segundo ele, tinha<br />

sido sequestrado muito antes que eu. Assim que me<br />

reconheceu, quis matar-me. Contudo, debaixo da porta,<br />

apareceram palavras que coibiram sua fúria. Hermes<br />

pegou um envelope sobre a escrivaninha e tirou um papel<br />

com uma ameaça datilografada. Dizia a mensag<strong>em</strong> que,<br />

se um de nós atentáss<strong>em</strong>os contra a vida do outro, ambos<br />

seríamos mortos por eles...<br />

Eu era incapaz de acreditar nessa história, afinal,<br />

seu porta-voz era meu pior inimigo... mas havia algo que<br />

me inculcava. Se Hermes era o mentor do meu sequestro,<br />

por que eu continuava vivo? Estr<strong>em</strong>eci... Será que estava<br />

diante dum sádico? Para minha surpresa, ele desatava<br />

os nós que me prendiam. Pude mover-me livr<strong>em</strong>ente,<br />

mas estava fraco. Ávila jamais se importaria com isso<br />

– atingiu-me com um potente soco! Tentei revidar, mas<br />

meus m<strong>em</strong>bros não se moviam. Acabei desmaiando...<br />

Quando acordei, vi-o entregue aos manuscritos<br />

dispersos sobre a escrivaninha.<br />

— Como da outra vez, não te matei por causa da<br />

ameaça daquele papel. Confesso que fiquei mais tentado<br />

que antes, mas ainda preciso viver para concluir este<br />

conto – disse ele s<strong>em</strong> desviar seus olhos da escritura.<br />

Não respondi. Arranhei meu ódio <strong>em</strong> silêncio. Ainda<br />

estava fraco. Se houvesse outro confronto, ele não<br />

conseguiria conter sua ânsia de matar. Recostei-me com<br />

dificuldade na parede. Lá estava ele, o detestável Ávila!<br />

31


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

E pensar que ele tinha sido meu melhor amigo... Sim,<br />

acredite: Hermes fora meu amigo! Quando jovens, era<br />

ele que avaliava meus textos ingênuos. Sua maturidade<br />

literária surgiu precoc<strong>em</strong>ente, deixando-me muito aquém<br />

de sua verve intelectual. Hermes nunca me disse, mas<br />

achava minha literatura horrível. No entanto, s<strong>em</strong>pre teve<br />

paciência e filantropia – sugeria modificações, formulava<br />

elogios pitorescos e corrigia os desníveis da linguag<strong>em</strong>.<br />

Seus textos, ao contrário, tinham um estilo breve e<br />

conciso, s<strong>em</strong> pedantismos. Ele sabia aliar perfeitamente o<br />

simples e o solene. No começo, eu o admirava. Era meu<br />

amigo um notável escritor! No entanto, com o t<strong>em</strong>po,<br />

apesar de nunca ter tido corag<strong>em</strong> de admitir isso, houve<br />

uma ponta de inveja. Era como se eu estivesse manchado<br />

pela culpa de ter esse sentimento dentro de mim...<br />

Ávila era o orador da turma e eu, seu seguidor mais<br />

próximo. A vassalag<strong>em</strong> dava-me prestígio. Os mestres<br />

elogiavam-me por causa da ex<strong>em</strong>plar companhia. Eu<br />

desfrutava os púlpitos junto com meu amigo. Entretanto,<br />

mais pontas surgiram. A inveja doía muito! Pensei <strong>em</strong><br />

contar tudo, dimensionar minha angústia. Por duas ou<br />

três vezes, estive perto dessa atitude. Porém, t<strong>em</strong>ia<br />

que Hermes não me compreendesse. Minha situação era<br />

alarmante. Invejava-o cada vez mais e, cada vez mais,<br />

tinha vergonha disso.<br />

Minha mancha tornou-se um <strong>em</strong>brião volátil e<br />

pegajoso. A criatura desenvolvia-se rapidamente... seus<br />

batimentos cardíacos já se confundiam com os meus. N<strong>em</strong><br />

mesmo um estetoscópio distinguiria a variante. Ninguém<br />

os escutava, somente eu. Tentei isolar a inflexão da<br />

massa disforme. Reitero que tinha vergonha disso. Porém,<br />

descobri que havia cometido um terrível engano. Meu<br />

propósito de extinguir o som amaldiçoado acelerou seu<br />

32


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

compasso! Não consegui resistir. Tornei-me um autômato<br />

com dois corações inexistentes...<br />

O vigia noturno ressonava <strong>em</strong> seu posto, enquanto<br />

as rosas de Ávila eram pisoteadas. Um murmúrio cego<br />

evadiu-se. Ventos alíseos profanaram a noite, rasgando<br />

sua veste de luto. Um dos homens rosnou uma praga. O<br />

frio inquietava-o. Logo que a porta cedeu, fez-se uma luz<br />

no segundo andar. Uma lanterna desferiu seu lume na<br />

sala vazia. Do térreo percebia-se o atrito da esferográfica<br />

com a alvura do papel. Hesitei <strong>em</strong> acompanhar os outros<br />

dois. Estava trêmulo e meus olhos ardiam. Os comparsas<br />

subiram.<br />

Gritos misturaram-se ao lamento frio da noite.<br />

Quando ergui minha cabeça, vi Hermes sendo carregado<br />

pelos cúmplices. Ele estava desacordado, porém um brilho<br />

opaco teimava <strong>em</strong> seus olhos. Assim que desceram as<br />

escadas, notei que o escritor havia despertado. Quando<br />

vislumbrou minha presença não houve nenhuma contração<br />

<strong>em</strong> seu rosto. No entanto, oculto na face estática, fluía<br />

um ódio convulsivo! Ávila não tentou libertar-se das<br />

mãos opressoras. Deixou-se ser levado... Precavi meus<br />

comparsas de cuidados e orientações. Após a surra,<br />

deveriam deixá-lo num local r<strong>em</strong>oto, s<strong>em</strong> condições de<br />

pedir socorro.<br />

Dias febris vieram. Queria adormecer meu<br />

arrependimento, afugentá-lo da consciência. Todos<br />

estavam apreensivos com o desaparecimento de Ávila. A<br />

s<strong>em</strong>ana findara e nenhum vestígio do escritor. Indagações<br />

atingiram-me como setas. Todos estavam preocupados.<br />

Minha ligação com Hermes trazia-me incômodos. N<strong>em</strong> eu<br />

sabia onde meus cúmplices o deixaram... Desconhecia até<br />

mesmo o verdadeiro motivo que norteara minha perfídia.<br />

Durante as horas mais escuras, ficava à beira do sono,<br />

33


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

execrando minha inveja. Ao amanhecer, não havia nenhum<br />

ímpeto que me pusesse fora do leito.<br />

No entanto, boas novas me reanimaram – a polícia<br />

encontrara Ávila amarrado dentro duma casa abandonada.<br />

Disseram-me que fora uma denúncia anônima... Senti um<br />

misto de alívio e repulsa. Meu amigo estava livre, mas seria<br />

eu qu<strong>em</strong> cumpriria a sentença... Porém, fiquei atônito ao<br />

saber que Hermes dissera “homens encapuzados” <strong>em</strong> seu<br />

depoimento. Pensei que houvesse amizade nessa atitude.<br />

Era a oportunidade de me justificar. Finalmente, revelaria<br />

minha inveja. Contudo, o escritor deixou de ir às aulas.<br />

Não o via mais nos lugares que frequentávamos, n<strong>em</strong><br />

mesmo <strong>em</strong> sua casa. Eu insistia <strong>em</strong> procurá-lo, mas Ávila<br />

fugia...<br />

Certa vez, porém, consegui cercá-lo. “Nunca mais<br />

quero vê-lo”, foram suas únicas palavras. Ele não permitiu<br />

que eu explicasse meus motivos secretos. Amargo<br />

(mas duplamente incerto), Hermes afastou-se de mim...<br />

Alcancei-o, cheguei mesmo a tocá-lo. Desci à comiseração,<br />

inflando a retórica das desculpas. Também acho que foi<br />

um ato leviano, desesperado. Nego generalizar que, de<br />

certo modo, ingenuidade e ódio são parecidos. Não é o<br />

teor o similar, n<strong>em</strong> o sentido, mas o índice mútuo que os<br />

rege. O que principia o ódio é a ingenuidade, flagrada <strong>em</strong><br />

determinadas atitudes, e o que principia a ingenuidade é<br />

o ódio, pois o que lhe sucede é o terror inábil e cônscio da<br />

angústia.<br />

Não preciso reiterar com minúcias que a insistência<br />

pelo perdão afrontava o escritor. Seu olhar sanguíneo já<br />

evidenciava isso. Não suportando minha presença, Ávila<br />

<strong>em</strong>purrou-me, lançando xingamentos e ameaças. Já não<br />

havia amizade, só o resquício dum fulcro intróito. Nossas<br />

distâncias recuaram ainda mais. Longe do escritor, n<strong>em</strong><br />

34


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

percebi que seu revide estava ao meu lado. Ávila roubou<br />

a única mulher que amei, mas não a amou – efetuou sua<br />

vingança, alinhavada nas falsas carícias. Sua maldade<br />

pr<strong>em</strong>editada desvaneceu meu arrependimento. Hermes<br />

tornou-se meu pior inimigo...<br />

Aos poucos, as imagens do passado dissiparam-se...<br />

Arrastei-me para o estrado vazio. Ávila continuava<br />

entretido com seu manuscrito. Sua sombra projetava-se<br />

<strong>em</strong> mim. Era um núcleo negro num círculo de luz, uma<br />

célula difusa. Tive a impressão que ele vacilava. A inércia<br />

de sua esferográfica alongava-se, reticente. Ele esfregava<br />

suas mãos, soltando elipses no ar. Impaciente, esmurrou<br />

a escrivaninha. No mesmo instante, virou-se para trás.<br />

Fingi que dormia...<br />

Abri os olhos. Por enquanto, estava seguro. Hermes<br />

ressonava no outro estrado. Seu comportamento revelava<br />

que eu não era o único alvo de seu ódio. Fiquei curioso<br />

sobre o assunto tratado <strong>em</strong> sua narrativa. Era estranho.<br />

Ele s<strong>em</strong>pre mostrara desenvoltura <strong>em</strong> seus textos. Não<br />

acreditava que era isso... Será que as musas abandonaram<br />

Ávila?<br />

Sentei-me no estrado. Estava inquieto. A exaustão<br />

havia passado. A luz do abajur irradiava centelhas <strong>em</strong><br />

meus olhos. Pela primeira vez, pensei <strong>em</strong> sede, fome e<br />

t<strong>em</strong>po. Não tive fome, n<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po, mas tive sede. Nenhum<br />

dos raptores trouxera comida. Talvez houvesse alguma<br />

provisão <strong>em</strong> meio ao lusco-fusco. Era irrelevante, eu não<br />

queria comer. Segundos, minutos, horas – desconhecia<br />

se era noite ou dia, ou se havia um relógio no sótão.<br />

Entretanto, a ansiedade secava-me a boca, deixando-a<br />

árida, insuportável. Bebi toda a água que restava no cantil.<br />

35


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

Era minha chance de eliminar Hermes. Eu me<br />

aproveitaria de sua inconsciência para sufocá-lo até a<br />

morte. Soturno, caminhei <strong>em</strong> sua direção. Eram passos<br />

custosos, medidos. Nenhum ruído poderia despertá-lo.<br />

Ajoelhei-me diante de seu corpo... No entanto, a ameaça<br />

datilografada impediu-me. Suas palavras agudas coibiram<br />

meu ódio. Sentei na cadeira do escritor e respirei fundo.<br />

Ávila mexeu-se. Sobreveio um silêncio opressor...<br />

Pensei que Hermes tinha acordado. Depois de<br />

algum t<strong>em</strong>po, notei que ele ainda dormia. Se o escritor<br />

me flagrasse sentado <strong>em</strong> sua cadeira, a mensag<strong>em</strong><br />

datilografada não o impediria de me matar. Sobre a<br />

escrivaninha figurava sua escritura. A curiosidade era<br />

irresistível. Não pude suportar. Espiei suas palavras...<br />

Sua narrativa não tinha um título. Iniciava-se da<br />

seguinte forma: “Os caminhos alargam-se quando conheço<br />

a mim mesmo, pois conhecendo a mim mesmo, posso<br />

entender o outro e compartilhar com ele de uma mesma<br />

essência”. O final do conto também se resumia nessas três<br />

linhas. Isso porque não houve nenhuma história, nenhuma<br />

colocação além desse fragmento. Uma folha com inúmeros<br />

círculos mostrava a escassez de ideias. Foi difícil acreditar<br />

que meu inimigo era incapaz de escrever uma história.<br />

Na mesa de cabeceira, encontrei uma Bíblia, um livro<br />

de po<strong>em</strong>as byronianos e alguns tratados filosóficos de<br />

Nietzsche. Sobre a escrivaninha havia uma série de folhas<br />

com citações transcritas desses ex<strong>em</strong>plares. Entretanto,<br />

com ressalva das passagens bíblicas, não encontrei<br />

nenhum elo entre a frase de Ávila e os trechos copiados.<br />

As palavras do escritor eram incompreensíveis. Eu não via<br />

nenhum caminho abrir-se para um sujeito que nunca quis<br />

ouvir minhas justificativas.<br />

36


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

Hermes revirou-se... Dissolvi minha reflexão.<br />

Qualquer ruído deixava-me angustiado. A iminência de<br />

alguma perfídia amedrontava-me. Eu ficava cada vez<br />

mais nervoso, como se estivesse sendo comprimido<br />

numa esfera viscosa... De algum modo, escaparia desse<br />

claustro! Vasculhei todas as gavetas da escrivaninha.<br />

Talvez encontrasse algo para me ajudar na fuga.<br />

Um objeto brilhava diante do abajur – era um punhal<br />

de luz fria! Ávila iria me matar com essa lâmina... Eu<br />

regozijava por frustrar seu intento. De posse dessa arma,<br />

libertar-me-ia, derramando o sangue de meu pior inimigo!<br />

Hipocrisia, insegurança, angústia... Minha vida lúbrica<br />

já não possuía nenhum valor. Entretanto, não permitiria<br />

que meus raptores a ceifass<strong>em</strong>. Eu mesmo a extinguiria!<br />

Nunca, ideias tão insanas assombraram minha consciência!<br />

Meu desejo imediato era matar Hermes e, <strong>em</strong> seguida, me<br />

suicidar...<br />

No entanto, decidi poupá-lo até que acordasse. Antes<br />

de morrer, Ávila teria que ver meus olhos queimando de<br />

ódio! Rastejei até meu estrado. Estava ansioso, quase<br />

delirava. Hermes contorcia-se. Algum pesadelo afligia-o<br />

<strong>em</strong> sua zona escura. Passei a observá-lo, pensativo...<br />

Tínhamos somente uma característica <strong>em</strong> comum: a<br />

vingança. A vingança <strong>em</strong> nossos modos enrustidos, a<br />

vingança ferina, a vingança quase telepática... A vingança!<br />

Éramos homens especulares, ambos amaldiçoados.<br />

Anát<strong>em</strong>as encarnados num ódio recíproco. Nosso Deus<br />

não se manifestava, permanecia s<strong>em</strong>pre incógnito. Por<br />

mais que ofertáss<strong>em</strong>os a palavra, Ele não aparecia.<br />

Sabíamos que nossa divindade jamais se revelaria. No<br />

entanto, mesmo não podendo distingui-Lo, nossa busca<br />

aproximavá-nos Dele. Ávila já não conseguia aproximarse<br />

da divindade. Estávamos com as mesmas angústias –<br />

37


ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

não dominávamos a palavra. A vingança não era o único<br />

desejo que tínhamos <strong>em</strong> comum...<br />

Hermes despertou. Minhas mãos estavam úmidas e<br />

molhavam a lâmina oculta. Fechei os olhos. Novamente,<br />

fingi que dormia. Ele se acomodou <strong>em</strong> sua cadeira<br />

e começou a redigir seu texto. Sua caneta deslizava<br />

mansamente pela página; já não havia longos intervalos.<br />

O escritor restabelecera seu pacto com a palavra. Erguime,<br />

segurando o punhal, e caminhei <strong>em</strong> sua direção. Ele<br />

virou-se, espantado. Tarde d<strong>em</strong>ais... Furioso, cravei meu<br />

ódio <strong>em</strong> seu peito!<br />

Ávila<br />

livre...<br />

tombou, enrijecido. Finalmente, eu estava<br />

Ofegante, caí sobre a cadeira do morto. Minha<br />

consciência titubeava, ofuscada. Súbitos borrões<br />

desfiavam a luz. Era difícil diluir as alternâncias. No<br />

entanto, não desmaiaria por causa da fadiga. Somente<br />

o suicídio fecharia meus olhos. Resoluto, lutei contra a<br />

inconsciência. De quando <strong>em</strong> quando, faíscas acendiamse<br />

mais duradouras e compridas. Por fim, minha razão<br />

despontou, luminosa. Pena que não há luz etérea s<strong>em</strong> um<br />

vale sombrio!<br />

Prestes a cortar minha jugular, senti um líquido<br />

viscoso escorrendo <strong>em</strong> meu peito... A luz do abajur incidiu<br />

<strong>em</strong> meus dedos molhados de sangue! O brilho prateado da<br />

lâmina estava coberto por uma mancha rubra e sinuosa...<br />

Minha fraqueza era o prenúncio da morte! Meus olhos<br />

procuravam Hermes. Ele não jazia no vão onde caíra!<br />

A escrivaninha, os manuscritos, os livros... Aos poucos,<br />

tudo se camuflava numa cortina de névoa. Ainda pude<br />

ver a porta do sótão abrir-se e dela surgir Ávila, rodeado<br />

por homens estranhos... O escritor inclinou-se e disse<br />

38


pausadamente:<br />

nós...<br />

ANÁTEMA<br />

Rafael Peres<br />

— Enfim, tua carne se fez verbo e habitou entre<br />

Rafael Peres nasceu <strong>em</strong> Patos de Minas, Minas Gerais, <strong>em</strong><br />

1986. É graduado <strong>em</strong> Letras. Autor de artigos publicados<br />

nas revistas Crátilo e Perquirere, periódicos disponíveis<br />

no site www.unipam.edu.br. Publicou os <strong>contos</strong> A Peste:<br />

porcos e corpos, pela editora Valer/Sesc, e Hell, na<br />

antologia Caminhos do medo - volume II, pela editora<br />

Andross. Mantêm o blog voodoscorvos.blogspot.com<br />

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O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

“É verdade que todos são iguais perante Deus, tanto um como o<br />

outro são amados pelo Senhor”.<br />

(Gl 3:27,18)<br />

Itália.<br />

Cantos gregorianos preench<strong>em</strong> a afinada acústica<br />

das paredes de pedra, indo perder-se na abóboda ornada<br />

com pinturas de anjos e santos. Os incensos e velas dão<br />

ao ar o respeito e serenidade da oração que os fiéis estão<br />

imersos, no improperium entre a comunhão e a reflexão.<br />

O jov<strong>em</strong> padre Dellaveno medita, <strong>em</strong> seu altar, sob o calor<br />

das velas, enquanto pede a Deus salvação para as almas<br />

aflitas no mundo. Mas, no topo desta lista de pedidos por<br />

paz e redenção, está ele.<br />

Então, de repente, a placidez dos cantos católicos é<br />

40


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

riscada pelo retumbar estridente de pratos metálicos. Um,<br />

dois, três...Os fiéis começam a erguer suas cabeças e mirar<br />

na direção do barulho incomum. Uma musiquinha de fundo<br />

se sobressai, com nuances circenses, hipnotizantes. Uma<br />

primeira carruag<strong>em</strong> passa <strong>em</strong> frente às portas da igreja, e<br />

seu esplendor torce ainda mais pescoços. Algumas até se<br />

levantam, para ver se não imaginavam coisas.<br />

O padre Dellaveno fica atônito no seu palanque,<br />

assistindo à caravana passar, a música e as rodas de<br />

madeiras a esmagar pedras roubam toda a melodia serena<br />

dos monges, além da atenção dos fiéis.<br />

E o burburinho logo começa. Pessoas quer<strong>em</strong> ver<br />

melhor, enquanto outras resmungam, indignadas, por<br />

tal perturbação. Outras, mais efusivas, reclamam de<br />

uma solução para o padre, que logo se vê na obrigação<br />

de ir cerrar as portas. Isso atiça ainda mais o falatório,<br />

pois crianças presentes ficam curiosíssimas para assistir<br />

à caravana bizarra passar, querendo arrastar seus pais,<br />

que, at<strong>em</strong>orizados, os repreend<strong>em</strong> aos murmúrios. Logo,<br />

a capela de pedra mais parece um ninho de abelhas, com<br />

o zumzumzum amplificado e ensurdecedor. Enquanto puxa<br />

as duas portas de madeira, o jov<strong>em</strong> Dellaveno vê as cores,<br />

verde e violeta, que cobr<strong>em</strong> a lona da diligência, <strong>em</strong> listras<br />

sólidas. O dourado da carruag<strong>em</strong> principal lhe atiça os<br />

pelos, assim como o vermelho das letras caprichosamente<br />

desenhadas, que anunciam o nome do espetáculo, dentro<br />

da gargalhada de um palhaço:<br />

“Paradise Circus”<br />

— Que insulto! Ouve muitos resmungando as suas<br />

costas.<br />

Anões negros <strong>em</strong> suntuosos trajes persas passam,<br />

41


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

chamando a atenção de sua anarquia à população, que já<br />

sai à rua, interessada. Um deles sorri para Dellaveno, e<br />

seus dentes podres lhe eriça a nuca, fazendo-o terminar<br />

de cerrar as portas com as mãos suadas.<br />

O silêncio novamente se faz. Os fiéis olham o rosto<br />

pálido do padre, e ele tenta aprumar-se para transparecer<br />

confiança, no entanto, as crianças quer<strong>em</strong> saber, s<strong>em</strong><br />

pudor, o que ele vira. Isso o deixa nervoso e esquivo e<br />

enquanto foge de tais perguntas, nota apenas uma pessoa<br />

que não está agitada, ou com o rosto voltado para si. De<br />

cabelos louros, senta-se serenamente numa das primeiras<br />

fileiras, como se ainda imersa <strong>em</strong> oração, diante do caos.<br />

Enquanto retorna, o padre t<strong>em</strong> de pedir calma<br />

e atenção à missa. No ponto mais alto, porém, ele<br />

novamente olha para aquela fileira, onde não repara<br />

outrora na moça...<br />

Mas seu acento está vazio.<br />

O circo não se instalou num lugar de destaque. Tal<br />

um animal peçonhento, deixou seu rastro pela luz, mas<br />

foi na escuridão que encontrou abrigo. Pousou num<br />

dos subúrbios, próximo à costa, na zona de armazéns<br />

abandonados e não mais fez propagandas, como se não<br />

esperasse seu publico através delas. Tais os espetáculos<br />

de antigamente, a simples curiosidade inerente do ser<br />

humano os atrairia por conta própria a seu encontro.<br />

Por conta, e risco...Pensou Dellaveno, enquanto se<br />

r<strong>em</strong>exia na cama, tentando esquecer as cores fortes da<br />

lona gravados <strong>em</strong> sua mente.<br />

Assim, na intimidade do sono, ninguém diria que o<br />

jov<strong>em</strong> seguia o oficio eclesiástico. Rapaz b<strong>em</strong> delineado, de<br />

s<strong>em</strong>blante agradável e que vivia tirando suspiros das fiéis<br />

42


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

mais novas, engordando o seu rebanho durante as missas.<br />

Ele achava graça, mas respeitava tal comportamento. Era<br />

a juventude e ele já esteve no meio dessa erupção de<br />

hormônios descontrolados. Agradecia por ter chegado até<br />

ali imaculado.<br />

Imaculado?<br />

Assustou-se com a voz, mas não a ponto de despertar.<br />

Acreditou, <strong>em</strong> seu estado de vigília, que tratava-se de um<br />

fruto da sua inconsciência, e se vira para o lado, tentando<br />

dormir. Porém, ao invés de tocar os lençóis, Dellaveno<br />

sente entre seus dedos fios de cabelo compridos.<br />

Percorre-os e toca um braço, que logo se transforma<br />

numa curva maliciosa, que termina numa coxa macia.<br />

Seus dedos lentamente desc<strong>em</strong> para o delta da moça s<strong>em</strong><br />

rosto, guiados por uma vontade primitiva. Quando sente a<br />

respiração dela mais afoita, nota que algo não está certo<br />

naquele sonho. Então seus pelos se encrespam e sente<br />

sua própria ereção, ao som do sino anunciando a meianoite.<br />

Suado e excitado, desperta, sozinho na cama.<br />

É manhã de sol, tão agradável e serena que Dellaveno<br />

n<strong>em</strong> se l<strong>em</strong>bra mais da incômoda caravana circense do<br />

dia anterior. Cercado por suas fiéis, ele também usa a<br />

conversa para esquecer o estranho e constrangedor<br />

sonho. Mas uma delas toca no assunto novamente.<br />

— Um circo de horrores, por Dio! Uma imoralidade!<br />

— O senhor não pretende fazer nada, padre?<br />

Dellaveno surpreende-se com a indagação. A verdade<br />

43


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

é que ele se arrepia só com a ideia de um circo de horrores,<br />

e o motivo não t<strong>em</strong> a ver com medos infantis...mas não<br />

pode dizer isso a suas fiéis. Ele deve ser o hom<strong>em</strong> que<br />

enfrentará a situação, s<strong>em</strong> deixar aquela gota de suor<br />

brotada do nervosismo por causa de bizarrices de um<br />

picadeiro lhe denunciar.<br />

Contudo, antes que possa dizer algo sua perspectiva<br />

é sobrepujada pela visão daquela cabeleira loura a sair da<br />

capela, tão serena que ainda parece estar orando. Antes<br />

de ganhar a rua, ela desvia seu rosto brev<strong>em</strong>ente para ele,<br />

e seus olhos escuros lhe l<strong>em</strong>bram alguém, assim como os<br />

fios claros faz<strong>em</strong>-no sentir a brisa marítima de alguma<br />

praia californiana. Curioso, pois sua pele é alva como a de<br />

um chumaço de algodão.<br />

Ele lhe desejou bom dia e espera ouvir sua voz,<br />

mas ela apenas acena de volta e logo desaparece por<br />

uma esquina. Reconhece a voz de suas fiéis de longe,<br />

tentando lhe chamar a atenção, mas ela já se dispersou<br />

irr<strong>em</strong>ediavelmente, enquanto se l<strong>em</strong>bra do sonho que<br />

teve. Arrepende-se de tais pensamentos e pede desculpas,<br />

dizendo que t<strong>em</strong> trabalho a fazer na sacristia.<br />

Na noite seguinte, pouco antes da meia-noite,<br />

Dellaveno novamente se r<strong>em</strong>exe na cama, agitado com<br />

o som circense que invade seus pensamentos. Não há<br />

possibilidade de estar ouvindo a balbúrdia do Paradise<br />

Circus, pois o mesmo se instalou muito longe dali. Mas os<br />

risos e a folia medonha de criaturas por trás de grades<br />

e expostos <strong>em</strong> sombrias salas decoradas deslizam pelas<br />

margens de sua consciência entorpecida, procurando uma<br />

brecha fatal para entrar de vez.<br />

Em fragmentos de imagens desconexas, ele vê, na<br />

escuridão profunda do interior dos corredores, olhos<br />

44


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

brilhantes através de uma jaula. Uma mão cheia de garras<br />

e escamosa como um jacaré escapa pelas barras de ferro,<br />

tentando destruí-las <strong>em</strong> vão. O susto o faz recuar e ele<br />

ouve um som metálico no chão. Olha através da fresta de<br />

uma porta e vê uma mulher pela metade sobre uma mesa<br />

redonda, apenas do tamanho para comportar seu corpo<br />

até o quadril. T<strong>em</strong> uma xícara de chá nas mãos e olha<br />

debilmente para baixo, onde a colher com a qual mexia<br />

a bebida jaz, inalcançável. Olha para Dellaveno com uma<br />

expressão boba e pergunta:<br />

— E agora?<br />

Ele tropeça, querendo sair dali e cai <strong>em</strong> sua própria<br />

cama, seguro pelos braços da mesma mulher misteriosa.<br />

Não vê seu rosto, é impossível, coberto por todos<br />

aqueles fios louros, mas sente seus lábios roçando nos<br />

seus, s<strong>em</strong> deixar, porém, que ele aprofunde o beijo. Logo<br />

lhe oferece seu corpo perfeito, e ele, s<strong>em</strong> conseguir ir<br />

contra seus desejos primitivos, a possui.<br />

O relógio da catedral novamente bate o sino da<br />

meia-noite, fechando o dia. A zero hora, o jov<strong>em</strong> padre<br />

desperta entre g<strong>em</strong>idos ofegantes que transformam-se<br />

rapidamente num grito estrangulado. Corre a acender<br />

o abajur, mas termina por cair no chão: suas calças de<br />

pijama estão arriadas, onde o meio de suas pernas está<br />

completamente lambuzado do gozo inconsciente. Se veste<br />

rapidamente, como se houvesse uma plateia a assistir o<br />

patético espetáculo, abafando um grito maior ao esconder<br />

o rosto entre as mãos tr<strong>em</strong>ulas.<br />

— Oh, Padreterno!<br />

45


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

E termina a noite ajoelhado <strong>em</strong> frente à cama,<br />

pedindo redenção para sua alma.<br />

No terceiro dia, os fiéis estranharam a palidez e<br />

olheiras fundas do padre Dellaveno. Seu s<strong>em</strong>blante sombrio<br />

combina com as palavras de chumbo que pronuncia<br />

<strong>em</strong> seu sermão, contra os pecados da imoralidade e da<br />

afronta a Deus. Algumas pessoas ficam constrangidas,<br />

como se o jov<strong>em</strong> pároco estivesse lhes espreitando os<br />

pecados mais sórdidos por baixo das saias recatadas ou<br />

ternos b<strong>em</strong> passados. Cada um deles consegue ver a si<br />

mesmo na ode católica e desafiadora e até se olham, de<br />

esguelha, pensando se o padre não teria descoberto as<br />

intenções desejadas ou concretizadas de visitar<strong>em</strong> o circo<br />

dos horrores para dar uma espiadinha.<br />

Seria um dia de muita penitência a pagar,<br />

silenciosamente.<br />

Apenas uma pessoa continua com a mesma expressão<br />

inflexível. E Dellaveno a olha, fulminante, como se ela<br />

tivesse culpa por infiltrar-se <strong>em</strong> seus sonhos imorais. No<br />

momento <strong>em</strong> que as pessoas deixam os cantos gregorianos<br />

preencher<strong>em</strong> os pensamentos culpados, ela o olha com<br />

seus incomuns olhos escuros. Eles têm uma mensag<strong>em</strong><br />

subjetiva, e parece ao rapaz, um espelho para seu próprio<br />

ato constrangedor. Então, como se uma unha comprida<br />

tivesse riscado a superfície de um vidro, o padre desperta<br />

para uma l<strong>em</strong>brança longínqua e desagradável.<br />

E como se concluído o intento perturbador, a moça<br />

novamente abaixa a cabeça e ora.<br />

46


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

Sozinho, após a celebração, Dellaveno usa o telefone<br />

da paróquia para uma ligação a sua antiga universidade,<br />

na cidade de Veneza, na tentativa de localizar seus amigos<br />

daquela época. O vermezinho que o incomodava t<strong>em</strong> a<br />

ver com eles...Descobrira que um voltara para os Estados<br />

Unidos e o outro residia numa cidade próxima, que ele<br />

decidiu visitar, para fugir ainda dos apelos dos fiéis para ir<br />

ao Paradise Circus, e afastar aquela imoralidade deles...ou<br />

a tentação por ela.<br />

Ao final da tarde, Alphonso Palerno, o velho dono da<br />

mercearia próxima à capela de Dellaveno, enxuga copos,<br />

enquanto olha uma foto muito antiga, <strong>em</strong>oldurada e<br />

deixada entre as teias de aranha e garrafas <strong>em</strong>poeiradas<br />

de vinho barato.<br />

Observa o contorno estóico do riso do palhaço central<br />

da foto, quando leva um susto com a voz do padre a suas<br />

costas.<br />

— Conhaque, Alphonso, por favor.<br />

O velho estranha o pedido. Dellaveno, se não fosse<br />

padre, já seria um rapaz b<strong>em</strong> ajuizado. Mas agora ele<br />

parece como se corrido da polícia, afoito e vermelho.<br />

Serve o trago a ele.<br />

— Tudo b<strong>em</strong>, padre?<br />

Ele nada diz. Dentro de sua mente transcorr<strong>em</strong><br />

pensamentos melindrosos. Acabara de voltar da cidade<br />

<strong>em</strong> que seu amigo de república residia e descobre que<br />

sua nova morada já não é mais com os pais, mas sim no<br />

c<strong>em</strong>itério da cidade. Um incêndio terrível no escritório onde<br />

trabalhava. Sua mãe, aos prantos, só conseguia l<strong>em</strong>brar-<br />

47


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

se de como os olhos dele derreteram, simplesmente<br />

derreteram no fogo!<br />

Ela se sentiu no direito de confortá-lo, uma vez que<br />

ele fora muito bom para os dois amigos de quarto, ao<br />

colocar juízo na cabeça deles naqueles t<strong>em</strong>pos difíceis e<br />

tentadores da faculdade.<br />

— Você foi uma boa influência para aquelas duas<br />

almas.<br />

— Brent já sabe? – Brent era o outro rapaz com qu<strong>em</strong><br />

dividia o quarto e que voltara para a Califórnia. Isso gerou<br />

um novo surto de pranto na mãe de Tiago, que l<strong>em</strong>brouse<br />

quão trágico fora também o destino deste rapaz.<br />

— Diz<strong>em</strong> que ficou preso pelos cabelos nas pedras,<br />

durante um mergulho. Nada o fazia se soltar até que seus<br />

pulmões explodiram!<br />

E chorou, chorou e chorou...<br />

A bebida desceu rasgando. Dellaveno tentava<br />

minimizar o choque com a notícia da morte dos dois<br />

amigos, mas não há como esquecer. Não apenas disso,<br />

mas do turbilhão que viera junto, das l<strong>em</strong>branças nefastas<br />

que invadiram sua boa casa de fé com um bafo infernal<br />

pela soleira da porta.<br />

Você fora uma boa influência!<br />

Ela não podia estar mais enganada.<br />

Tentando se acalmar, o padre olha na mesma direção<br />

que o velho Alphonso e sua nuca se eriça. E não estava<br />

vendo o Paradise Circus tal como ele passara <strong>em</strong> sua rua,<br />

48


dias antes?<br />

O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

— O circo do Barthold Laszlo já é velho conhecido da<br />

estrada, diz<strong>em</strong> que é assombrado. – murmurou o dono da<br />

venda, ao perceber o interesse do rapaz pela imag<strong>em</strong>.<br />

Dellaveno fitou a foto com a mesma acidez com que<br />

fitara a moça naquela manhã.<br />

— É apenas um circo de horrores, sádico, que não<br />

devia explorar a deformação das pessoas dessa maneira.<br />

– mas não sabia se acreditava mais <strong>em</strong> suas palavras. —<br />

De onde é essa foto?<br />

— Estive nos arredores da Romênia quando eles<br />

saíram para assombrar as ruas do mundo. Os romenos<br />

sab<strong>em</strong> ser violentos quando botam alguma coisa na<br />

cabeça. Só não sei por que eles tinham que vir assombrar<br />

a nossa “bota”.<br />

A foto mostrava a mesma carruag<strong>em</strong> e uma sorte<br />

de estranhos integrantes, cujo personag<strong>em</strong> central era<br />

um senhor corpulento e baixinho, de olhos enigmáticos e<br />

ornado de uma cartola esquisita.<br />

Eu era apenas um garoto... Alphonso sussurrou,<br />

mas Dellaveno pouco deu importância. Barthold Laszlo,<br />

era esse o nome que devia procurar e tão logo deu uma<br />

última espiada na foto, esbarrou com a silhueta da moça<br />

loura passando na ponta da rua, longe, <strong>em</strong> direção ao<br />

sul da cidade. O mesmo caminho que o Paradise Circus<br />

seguira.<br />

— Barthold Laszlo é o dono?<br />

—Sim, mas... – e Alphonso, ainda divagando, voltouse<br />

para Delaveno a fim de lhe esclarecer que aquele fora<br />

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O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

um retrato tirado a mais de 60 anos e Laszlo já estava sob<br />

sete palmos de terra há pelo menos metade deste t<strong>em</strong>po,<br />

mas o padre já havia desaparecido porta afora.<br />

Jovens...<br />

Dellaveno percorre as ruas da cidadela italiana s<strong>em</strong> ver<br />

mais nada além da cabeleira loura. Ele se recorda do modo<br />

sereno como ela voltou-se para ele, o sol, e o brilho negro<br />

de seus olhos a contrastar com o dourado dos cabelos. E<br />

agora ele entende o que lhe atiçava como um vermezinho:<br />

ambos lhe faziam l<strong>em</strong>brar de seus amigos da faculdade.<br />

Amigos mortos. Uma recordação que de boa, <strong>em</strong> poucas<br />

horas tornara-se terrível. E principalmente pelo que trazia<br />

com ela... Perdido nestes pensamentos, surpreendeu-se<br />

<strong>em</strong> como ofegava, almejando a possibilidade de alcançar<br />

a moça, de olhá-la mais de perto e saber como aquilo era<br />

possível.<br />

Parou. Não, o que estava fazendo, alimentar aquele<br />

sentimento de urgência era como dar vazão ao que andava<br />

acontecendo com ele durante as noites daquela s<strong>em</strong>ana.<br />

Respirou fundo e sentiu o odor da maresia. Ao olhar ao<br />

redor, surpreendeu-se com o cenário. O cheiro de madeira<br />

salinada mesclava-se ao de poleiros de aves e um silêncio<br />

palpável. Viu a moça muito longe, mas não o suficiente<br />

para desistir de segui-la. Ela, de alguma maneira, parecia<br />

manter-se à vista justamente para ele saber seu paradeiro.<br />

— Por Dio! – e continua. Porém, logo nota que quanto<br />

mais anda nos corredores de armazéns, mais eles parec<strong>em</strong><br />

iguais, como se o fim da rua se juntasse ao começo da<br />

mesma, num labirinto s<strong>em</strong> fim. Cansado, Dellaveno para,<br />

apoiando-se <strong>em</strong> uma parede para enxugar o suor. O<br />

50


crepúsculo já se adianta e logo anoiteceria.<br />

O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

Foi então que ele viu a tocha iluminando a lona<br />

violeta. Uma tocha incomum, de fogo azul.<br />

Aproxima-se tentando definir qual é o truque ali, mas<br />

assusta-se com o adorno de crânio <strong>em</strong> meio às chamas<br />

iluminando a entrada do circo. O letreiro t<strong>em</strong> seu brilho,<br />

mas não é chamativo como imaginou. Grande, Paradise<br />

Circus impunha um t<strong>em</strong>or que o padre pouco sentira na<br />

vida.<br />

A bilheteria, com suas cortinas balouçantes, está tão<br />

vazia quanto a janela de uma casa assombrada.<br />

O som dos passos dela, que ele se acostumou a ouvir<br />

depois do longo percurso <strong>em</strong> seu encalço, lhe chamou a<br />

atenção para o pátio, entre o piso de pedras. Sua hesitação<br />

deu lugar a um novo par de passadas, como um convite<br />

silencioso a entrar no estranho circo.<br />

Uma vez lá, o padre nada mais ouve que denuncie a<br />

presença da moça. Os sons se tornam g<strong>em</strong>idos guturais<br />

e estalos secos, que lhe arrepiavam a espinha e lhe<br />

provocam sobressaltos desagradáveis. Mas o corredor do<br />

picadeiro montado está vazio, iluminado apenas pela lua<br />

cheia que vinha nascendo, e pelas tochas geladas.<br />

Quando ia perguntar se havia alguém ali, um som<br />

metálico o arrepiou. É uma bicicletinha que v<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua<br />

direção e naquela meia luz, mais parecia andar sozinha.<br />

Só muito perto ele entendeu pelo que aquele pequeno<br />

veículo era guiado.<br />

Um boneco de massa. Se parece muito com um, as<br />

formas delgadas e fofas, a máscara que cobria o rosto<br />

a lhe dar uma expressão estática e débil. Ele circulou<br />

51


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

Dellaveno como uma criança brincalhona, mas o padre<br />

sentia arrepios cada vez que ouvia aquela roda girando e<br />

g<strong>em</strong>endo. Por fim, desistindo de entender a criaturinha,<br />

ele abriu a boca para a repreender, mas ela disparou na<br />

direção que veio, dobrando um corredor de tendas. Seu<br />

gorrinho vermelho dava a Dellaveno a impressão de que<br />

ele queria ser seguido.<br />

Porém, o espanto foi com a visão que teve <strong>em</strong> seguida.<br />

Era como se a foto de Alphonso tivesse se materializado<br />

<strong>em</strong> cores. Seu rosto ficou lívido de espanto, quando uma<br />

risada potente veio surgindo de algum lugar daquela boca<br />

enorme.<br />

—“É verdade que todos são iguais perante Deus,<br />

tanto um como o outro são amados pelo Senhor!!!”<br />

E cantou os capítulos e versículos da qual a frase<br />

do livro de Gálatas fora tirada, abrindo um sorriso ainda<br />

maior dentre a fumaça de um charuto.<br />

Laszlo.<br />

Dellaveno engoliu a seco a <strong>em</strong>oção forte e<br />

inexplicável que sentiu. A sua frente o velho palhaço se<br />

apresentava, e todas as criaturas abjetas que ele devia<br />

ter por baixo das tendas calaram-se, deixando o anfitrião<br />

com seu convidado.<br />

— Não é verdade, meu caro padre?<br />

Dellaveno engoliu a seco a ironia e o medo.<br />

— Claro... – o homenzinho carrancudo o fez seguir<br />

por dentro de uma lona, cujo corredor ele já conhecia<br />

de seus nefastos sonhos. O suor escorreu, e de repente<br />

ele esperou ouvir o som de garras vindo de uma jaula na<br />

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O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

escuridão e a mulher pela metade confusa com a colher<br />

no chão.<br />

Mas tudo o que havia era o soturno barulho da brisa<br />

marítima soprando por baixo do piso elevado de madeira.<br />

— Então, meu caro senhor, presumo que não veio<br />

nos prestigiar.<br />

— Senhor Laszlo, não acredito que nada aqui seja<br />

passível de exposições...<br />

— Ah não? Hmmm...e o que me diz do caráter do<br />

ser humano, meu caro, da natureza humana <strong>em</strong> sua forma<br />

mais abissal?<br />

— Não sei se entendo, senhor...<br />

— Claro que não, senhor Dellaveno, uma vez que<br />

não compreendeu ainda que, <strong>em</strong> nosso circo, as atrações<br />

não estão dentro da lona...e sim fora.<br />

O padre espantou-se com Barthold Laszlo<br />

pronunciando seu nome e ainda mais com essa sentença,<br />

saída da boca cheia de fumaça. Ele riu, deliciando-se com<br />

cada gota do suor nervoso do jov<strong>em</strong>.<br />

— Veja, minha filha t<strong>em</strong> ido as suas missas, e aprecia<br />

suas palavras... de castigo e redenção. São inspiradoras!<br />

Ao dizer isso, como se materializada das sombras,<br />

o jov<strong>em</strong> padre viu a moça loura que perseguiu até ali,<br />

logo atrás do palhaço. Está com o mesmo aspecto sereno.<br />

Porém, de seus olhos um brilho soturno deixa-o com a<br />

mesma sensação de nostalgia e medo. Algo nela não está<br />

certo.<br />

— Qual o seu nome? – ele pergunta, ignorando<br />

53


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

Laszlo. Este deu um sorriso rasgado e respondeu, <strong>em</strong><br />

deboche.<br />

— Pobre Amélie, ela não ainda não fala.<br />

E então, Dellaveno percebeu de onde vinha aquele<br />

constante ar tranquilo: seus lábios eram tais o de uma<br />

boneca. Uma boquinha deformada por uma incrível<br />

imobilidade.<br />

Tal a moça <strong>em</strong> seus sonhos.<br />

Não...olhe um pouco melhor, e sua mente também<br />

vai começar a vê-la além disso...<br />

E como se ouvisse a própria voz do palhaço lhe dizer,<br />

os olhos da moça brilham intensos nas chamas azuis e<br />

tudo o que t<strong>em</strong>eu durante o dia com a notícia horrenda da<br />

morte de seus amigos concretizou-se nas formas daquele<br />

rosto...<br />

Voltou muitos anos atrás...voltou ao delito que o fazia<br />

orar todas as vezes que pedia por perdão às almas do<br />

mundo, e colocava a sua no topo da lista.<br />

Tentou abafar um g<strong>em</strong>ido, um grito de horror,<br />

enquanto Barthold Laszlo ria, e a moça atrás dele ria<br />

pelos olhos, o que dava a sua expressão um ar ainda mais<br />

macabro de triunfo.<br />

Dio mio, no...!<br />

— É verdade que todos são iguais diante de Deus,<br />

Dellaveno, é verdade!?<br />

E quando sentiu as risadas preenchendo o ar como<br />

a fumaça de seu charuto, Dellaveno tropeçou nos próprios<br />

pés e caiu.<br />

54


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

Sobressaltou-se, <strong>em</strong> sua cama. Agarrou os lençóis e<br />

acreditou ter despertado de mais um sonho nefasto, onde<br />

seus amigos cúmplices de um delito da época da faculdade<br />

apareciam mortos. Tudo por causa daquela t<strong>em</strong>porada<br />

execrável de espetáculos de horrores pelos canais de<br />

Veneza, <strong>em</strong> que, encontraram um espécime tentador:<br />

uma moça de corpo esbelto e delicioso, porém, de rosto<br />

quase inexistente. Seus cabelos, ralos como de uma velha<br />

não escondiam a boca que parecia a de uma bonequinha<br />

de porcelana, por isso era a única parte visível sobre a<br />

máscara de órbitas vazias que usava. Eles queriam saber o<br />

que havia por trás dela e quando descobriram, resolveram<br />

dar uma lição na criatura por ser tão diferente. Como era<br />

possível alguém não ter olhos, n<strong>em</strong> cabelos, e querer viver<br />

entre eles, pessoas normais?<br />

Depois de muita bebedeira, violência e sexo com<br />

a garota, ela acabou por não sair mais do chão, tão<br />

desfigurada quanto já era. Então chamaram Dellaveno,<br />

pedindo ajuda para esconder o inconveniente.<br />

— Não era grande coisa, só mais uma escória que a<br />

sociedade varria para debaixo do tapete, não é, meu b<strong>em</strong>?<br />

Dellaveno arregalou os olhos, ouvindo a voz b<strong>em</strong><br />

atrás de si. Tr<strong>em</strong>eu e se agarrou ainda mais ao travesseiro,<br />

tentando evitar pensar no dia <strong>em</strong> que ajudara seus amigos<br />

a dar<strong>em</strong> sumiço no corpo frágil daquela pobre garota,<br />

que ele não hesitou <strong>em</strong> largar numa caçamba de lixo nos<br />

becos sujos da romântica Veneza. Tudo <strong>em</strong> nome de Deus<br />

e da moralidade, <strong>em</strong>bora, no fundo de sua alma casta,<br />

se r<strong>em</strong>exess<strong>em</strong> sentimentos estranhos de desejo ao ver<br />

aquele corpo nu e senti-lo <strong>em</strong> seus braços, enquanto se<br />

desfazia dele.<br />

55


O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

Os mesmos braços que agora o envolviam lentamente,<br />

enquanto tr<strong>em</strong>ia na cama, b<strong>em</strong> longe do Paradise Circus<br />

pousado na baia, mas muito perto do verdadeiro picadeiro:<br />

sua vida. Ouviu-a sussurrar dentro de seu cérebro e cada<br />

palavra era como um baforar gélido de morte:<br />

Vocês me acharam uma monstruosidade s<strong>em</strong><br />

tamanho. Agora eu tenho os cabelos de seu amigo para<br />

me sentir mais bonita. Mas ainda não podia ver como as<br />

pessoas me encaravam, então vim visitar seu outro amigo<br />

e lhe dizer que o perdoaria, se ele me desse seu poder de<br />

enxergar...- e aqui ele se encolheu com a risada maligna<br />

– talvez eu tenha exagerado, mas...ele foi muito bom <strong>em</strong><br />

doá-los para mim! E agora...agora eu só preciso da voz...<br />

Da sua voz...<br />

E sua mão tênue levou o rosto horrorizado de<br />

Dellaveno para o seu. A imobilidade de sua boca quebrouse<br />

no momento <strong>em</strong> que o padre <strong>em</strong>itiu seu último som,<br />

um grito estridente de horror. Amélie engoliu-o com um<br />

beijo gigantesco e animal.<br />

Horas depois, ao alvorecer, as tendas marchavam<br />

para fora da cidade, silenciosamente. As pessoas<br />

não entendiam, não houvera anúncios, n<strong>em</strong> noites<br />

de espetáculos, só uma estranha sensação de ter<strong>em</strong><br />

mexido com suas noites de um jeito anormal, fosse por<br />

pensamentos ou atos violentos e obscenos.<br />

Qu<strong>em</strong> parecia mesmo exultante com o espetáculo<br />

era nada menos que Barthold Laszlo, que olhava as ruas<br />

através de sua janela oculta na carruag<strong>em</strong> mais luxuosa.<br />

Ainda com o charuto na boca e olhos sobrenaturais,<br />

perguntava a filha se tinha sido um bom show. Ela,<br />

sorridente, disse, com a voz que ainda acostumava-se a<br />

56


usar, que sim.<br />

O PASSADO VOLTA<br />

Verônica S. Freitas<br />

— Claro, papai. Foi um show dos diabos.<br />

E sorriu, com seus novos lábios.<br />

VERÔNICA S. FREITAS nasceu <strong>em</strong> 87 e é natural de<br />

Guaratinguetá/SP, morando atualmente <strong>em</strong> Aparecida/SP.<br />

Funcionária pública, se graduou <strong>em</strong> Gestão Empresarial<br />

e t<strong>em</strong> <strong>contos</strong> <strong>em</strong> diversas antologias, entre elas: Cursed<br />

City - Onde as almas não têm valor, Steampink, 4<br />

livros da coleção VII D<strong>em</strong>ônios, Brinquedos...eles<br />

matam! e Quando o saci encontra os mestres do<br />

horror, lançadas pela Editora Estronho. Publicou também<br />

<strong>em</strong> Crônicas da Fantasia e SOS Titanic, da Editora<br />

Literata.<br />

Contatos por <strong>em</strong>ail: ventosoturno@yahoo.com.br,<br />

Twitter: @Beronique2010<br />

blog: brisanoturna.blogspot.com.<br />

57


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

Só havia vida onde clareava a luz dos enormes<br />

faróis, e ela era opaca <strong>em</strong> seus tons de asfalto<br />

e terra batida. Além das janelas ensebadas, o mundo se<br />

perdia <strong>em</strong> escuridão de um lado e de outro, trevas que<br />

só iam e iam, até se misturar<strong>em</strong> ao negro da noite s<strong>em</strong><br />

estrelas. O motor a diesel resmungava um ronco estável,<br />

de pista livre, s<strong>em</strong> o castigo imposto pela dança de<br />

<strong>em</strong>breagens do tráfego pesado e engarrafado.<br />

Era este o principal motivo do caminhoneiro preferir<br />

fazer sua rota à noite. Na estrada deserta, ao som de suas<br />

velhas fitas com clássicos do sertanejo oitentista, horas<br />

se passavam <strong>em</strong> questão de minutos e os quilômetros<br />

que o separavam de seu destino ficavam rapidamente<br />

para trás. Ao contrário da maioria de seus colegas, ele<br />

não via mau negócio <strong>em</strong> abrir mão da suposta segurança<br />

da luz do dia. À noite não havia motoqueiros apressados<br />

58


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

ziguezagueando <strong>em</strong> seu caminho, ou motoristas incautos<br />

arriscando perigosas manobras na contramão. Ao menos,<br />

não tantos quanto havia de dia.<br />

Isso s<strong>em</strong> contar a t<strong>em</strong>peratura da estrada à noite, no<br />

geral muito mais agradável. Não que reclamasse do t<strong>em</strong>po<br />

que passava ao volante de seu velho companheiro, um<br />

Mercedes-Benz 1313 com mais anos de estrada que sua<br />

filha tinha de vida, mas quando um dia normal de trabalho<br />

se traduzia a oito ou dez horas ininterruptas naquela<br />

boleia abafada, o mínimo de conforto a mais se traduzia<br />

<strong>em</strong> um fator muito importante.<br />

— Atento... atento... - uma voz irrompia do Rádio<br />

PX no alto da cabine. - Olavo está <strong>em</strong> QAP? É o Caetano<br />

chamando. Atento, atento, Olavo está <strong>em</strong> QAP?<br />

— Positivo. Na escuta, esparadrapo. - respondeu<br />

Olavo na língua dos homens da estrada, enquanto<br />

des<strong>em</strong>baraçava o fio espiralado do aparelho.<br />

— Tudo b<strong>em</strong>, meu velho?<br />

— Tudo, o quê o senhor manda?<br />

— Tá muito longe?<br />

— Tô descendo a serra agora. Um frio que você não<br />

vai imaginar.<br />

— E eu não sei? Passei um aperto nessas bandas daí<br />

anteont<strong>em</strong>. Agora eu tenho a boa pra você quebrar esse<br />

gelo. Um queijinho coalho, uma loura suada.. copiou?<br />

— Copiei. Mas não.. - disse Olavo, olhando para a foto<br />

afixada sobre o espelho retrovisor. - Fica pra próxima. Tô<br />

indo pra casa.<br />

59


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

Dizer aquelas palavras fez o caminhoneiro sorrir, os<br />

olhos indo da estrada para o retrato, e para a estrada à<br />

frente outra vez. A imag<strong>em</strong> mostrava uma bela mulata<br />

que abraçava uma menina que também sorria, faceira.<br />

Sua família, para a qual ele estava prestes a voltar, após<br />

tantas s<strong>em</strong>anas.<br />

Visto de longe, o caminhão era uma pequena mancha<br />

luminosa atravessando a escura imensidão da madrugada,<br />

rompendo seu silêncio com o ronco do motor e as velhas<br />

baladas sertanejas que Olavo trazia <strong>em</strong> seu toca-fitas.<br />

Logo, o caminhoneiro alcançou, às margens da rodovia,<br />

o que sabia ser o último posto de abastecimento que<br />

encontraria antes da etapa final daquela viag<strong>em</strong>.<br />

No lugar, onde além do posto funcionava também<br />

uma lanchonete, estavam estacionados outros três<br />

caminhões. Assim que Olavo des<strong>em</strong>barcou pôde observar,<br />

com certo desgosto, o momento <strong>em</strong> que um colega subia à<br />

boléia acompanhado de uma adolescente vestida com uma<br />

camiseta e um microshort jeans. Havia outras como ela<br />

rondando o lugar à espera de caminhoneiros com dinheiro<br />

de sobra e consciência de menos, prontos para alugar<br />

um pouco daquela fachada de inocência. Era impossível<br />

para Olavo não pensar <strong>em</strong> sua própria filha, e um arrepio<br />

gelado afligia suas entranhas quando <strong>em</strong> sua mente surgia<br />

a mera visão dela <strong>em</strong> um lugar daqueles.<br />

Olavo se dirigiu até o balcão:<br />

— O de s<strong>em</strong>pre? - perguntou-lhe um senhor velho e<br />

obeso encarregado da barraca.<br />

Olavo acenou com a cabeça. Seu pedido de costume<br />

consistia de um café, puro, s<strong>em</strong> açúcar, e uma fatia de<br />

pão com manteiga na chapa. O café veio rápido; devia<br />

60


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

estar pronto há horas, esperando <strong>em</strong> alguma garrafa<br />

térmica encardida. O velho agachou-se atrás do balcão,<br />

sacou de lá uma bisnaga ressecada, cortou-a ao meio com<br />

uma velha faca de serra, lambuzou manteiga nas duas<br />

metades, e enfim, levou as fatias até a chapa no outro<br />

lado da barraca.<br />

Distraído por aquela cena rotineira, Olavo d<strong>em</strong>orou<br />

a perceber a aproximação da moça. Em um primeiro<br />

momento, não passava de uma silhueta contra a luz dos<br />

faróis de uma das carretas. Quando chegou mais perto,<br />

Olavo pôde ver uma jov<strong>em</strong> vestida de maneira simples,<br />

s<strong>em</strong> qualquer maquiag<strong>em</strong> no rosto moreno, e cujos olhos<br />

castanhos pareciam procurar os seus. Era bela, e jov<strong>em</strong>,<br />

mas não tão jov<strong>em</strong> quanto as meninas que vira há pouco.<br />

Caminhava a passos lentos sobre o chão de terra batida,<br />

diretamente até ele.<br />

— Boa noite. - disse a moça.<br />

— Boa noite. Olha - adiantou-se Olavo - vai me<br />

desculpar, mas não estou interessado..<br />

— O quê?<br />

— Se quiser, eu te pago um lanche aqui. Você está<br />

com fome? Não precisa... sabe...<br />

— Ah, não.. - a moça exibiu um sorriso s<strong>em</strong> graça. -<br />

Não tenho fome. Na verdade eu estou tentando chegar <strong>em</strong><br />

uma cidade chamada Montes Calmos, o senhor conhece?<br />

— Conheço sim. Nunca estive lá, mas sei que fica na<br />

próxima saída pela estrada.<br />

— Então, será que o senhor poderia me dar uma<br />

carona? Já vim com outro colega seu até aqui, mas ele vai<br />

61


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

pernoitar aqui mesmo, e eu tenho urgência <strong>em</strong> chegar.<br />

Olavo pensou por um instante. Fitou a cintura da<br />

moça com o canto dos olhos, atento à qualquer volume<br />

suspeito, ainda que fosse um mero telefone celular. Já<br />

ouvira mais de uma história a respeito de beldades como<br />

aquela sendo usadas como iscas por quadrilhas de ladrões.<br />

— Olha, moça, gostaria de poder ajudar, mas as<br />

regras da minha firma são rígidas. Se alguém aqui na<br />

parada bate pra eles que eu aceitei uma caronista, pode<br />

ficar ruim pro meu lado....<br />

— Tudo b<strong>em</strong>. - a garota franziu os lábios, visivelmente<br />

frustrada. - Desculpe ter incomodado o senhor.<br />

A garota deu as costas para o caminhoneiro. Seu<br />

pão tostado acabava de ser servido, mas Olavo continuou<br />

olhando a garota que se afastava, enquanto seus<br />

pensamentos seguiam um rumo o qual ele já sabia no que<br />

resultaria.<br />

— Espera. - disse ele.<br />

Olavo havia chegado à conclusão de que se fosse<br />

sua filha ali, ele gostaria muito que fosse alguém de sua<br />

própria índole a oferecer-lhe ajuda, ao invés de algum de<br />

seus colegas que poderiam ver a moça com olhos mais<br />

maliciosos.<br />

— Deixa eu terminar de comer, que eu te levo.<br />

A garota sorriu e tornou a se aproximar. Olavo bebeu<br />

o café e devorou o pão <strong>em</strong> questão de segundos, logo não<br />

havia mais que um cotoco amanteigado, que ele tornou a<br />

oferecer a jov<strong>em</strong>.<br />

62


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

— T<strong>em</strong> certeza que não quer? A viag<strong>em</strong> ainda leva<br />

umas duas horas.<br />

— Não, obrigada. - respondeu ela, encolhida sob os<br />

próprios braços cruzados. - Não sinto fome.<br />

Olavo pagou pelo lanche e despediu-se do dono da<br />

barraca, saindo com a garota atrás de si. Ainda receoso<br />

como estava com sua própria atitude, Olavo não pôde<br />

perceber o momento que o velho esticou-se para fora da<br />

barraca e, com um olhar de estranheza, acompanhou-o<br />

<strong>em</strong> todo o trajeto até o caminhão.<br />

Os dois já estavam na estrada havia meia-hora,<br />

quando Olavo decidiu quebrar o silêncio. Atravessavam<br />

um trecho de estrada livre, margeada <strong>em</strong> ambos os lados<br />

por uma vastidão descampada. A pergunta que ele fez à<br />

garota não poderia ser mais básica:<br />

— Qual o seu nome?<br />

— Marcela. - respondeu ela, olhando distraidamente<br />

pela janela.<br />

— Marcela.. - repetiu Olavo, após o que a boléia<br />

voltou a mergulhar <strong>em</strong> silêncio.<br />

Ele não estava realmente interessado <strong>em</strong> saber da<br />

vida da garota. Cogitou até tornar a pôr o sertanejo no<br />

toca-fitas para tocar, mas pensou se o estilo de música<br />

não a incomodaria. No fim das contas, preferiu continuar<br />

o papo.<br />

— E você é de Montes Calmos mesmo? - perguntou.<br />

— Não, sou da capital. - Marcela sorriu. - Estou indo<br />

ver uma pessoa.<br />

63


— Parente seu?<br />

— Mais ou menos.<br />

O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

Subitamente, as rodas dianteiras da carreta se<br />

chocaram contra pequena depressão da pista, fazendo<br />

a cabine sacolejar bruscamente. Com o susto, a garota<br />

cravou as unhas no painel à frente.<br />

— Me perdoa! - exclamou Olavo, preocupado. - Você<br />

se machucou?<br />

— Não, foi só o susto mesmo.<br />

— Essa estrada está toda esburacada assim. Fica<br />

atenta aí, viu?<br />

— Tá bom, pode deixar. - Marcela colocou a mão<br />

contra o peito, tentando recuperar o fôlego.<br />

— Deve ser sua primeira vez por essas bandas, né.<br />

- sugeriu o caminhoneiro. - Não tá acostumada a esse<br />

pedaço.<br />

— É sim.<br />

— Olha... não faz isso que você fez lá atrás assim<br />

não, viu menina. Ficar dando sopa <strong>em</strong> lugar de hom<strong>em</strong>.<br />

Foi sorte você ter pedido ajuda pra mim. Um outro aí podia<br />

ficar mal-intencionado.<br />

Marcela apenas voltou-se para Olavo, <strong>em</strong> silêncio. Ele<br />

fitou os olhos castanhos da jov<strong>em</strong> pelo espelho retrovisor,<br />

ligeiramente, receoso por não saber ao certo se tinha<br />

mesmo o direito de repreendê-la. Mas então, para seu<br />

alívio, Marcela esboçou um leve sorriso, e perguntou,<br />

apontando para a foto sobre o espelho:<br />

64


— É a sua família?<br />

O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

— Aham. Meu cristal e minha cristalina.<br />

— O quê? - estranhou a caronista, arqueando as<br />

sobrancelhas.<br />

— Me desculpa, isso é gíria de caminhoneiro. -<br />

esclareceu Olavo. - Quer dizer minha esposa e minha<br />

filhota.<br />

— Ela é muito linda. - Marcela tomou a foto <strong>em</strong> suas<br />

mãos, deslizando o indicador pela imag<strong>em</strong> da menina. -<br />

Quantos anos t<strong>em</strong>?<br />

— Minha filha? Sete aninhos. Carolina. É a minha<br />

princesinha.<br />

Um par de faróis anônimos passaram pelo caminhão,<br />

no sentido inverso. Olavo franziu os olhos, evitando a<br />

luminosidade ofuscante. Mais uma das manhas de qu<strong>em</strong> já<br />

tinha experiência de estrada.<br />

— Essa vida de caminhoneiro às vezes acaba comigo.<br />

- lamentou Olavo. - Mas eu tô indo pra casa. Vou chegar lá<br />

de manhãzinha e fico até a hora do almoço. Aí depois eu<br />

volto pra central de abastecimento e começa tudo outra<br />

vez...<br />

— Ela deve sentir muito a sua falta. - disse Marcela.<br />

— Falo com ela todos os dias pelo celular. Ela diz que<br />

quando crescer quer ser caminhoneira que n<strong>em</strong> o pai.<br />

Olavo riu, e Marcela riu também. Então, o s<strong>em</strong>blante<br />

da garota se fechou, subitamente.<br />

— Sinto muita falta do meu pai.<br />

65


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

— Ele... é falecido? - perguntou Olavo, percebendo o<br />

tom de voz dela.<br />

Ela, porém, nada disse. Continuou olhando para<br />

baixo, para a foto da família de Olavo. Ele então percebeu<br />

que Marcela esforçava-se, <strong>em</strong> vão, para conter o choro.<br />

Arrependido de ter feito a pergunta, Olavo pensou <strong>em</strong> dizer<br />

algo para confortá-la, mas... o quê diria? A moça ainda<br />

era uma total estranha. Talvez agora fosse simplesmente<br />

melhor respeitar seu silêncio e...<br />

Olavo sentiu um calafrio. A onda gelada surgiu <strong>em</strong><br />

algum lugar entre seu coração e o estômago e espalhouse<br />

rapidamente por todo corpo, como o estalo que o<br />

corpo sente ao despertar quando ainda se está prestes<br />

a dormir. Ele soube que algo muito ruim estava prestes a<br />

acontecer, um segundo antes da cabine ser tomada pelo<br />

futum nauseabundo de rosas velhas e putrefação, como<br />

uma manhã de velório. Seu coração disparou, mas o único<br />

pensamento era manter as mãos firmes ao volante. Não<br />

podia olhar para o lado, não queria olhar para o lado, pois<br />

no fundo já sabia o que estava acontecendo.<br />

Ele já tinha ouvido as histórias.<br />

Ainda assim, como se não mais fosse o senhor de sua<br />

própria vontade, Olavo voltou-se para o banco do carona,<br />

deparando-se com o horror na forma de um rosto pálido<br />

e inchado, trancado <strong>em</strong> um s<strong>em</strong>blante rancoroso, de<br />

desesperada agonia, g<strong>em</strong>endo <strong>em</strong> um pranto angustiado<br />

ao encará-lo com olhos que não fitavam coisa alguma,<br />

olhos cadavéricos, a escorrer<strong>em</strong> como um par de manchas<br />

negras ao longo das bochechas apodrecidas.<br />

Marcela estava morta, mas continuava chorando.<br />

— Ai meu Deus do céu! - gritou ele, quase perdendo<br />

66


o controle do caminhão.<br />

O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

Então, houve uma freada brusca e <strong>em</strong> um piscar<br />

de olhos, não havia mais nada. N<strong>em</strong> o cheiro de morte,<br />

n<strong>em</strong> Marcela. Olavo estava sozinho na cabine, como era<br />

na maioria das noites. A foto de sua família, porém, não<br />

estava onde costumava estar sobre o espelho retrovisor,<br />

mas sim sobre o banco do carona. Sua respiração estava<br />

tão alta e acelerada que mal conseguia ouvir os próprios<br />

pensamentos confusos. Receoso e com o coração a sair<br />

pela boca, Olavo tomou a foto <strong>em</strong> mãos, percebendo-a<br />

coberta por uma fina camada oleosa como limo, e fria<br />

como se tivesse acabado de ser tirada de uma geladeira.<br />

Largou-a outra vez sobre o banco. Sua vontade era<br />

de abrir a porta da cabine e sair correndo, mas sabia que<br />

se o fizesse poderia não ter corag<strong>em</strong> de subir outra vez. Já<br />

ouvira histórias como aquela tantas vezes, e ao contrário<br />

de outros jamais duvidou que pudess<strong>em</strong> ser verdade. Pelo<br />

contrário, toda vez que l<strong>em</strong>brava, s<strong>em</strong>pre rezava a Deus<br />

para que o mantivesse protegido das forças ocultas que<br />

perambulavam por esse mundo.<br />

Deus não atendera seu pedido.<br />

Os minutos passaram e Olavo continuou ali, parado,<br />

com as mãos no volante. Os arredores da estrada<br />

continuavam mergulhados no breu, exceto onde a luz de<br />

seus faróis clareavam a noite com uma névoa amarelada.<br />

Foi quando o caminhoneiro percebeu que, por coincidência<br />

ou não, parara diante de uma placa sinalizadora, onde uma<br />

seta indicando uma curva para direita era acompanhada<br />

pelos dizeres:<br />

“Montes Calmos - 2 km”.<br />

A constatação fez com que, pouco a pouco, o pânico<br />

67


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

que dominava a mente de Olavo cedesse espaço a um<br />

sentimento mais racional, a curiosidade. Era impossível,<br />

por mais que tentasse racionalizar seu caminho para fora<br />

daquele terror, negar que acabara de ter sido tocado<br />

pelo mundo sobrenatural. Mas, talvez não fosse apenas<br />

um capricho obscuro do destino. Talvez houvesse um<br />

propósito para tudo aquilo.<br />

De algum ponto indistinto do passado, imortalizado<br />

na foto que repousava sobre o banco do carona, sua<br />

filha Carolina continuava a dedicar-lhe um sorriso largo e<br />

revigorante. Como se seguisse um delicado fio reluzente<br />

através de um escuro labirinto, Olavo retornou ao exato<br />

instante quando, na parada, avistou Marcela indo <strong>em</strong>bora<br />

sozinha e sensibilizou-se com a ideia de que ela também<br />

pudesse ser filha de um pai preocupado. Era essa imag<strong>em</strong>,<br />

a da criança perdida na noite, que sua mente fazia <strong>em</strong>ergir<br />

daquela outra, a dos olhos mortos, aquela que Olavo<br />

desejava apagar para s<strong>em</strong>pre de suas l<strong>em</strong>branças.<br />

Qu<strong>em</strong> era Marcela? Ou melhor.. qu<strong>em</strong> havia sido?<br />

Ela era mesmo real?<br />

E se fosse.. por quê ele e não outro qualquer?<br />

A última pergunta fez Olavo l<strong>em</strong>brar-se de suas<br />

próprias palavras para a moça e da sorte que esta tinha<br />

por ser ele e não outro a levá-la até seu destino. Um raio<br />

de sol solitário despontou no leste, no exato instante <strong>em</strong><br />

que o caminhoneiro percebia ter, talvez, encontrado parte<br />

da resposta que procurava para a experiência que acabava<br />

de mudar sua vida. B<strong>em</strong> como percebia só haver um lugar<br />

<strong>em</strong> que poderia elucidar o resto do mistério.<br />

O caminhão cruzou a entrada da cidade quando o sol<br />

terminava de se erguer no horizonte. Olavo estacionou<br />

68


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

<strong>em</strong> um terreno baldio vizinho à placa de boas-vindas<br />

aos visitantes, e prosseguiu a pé. Montes Calmos, um<br />

município ribeirinho com menos de trinta mil habitantes,<br />

vivia um princípio de manhã preguiçoso, como o da maioria<br />

das cidades pequenas. O dia despertava com um límpido<br />

céu azul, e estava tudo tão quieto que era possível ouvir<br />

o grasno de um bando de garças voando à quilômetros<br />

de distância. Embora Olavo jamais tivesse estado ali<br />

antes, sentiu-se aconchegado pelo verde das calçadas<br />

arborizadas e pelo canto dos pássaros que ressoavam<br />

pelas avenidas ainda desertas da cidade.<br />

A noite anterior tomava ares de um pesadelo distante.<br />

Dez minutos se passaram, antes que Olavo cruzasse<br />

com o primeiro morador local, uma senhora idosa, de<br />

lenço na cabeça, a contornar a pracinha central de Montes<br />

Calmos. Pensou <strong>em</strong> abordá-la, mas sabia que era inútil. Em<br />

um lugar como aquele, o comércio local, por mais modesto<br />

que fosse, s<strong>em</strong>pre era o centro dos acontecimentos. Se<br />

quisesse ter qualquer chance <strong>em</strong> descobrir a verdade<br />

sobre Marcela, se é que havia uma, precisaria esperar.<br />

E assim ele esperou, até que as lojas começaram<br />

a abrir as portas. Partindo da pracinha <strong>em</strong> que estava,<br />

Olavo visitou uma padaria, uma farmácia, e uma loja de<br />

materiais de construção. Em cada uma contou a mesma<br />

história: estava vindo da capital, e uma conhecida havia<br />

pedido para que localizasse uma jov<strong>em</strong> chamada Marcela,<br />

que haveria chegado <strong>em</strong> Montes Calmos alguns dias antes.<br />

— Desculpe, senhor, mas não conheço não. -<br />

respondeu um.<br />

— Nunca vi. - afirmou outro.<br />

— Conheço uma Marcela, mas é mais velha. E loira.<br />

69


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

Olavo fornecia uma descrição precisa da garota, mas<br />

s<strong>em</strong> sucesso. Ninguém a conhecia. Foi assim, de loja <strong>em</strong><br />

loja, perdendo as horas da manhã <strong>em</strong> voltas ao redor da<br />

cidade. Já era o meio da tarde quando o caminhoneiro<br />

enfim se deu por vencido, ao ouvir um derradeiro “não”,<br />

desta vez de um rapaz jov<strong>em</strong>, que servia copos de cachaça<br />

do outro lado do balcão de uma barzinho. Chegou a nutrir<br />

certa esperança pela hesitação inicial do moço à descrição<br />

que fizera de Marcela, mas foi <strong>em</strong> vão.<br />

No fim das contas, não havia um propósito maior.<br />

O que sucedera na noite anterior não fora mais que<br />

um acaso, um episódio aleatório dentre tantos que as<br />

histórias contam sobre o que existe na fronteira negra<br />

entre este mundo e aquele outro. A ele só cabia, agora,<br />

arrumar um jeito de continuar vivendo com suas dúvidas.<br />

Frustrado, Olavo retornou para o caminhão e tomou<br />

outra vez o caminho para casa. Assim, quando a noite<br />

tornou a chegar, ele já estava b<strong>em</strong> longe, na segurança e<br />

tranquilidade de seu lar, cochilando no sofá com sua filha<br />

a tiracolo.<br />

Olavo não sabia, n<strong>em</strong> poderia saber, que para o<br />

rapaz, o mesmo com qu<strong>em</strong> por último conversara <strong>em</strong> sua<br />

breve estadia <strong>em</strong> Montes Calmos, aquela não seria uma<br />

madrugada tranquila.<br />

O jov<strong>em</strong> pediu ao dono do bar para sair mais cedo,<br />

alegando uma indisposição física, e a maneira como suava<br />

frio acabou por corroborar sua mentira. Sua cabeça girava,<br />

e no caminho até o pequeno apartamento que alugava ele<br />

olhou por sobre o ombro mais de uma vez, <strong>em</strong> um estado<br />

de absoluta paranóia. Chegou procurando sua mochila, e<br />

jogou dentro dela suas roupas. Até ali parecia estar tudo<br />

b<strong>em</strong>, mas ele não poderia arriscar. Haviam o descoberto.<br />

70


Ele precisava sair daquela cidade.<br />

O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

Decidiu esperar a cobertura da noite para partir, s<strong>em</strong><br />

saber que a noite o esperava também. Estava a postos<br />

para sair, mas quando tentou abrir a porta, l<strong>em</strong>brou-se<br />

que a havia trancado ao entrar. Pior, suas chaves não<br />

estavam no bolso do velho jeans como havia imaginado.<br />

Soltando um palavrão, jogou a mochila no chão e começou<br />

a tirar tudo de dentro, a procura do molho. Foi quando um<br />

ligeiro tilintar metálico, vindo do banheiro, chamou sua<br />

atenção.<br />

Receoso, o rapaz levantou-se e seguiu o repentino<br />

ruído, encontrando por fim suas chaves jogadas no chão<br />

ao lado da pia. Afirmando a si mesmo que provavelmente<br />

teria caído durante sua correria, ele agachou-se no chão<br />

frio para pegá-las. Neste momento, um cheiro horrível<br />

invadiu-lhe as narinas, forte e ocre como carniça.<br />

Provavelmente estava exalando do ralo, pensou ele, s<strong>em</strong><br />

dar muita importância ao fato. Afinal, estava de partida.<br />

Aquele apartamento já não era mais probl<strong>em</strong>a seu.<br />

Ao retornar para a sala, contudo, viu que não estava<br />

sozinho.<br />

Já era tarde na madrugada, então ninguém viu quando<br />

o rapaz saiu correndo pela porta do prédio, <strong>em</strong> pânico,<br />

deixando a mochila no chão do apartamento e a chave<br />

ainda presa à fechadura da porta. Ele corria e olhava para<br />

trás, os olhos arregalados de pavor, a calça encharcada<br />

com a própria urina, e a voz presa na garganta travada,<br />

incapaz de gritar por socorro. Continuou correndo, o mais<br />

rápido que pôde, mas cada vez que olhava para trás, via<br />

que a coisa... ela... continuava <strong>em</strong> seu encalço.<br />

Então, houve um clarão luminoso, e tudo acabou.<br />

71


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

O motorista não teve t<strong>em</strong>po de reagir. O hom<strong>em</strong><br />

simplesmente surgiu no meio da pista, completamente<br />

desorientado. O ônibus ainda seguiu por duzentos metros<br />

antes de frear completamente, deixando pelo asfalto uma<br />

trilha de sangue e vísceras.<br />

Dias depois, Olavo estava novamente <strong>em</strong> uma parada,<br />

fazendo seu lanchinho noturno. Havia um televisor ligado<br />

na barraca, mas o volume estava tão baixo que mal era<br />

possível entender o que dizia o âncora do telejornal da<br />

madrugada. Esperando servir<strong>em</strong> seu café, o caminhoneiro<br />

desviou por um instante o olhar da TV, surpreendendo a si<br />

mesmo pela breve e tola esperança que teve de ver surgir,<br />

vindo de lugar nenhum, o rosto daquela que transformara<br />

sua vida para s<strong>em</strong>pre.<br />

Olavo não havia contado a ninguém sobre Marcela,<br />

n<strong>em</strong> pretendia. Não havia noite, porém, <strong>em</strong> que não<br />

pensasse nela. Não com medo da repugnante aparição,<br />

mas sim com pena da menina que podia ser sua filha, que<br />

na certa havia sido a preciosa cristalina de alguém, e que<br />

talvez ainda estivesse perdida <strong>em</strong> alguma estrada escura,<br />

esperando achar o caminho de casa.<br />

Naquele instante, no televisor para o qual ninguém<br />

agora prestava atenção, o apresentador acabava de<br />

noticiar o inusitado desdobramento de um caso de<br />

homicídio ocorrido na capital do estado. Um hom<strong>em</strong>,<br />

morto por atropelamento na cidade de Montes Calmos<br />

na s<strong>em</strong>ana anterior, havia sido identificado como um<br />

suspeito foragido, acusado pelo brutal assassinato de sua<br />

namorada, anos atrás.<br />

O nome dela era Marcela.<br />

72


O CAMINHO DE VOLTA<br />

André Soares Silva<br />

ANDRÉ SOARES DA SILVA, Carioca, funcionário público,<br />

estudante de Letras da UFRJ, 28 anos, escreve desde<br />

os 15. Começou no mundo da literatura escrevendo<br />

fanfictions inspiradas no seriado Arquivo X, ainda no final<br />

dos anos 90. Hoje <strong>em</strong> dia é um apaixonado pela arte de<br />

escrever, seja na forma de <strong>contos</strong>, roteiros para cin<strong>em</strong>a<br />

ou romances. Atuou junto a OTP Filmes como consultor<br />

na roteirização de curtas-metragens, participou da<br />

antologia “Contos Fantásticos”, do site A <strong>Irmandade</strong>, e<br />

“Solarpunk”, da Editora Draco, a ser lançada <strong>em</strong> breve.<br />

Seu primeiro romance, “Simuum – O Conto do Sol”,<br />

encontra-se no momento <strong>em</strong> fase de análise junto à<br />

editoras. Atualmente, trabalha <strong>em</strong> seu próximo projeto,<br />

um thriller sobrenatural que pretende ser o início de uma<br />

trilogia.<br />

73


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

— Sorva... Sorva<br />

E o vinho não bastava, aquela voz continuava <strong>em</strong><br />

minha mente.<br />

Levantei-me do sofá, <strong>em</strong> que estivera desde que o<br />

sol começara a se pôr, esperando o telefone tocar. Mas<br />

nenhum som se fez além do maldito sussurro...Sorva.<br />

Enfim quando tocou e ouvi a voz de meu amigo do<br />

outro lado da linha tranquilizei-me, pois assim teria um<br />

motivo para sair de casa.<br />

Em passos pesados entrei no chuveiro, esperando<br />

apenas que a água escorresse quente por minhas costas,<br />

me encharcando, tão quente que queimava minha pele...<br />

Queimava... Queimava, como se o inferno tivesse se<br />

diluído sobre mim.<br />

O fogo sorvendo minha carne.<br />

Saí do chuveiro, prostrando-me diante do espelho,<br />

74


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

o peito nu e repleto de cicatrizes, as marcas do t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que passei buscando, e encontrando, ao invés do que<br />

procurava, somente as sombras que me perseguiriam...<br />

Sorva... Sorva... Mais uma vez aquela voz soprando <strong>em</strong><br />

meus ouvidos.<br />

Não perdi t<strong>em</strong>po.<br />

A noite me deixava s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po. Curta e soberana.<br />

Capaz de ruminar o mais lascivo dos seres.<br />

Tinha de me encontrar com Hiago o quanto antes,<br />

a necessidade de vê-lo aumentava, e estar entre o<br />

burburinho da cidade, ajudaria a ter o estranho comando,<br />

já conhecido, longe de meus ouvidos. Peguei minha<br />

jaqueta de couro, vesti as botas e saí de casa.<br />

Caminhando por aquelas ruas quase vazias, eu<br />

começava a achar que apenas a jaqueta não seria o<br />

suficiente para enfrentar o frio da noite.<br />

As árvores confundiam-se pelo vento, exalando um<br />

ar úmido que inundava o fim das chuvas de inverno.<br />

E o início das noites naquela cidade era negro, como<br />

meus passos, que, no entanto, nada mais representavam<br />

do que ecos de gritos abafados.<br />

Abraçando-me para estancar o gelo do vento, que<br />

<strong>em</strong>baraçava meu cabelo molhado, ouvi algo mover-se além<br />

dos galhos. Olhei para o alto. Estranhos olhos negros me<br />

observavam com tamanha curiosidade! Senti minha alma<br />

ser presa nas sombras de seu olhar, e minhas verdades<br />

encurraladas por sua sentinela.<br />

Ignorando a gralha-cinzenta que me seguia, como se<br />

me anunciasse com seu pio insolente, continuei a caminhar.<br />

75


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

Em minha mente a voz ainda sussurrava... Sorva... Sorva.<br />

Até que encontrei o burburinho do bar.<br />

Hiago já me esperava <strong>em</strong> uma mesa. Mas ele não<br />

estava sozinho.<br />

Como haveria de ser, estava acompanhado de duas<br />

moças, sendo que uma delas, engalfinhara-se por debaixo<br />

de sua jaqueta, fingindo se aquecer, afinal estava com<br />

poucas tiras cobrindo-lhe o corpo... Inevitavelmente<br />

l<strong>em</strong>brei-me do velho ditado de que certas moças não<br />

sent<strong>em</strong> frio. Mas não foi nela que meus olhos se detiveram.<br />

E antes de dizer boa noite, ouvi o silêncio.<br />

Aquele ser que parecia mesclar-se à bruma letal<br />

bebeu um gole de vinho e uma única gota escorreu de<br />

seus lábios, tal orvalho <strong>em</strong> sombras.<br />

— Théo! –Hiago se levantou, erguendo o vermute,<br />

parecia surpreso por me ver ali, como se tivesse se<br />

esquecido de que ele mesmo havia me ligado para<br />

encontrá-lo. Sua jaqueta surrada estava manchada de<br />

sangue, um pouco abaixo da costela, mas como era de seu<br />

feitio, ele deveria ter iniciado a noite perto de alguma rua<br />

escura, com alguém que achava que poderia comandá-la<br />

melhor do que ele. Essa s<strong>em</strong>pre fora uma das vantagens<br />

de ser amigo de Hiago, ninguém poderia comandar melhor<br />

o inferno das noites do que ele.<br />

— Parece que cheguei tarde, Hiago, você já encontrou<br />

companhia. – sorri pelo canto dos lábios, mas não obtive a<br />

atenção desejada.<br />

— Sua presença nunca se faz tarde, Théo. Essa é<br />

Ariane – a moça que usava um espartilho vermelho barato,<br />

igual a seus lábios, cumprimentou-me com um sorriso que<br />

76


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

pareceu incomodar meu amigo. – e esta é L<strong>em</strong>ony.<br />

Alguns olhares parec<strong>em</strong> impregnados pelo ópio, o<br />

dela, era o próprio ópio que impregnava meu olhar.<br />

Diante dela fiz-me objeto.<br />

Sentei-me junto aos três e servi o vermute que nos<br />

aqueceria. A conversa fluiu entre eu e Hiago, ignorando<br />

as interrupções da moça que o acompanhava, enquanto a<br />

outra, no entanto, continuava <strong>em</strong> sua mudez dúbia.<br />

Por algum t<strong>em</strong>po tentei atrair sua atenção, mas<br />

<strong>em</strong> sua timidez ou indiferença, respondia apenas com<br />

resmungos. Ela olhava para o fim da rua, como se<br />

esperasse algo. No salão próximo dali acontecia o baile do<br />

Dia dos Pais dado todos os anos pelo prefeito e a primeira<br />

dama.<br />

— Não quis ir à festa deste ano Hiago? – provoquei-o.<br />

— O prefeito e a primeira dama prefer<strong>em</strong> que eu<br />

fique longe, eles t<strong>em</strong> mais dois filhos lá para completar<strong>em</strong><br />

a família. – eu sorri ao l<strong>em</strong>brar que Hiago era o filho<br />

mais velho do prefeito da cidade, sendo um dos maiores<br />

probl<strong>em</strong>as que o pai tinha que resolver nesta.<br />

— E vocês, moças? – disse olhando para L<strong>em</strong>ony.<br />

— Não receb<strong>em</strong>os o convite. Mas espero que me tir<strong>em</strong><br />

para dançar. – dessa vez seus olhos ébrios ressurgiram,<br />

como se até então estivess<strong>em</strong> distantes de sua própria<br />

consciência, voltando somente para me amortalhar. Ela<br />

nada mais disse. Levantou-se e deu-me a mão. – Leve-me<br />

para casa, Théo.<br />

Quando segurei sua mão, gélida pelo vento, a voz <strong>em</strong><br />

77


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

minha mente voltou com intensidade... Sorva... Sorva...<br />

L<strong>em</strong>ony, <strong>em</strong> seu vestido de lã cinza que lhe cobria<br />

os braços finos, conduziu-me para longe do barulho da<br />

irritante música que insistia <strong>em</strong> tocar no bar, até que nos<br />

aproximamos do fim da cidade, <strong>em</strong> frente à minha casa.<br />

Ela sentou-se à beira do portão enferrujado. Retirou<br />

as sapatilhas e acariciou as urzes com as pontas dos<br />

pés, como se tentasse recuperar algo há muito perdido.<br />

Fitei-a por todo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que esteve ali, até que ouvi o<br />

gralhar do pássaro diante das sombras. Levantei-me para<br />

espantar a ave, mas assim que me aproximei, notei que<br />

trazia algo no bico, uma pedra talvez, porém antes que<br />

eu pudesse me aproximar mais de sua escuridão ela alçou<br />

voo. Por uma última vez naquela noite ouvi, <strong>em</strong> bulício, a<br />

voz novamente a me atormentar...<br />

Sorva...<br />

Com a desculpa do frio levei L<strong>em</strong>ony para dentro, seus<br />

olhos negros e curiosos incomodavam-me, pois traziam a<br />

sensação do abismo que me cobria. Por um momento ela<br />

hesitou <strong>em</strong> entrar <strong>em</strong> minha casa, compreendi que eu a<br />

acabara de conhecer, mas ainda assim tinha a sensação<br />

de que era ela qu<strong>em</strong> me chamava para adentrar a névoa<br />

de seus lábios.<br />

Naquela noite, a boca de L<strong>em</strong>ony silenciou a voz<br />

que comandava minha mente. O estranho formigamento<br />

de seu corpo a friccionar minha boca, o ópio a preencher<br />

meus lábios, a neblina a evocar os olhos da noite. E sobre<br />

os sortilégios de sua pele ela orquestrou meus obscuros<br />

desejos.<br />

Adormeci.<br />

78


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

Junto à madrugada um pio estridente me acordou.<br />

Olhei para o lado e vi que as cortinas brancas sibilavam.<br />

Levantei-me rumo à janela aberta, e mais uma vez vi<br />

aqueles olhos negros e curiosos a me fitar<strong>em</strong>, mas antes<br />

que pudesse me aproximar, a gralha voou. Foi apenas<br />

quando me vi só, que notei a ausência de L<strong>em</strong>ony. A<br />

chamei por toda a casa, mas só o eco frio respondeu. Não<br />

me dei ao trabalho de fechar a janela, pois algo <strong>em</strong> meus<br />

tormentos dizia que somente a bruma que adentrava,<br />

poderia me levar de volta ao sono. Porém, antes de me<br />

deitar olhei-me no espelho da penteadeira e notei que<br />

estranhamente uma cicatriz, feito um risco, juntara-se<br />

<strong>em</strong> meu peito com equimoses, s<strong>em</strong> que eu houvesse me<br />

machucado para tê-las.<br />

Adormeci.<br />

Quando levantei com a voz me perturbando, uma<br />

t<strong>em</strong>pestade ruminava a tarde. Tentei ligar para Hiago,<br />

mas meu telefone estava mudo. Mais uma vez, sentei-me<br />

no sofá à espera que o whisky que tinha <strong>em</strong> mãos pudesse<br />

calar aquela doce e morfética voz.<br />

Assim que a chuva cessou e o sol se pôs, arrisqueime<br />

no frio para tentar encontrar Hiago, afinal ele era<br />

minha ponte para L<strong>em</strong>ony, mas quando atravessava o<br />

portão cinza, vi entre as casas e ruínas do fim da rua - a<br />

sombra dela <strong>em</strong> meio à névoa de chuviscos que se fazia.<br />

Por sete noites L<strong>em</strong>ony esteve <strong>em</strong> meus braços, fui<br />

ludibriado pelo granizo de seus lábios, sentindo minha pele<br />

queimar ao inferno de seu toque. Por sete noites eu a tive<br />

nua até os ossos... E por todas as noites ela se desfez no<br />

deserto de meu sono... Por sete noites a voz deixou de me<br />

atormentar... E por sete madrugadas a ave me despertou<br />

com seu gralhar que parecia querer minha danação.<br />

79


Mas, na última noite, eu não dormi.<br />

ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

Enquanto L<strong>em</strong>ony estava comigo, podia sentir a paz<br />

que só se encontra nos vales, como se todas as sombras<br />

dos pecados que me perseguiam foss<strong>em</strong> apagadas – pois<br />

havia o sangue <strong>em</strong> minhas mãos dos anos que a m<strong>em</strong>ória<br />

escassa insistia <strong>em</strong> ofuscar.<br />

O sangue que se espalhava por meu passado, com o<br />

qual tracei o algoz de minha alma, que agora sussurrava<br />

<strong>em</strong> meus ouvidos.<br />

Na última noite <strong>em</strong> que tive L<strong>em</strong>ony e o acalento<br />

de seus negros olhos curiosos junto a mim, permaneci<br />

acordado, pois não queria que ela fosse <strong>em</strong>bora pela<br />

madrugada adentro outra vez. Enquanto ela se vestia,<br />

sentei-me à beira da cama, e defronte ao espelho, a<br />

observava colocar seu habitual vestido cinza de lã, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que tentava entender as equimoses<br />

e cicatrizes que foram se juntando uma a uma <strong>em</strong> meu<br />

peito. Tentava recordar quando fora a última vez que<br />

havia falado com Hiago, desde a t<strong>em</strong>pestade meu telefone<br />

parecia estar mudo, e somente porque sabia que Hiago<br />

era feito de vestígios, que só se deixava à mostra quando<br />

queria, foi que não me preocupei.<br />

Apenas a contínua ausência de L<strong>em</strong>ony <strong>em</strong> meus dias<br />

é que forjava meus tormentos. E enquanto me perdia nas<br />

dúvidas e a fitava cobrir-se junto à névoa que adentrava<br />

pela janela aberta, vi através do espelho, de repente sua<br />

silhueta desaparecer.<br />

Virei-me chamando seu nome, correndo até onde<br />

segundos antes ela estivera, mas tudo que recebi como<br />

resposta foi novamente o gralhar que queimou meus<br />

ouvidos. Afastando a cortina, encarei de perto os olhos<br />

80


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

negros e curiosos da gralha-cinzenta que retornava com<br />

meus d<strong>em</strong>ônios. Como fizera, nas outras noites, espantei<br />

a ave, que desta vez ao invés de alçar voo, deixou cair no<br />

parapeito da janela a esfera que a vi carregar na primeira<br />

noite.<br />

Na s<strong>em</strong>iescuridão do quarto segurei-a colocando<br />

contra o luar.<br />

Era um olho. Negro e afogado.<br />

Com asco joguei o olho que rolou pelo chão do<br />

quarto, no mesmo instante <strong>em</strong> que a gralha voou para<br />

a penteadeira bicando sua própria imag<strong>em</strong> até quebrar o<br />

espelho. Eu gritei para afugentar aquele maldito pássaro,<br />

quando vi que ele carregava no bico um caco do espelho.<br />

Ela voou <strong>em</strong> círculos sobre minha cabeça, e saiu pela<br />

porta. Eu a segui, atravessando o corredor.<br />

Eu segui os caminhos da gralha, abjurando meus<br />

medos.<br />

Sorva... Sorva... Meus ouvidos queriam sangrar<br />

diante da voz que calava toda a razão. Não... Aos poucos<br />

eu gritava com as dores <strong>em</strong> minha cabeça... Sorva...<br />

Sorva... Mas eu ainda caminhava, pois conseguia ouvir o<br />

pio tão estridente quanto os risos do inferno a me guiar.<br />

Sorva... Sorva... Por mais que tapasse meus ouvidos<br />

a voz não sanava.<br />

Até que me vi diante de um portão.<br />

Cinza e enferrujado, como o de minha casa... Os<br />

detalhes, a estranha s<strong>em</strong>elhança das grades...<br />

A gralha, então, pousou sobre um toco coberto de<br />

81


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

urzes, ela observava como se me esperasse adentrar sua<br />

morada. E era como se eu estivesse no fim da cidade,<br />

na rua que me confinava as noites. O g<strong>em</strong>ido metálico<br />

do portão mostrou-me a neblina que, sorrateira, gelava<br />

minha pele, e qual o frio seco e cinza, pareceu afugentar a<br />

voz que me comandava.<br />

Ao meu redor a escuridão dos anjos de pedra<br />

imperava.<br />

Estava <strong>em</strong> algum lugar no t<strong>em</strong>po. Só não sabia por que<br />

de fato estava ali. Aos poucos meus olhos se abriam para<br />

enxergar tudo aquilo que a gralha tentava me mostrar. Ela<br />

voou por entre as árvores, que mesmo entrelaçando seus<br />

galhos secos, permaneciam <strong>em</strong> silêncio. Seguindo suas<br />

asas, com o frio a cobrir-me feito mortalha, e a neblina a<br />

me cegar... Tropeçando, s<strong>em</strong> ver, nas campas e cruzes...<br />

Caminhei segurando-me na lassidão dos medos de meus<br />

pecados que retornavam... Até que eu a vi pousar.<br />

Sobre o granito de suas patas diversos jornais<br />

esvoaçavam e cobriam uma lápide. Ali me sentei detendo<br />

uma das páginas, junto à gralha, quando li a notícia notei<br />

que era de uma s<strong>em</strong>ana atrás. Anunciava a presença do<br />

prefeito e a primeira dama no baile anual da cidade, ao<br />

menos era o que a foto parecia mostrar. Eu não tinha<br />

porque ler aquela notícia, não tinha porque estar ali,<br />

mas algo me instigava à leitura, algo, como um estranho<br />

formigamento por dentro, uma ânsia que me obrigava a<br />

ler.<br />

E assim o fiz.<br />

No título, o anúncio de que o baile do Dia dos Pais<br />

havia sido cancelado, pois a data havia caído justamente<br />

no aniversário de morte de sete anos do filho mais velho<br />

82


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

do casal, que havia morrido, junto com alguns amigos,<br />

num acidente onde o carro caíra da ponte, afogando-se<br />

no rio, naquela mesma noite. Olhei as datas novamente.<br />

Não... Não... Não! Hiago estava ausente, mas não morto!...<br />

Eu teria sido informado de sua morte... Não, meu amigo<br />

não poderia ter morrido!<br />

Sorva... Sorva... Soprou <strong>em</strong> meus ouvidos. Virei-me<br />

de repente, não havia nada além da escuridão das árvores<br />

a sibilar. Num lapso olhei para o reflexo no caco de espelho<br />

que a gralha deixara ao meu lado, e lá estava ela.<br />

Os olhos negros e afogados.<br />

— Finalmente você me ouviu, Théo!<br />

— L<strong>em</strong>ony! O que está havendo?<br />

— Sorva... Sorva Théo, o que lhe resta.<br />

No negrume, vi surgir as silhuetas <strong>em</strong> sombras, as<br />

almas que eu havia roubado. Em meu peito pude sentir as<br />

cicatrizes se retorcendo <strong>em</strong> feridas. Eu sabia. Meu corpo<br />

queimava.<br />

Meu algoz surgira.<br />

L<strong>em</strong>ony, <strong>em</strong> seu vestido cinza, se aproximou de mim,<br />

mesmo atônito deixei que seus olhos negros e curiosos<br />

me fitass<strong>em</strong> s<strong>em</strong> nada fazer, era como se meus músculos<br />

tivess<strong>em</strong> se congelado, pois eu sabia que meu passado me<br />

aguardava. Então ela me beijou. E eu me l<strong>em</strong>brei. L<strong>em</strong>breime<br />

do primeiro beijo, dado no meio do baile do Dia dos<br />

Pais... De L<strong>em</strong>ony e Ariane chorando, enquanto eu dirigia<br />

furioso, atravessando a ponte. L<strong>em</strong>brei-me de minha briga<br />

com Hiago, da lâmina <strong>em</strong> minhas mãos atravessando suas<br />

costelas...<br />

83


ALMAS MORTAS<br />

Sofia Geboorte<br />

Porque Hiago duvidara de que eu era capaz de comandar o<br />

inferno das ruas melhor do que o próprio diabo!<br />

— Sorva Théo, o que lhe resta. – e no instante seguinte<br />

ela desapareceu diante de meus olhos, só o que ouvi foram o<br />

bater de asas, procurei desesperado, já à espera da maldita<br />

gralha-cinzenta, mas não avistei pássaro algum.<br />

Achei que só o vazio do c<strong>em</strong>itério me ancorasse, mas<br />

diante de mim, por entre os túmulos as almas que eu arrancara,<br />

se aproximavam como sombras. Arrastei-me para o fundo do<br />

túmulo, tr<strong>em</strong>endo, tentando inutilmente me proteger daquelas<br />

sombras, até que senti a fria lápide fechando minhas costas.<br />

As sombras se perderam, deixando-me entregue à<br />

escuridão.<br />

Os pelos de minha nuca eriçaram quando repentinamente<br />

o silêncio tumular foi rompido pelo pio estridente da gralha<br />

pousada no topo da lápide. Afastei-me num salto, encarando o<br />

pássaro. Foi somente nesse instante que li o nome entalhado no<br />

granizo: Théo Campbell.<br />

Dona do blog Relicário de Sangue onde deposita seus<br />

escritos, SOFIA GEBOORTE nasceu no interior de São<br />

Paulo, entre um rio e uma floresta, <strong>em</strong> 1991. Prestes a<br />

se formar <strong>em</strong> Letras (português/francês), dedica-se à<br />

pesquisas que versam sobre o fantástico na literatura<br />

brasileira e francesa, enquanto escreve <strong>contos</strong> de litfan.<br />

84


ENTRE AMIGAS<br />

Eni Allgayer<br />

ENTRE AMIGAS<br />

Eni Allgayer<br />

A aranha andava <strong>em</strong> círculos pela parede. As patas,<br />

recobertas por uma penug<strong>em</strong> negra, lev<strong>em</strong>ente azulada,<br />

movimentavam-se com leveza e sincronia.<br />

Deitada na cama, com uma garrafa de cerveja entre<br />

as mãos, Circe observava o ir e vir da caranguejeira. As<br />

ondas sonoras do bolero de Ravel estr<strong>em</strong>eciam o quarto,<br />

mas ela continuava estática com os olhos presos no<br />

animal.<br />

Imagens antigas lhe vieram à mente. Via-se correndo<br />

pelo jardim da avó, ainda menina, com um vidro de<br />

maionese nas mãos. Dentro dele restava apenas uma<br />

aranha, com os olhos aumentados pela curvatura do vidro.<br />

O riso de satisfação ao perseguir os primos para mostrar<br />

o troféu. Os gritos da mãe, as tias abraçando os filhos e a<br />

avó deitada entre as flores, com uma mão sobre o peito, e a<br />

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ENTRE AMIGAS<br />

Eni Allgayer<br />

outra, coberta de pequenas aranhas pretas com o abdome<br />

rubro, como cerejas maduras. Depois, a ambulância<br />

chegando com a sirene aberta, luzes vermelhas enfeitando<br />

a tarde. Gente grande chorando feito gente pequena. A avó<br />

de vestido novo, cabelos penteados, repousava no caixão,<br />

calada como uma boneca. Já não havia reclamações,<br />

abraços apertados ou cheiro de alfaz<strong>em</strong>a. No c<strong>em</strong>itério,<br />

a chuva miúda misturando-se às lágrimas. Jogara pétalas<br />

de rosas sobre o caixão colocado numa cova, com a vista<br />

presa no olhar acusador da tia. Aquela que lhe tirara o<br />

vidro das mãos, estilhaçando-o contra o piso. A tia que lhe<br />

batera no rosto, afrontando sua mãe, que a retinha entre<br />

os braços num ninar feito de soluços.<br />

A música parou de chofre machucando-lhe os ouvidos.<br />

O silêncio tinha uma densidade estranha, um peso de<br />

ameaça ou prenúncio de coisa ruim. Circe levantou-se da<br />

cama, tomou mais alguns goles diretamente do gargalo e<br />

se voltou para Pedro. Ah, Pedro, murmurou, esboçando<br />

um leve sorriso.<br />

Ela o amava muito, desde o t<strong>em</strong>po de menina. S<strong>em</strong>pre<br />

fizera as suas vontades. Detestava algumas coisas, mas<br />

submetia-se para agradá-lo. Outras eram feitas com<br />

prazer pecaminoso. Encontros furtivos no galpão de<br />

ferramentas. Ele, o noivo da tia mais nova, barba cerrada,<br />

ela ainda menina, seios mal surgidos sob a camiseta da<br />

escola. Enfiou os dedos <strong>em</strong> seus cabelos desfazendo o<br />

penteado, antes de sentar <strong>em</strong> seu colo, como fazia desde<br />

os nove anos. Ele não esboçou reação. Rolou para a cama<br />

ao seu lado, e assim ficou por mais algum t<strong>em</strong>po, mirando<br />

a aranha na brancura do forro. Suspirou, voltando a<br />

sentar. Emborcou o resto da bebida <strong>em</strong> gole único,<br />

massageando os seios. Os bicos eretos, sensíveis ao tato.<br />

Agora ele é meu, gritou uma vez, e outra, e mais outra.<br />

O sorriso transformado <strong>em</strong> gargalhada e as mãos abertas<br />

86


ENTRE AMIGAS<br />

Eni Allgayer<br />

para recolher as amiguinhas que galgavam as pontas dos<br />

dedos, aninhando-se nas palmas umedecidas. Como que<br />

atraídos por uma essência exótica, elas saiam dos bolsos,<br />

gola e nariz de Pedro como formigas <strong>em</strong> carreirinha. Ela<br />

as contou e recontou, para certificar-se de ter recolhido<br />

a todas. Conhecia cada uma delas, apesar da quantidade.<br />

Por fim, depositou-as numa espécie de aquário e subiu<br />

na mesa para alcançar a caranguejeira, oculta no desvão<br />

entre a sanca e o forro de gesso. Cantarolava quando a<br />

jogou na caixa de vidro para depois descer a tampa.<br />

As pequenas viúvas-negras cercaram a recémchegada<br />

que resistiu por algum t<strong>em</strong>po, mas serenou<br />

como Pedro, aos poucos. Enquanto as aranhas faziam<br />

festa, Circe abriu um alçapão no assoalho da cozinha, sob<br />

o tapete, para guardar a caixa de vidro no ventilado do<br />

porão. Retornou ao quarto, beijou os lábios arroxeados<br />

do amante e, tomou o telefone, discando números<br />

m<strong>em</strong>orizados. A voz trazida da infância fez o anúncio:<br />

— Alô? Emergência? Preciso de uma ambulância. O<br />

titio foi picado por algum inseto. É... Ele está desacordado.<br />

Estou calma, sim senhora. Está b<strong>em</strong>, anote o endereço...<br />

Ah, não esqueça da sirene, gosto de ouvi-la cantar, cantar,<br />

cantar.<br />

ENI ALLGAYER nasceu <strong>em</strong> Tupanciretã, RS, <strong>em</strong><br />

18/01/1946, casada, mãe de 3 filhos e avó de um neto,<br />

iniciou na literatura de ficção <strong>em</strong> 2003, sendo autora de<br />

7 livros individuais, com participação <strong>em</strong> 28 coletâneas<br />

<strong>em</strong> várias cidades do Brasil, quase todas decorrentes de<br />

concursos literários.<br />

87


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

Depois de algumas centenas de metros do tráfego<br />

lento das dezoito horas, o carro da diocese<br />

parou <strong>em</strong> frente à mansão <strong>em</strong> estilo colonial, uma das<br />

últimas naquele bairro de comércio movimentado e ruas<br />

saturadas com prédios de mais de dez andares. A porta<br />

do carona se abriu, e logo o padre Daniel se aproximou<br />

do vestíbulo da casa. Olhou para o segundo andar, e de<br />

um quarto guardado por espessas cortinas <strong>em</strong>anava um<br />

piscar incessante de luz. Também ouviu gritos f<strong>em</strong>ininos,<br />

mas com voz grave, além do barulho de vidro quebrando<br />

contra a parede.<br />

Nada que assustasse o sacerdote, integrante de<br />

uma das ordens menores da Igreja Católica havia cerca<br />

de vinte anos. Já vira de tudo um pouco nesse ofício de<br />

exorcista, exceto aquele a qu<strong>em</strong> supostamente combatia.<br />

Sim, ao longo do t<strong>em</strong>po, padre Daniel se tornou cético<br />

quanto à existência do diabo. No mais das vezes, as<br />

pessoas que a ele recorriam estavam possuídas por<br />

probl<strong>em</strong>as existenciais, psicológicos, psiquiátricos ou até<br />

88


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

mesmo físicos, como quando a mãe de uma menininha de<br />

cinco anos confundiu uma rara afecção cutânea no rosto<br />

da filha com uma possessão d<strong>em</strong>oníaca. Mas o diabo, este<br />

ele nunca confrontara.<br />

Não seria diferente agora com essa família, a qu<strong>em</strong><br />

chegara por intermédio de um certo Sr. Moreira, advogado<br />

criminalista e católico praticante. Os pais sofriam com os<br />

probl<strong>em</strong>as de saúde da filha de treze anos havia muito<br />

t<strong>em</strong>po, mas na noite anterior o quadro se agravara. Ela<br />

passou a se contorcer na cama, mudou o tom de voz e, a<br />

todo o momento que tentavam se aproximar dela, reagia<br />

de forma agressiva.<br />

Antes mesmo que pudesse soar a campainha, o<br />

outro filho do casal, um adolescente de dezessete anos,<br />

atordoado, com as mãos trêmulas e o olhar desvairado,<br />

veio ter com o padre à entrada.<br />

“Ainda b<strong>em</strong> que o senhor chegou! Minha irmã tá<br />

possuída! Nos ajude, por favor!”<br />

****<br />

“Foi um alívio quando o padre chegou. Eu estava no<br />

segundo andar, encostado à janela do quarto da minha<br />

irmã, quando levantei um pedaço da cortina e vi o carro<br />

se aproximando. Tomei corag<strong>em</strong>, atravessei o fogo dos<br />

infernos e desci correndo as escadas.<br />

Ele devia ter quase uns cinquenta anos, um jeito de<br />

cara conservador, sério. Se fosse <strong>em</strong> outra situação, me<br />

daria medo, mas eu já estava morrendo de pavor. Entre o<br />

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O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

padre e o diabo, a escolha fica fácil.<br />

Ninguém imagina que isso vai acontecer na própria<br />

família. Na verdade, há muito t<strong>em</strong>po que eu não<br />

considerava que tinha uma família. As coisas iam mal lá<br />

<strong>em</strong> casa. Meus pais estavam quase se separando. Minha<br />

irmã vivia tendo crises.<br />

Desde pequeno que eu não gostava do meu pai. Ele<br />

bebia e batia muito <strong>em</strong> mim. Na escola, s<strong>em</strong>pre fui um<br />

dos piores alunos, e ele me cobrava muito, queria que eu<br />

me destacasse. Não acho que era pro meu b<strong>em</strong>, não, mas<br />

só pra satisfazer o ego dele, pra aparecer pros amigos do<br />

hospital. A cada reprovação – e foram umas três – ele me<br />

espancava.<br />

Já a minha mãe era meu porto seguro. Ela me<br />

abraçava toda vez que me via chorando pelos cantos.<br />

Tinha a maior paciência pra me ensinar os deveres da<br />

escola. Eu amava minha mãe.<br />

Tudo mudou quando eu tinha uns doze anos. Sei que<br />

ela também sofria com o gênio do meu pai, só que não é<br />

fácil descobrir que a sua mãe t<strong>em</strong> outro cara, que está<br />

enganando todo o mundo. Um dia, cheguei mais cedo da<br />

escola – tinha matado aula – e ouvi uma conversa dela no<br />

telefone com um amante. Mamãe estilhaçou a confiança<br />

que eu tinha nela.<br />

Dali <strong>em</strong> diante, passei a sair direto da escola pra<br />

rua, com alguns colegas mais velhos. Foi um período de<br />

liberdade. Descobri a aventura, o sexo, as drogas... Ah,<br />

as drogas nunca me decepcionaram! Primeiro, a maconha;<br />

depois, a cocaína. E cada vez mais e mais euforia.<br />

Só que depois vinha um período de depressão. E eu<br />

precisava de mais, mas depois de um t<strong>em</strong>po não tinha de<br />

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O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

onde tirar dinheiro. Furtei alguns reais de um comércio,<br />

fui parar na delegacia. Meu pai – muito legal o meu pai –<br />

me liberou com a ajuda de um amigo advogado. E depois<br />

me recebeu <strong>em</strong> casa com o carinho habitual.<br />

Foi só eu me livrar da delegacia e da estupidez do<br />

meu pai que voltei pras drogas. Alguns anos depois, um<br />

conhecido me ofereceu o crack. Como a gente diz, é um<br />

bagulho muito doido! Na primeira vez, já me viciei. E não<br />

parei mais. Quando eu estava na piração, até cachorro<br />

virava jacaré pra mim. Isso mexe com a cabeça.<br />

Passei a não voltar pra casa. Dormia debaixo de<br />

viadutos, <strong>em</strong> cracolândias, nas quebradas da vida. No<br />

início, minha mãe até ia atrás de mim. Depois, teve que se<br />

voltar pros próprios probl<strong>em</strong>as de saúde. Meu pai desistiu<br />

logo, percebeu que minhas crises atrapalhariam d<strong>em</strong>ais o<br />

trabalho dele.<br />

Pequenos roubos e furtos alimentavam o meu vício.<br />

No café da manhã, no almoço e no jantar, o cardápio era<br />

um só: droga. Naquele dia, fumei cinco pedras de crack a<br />

manhã toda. Cheguei <strong>em</strong> casa por volta de umas quatro<br />

da tarde. Estava muito louco. Fui até a cozinha e peguei<br />

uma faca grande b<strong>em</strong> afiada. Queria matar meu pai. Claro<br />

que era o efeito da droga. Eu não ia ter corag<strong>em</strong> pra fazer<br />

isso de cara limpa.<br />

Subi as escadas e fui até o quarto dele. Ninguém. O<br />

quarto da minha mãe? Vazio. De repente, ouvi uma voz<br />

grossa vindo do quarto da minha irmã. Pensei que fosse<br />

um ladrão e corri pra lá de faca <strong>em</strong> punho. Empurrei a<br />

porta, e o cenário era literalmente uma visão do inferno.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se contorcia sob os lençóis,<br />

como se alguém tentasse dominá-la, minha irmã rosnava<br />

91


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

palavrões para os meus pais, que estavam ao lado da<br />

cama. Eles n<strong>em</strong> notaram minha aproximação. Cheguei até<br />

a janela pra tentar abrir as cortinas, mas, nesse instante,<br />

minha irmã se voltou pra mim.<br />

‘Vou te matar’ – ela gritou, com os olhos fumegantes.<br />

E os lençóis começaram a levitar, e depois o corpo dela<br />

também, como se viesse ao meu encontro. Num impulso,<br />

atirei a faca contra ela, s<strong>em</strong> direção – deve ter caído<br />

atrás do guarda-roupa. Meus pais me abraçaram, e senti a<br />

minha visão <strong>em</strong>baçar e começar a girar, e então desmaiei.<br />

Devo ter apagado por umas duas horas. Só acordei com o<br />

barulho de carro estacionando à entrada da nossa casa.”<br />

****<br />

“Prostração. Diante daquela cena, não saberia definir<br />

meu sentimento de outra maneira. De um lado, minha filha<br />

num estado indescritível, algo sobrenatural. De outro,<br />

meu primogênito, desmaiado, beijando a lona por causa<br />

da maldição da juventude atual. Se eu pudesse, sumiria<br />

naquele instante mesmo, como uma névoa que vai se<br />

diluindo através da manhã.<br />

Não sei quando comecei a sumir da minha própria<br />

existência. Talvez quando me casei, aos 25 anos, ainda com<br />

muita fome de vida. O amor nos faz abrir mão de muitas<br />

coisas. Talvez quando, depois de formada <strong>em</strong> História e já<br />

com um <strong>em</strong>prego de professora, aceitei os argumentos do<br />

meu marido, um b<strong>em</strong>-sucedido ortopedista, de que não<br />

precisava trabalhar, pois ele manteria as contas de casa<br />

<strong>em</strong> dia. Ou ainda quando engravidei com menos de um<br />

92


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

ano de casamento e passei a me dedicar integralmente ao<br />

meu filho e ao lar. Acredito mesmo que possa ter sido ao<br />

fazer vista grossa para os indícios de traição <strong>em</strong> vermelho,<br />

lilás e laranja que meu querido trazia na gola das camisas<br />

e até nas peças íntimas, isso s<strong>em</strong>pre depois de estafantes<br />

plantões no hospital. Veio a segunda gravidez, e a minha<br />

sentença de prisão estava definitivamente decretada.<br />

Difícil indicar o ponto a partir do qual o amor próprio<br />

não voltaria mais. O primeiro porre do marido que agora se<br />

revelava um alcoólatra? O primeiro tapa depois de tentar<br />

contestá-lo? A primeira vez <strong>em</strong> que surrou nosso filho<br />

pequeno? Não sei. Eu só queria ser amada. Não me refiro<br />

à afeição que meus filhos me dedicavam. S<strong>em</strong>pre fomos<br />

muito ligados. Eu necessitava de amor como mulher.<br />

Encontrei-o na troca de olhares com um vizinho de<br />

rua, um rapaz solteiro que morava com a mãe doente<br />

<strong>em</strong> uma casa no fim da rua. Ele era alguns anos mais<br />

novo que eu, alto, magro, ar de intelectual. S<strong>em</strong>pre que<br />

passava por mim, fazia questão de cumprimentar. Não sei<br />

b<strong>em</strong> ao certo que desculpa usou para puxar conversa, mas<br />

<strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po já estávamos enrolados sob a coberta de<br />

algum quarto de motel. Esses encontros furtivos duraram<br />

alguns poucos anos, depois dos quais meu namorado<br />

se cansou da clandestinidade da nossa relação. Queria<br />

encontrar alguém com qu<strong>em</strong> pudesse fazer planos.<br />

Nos afastamos por um t<strong>em</strong>po, e a separação coincidiu<br />

com o agravamento do quadro do meu filho, adolescente<br />

rebelde, que dava cada vez mais preocupação a mim e a<br />

meu marido. Quando nos d<strong>em</strong>os conta, as drogas já tinham<br />

arrombado a porta de nosso lar e estavam sentadas ali no<br />

sofá, diante de nós, assistindo ao noticiário da noite.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, nossa caçula tinha um estranho<br />

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O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

probl<strong>em</strong>a de saúde: tiques nervosos, sonambulismo,<br />

gagueira, epilepsia. A situação foi se agravando a tal<br />

ponto que a levamos a psicólogos, psiquiatras, terapeutas<br />

alternativos. Nada adiantou.<br />

S<strong>em</strong> meu namorado e rodeada de probl<strong>em</strong>as, me<br />

rendi à depressão. Em pouco t<strong>em</strong>po, eu mesma passei a<br />

consumir caixas de psicotrópicos na tentativa de levantar<br />

o moral. Os tarjas preta não provocavam <strong>em</strong> mim efeitos<br />

colaterais, exceto um: vez ou outra, eu tinha alucinações.<br />

Em certa ocasião, cheguei a pensar ter visto meu pai,<br />

falecido anos antes, ao entrar rapidamente no quarto e<br />

dar de cara com ternos do meu marido pendurados no<br />

guarda-roupa aberto.<br />

Depois de algum t<strong>em</strong>po, meu amor voltou a me<br />

procurar, <strong>em</strong>bora já tivesse outra mulher. Percebi que<br />

agora ele queria só matar saudade do sexo, variar um<br />

pouco. Aceitei, pois não podia impor condições. Mesmo<br />

porque, nossas transas serviam como válvula de escape<br />

de uma panela de pressão prestes a explodir.<br />

Meu derradeiro inferno familiar começou<br />

aproximadamente às onze da noite. Após voltar de mais<br />

um encontro às escondidas, senti meu sangue congelar<br />

ao notar o carro de meu marido na garag<strong>em</strong>. Por que ele<br />

já havia retornado do plantão? O normal seria ele chegar<br />

apenas pela manhã.<br />

Atravessei o amplo salão no térreo s<strong>em</strong> ouvir barulho.<br />

Subi as escadas com cuidado, entrei na minha suíte pé<br />

ante pé. Estava tr<strong>em</strong>endo, tamanha a tensão. Abri o<br />

armarinho do banheiro e logo ingeri duas drágeas de uma<br />

vez. Precisava me acalmar.<br />

Subitamente, explodiu vidro contra a parede do<br />

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O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

quarto da minha filha, na outra extr<strong>em</strong>idade do corredor.<br />

Corri para lá e abri a porta num impulso. Alguém havia<br />

arr<strong>em</strong>essado uma garrafa de uísque <strong>em</strong> direção a um<br />

quadro com a foto dela quando menina. Acendi a luz e<br />

surpreendi meu marido assustado, lívido, à cabeceira da<br />

cama, enquanto minha filha se contorcia e falava palavrões<br />

com uma voz rouca.<br />

Ele estava bêbado. Não tinha n<strong>em</strong> como contestar<br />

minha chegada tardia. Puxou-me pelo braço para fora do<br />

quarto e trancou a porta. ‘É o d<strong>em</strong>ônio, mulher! Nossa<br />

filha está possuída pelo diabo’. Reparei que havia uma<br />

mancha de sangue na manga esquerda da camisa dele.<br />

Tentei abrir a porta, mas ele me impediu. Colei os ouvidos<br />

à madeira e passei a auscultar grunhidos, convulsões,<br />

choques contra o chão e as paredes. Fiquei desesperada,<br />

mas ele não me deixou socorrê-la. Fui até o banheiro e<br />

tomei mais dois tarjas preta.<br />

Ao voltar, meu marido estava à porta do quarto,<br />

como um Cérbero, telefone <strong>em</strong> punho. ‘Moreira, desculpe<br />

ligar a esta hora. Preciso da sua ajuda.’ O auxílio que<br />

ele procurava era espiritual. Nossa pequena estava<br />

end<strong>em</strong>oninhada.<br />

Ficamos <strong>em</strong> vigília a noite inteira. Os barulhos e os<br />

gritos não cessaram. Mal trocamos algumas palavras eu e<br />

meu marido, que <strong>em</strong>endava doses de uísque uma atrás da<br />

outra. Já os meus companheiros fiéis foram os r<strong>em</strong>édios.<br />

Entupi-me deles durante a manhã e a tarde. Pouco antes<br />

das dezesseis, o silêncio imperou lá dentro. Tomamos<br />

corag<strong>em</strong> e entramos.<br />

Recomeçou, então, a algaravia de minha filha.<br />

Palavras desconexas, olhos esbugalhados, movimentos<br />

tensos. Mas agora era diferente. Havia fogo na parte de<br />

95


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

trás da cama. E a cada impropério que proferia, as bonecas<br />

<strong>em</strong> sua estante se movimentavam, como se submetidas<br />

a um pequeno sismo. Não restava dúvida: era caso de<br />

possessão d<strong>em</strong>oníaca.<br />

Encolh<strong>em</strong>o-nos próximo à cama, os dois apavorados,<br />

quando repentinamente meu filho invadiu o cômodo com<br />

uma faca na mão. T<strong>em</strong>i pelo pior. Ele estava transtornado,<br />

e eu não queria que machucasse minha flor. Ela precisava<br />

de ajuda, e não de agressão. Atônitos, nós pais assistimos<br />

ao confronto dos nossos rebentos. O d<strong>em</strong>ônio investiu<br />

contra meu filho, que lançou a faca – graças a Deus – s<strong>em</strong><br />

qualquer precisão.<br />

Rapidamente, o envolv<strong>em</strong>os, e ele desmaiou. Com<br />

nosso filho desacordado, não tiv<strong>em</strong>os como sair dali,<br />

mesmo amedrontados pela cena dantesca diante de nós.<br />

Até a chegada do padre, d<strong>em</strong>os as mãos, rezamos e<br />

torc<strong>em</strong>os para que nada de pior sucedesse.<br />

Quando ouvimos um carro parando perto da entrada<br />

de nossa casa, o d<strong>em</strong>ônio começou a gritar mais alto. O<br />

quarto tr<strong>em</strong>eu. Minha filha passou a atirar contra o teto os<br />

jarros de flores que mantinha <strong>em</strong> sua estante; eu, talvez<br />

numa reação histérica, passei a apertar o interruptor de<br />

luz sofregamente, acendendo e apagando a lâmpada <strong>em</strong><br />

ritmo acelerado. Meu marido quedou estático. Nosso filho,<br />

já reanimado, pulou do lado da janela até a porta e foi<br />

atender o padre.”<br />

****<br />

96


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

“Não gosto de tratar desse assunto. É uma história<br />

de medo, nojo e ignomínia.<br />

Medo de ser descoberto. Não que eu deva satisfações<br />

a qualquer sentimento moral. Às favas o escrúpulo. O ser<br />

humano é ou não é assim? Mas a queda é maior quando<br />

há muito a se perder. E eu tenho uma posição social<br />

destacada, uma reputação pela qual devo zelar.<br />

Conheci minha mulher quando ela ainda estava na<br />

faculdade. Na ocasião, eu lá cursava o mestrado e já tinha<br />

carreira iniciada e b<strong>em</strong> encaminhada na área da ortopedia.<br />

Nosso namoro e posterior casamento ocorreram quase<br />

por inércia. Eu precisava de uma mulher para mostrar à<br />

sociedade. Ela tinha boa formação, era de boa família.<br />

Mulher perfeita para casar, ficar <strong>em</strong> casa e cuidar dos<br />

filhos.<br />

Não que desgostasse da fornicação caseira, mas<br />

desde cedo fui dado a aventuras sexuais. Nunca tive<br />

pudores quanto a isso e s<strong>em</strong> cerimônia admito que traí<br />

minha companheira desde antes do enlace matrimonial.<br />

Além do sexo, ao qual voltarei a fazer referência<br />

mais adiante, uma outra paixão mundana s<strong>em</strong>pre me<br />

dominou: o álcool. Na juventude, as bebidas me serviam.<br />

Em momentos festivos, estavam lá para tornar o ambiente<br />

mais leve, agradável. Com o t<strong>em</strong>po, elas passaram a me<br />

absorver. E como no escorrer da areia de uma ampulheta<br />

invisível, a relação se inverteu: era como se eu me houvera<br />

tornado um fiel de algum culto profano a um deus etílico<br />

e tivesse por obrigação depositar <strong>em</strong> oferenda minha<br />

própria saúde mental.<br />

Somado a um casamento de fachada, o vício é capaz<br />

97


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

de produzir o que socialmente se denomina de crápula. Um<br />

marido infiel e agressivo, um pai severo e cruel, apenas<br />

faces aparentes e odiáveis de um hom<strong>em</strong> infeliz.<br />

Ainda me restava o prazer do sexo, t<strong>em</strong>a ao qual<br />

retorno para explicitar o que poderia ter sido minha<br />

ruína, não fosse uma insólita interferência satânica. Sou<br />

um ninfomaníaco, não resta dúvida. Orgias <strong>em</strong> casas de<br />

suingue, transas com prostitutas, trepadas nos plantões<br />

do hospital, os ménage à trois <strong>em</strong> que experimentei<br />

até brincadeiras homossexuais... Uma extensa lista de<br />

aventuras lascivas, que, entretanto, já não me apresentava<br />

mais novidade. Eu queria uma experiência sexual inédita.<br />

Ao completar sete anos, minha filha recebeu um<br />

presente diferente. Papai colocou-a no colo, pôs a mão por<br />

baixo de seu vestidinho de rendas, deslocou sua calcinha e<br />

acariciou suas partes íntimas. Foi um prazer indescritível.<br />

Para mim, claro.<br />

Para ela, o nojo. A partir daí, passou a ter probl<strong>em</strong>as<br />

de aprendizado, distúrbios da fala, insônia. Não, eu não<br />

parei. Eu queria mais. Contentei-me com esses aperitivos<br />

durante anos. À medida que avançavam as carícias, seu<br />

estado de saúde se deteriorava.<br />

Naquela noite, cheguei mais cedo <strong>em</strong> casa, cabulando<br />

um plantão imaginário, o qual só existiu como desculpa<br />

para a minha tola e infiel esposa – como se eu não<br />

soubesse de seu inútil caso amoroso havia muito t<strong>em</strong>po.<br />

O meu filho já se mudara mesmo para as ruas, de modo<br />

que na mansão estávamos apenas eu e meu brinquedinho<br />

favorito.<br />

Bebi algumas doses de uísque e, já alto, avancei<br />

ao meu parque de diversões. O quarto estava escuro,<br />

98


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

ela já estava dormindo. Caí por sobre o corpo dela, s<strong>em</strong><br />

pruridos, desbragadamente. Foi quando aconteceu uma<br />

reação inesperada.<br />

Ela me afastou com raiva – uma força excessiva<br />

para uma menina de treze anos. Em seguida, cravou os<br />

dentes no meu braço esquerdo, o que provocou uma dor<br />

aguda. Caí para trás gritando. Ficamos ali alguns minutos<br />

<strong>em</strong> silêncio sob a luz da lua que entrava pela janela. Eu<br />

tentando me recompor; ela me olhando fixamente, s<strong>em</strong><br />

piscar, como se mirasse o infinito. Arrisquei mais uma<br />

investida, e ela prontamente se apoderou da garrafa de<br />

uísque que eu deixara sobre a cômoda e arr<strong>em</strong>essou-a <strong>em</strong><br />

direção à parede. Menos de um minuto depois do estrondo,<br />

minha mulher irrompeu no quarto.<br />

Surpreendido pela desagradável presença uxória<br />

e diante do contorcionismo iniciado por minha filha,<br />

ocorreu-me uma desculpa contra a qual soçobra qualquer<br />

tentativa de explicação racionalista: nosso bebê fora<br />

possuído pelo d<strong>em</strong>ônio. Retirei a mulher do cômodo e dei<br />

início a uma atuação digna de Oscar. Recorri ao s<strong>em</strong>pre<br />

solícito Moreira, que me prometeu acionar seus contatos<br />

na diocese a fim de conseguir a visita de um exorcista o<br />

mais rápido possível.<br />

Enquanto eu mergulhava no doze anos, minha mulher<br />

chafurdava nas suas pílulas da felicidade. Lá dentro, nossa<br />

filha continuava a se debater, a ranger os dentes e a falar<br />

palavras incompreensíveis.<br />

Depois de muitas horas de angústia, sobreveio a<br />

tranquilidade. Os sons estranhos pararam. Entramos no<br />

quarto, e, então, aconteceu algo inusitado. É como se a<br />

fantasia virasse realidade. Como se uma mentira fosse<br />

repetida tantas vezes que, ao confrontá-la, já não se<br />

99


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

distinguisse mais entre verdade e imaginação. A menina<br />

estava mesmo possuída.<br />

Ao nos ver entrar, recomeçaram os espasmos. Ela<br />

vomitou uma cachoeira verde, arregalou os olhos e girou<br />

o pescoço b<strong>em</strong> além do que um ser humano normal seria<br />

capaz, numa cena digna de Friedkin.<br />

Assustei-me, pois não encontrava uma explicação<br />

plausível para aquilo tudo. Entrei num estado de torpor,<br />

<strong>em</strong>bora tenha permanecido acordado e saiba que continuei<br />

me movimentando pelo cômodo mecanicamente. Quando<br />

retomei o controle dos meus pensamentos, um padre<br />

estava à porta do quarto.<br />

Ah, o medo, o nojo e a ignomínia! Esta surgirá aos<br />

olhos de qu<strong>em</strong> porventura venha a saber dos detalhes<br />

obscuros desse exorcismo, os quais pretendo deixar<br />

escondidos nos recônditos da minha consciência.”<br />

***<br />

Munido de crucifixo, bíblia e água benta – fazia parte<br />

da pantomima do ritual – padre Daniel se apresentou aos<br />

pais da menina, enquanto esta continuava a pronunciar<br />

palavrões e a se debater sobre a cama. O sacerdote pediu<br />

a todos que se retirass<strong>em</strong>, não antes s<strong>em</strong> ouvir súplicas<br />

da mãe para que salvasse sua filha.<br />

Assim que todos saíram, a garota se acalmou um<br />

pouco, <strong>em</strong>bora tenha continuado a respirar rapidamente,<br />

como que bufando. O padre encostou a mão direita sobre<br />

a testa da jov<strong>em</strong>, e ela se mostrou irritadiça. Depois, ele<br />

100


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

rezou alguns pais-nossos e ave-marias, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que espargia algumas gotas de água benta sobre o<br />

leito da enferma. Tratava-se de um eficaz placebo para<br />

aqueles que, por alguma razão, realmente se sentiam<br />

tomados por um d<strong>em</strong>ônio.<br />

Finalmente, tomou as mãos da jov<strong>em</strong> entre as suas,<br />

assentou-as sobre a capa da bíblia, orou mais um pouco e<br />

disse: “Que o espírito ruim que perturba esta jovenzinha<br />

vá <strong>em</strong>bora e ela volte a ter paz. Em nome do Pai, do Filho<br />

e do Espírito Santo. Amém”. A menina adormeceu por pelo<br />

menos meia hora.<br />

Ao abrir os olhos, perguntou ao exorcista: “Qu<strong>em</strong> é o<br />

senhor? O que aconteceu?”.<br />

“Você não se l<strong>em</strong>bra?”.<br />

“Não me l<strong>em</strong>bro de nada.” .<br />

“Descanse agora, minha filha. Você só está um pouco<br />

cansada” – recomendou o padre, com um indisfarçável e<br />

sereno sorriso de satisfação, por mais uma vez ter ajudado<br />

uma família a se livrar do diabo imaginário, <strong>em</strong>bora não<br />

pudesse, e talvez n<strong>em</strong> quisesse, perscrutar os verdadeiros<br />

fantasmas que afligiam aquele lar.<br />

Ainda no andar de cima, fez admoestações aos pais<br />

e ao irmão da menina, garantiu que estava tudo b<strong>em</strong> a<br />

partir de agora e se despediu.<br />

Ao passar pela sala de estar, já na penumbra pelo<br />

contraste entre a escuridão do adiantado da hora e a<br />

profusão de luzes que a invadiam desde os letreiros do<br />

bairro populoso, deteve-se por um instante a admirar uma<br />

foto da família que acabara de ajudar. Sobre o móvel de<br />

mogno, sorriam felizes os cônjuges e os filhos pequenos,<br />

101


O DIABO MORA NESTA CASA<br />

Jorge Eduardo Machado<br />

a garota com não mais de dois anos. Ao girar a cabeça,<br />

pensou ter visto, de relance, uma figura canhestra<br />

sentada sobre uma antiga poltrona forrada com feltro e<br />

prontamente direcionou o olhar para o assento a fim de se<br />

certificar do que vira. Estava vazia. Não passara de uma<br />

ilusão de óptica. Com uma gota de suor frio escorrendo<br />

pela fronte, o padre logo se retirou da mansão, cada vez<br />

mais convencido de que o diabo só existe na imaginação<br />

de mentes enfraquecidas por probl<strong>em</strong>as cotidianos.<br />

Atrás dele, uma gargalhada inaudível aos ouvidos<br />

comuns ecoou pela casa, e voltaram a se estender<br />

invisíveis fios condutores que uniam garras sinistras a<br />

suas marionetes humanas. Talvez o d<strong>em</strong>ônio não estivesse<br />

dentro daqueles a qu<strong>em</strong> o padre ajuda. Muito mais<br />

acertado seria ter procurado <strong>em</strong> volta.<br />

JORGE EDUARDO MACHADO, de 33 anos, é jornalista<br />

formado pela UFRJ, <strong>em</strong> 2002. Repórter com passagens<br />

pelos jornais O Globo, Extra e Folha Dirigida, além da Rádio<br />

Nacional, atualmente é revisor da Empresa Municipal de<br />

Multimeios da Prefeitura do Rio (Multirio). Em 2006, foi<br />

um dos <strong>vencedores</strong> do concurso do jornal O Estado de S.<br />

Paulo, cujo t<strong>em</strong>a foi futebol. O conto O dia <strong>em</strong> que fomos<br />

meninos ficou entre os 11 selecionados, de um universo<br />

de 1.022 concorrentes. Em outro concurso com mais de<br />

200 inscritos, foi um dos 40 selecionados para integrar<br />

a coletânea Palavras das Letras, <strong>em</strong> com<strong>em</strong>oração aos<br />

10 anos do curso de Letras da Universidade Federal de<br />

São Carlos (UFScar). Dessa vez, o conto pr<strong>em</strong>iado foi<br />

A herança. Expõe seus escritos no Recanto das Letras<br />

(www.recantodasletras.com.br/autores/j<strong>em</strong>).<br />

102


MANEQUIM<br />

Reginaldo Costa de Albuquerque<br />

MANEQUIM<br />

Reginaldo Costa de Albuquerque<br />

caminhão da mudança partira com a tarde<br />

O <strong>em</strong>pacotada dentro do baú. De pé e morto de<br />

cansaço, no centro da sala de estar, não sei por onde<br />

começo. A lâmpada ilumina uma porção de caixas de<br />

papelão <strong>em</strong> desord<strong>em</strong> com roupas, livros, utensílios<br />

domésticos e móveis desmontados. Opto pelo colchão da<br />

cama de casal. Acomodo-o no chão de qualquer jeito e<br />

nele me deito exausto, s<strong>em</strong> lençóis ou travesseiro. O sono<br />

estava agarrado nas molas.<br />

Desperto na manhã seguinte e encontro à entrada<br />

do banheiro um manequim f<strong>em</strong>inino, privado de roupas e<br />

acessórios de <strong>em</strong>belezamento, <strong>em</strong> pose elegante. Objeto<br />

que não faz parte dos meus pertences e n<strong>em</strong> me recordo<br />

de tê-lo visto ont<strong>em</strong> na bagunça.<br />

Volto do desjejum na padaria da esquina a uma<br />

quadra daqui e ponho ord<strong>em</strong> nas coisas s<strong>em</strong> nenhum afã.<br />

No intervalo que me concedo para o almoço e merecido<br />

103


MANEQUIM<br />

Reginaldo Costa de Albuquerque<br />

descanso,<br />

imbróglio.<br />

telefono para a transportadora sobre o<br />

“Vamos verificar e entrar<strong>em</strong>os <strong>em</strong> contato com o<br />

senhor novamente” — responde-me solícita a atendente<br />

no outro lado da linha telefônica.<br />

A nova casa, menor que a anterior, se organiza e<br />

ganha a aparência agradável de um lar. As peças, que os<br />

carregadores retiraram do caminhão-baú, reordeno por<br />

todos os cômodos. Caixas vazias e rasgadas espalho pela<br />

varanda e grama do jardim, s<strong>em</strong> o mínimo cuidado. O<br />

vulto de uma barata surge na parede cimentada do muro<br />

e agita as antenas.<br />

No outro dia, amanheço no meu quarto devidamente<br />

arrumado. O boneco de sentinela, com o olhar fixo <strong>em</strong><br />

mim. Noto a expressão de arranjo de um sorriso que não<br />

havia antes. E, definitivamente, eu não o colocara ali!<br />

Surpresa, a mesa com o café está posta: suco, frutas,<br />

leite, gulodices. E n<strong>em</strong> é a data combinada com a diarista<br />

contratada. Depois, caixa de ferramentas, furar paredes,<br />

pendurar quadros, bater pregos, apertar parafusos e<br />

estender os varais de roupas.<br />

No quarto dia, levanto-me tarde. Ao espreguiçarme,<br />

meu braço direito alongado para o outro lado da<br />

cama, que dá para a parede, toca <strong>em</strong> algo frio, duro, e<br />

não é o travesseiro. Vejo o manequim que se introduzira<br />

enquanto eu dormia. Com incontáveis afazeres, deixo-o<br />

estirado. Faxinar e colocar a sujeira nos sacos pretos de<br />

lixo, cultivar algumas flores, podar a laranjeira nos fundos<br />

do quintal. O telefone chama.<br />

“Senhor, informamos que não há registro de<br />

reclamação pela falta de mercadoria por parte dos<br />

104


MANEQUIM<br />

Reginaldo Costa de Albuquerque<br />

clientes” — é a voz da moça da transportadora.<br />

Insisto, mas ela educadamente não dá ouvidos às<br />

minhas ponderações.<br />

“O caminhão saiu vazio da <strong>em</strong>presa para o transporte<br />

da mudança. Certamente, a mercadoria lhe pertence” — e<br />

desliga.<br />

O t<strong>em</strong>po se esvai moroso, com tudo acomodado <strong>em</strong><br />

seu devido lugar. Um pardal desceu na varanda, saltitou<br />

dois ladrilhos, pegou alguma coisa do chão com o bico e<br />

voou levando o dia a reboque.<br />

A impressão é de sétimo dia e acordo s<strong>em</strong> o alarme<br />

do despertador, que tiquetaqueia sonolento <strong>em</strong> cima da<br />

cômoda. O clarão repentino da luz lançada pelo sol penetra<br />

a janela entreaberta e me ofusca a visão. Dormi sobre o<br />

meu lado esquerdo, de frente para a porta do quarto, mas<br />

não a enxergo. Tento levar as costas dos dedos das mãos<br />

para esfregar os olhos, mas não se mex<strong>em</strong>. As pernas<br />

estão estendidas, os braços dobrados, estáticos.<br />

Cismo preocupado com uma sensação inexplicável de<br />

desconforto.<br />

Enquanto o pensamento dá voltas no labirinto da<br />

inquietação, a campainha toca.<br />

Percebo a movimentação de alguém que deixa a<br />

cozinha, atravessa o corredor e atende. Ouço uma fala<br />

abafada de mulher, que permite a entrada.<br />

Angustio-me. Qu<strong>em</strong> é ela? Qu<strong>em</strong> chegou? Quero<br />

participar, mas meu corpo não reage, não obedece às<br />

minhas vontades. Sinto-me rígido, uma pedra.<br />

105


MANEQUIM<br />

Reginaldo Costa de Albuquerque<br />

Rumores de passos se aproximam. Uma mulher alta<br />

surge alheada ao umbral da porta do quarto lixando as<br />

unhas pintadas de uma tonalidade rósea.<br />

O t<strong>em</strong>or se instala. Conheço o talhe do rosto, as<br />

curvas dos lábios. Ilusão?<br />

O manequim se transformara numa mulher real!<br />

Então, dá passag<strong>em</strong> aos mesmos carregadores que<br />

trouxeram a mudança. Minha boca permanece imóvel e<br />

reprime o bosquejo de um protesto.<br />

Ela reclina a cabeça e arregala os olhos negros, que<br />

brilham intensamente. Em seguida, aponta o dedo <strong>em</strong><br />

minha direção com um ligeiro sarcasmo.<br />

“Eis o manequim que vocês entregaram por engano.<br />

Pod<strong>em</strong> levá-lo para o seu verdadeiro dono”.<br />

REGINALDO COSTA DE ALBURQUERQUE t<strong>em</strong> 48 anos,<br />

campo-grandense-MS de coração. Autor pr<strong>em</strong>iado no<br />

Brasil e <strong>em</strong> Portugal, <strong>em</strong> concursos de poesias, sonetos e<br />

<strong>contos</strong>. Autor do livro Sonetos no azul da tarde.<br />

106


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

crepúsculo começava a surgir no céu quando<br />

O Morgan chegou à mansão. Seu irmão fora<br />

recebê-lo na porta. Jonathan parecia ter envelhecido mais<br />

do que o t<strong>em</strong>po permitiria a qualquer pessoa. Mesmo <strong>em</strong><br />

seus plenos trinta anos, cabelos brancos não lhe faltavam<br />

à cabeça. Os olhos esbugalhados, rodeados por olheiras,<br />

mostravam que certamente não dormia há dias. Há cinco<br />

anos os dois não se viam, desde o verão <strong>em</strong> que Jonathan<br />

e Genevra casaram e mudaram-se para aquela mansão<br />

<strong>em</strong> Rotherham.<br />

— Sinto muito por sua perda, Jon – disse Morgan,<br />

quando o cumprimentou. – Genevra era uma pessoa<br />

formidável, eu a conheci ainda na infância. Sua morte me<br />

deixou muito abalado.<br />

107


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

Ele desviou os olhos de Morgan e se virou para a<br />

mansão, <strong>em</strong> silêncio, ignorando os pêsames do irmão.<br />

Morgan permaneceu parado no portão, perguntandose<br />

se fora somente a morte da esposa que transformara<br />

Jonathan <strong>em</strong> alguém tão mal-educado.<br />

Quando entrou na mansão, ele percebeu que a casa<br />

fazia jus ao dono. Havia poeira, e como havia! Morgan<br />

teve acessos de tosse enquanto atravessava a sala e subia<br />

as escadas que levavam ao segundo andar. Jonathan,<br />

mostrando-lhe o quarto, permanecia frio e indiferente ao<br />

resto do mundo.<br />

— Há quanto t<strong>em</strong>po esta casa não é limpa?<br />

— Três meses – respondeu rispidamente.<br />

Genevra morrera há três meses. Não era muito difícil<br />

adivinhar os motivos para Jonathan manter a casa naquele<br />

estado.<br />

— Você se tornou um viúvo muito intrigante, irmão.<br />

— Servirei o jantar <strong>em</strong> uma hora – disse, ignorando<br />

Morgan mais uma vez. S<strong>em</strong> esperar resposta, virou-se e<br />

começou a se afastar. – Fique à vontade.<br />

— Você servirá o jantar? O que aconteceu com os<br />

criados?<br />

— Foram <strong>em</strong>bora – gritou ele no fim do corredor,<br />

desaparecendo de vista.<br />

Morgan voltou-se para o quarto e acendeu as luzes.<br />

Decidira passar uma quinzena <strong>em</strong> Rotherham para<br />

confortar o irmão após do luto. Seus negócios <strong>em</strong> Roma<br />

d<strong>em</strong>oraram mais do que ele esperava. Depois de concluí-<br />

108


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

los ainda gastara um bom t<strong>em</strong>po até chegar a Londres,<br />

entregar seus relatórios e partir para Rotherham. Três<br />

meses era muito t<strong>em</strong>po. Gostaria de ter chegado antes,<br />

pelo menos a t<strong>em</strong>po de acompanhar o funeral de Genevra.<br />

S<strong>em</strong> nenhum conhecido por perto, Jonathan devia ter sido<br />

o único a comparecer. Aquele pensamento era terrível.<br />

Olhou para a janela. Já havia anoitecido. As nuvens<br />

carregadas e escuras cobriam a lua e as estrelas como algo<br />

que parecia cobrir o coração de Jonathan. Talvez fosse o<br />

r<strong>em</strong>orso. Morgan se l<strong>em</strong>brava das brigas encabeçadas por<br />

Genevra. Apesar de amá-la, seu irmão nunca cedia numa<br />

discussão. Talvez os dois estivess<strong>em</strong> brigados quando<br />

ela veio a falecer. E nessa condição, até mesmo Morgan<br />

se sentiria culpado por dentro. Tenho que falar com ele,<br />

concluiu, não posso deixar que faça alguma besteira.<br />

Morgan apagou as luzes e deixou o quarto. O corredor<br />

estava vazio e pouco iluminado. Ele esbarrou na parede<br />

duas vezes antes de acostumar os olhos à escuridão. No<br />

fim do corredor, viu a porta de um cômodo iluminado<br />

entreaberta. Aproximou-se e notou que era da biblioteca.<br />

L<strong>em</strong>brou-se que Jonathan s<strong>em</strong>pre tivera bons livros.<br />

Talvez fosse melhor esperar pelo jantar lendo alguma<br />

coisa. Conferiu o relógio de bolso para ver o t<strong>em</strong>po de que<br />

dispunha e entrou.<br />

A primeira coisa que notou foi o cheiro de mofo<br />

do lugar. Tentou, mas não conseguiu controlar um novo<br />

acesso de tosse. Com dificuldade, arrastou-se para uma<br />

poltrona próxima e cobriu o nariz com a gola da camisa.<br />

Depois de se recuperar, conseguiu prestar atenção ao<br />

redor. Como deduzira no começo, a biblioteca era ampla e<br />

transbordava livros. As prateleiras iam do chão até o teto.<br />

Algumas escadas se erguiam entre elas, para facilitar a<br />

locomoção. Uma pilha de livros velhos juntava-se <strong>em</strong> cada<br />

109


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

canto e outras se erguiam pelo chão. No entanto, o que<br />

mais chamou sua atenção foi o quadro pendurado acima<br />

da lareira. Uma grande pintura a óleo de um menino – um<br />

menino que chorava.<br />

Morgan levantou-se da poltrona e aproximou-se<br />

do quadro. Notou o calor à medida que se aproximava<br />

da lareira – ela fora apagada há pouco. Não mais que<br />

algumas horas talvez. Jonathan estivera ali. Fazendo o<br />

quê? questionou-se.<br />

Morgan olhou para a figura do menino, que de perfil<br />

parecia fitá-lo sombriamente. Talvez foss<strong>em</strong> as lágrimas,<br />

talvez fosse o olhar vazio de suas pupilas dilatadas,<br />

mas algo diferente parecia vir daquele quadro. Morgan<br />

permaneceu longos minutos a observá-lo, de pé, como<br />

se estivesse hipnotizado. Olhou cada detalhe da tela.<br />

Jonathan e Genevra s<strong>em</strong>pre tiveram bom gosto, porém<br />

Morgan nunca havia visto aquela pintura. Talvez a cunhada<br />

houvesse comprado antes de morrer e agora seu irmão a<br />

guardasse como uma triste l<strong>em</strong>brança. Curioso, procurou<br />

por uma assinatura na tela.<br />

G. Bragolin, rabiscada <strong>em</strong> tinta vermelha <strong>em</strong> um dos<br />

cantos. Tentou se l<strong>em</strong>brar das obras dos pintores que<br />

conhecia, mas nenhuma tinha o aspecto de um menino<br />

que chorava.<br />

De onde veio esse quadro?<br />

Morgan ouviu passos na escada. Devia ser Jonathan.<br />

Conferiu o relógio de bolso. Havia se passado dez minutos<br />

depois da hora que seu irmão marcara para o jantar.<br />

Quando o t<strong>em</strong>po passou a correr tão rápido? Jon deve<br />

estar furioso! Morgan virou de costas para o quadro e<br />

correu <strong>em</strong> direção à porta. No entanto, quando a abriu,<br />

110


deparou-se com a figura do irmão.<br />

LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

— Esqueceu-se do jantar? – perguntou ele, rud<strong>em</strong>ente.<br />

– O que você está fazendo na minha biblioteca?<br />

— Lendo – mentiu.<br />

Jonathan o olhou intrigado, por um longo t<strong>em</strong>po,<br />

antes de se virar para o corredor. Resmungou qualquer<br />

coisa antes de se dirigir novamente a Morgan.<br />

— Desça – disse ele. – A comida não permanecerá<br />

quente até o fim do outono.<br />

À mesa do jantar, Morgan sentou-se <strong>em</strong> um dos lados,<br />

enquanto seu irmão ocupou a cadeira da ponta. Jon serviulhe<br />

pão e queijo seco, mas mal tocou na comida. Enquanto<br />

bebia vinho, Morgan notou que havia outro prato vazio na<br />

mesa – disposto ao assento da outra ponta. Percebeu que<br />

Jonathan não parava de fitá-lo, num interminável silêncio.<br />

— Era o lugar de Genevra? – perguntou Morgan,<br />

despertando o irmão do transe. Jon o olhou rapidamente,<br />

antes de voltar o olhar para o assento vazio e assentir<br />

com a cabeça.<br />

— Você ainda não se esqueceu dela, não é?<br />

Assentiu novamente.<br />

Morgan se calou. Não sabia o que dizer. Minutos<br />

depois, Jonathan se levantou e trouxe da cozinha um<br />

pato assado. Parecia-lhe bom a princípio, mas a frieza<br />

de seu irmão amargou cada garfada que levara à boca.<br />

Jonathan não provou o pato. Vez ou outra, ele bebericava<br />

a taça de vinho – mas nada mais que isso. Não disse<br />

uma palavra durante o jantar. Morgan pensou <strong>em</strong> fazer<br />

111


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

algum comentário frívolo sobre a comida, pelo menos para<br />

quebrar o silêncio daquela refeição. Mas viu que a seu<br />

irmão não adiantaria. Ele continuava fitando o assento<br />

vazio na outra extr<strong>em</strong>idade da mesa, <strong>em</strong> silêncio.<br />

— Sabe do que você precisa, Jon? – perguntou ele de<br />

repente. – Outra esposa. Alguém que lhe faça esquecer<br />

Genevra.<br />

Jonathan disparou um olhar frio <strong>em</strong> sua direção.<br />

— Não diga absurdos.<br />

— Estou falando sério – Morgan não sabia de onde<br />

retirara corag<strong>em</strong> para dizer aquilo, mas agora que já<br />

o dissera, não importavam mais as consequências. –<br />

Mulheres não faltam <strong>em</strong> Londres. Eu posso lhe apresentar<br />

algumas, da mesma forma como lhe apresentei Genevra.<br />

Tenho certeza de que elas se interessarão por você...<br />

— Eu ainda amo minha esposa – disse ele. – E n<strong>em</strong><br />

todas as mulheres da Inglaterra preencheriam seu lugar.<br />

— Acho que é a minha vez de dizer “não diga absurdos”<br />

– replicou. – Genevra se foi. Milhares de mulheres o<br />

esperam fora desta mansão mórbida e <strong>em</strong>poeirada.<br />

Garanto-lhe que <strong>em</strong> breve você se casará com outra. Uma<br />

que lhe dê filhos. Depois, será fácil para você esquecerse<br />

da primeira esposa. Não se preocupe, Jon, você ainda<br />

encontrará alguém melhor que Genevra...<br />

Jonathan esmurrou a mesa e se levantou.<br />

— Jamais repita isso – repreendeu <strong>em</strong> um tom<br />

severo. – Não na minha frente. Não sob este teto. –<br />

Encarava Morgan com um olhar perturbado, que ele nunca<br />

vira no rosto do irmão. – E l<strong>em</strong>bre-se de duas coisas: não<br />

112


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

existe nenhuma mulher melhor que Genevra; e não existe<br />

nenhuma que eu possa amar além dela.<br />

E, dizendo isso, foi <strong>em</strong>bora. Morgan permaneceu<br />

sozinho na sala de jantar, bebericando o vinho. Durante<br />

um bom t<strong>em</strong>po, ficou como o irmão: fitando o lugar vazio<br />

na mesa s<strong>em</strong> dizer uma palavra.<br />

Uma valsa começou a tocar <strong>em</strong> outro cômodo. Devia<br />

ser Jonathan mergulhando nas amargas l<strong>em</strong>branças do<br />

passado. Morgan se l<strong>em</strong>brava de como seu irmão e sua<br />

cunhada dançavam b<strong>em</strong> juntos. Ele até tentava aprender<br />

os passos, mas nunca se saía tão b<strong>em</strong> quanto eles. À<br />

mesa, Morgan tomou o último gole do vinho e se levantou.<br />

Procurou pelo cômodo de onde vinha a música.<br />

Atravessou a sala, subiu a escada, cruzou mais corredores,<br />

até que chegou ao lugar. Sentado <strong>em</strong> uma poltrona de<br />

uma sala vazia, Jonathan tinha o rosto coberto pelas<br />

mãos. Morgan não conseguiu distinguir se chorava ou se<br />

refletia. A valsa continuava surgindo de algum lugar, por<br />

mais que não visse sinal de vitrola. Aproximou-se do irmão<br />

e pousou a mão <strong>em</strong> seu ombro.<br />

— Perdoe-me, Jon – disse. – Eu não devia ter dito<br />

aquilo.<br />

— Esqueça – respondeu, um pouco mais calmo,<br />

retirando o rosto das mãos. Seus olhos pareciam<br />

marejados. – Já é tarde. É melhor você voltar ao quarto e<br />

dormir. Amanhã será um longo dia...<br />

Morgan ignorou o irmão e sentou-se próximo a ele,<br />

numa poltrona perto da sua.<br />

— Nunca desejei mal a você, Jon. N<strong>em</strong> a você, n<strong>em</strong><br />

a Genevra – confessou. – Pelo contrário, s<strong>em</strong>pre desejei o<br />

113


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

melhor para vocês. Meu irmão e minha amiga, juntos para<br />

s<strong>em</strong>pre. Agora tudo mudou – ela se foi e você está se<br />

comportando dessa maneira. Isso me preocupa.<br />

Aguardou uma resposta do irmão, mas ela não veio.<br />

Os olhos de Jonathan pareciam querer derramar mais<br />

lágrimas. A janela aberta deixava um frio vento de outono<br />

entrar. O inverno chegaria a qualquer momento, quando<br />

eles menos esperass<strong>em</strong>.<br />

— Você está mudado, irmão – disse Morgan. – Não<br />

sei o que aconteceu, ou como aconteceu; mas algo mudou<br />

você. Eu diria prontamente que foi a morte de Genevra<br />

que lhe deixou assim, mas algo me diz que não foi apenas<br />

isso. Então o que foi, Jon? Diga-me!<br />

A valsa se encerrou de repente. Jonathan ergueu o<br />

olhar para Morgan. Os dois se fitaram durante um longo<br />

t<strong>em</strong>po. Mas nenhuma palavra foi dita por ele. O silêncio<br />

entre os dois parecia não ter fim, até Morgan quebrá-lo<br />

mais uma vez.<br />

— Então espero que tenha uma boa noite – foi o que<br />

disse antes de sair. Jon não é mais a pessoa que conheci,<br />

concluiu, meu irmão morreu junto com Genevra...<br />

Foi direto para o quarto e se jogou na cama. Uma<br />

camada de poeira se levantou quando ele o fez. Teve outro<br />

acesso de tosse. Depois de se recuperar, Morgan trocou-se<br />

e deitou, pretendendo dormir. No entanto, não conseguiu<br />

encontrar o sono. Virou-se de um lado para outro mais<br />

de uma vez. Além da cama desconfortável e do cheiro de<br />

poeira nos lençóis, não conseguiu parar de pensar no que<br />

Jonathan se transformara.<br />

Pensei <strong>em</strong> ficar aqui durante uma quinzena, l<strong>em</strong>brouse<br />

Morgan, mas irei <strong>em</strong>bora amanhã, ao amanhecer. A<br />

114


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

pena que sentira do irmão dava lugar à raiva. Que ele<br />

apodreça sozinho pelo resto da vida. Pouco me importa.<br />

Quando finalmente conseguiu dormir, Morgan teve<br />

horríveis pesadelos. Todos eles envolvendo fogo e morte.<br />

Não para menos, assim que se levantou descobriu que<br />

estava coberto de suor. Vestiu as roupas de viag<strong>em</strong> e<br />

colocou um chapéu para disfarçar o cabelo, que durante a<br />

noite tornara-se sujo e <strong>em</strong>baraçado.<br />

Olhou para a janela e viu os primeiros raios de<br />

sol surgindo atrás da colina próxima à mansão. Nuvens<br />

ameaçavam cercá-los. Guardou as poucas coisas que<br />

retirara da mala, arrumou a cama, fechou as cortinas e<br />

partiu do quarto. Não olhou para trás.<br />

As portas do corredor estavam todas fechadas.<br />

Melhor assim, pensou. Não queria ver o irmão outra<br />

vez, tampouco se despedir dele. Arrastou a mala até as<br />

escadas e começou a descê-la. O barulho foi tamanho que<br />

Morgan surpreendeu-se por não ter chamado a atenção<br />

do irmão. Atravessou a sala a passos rápidos e chegou à<br />

entrada. Abrindo a porta e fechando logo <strong>em</strong> seguida, saiu<br />

da mansão s<strong>em</strong> olhar para trás.<br />

O som das folhas sendo sopradas pelo vento despertou<br />

sua atenção. Olhou para o céu e viu que uma t<strong>em</strong>pestade<br />

se aproximava. As de outono s<strong>em</strong>pre eram as piores. O<br />

sol logo sumiria entre as nuvens negras que cresciam no<br />

céu. Morgan precisaria andar rápido se quisesse pegar o<br />

expresso que o levaria até Londres. A t<strong>em</strong>pestade não iria<br />

esperá-lo.<br />

Já atravessava o jardim quando o vento aumentou<br />

de repente. Morgan cobriu os olhos, mas não conseguiu<br />

impedir que seu chapéu voasse. Praguejando para si<br />

115


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

mesmo, deixou a mala no chão e voltou-se para a mansão,<br />

procurando pelo chapéu. Foi encontrá-lo perto da entrada,<br />

pousado sobre um jornal velho e surrado. Tratava-se de<br />

uma edição antiga do The Sun.<br />

Quase mecanicamente, leu o título da manchete,<br />

escrito <strong>em</strong> letras garrafais. A MALDIÇÃO DOS QUADROS<br />

DAS CRIANÇAS QUE CHORAM. Curiosamente, havia uma<br />

foto de uma pintura muito s<strong>em</strong>elhante à da biblioteca de<br />

Jonathan, onde um menino parecia fitá-lo, com lágrimas<br />

escorrendo pelo rosto. Morgan pegou o jornal do chão e<br />

começou a ler a matéria, intrigado.<br />

...tudo começou com um frustrado pintor italiano,<br />

Graham Bragolin...<br />

Morgan já vira aquele nome, só não se recordava de<br />

onde. D<strong>em</strong>orou algum t<strong>em</strong>po até que conseguiu se l<strong>em</strong>brar.<br />

A pintura de Jon! Estava assinada com G. Bragolin!<br />

...e nessa noite, Grahan teve um sonho. Nele, vinte<br />

e oito crianças eram torturadas no inferno e choravam<br />

pedindo cl<strong>em</strong>ência...<br />

Toda aquela história parecia muita confusa.<br />

...ao invés de vender sua alma pelo sucesso, ele<br />

ofereceu<br />

quadros...<br />

as almas daqueles que comprass<strong>em</strong> seus<br />

Enquanto lia, tinha um mau pressentimento sobre<br />

aquilo tudo.<br />

...o que não impedia os compradores de modificar<strong>em</strong><br />

os pactos para o próprio b<strong>em</strong>...<br />

De repente, tudo se encaixou. Morgan deixou o jornal<br />

116


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

cair no chão, de tamanha consternação. Não! tentou gritar<br />

para si mesmo, Jon não fez isso!<br />

Olhou para a mansão à sua frente. Não podia deixar<br />

Jonathan fazer o que ele pensava que estava fazendo.<br />

Deixou o chapéu no chão e começou a atravessar o<br />

jardim. Um relâmpago ricocheteou o céu, seguido por um<br />

estrondoso trovão. Morgan n<strong>em</strong> ligou para sua mala sobre<br />

a grama e entrou na mansão. Não viu sinal de seu irmão.<br />

— Jonathan! – gritou.<br />

O grito ecoou pelas paredes, mas ninguém lhe<br />

respondeu.<br />

S<strong>em</strong> pensar duas vezes, começou a subir as escadas<br />

que levavam ao segundo andar. Tinha absoluta certeza de<br />

onde ele estava.<br />

— Jonathan! – gritou mais uma vez, já no corredor.<br />

Ele não apareceu.<br />

A porta da biblioteca estava destrancada. Morgan<br />

girou a maçaneta, abriu a porta, e entrou. A sensação<br />

mais estranha de sua vida foi entrar aquele lugar. O ar<br />

parecia estar carregado de maldade. Jonathan está aqui,<br />

concluiu, e ele também...<br />

Encontrou-o na frente da lareira, observando o<br />

quadro do menino que chorava com uma expressão vazia<br />

no rosto.<br />

— Morgan... – murmurou, com a voz distante. – Ele<br />

disse que você voltaria...<br />

— Por que você fez isso, Jon? – perguntou, se<br />

aproximando com cautela.<br />

117


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

— Ele prometeu trazê-la de volta... – disse Jonathan<br />

fitando a pintura.<br />

— Não diga isso, Jon. Ninguém pode trazer Genevra<br />

de volta. Ela morreu.<br />

— Ele pode – murmurou, pousando o olhar sobre<br />

Morgan. – Ele é poderoso. Você não sabe o quanto.<br />

— Ninguém é mais poderoso que Deus – e o quadro<br />

pareceu tr<strong>em</strong>er ao som do Seu nome. – Livre-se dele, Jon!<br />

Deixe o quadro, deixe essa casa. Venha <strong>em</strong>bora comigo<br />

para Londres.<br />

— Agora já é tarde, Morgan. Nosso pacto foi selado<br />

a sangue. N<strong>em</strong> eu poderei fugir com minha palavra; n<strong>em</strong><br />

ele. Gene voltará para mim, seja qual for o preço que terei<br />

que pagar.<br />

— E qual é esse preço? – indagou. – Sua alma?!<br />

O menino da pintura pareceu sorrir, enquanto uma<br />

lágrima escorreu pelo rosto de Jonathan. Morgan sentiu<br />

um mau pressentimento.<br />

— Não. A sua.<br />

E seu coração disparou. Deu dois passos para trás.<br />

— Eu?! – gritou, incrédulo. – Você não pode estar<br />

falando a verdade, Jon.<br />

— Somente a alma de uma pessoa viva pode pagar<br />

pela alma de uma pessoa que já morreu – continuou ele,<br />

dando um passo para longe do quadro. O menino parecia<br />

fitá-lo.<br />

— E por que me escolheu?! Eu sou seu irmão,<br />

118


Jonathan!<br />

LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

— Desculpe-me, Morgan, mas eu quero que Gene<br />

volte para mim. Ele exigiu a minha alma, mas eu não posso<br />

oferecê-la se quiser ficar com minha esposa. A única que<br />

ele aceitou <strong>em</strong> troca foi a sua. Pensei <strong>em</strong> lhe mandar uma<br />

carta, mas ele disse que você viria me visitar. Cedo ou<br />

tarde você viria. Sinto muito por ter entregado sua alma,<br />

Morgan, mas foi preciso.<br />

Morgan sentiu os pés se prender<strong>em</strong> ao chão. As<br />

mãos perderam o movimento e, quando tentou falar, sua<br />

voz desapareceu. Ficou paralisado. Uma risada diabólica<br />

atravessou o ar, talvez vinda de sua cabeça, talvez do<br />

quadro.<br />

— Jon... – disse uma voz f<strong>em</strong>inina de repente. Uma<br />

mulher surgiu na biblioteca. Tinha a pele pálida, os olhos<br />

verdes e os cabelos negros. Usava um lustroso vestido<br />

vermelho. Ela se aproximou de Jonathan, enquanto este a<br />

olhava fixamente.<br />

— Gene... – murmurou ele, abrindo os braços. Algo<br />

diferente brilhou <strong>em</strong> seus olhos. Os dois se abraçaram e<br />

se beijaram longamente. O menino que chorava no quadro<br />

parecia fitá-los. De repente, uma valsa começou a tocar<br />

– a mesma que ele ouvira antes. O casal se deu as mãos<br />

e começou a dançar. Morgan continuava preso ao chão,<br />

observando tudo aquilo.<br />

Então a parede ao redor do quadro começou a pegar<br />

fogo. Jonathan e Genevra continuaram dançando ao som<br />

da valsa, ignorando completamente o que acontecia ao<br />

redor. As chamas consumiam a parede, mas a pintura da<br />

criança que chorava permanecia intacta. Morgan sentiu<br />

o calor aumentando. Em pouco t<strong>em</strong>po, o fogo chegou<br />

119


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

aos livros. E a partir daí, a biblioteca se transformou no<br />

inferno.<br />

As chamas se multiplicaram pelo lugar, tão rápidas<br />

que foi difícil acompanhá-las. A criança no quadro<br />

continuava chorando, enquanto o casal girava para um<br />

lado e para outro, dançando uma música que parecia não<br />

ter fim. Aquela cena mais se parecia com um pesadelo.<br />

Morgan sentiu os pés se soltar<strong>em</strong> de repente. As<br />

mãos conseguiram se mover e, quando tentou falar, a voz<br />

finalmente saiu.<br />

— Jon! – gritou, <strong>em</strong> meio a fumaça e o fogo da<br />

biblioteca. – Jon, fuja! Venha comigo!<br />

Ele não respondeu. Num último instante, Morgan<br />

vislumbrou seu irmão dançando valsa com Genevra. Pela<br />

primeira vez desde que o reencontrara, ele viu Jonathan<br />

sorrir. E percebeu que a loucura o dominava. As chamas<br />

começaram a consumi-lo, junto com sua esposa, mas ele<br />

continuou sorrindo.<br />

No meio de todo o fogo, o quadro resistia; intacto. A<br />

criança, contudo, já não estava mais nele.<br />

Morgan virou-se para a porta e fugiu da biblioteca<br />

<strong>em</strong> chamas. Desceu os degraus da escada o mais rápido<br />

que pode e depois saiu pela porta. Atravessando o jardim,<br />

olhou para trás. E viu que uma grande fogueira erguia-se<br />

sobre o chão.<br />

— Não é lindo? – disse uma voz infantil. Uma criança<br />

surgiu na sua frente, observando atentamente as chamas<br />

consumir<strong>em</strong> a mansão.<br />

— Qu<strong>em</strong> é você?<br />

120


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

— Você não sabe? – indagou ela, virando-se para<br />

Morgan. Na mesma hora ele reconheceu as pupilas<br />

dilatadas do menino do quadro. No entanto, ali ele não<br />

chorava – e sim sorria.<br />

— O que você quer?<br />

O menino meneou a cabeça.<br />

— Ora, Morgan, caso não se l<strong>em</strong>bre, seu irmão<br />

entregou sua alma para mim. Agora ela é minha para eu<br />

usá-la da forma que quiser.<br />

— Não tenho medo de você – retrucou. – Deus me<br />

protegerá de todo e qualquer mal, inclusive dos seus<br />

pactos.<br />

E começou a rezar desesperadamente <strong>em</strong> voz alta,<br />

tentando se l<strong>em</strong>brar das frases decoradas desde criança. Nunca<br />

precisara tanto delas.<br />

O menino ficou <strong>em</strong> silêncio, olhando-o fixamente.<br />

— Você realmente crê que Deus ouvirá o pedido de alguém<br />

cuja alma pertence a mim? – indagou, um pouco confuso. – Às<br />

vezes os seres humanos são tão engraçados...<br />

De repente, um relâmpago riscou o céu escuro. Ele viu<br />

dois chifres na sombra que a criança projetou. Antes que<br />

Morgan pudesse ter alguma reação, sentiu um toque frio e<br />

molhado <strong>em</strong> seu rosto. Mais outro. E depois outro. Olhou para<br />

cima. Começara a chover. O menino à sua frente fungou o nariz.<br />

Morgan notou o porquê de sua reação. A chuva estava<br />

apagando o incêndio.<br />

— Assim não t<strong>em</strong> graça – resmungou ele.<br />

121


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

— Isso é obra de Deus – comentou ousadamente. A chuva<br />

estava engrossando cada vez mais. Morgan já tinha o cabelo<br />

ensopado. – Ele s<strong>em</strong>pre vencerá você.<br />

O menino o olhou com desdém e começou a rir. Riu alto,<br />

como se houvesse escutado uma ótima piada.<br />

— Vamos ver – disse.<br />

Ergueu a mão esquerda e estalou os dedos.<br />

A chuva então parou. Mas de uma maneira inacreditável. Os<br />

pingos ficaram suspensos no ar, imóveis como se não existisse<br />

gravidade. As chamas, contudo, continuaram consumindo a<br />

mansão.<br />

Morgan estr<strong>em</strong>eceu. Sua cabeça dava voltas e mais voltas.<br />

Ele não sabia o que aconteceria dali <strong>em</strong> diante. Porém, sabia<br />

que não haveria como fugir.<br />

— Por favor, deixe-me ir – suplicou. – Meu irmão está<br />

morto. Não era isso que você queria? Agora você não precisa<br />

mais de mim.<br />

— Você se engana – corrigiu. – Quero que você seja meu<br />

escravo.<br />

O coração de Morgan disparou.<br />

— Eu lhe suplico, deixe-me ser livre – pediu.<br />

— E o que você me daria <strong>em</strong> troca?<br />

— Qualquer coisa!<br />

O Diabo abriu um sorriso e olhou Morgan fixamente.<br />

— Então, nós pod<strong>em</strong>os fazer um pacto.<br />

122


LÁGRIMAS DE CRIANÇA<br />

Pedro Viana<br />

PEDRO VIANA é mineiro, nascido <strong>em</strong> 1996, tomou<br />

gosto por histórias desde pequeno. Gastou quase quinze<br />

anos para perceber que o que mais gosta de fazer na<br />

vida é escrever. Depois disso, começou a perseguir seu<br />

objetivo, escrevendo muito e lendo mais ainda. Possui<br />

um caso sério de dependência de livros. Nos dias que não<br />

t<strong>em</strong> nada para ler, enfrenta fortes crises de abstinência.<br />

É apaixonado pela fantasia e pelo terror. E além da<br />

literatura, aprecia muito o cin<strong>em</strong>a e a música. Pretende,<br />

num futuro próximo, se formar <strong>em</strong> Jornalismo. Por ora,<br />

despacha <strong>contos</strong> para antologias e trabalha na produção<br />

de seu primeiro livro – a ser publicado logo depois que<br />

concluir a faculdade.<br />

123


CAMINHOS PERIGOSOS<br />

Hélio Sena<br />

CAMINHOS PERIGOSOS<br />

Hélio Pena<br />

Quando Raimundo avistou a casa, as sombras<br />

da noite já haviam começado a se derramar sobre o<br />

mundo... O pobre hom<strong>em</strong> caminhara o dia inteiro sob o<br />

sol escaldante da caatinga, sozinho, por estradinhas ora<br />

de barro vermelho, ora de finíssima areia branca; estava,<br />

pois, quase morto de cansaço e fadiga. Por isso, deu<br />

graças a Deus quando avistou aquela casinha perdida no<br />

meio daquele deserto, e tratou de apressar o passo para<br />

chegar lá, antes que a noite caísse de vez.<br />

Enquanto caminhava, observava, admirado, a grande<br />

quantidade de morcegos que esvoaçavam para lá e para<br />

cá, alguns passando b<strong>em</strong> rente a ele. Raimundo nunca<br />

tinha visto tanto morcego junto! Aquilo lhe pareceu coisa<br />

de mau agouro, e, apesar de ser um hom<strong>em</strong> de bastante<br />

corag<strong>em</strong>, não deixou de sentir um ligeiro arrepio na<br />

espinha...<br />

121


CAMINHOS PERIGOSOS<br />

Hélio Sena<br />

Então, para se distrair, começou a assobiar uma<br />

cançãozinha aprendida com o pai, no t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que ele,<br />

Raimundo, era apenas era um menininho inocente, que<br />

sonhava <strong>em</strong> um dia ir <strong>em</strong>bora para o sudeste, ganhar<br />

bastante dinheiro por lá, e voltar milionário para matar a<br />

fome daquela gente pobre do sertão, que tanto precisava<br />

de ajuda!<br />

Era justamente nesse seu sonho grandioso que<br />

Raimundo pensava, enquanto caminhava, assobiando...<br />

A canção misturava-se ao barulho do pedregulho, que<br />

estalava sob os seus chinelos carcomidos, e perdia-se para<br />

além da vegetação seca e retorcida, para além daqueles<br />

serrotes que mais pareciam montanhas-russas da morte,<br />

até diluir-se na enorme imensidão da noite...<br />

...<br />

Quando parou diante da casa, desvaneceu-se do<br />

coração de Raimundo toda e qualquer esperança de<br />

que ali pudesse residir alguém... A casa não passava<br />

de uma tapera velha, com o barro da taipa caindo <strong>em</strong><br />

muitos lugares; a porta e a janela da frente haviam sido<br />

destruídas pelo cupim, deixando entrever o negrume que<br />

reinava no interior do casebre...<br />

Pelo menos t<strong>em</strong> um teto, pensou Raimundo, e é disso<br />

que mais estou precisando nesse momento. Está bom<br />

d<strong>em</strong>ais! Vou pernoitar aqui mesmo e amanhã cedo sigo<br />

viag<strong>em</strong>...<br />

E, s<strong>em</strong> mais delongas, entrou na choupana. Ficou um<br />

122


CAMINHOS PERIGOSOS<br />

Hélio Sena<br />

instante imóvel para acostumar seus olhos à penumbra.<br />

Percebeu então que o casebre era composto por um único<br />

cômodo, e que estava vazio, exceto pelo que parecia<br />

ser<strong>em</strong> cinco ou seis garrafas de vidro espalhadas num dos<br />

cantos... Nada mais!<br />

Com um suspiro de alívio, Raimundo depôs no chão<br />

a cabaça d’água e o saco de estopa que carregava nas<br />

costas. Ali dentro do saco ia o seu tesouro, o grande<br />

motivo daquela viag<strong>em</strong> s<strong>em</strong> fim que ele <strong>em</strong>preendera há<br />

quase três dias...<br />

Amanhã, tornou ele a pensar, amanhã tudo vai ser<br />

diferente. Quero dar esta alegria para os meus filhos,<br />

para a minha mulher, coitados, tão distantes agora... Mas,<br />

deixe estar! A nossa salvação está b<strong>em</strong> pertinho, já posso<br />

até sentir o cheiro da danada. Amanhã, com certeza, tudo<br />

estará diferente!<br />

E, sentando-se ao lado do saco de estopa, chegou a<br />

dizer <strong>em</strong> voz alta:<br />

– Pelo menos um sonho eu tinha que realizar nessa<br />

vida, né?... Pelo menos um!<br />

E, assim dizendo, o viajante sorriu de peito aberto.<br />

Chegou mesmo a gargalhar, como há t<strong>em</strong>pos não fazia.<br />

Estava confiante no futuro. O t<strong>em</strong>po de privações e<br />

tristezas finalmente estava chegando ao fim, e era isso o<br />

que importava, de verdade.<br />

Num gesto mecânico, tirou o chapéu da cabeça e<br />

olhou através da porta. A noite caíra de vez. Os morcegos<br />

horrendos haviam dado lugar a milhões de estrelinhas<br />

cintilantes...<br />

O céu nunca esteve tão bonito como hoje, pensou<br />

123


Raimundo. Nunca, nunca mesmo!<br />

CAMINHOS PERIGOSOS<br />

Hélio Sena<br />

Ele ficou alguns minutos apreciando as estrelas,<br />

totalmente <strong>em</strong>bevecido. Depois meteu a mão no bolso,<br />

retirou o pacote de fumo, e, guiando-se apenas pelo<br />

tato, fez o seu cigarro. Quando riscou o fósforo, a chama<br />

mostrou um rosto precoc<strong>em</strong>ente envelhecido, barba e<br />

cabelos por fazer, com vários fios grisalhos... Havia, no<br />

entanto, algo diferente ali: os olhos, outrora opacos, agora<br />

irradiavam um brilho especial, um brilho que certamente<br />

não era apenas o reflexo do brilho das estrelinhas lá no<br />

céu...<br />

Acabado o cigarro, Raimundo pegou a cabaça, bebeu<br />

dois bons goles d’água e estirou-se no chão; logo estava<br />

ferrado no sono...<br />

...<br />

Ao se deitar, Raimundo não percebe que alguém<br />

se aproximara sorrateiramente da janela, e agora está<br />

olhando fixamente para dentro do casebre...<br />

O estranho ser lá fora está deveras faminto... Sua<br />

aparência, <strong>em</strong> frangalhos, é de alguém que acabou de<br />

levantar da sepultura. Um morto-vivo, uma terrível<br />

assombração!<br />

A criatura chega a g<strong>em</strong>er, sentindo o cheiro da carne<br />

fresca de Raimundo...<br />

E então, instintivamente, ela caminha para a entrada<br />

da choupana...<br />

124


...<br />

CAMINHOS PERIGOSOS<br />

Hélio Sena<br />

Raimundo desperta com a dor lancinante da mordida<br />

no ombro... Tenta se levantar, mas a criatura, dotada de<br />

uma força descomunal, imobiliza-o, enquanto aplica outras<br />

mordidas violentas no corpo do viajante.<br />

Em desespero, Raimundo se l<strong>em</strong>bra da faca na cintura.<br />

Com esforço sobre-humano, consegue puxá-la e espeta o<br />

zumbi na altura do peito. Enlouquecida, a visag<strong>em</strong> aplicalhe<br />

uma mordida que arranca parte da orelha esquerda.<br />

Outra mordida o fere mortalmente no pescoço...<br />

Em transe, Raimundo pensa na mulher, nos filhos, no<br />

saco ali ao lado e, reunindo suas últimas forças, <strong>em</strong>purra<br />

a fera de cima de si. Em segundos fica de pé, e, furioso,<br />

desce o sarrafo sobre o vulto caído ali no chão, cobrindo-o<br />

de facadas, até fazê-lo <strong>em</strong> pedaços...<br />

Findo o massacre, Raimundo sente o corpo desfalecer...<br />

Então desaba no meio daquela carne putrefata, que, de<br />

certa forma, lhe amortece a queda e serve de travesseiro<br />

para um sono profundo e completamente s<strong>em</strong> sonhos...<br />

...<br />

Quando Raimundo acordou, o dia vinha clareando.<br />

Sentou-se, esfregando os olhos.<br />

125


surra.<br />

CAMINHOS PERIGOSOS<br />

Hélio Sena<br />

O seu corpo todo doía, parecia que havia levado uma<br />

Mas sorriu ao avistar o saco de estopa.<br />

– Meu tesouro! – disse ele.<br />

Pôs-se de pé, ajeitou o saco e a cabaça d’água nas<br />

costas, o chapéu na cabeça e saiu do casebre.<br />

Lá fora, lançou um olhar ao redor. Apenas aquela<br />

paisag<strong>em</strong> agreste, tão comum aos seus olhos de sertanejo<br />

calejado, de hom<strong>em</strong> que é antes de tudo um forte.<br />

Ao lado do casebre, avistou, com pesar, um monte<br />

de terra com uma cruz tosca feita de gravetos enfiada <strong>em</strong><br />

cima.<br />

A terra parecia ter sido r<strong>em</strong>exida recent<strong>em</strong>ente...<br />

Com certeza tinha sido obra de algum peba, famoso<br />

comedor de defunto daquelas paragens, ou de qualquer<br />

outro bichinho do mato.<br />

O viajante benzeu-se, pensando <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> poderia<br />

estar enterrado ali...<br />

Depois olhou para o nascente.<br />

O sol, lá na frente, parecia uma gigantesca moeda de<br />

ouro.<br />

Raimundo sorriu mais uma vez.<br />

E, decidido, marchou a passos largos, larguíssimos,<br />

naquela direção...<br />

126


CAMINHOS PERIGOSOS<br />

Hélio Sena<br />

HÉLIO SENA é cearense, professor, autor confesso...<br />

Nasceu <strong>em</strong> Padre Linhares, distrito de Massapê, a<br />

12/09/1975. Figura <strong>em</strong> dezenas de coletâneas de <strong>contos</strong><br />

e po<strong>em</strong>as. Expõe seus trabalhos nos blogs Entre Palavras<br />

e Mini<strong>contos</strong>. Recebeu, entre outras distinções, o Troféu<br />

Macunaíma no XIV Festival Literário de Imperatriz (MA)<br />

e o 1º lugar <strong>em</strong> concurso de crônicas promovido pelo<br />

programa Papo Literário, da TV Ceará (Fortaleza).<br />

Twitter: @helyosena<br />

127


FIM

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