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LYA LUFT: UMA FICÇÃO DE SUBSOLO - Unisuam

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<strong>LYA</strong> <strong>LUFT</strong>: <strong>UMA</strong> <strong>FICÇÃO</strong> <strong>DE</strong> <strong>SUBSOLO</strong><br />

Ercília Bittencourt (UNISUAM)<br />

RESUMO: Este trabalho tenta analisar As parceiras (1980), primeiro romance de Lya Luft.<br />

Estudamos, inicialmente, os elementos estruturais da narrativa e seu percurso no processo de<br />

construção do enunciado e da enunciação. O passo seguinte foi pensar o discurso romanesco na<br />

fundação do literário. Como referências, utilizamos estudos teóricos de Bachelard, Barthes, Bataille,<br />

Todorov e outros.<br />

Palavras-chave: Lya Luft – As parceiras – romance – elementos estruturais<br />

ABSTRACT: This work tries to analyse As parceiras (1980), Lya Luft’s first novel. Initially, we<br />

study the structural elements of the narrative and their way in the process of construction of<br />

enunciated and enunciation. The next step was to think about the fictitious discourse in the<br />

foundation of the litterary. As references, we employ theoretical studies by Bachelard, Barthes,<br />

Bataille, Todorov and others.<br />

Key words: Lya Luft - As parceiras – novel – structural elements<br />

INTRODUÇÃO<br />

O romance As parceiras (1980) marca a estréia ficcional da escritora gaúcha Lya Luft<br />

(1938- ), que publicara anteriormente obras poéticas e crônicas: Canções de limiar (1963), Flauta<br />

doce (1972), Matéria do cotidiano (1978).<br />

A autora também é reconhecida como tradutora experiente do alemão e do inglês de nomes<br />

como Virginia Woolf, Thomas Mann, Robert Musil, Rainer Maria Rilke, Günther Grass, Norman<br />

Mailer e Botho Strauss.<br />

Após o primeiro romance, que obteve plena aceitação de crítica e público, publicou outros<br />

na mesma linha intimista e dramática: A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982),<br />

Quarto fechado (1984), Exílio (1987). Seguiram-se outros títulos em que se dedica também à<br />

poesia e às condições sociais da mulher.<br />

Na linha de uma literatura intimista feminina, Lya Luft nos brinda com seu discurso<br />

autêntico e poético, dotado de uma expressão original e inteiramente pessoal.<br />

O texto que tentaremos analisar revelou-se denso e enriquecedor e sua própria natureza nos<br />

provocou a pensar. Portanto, não o utilizamos como pretexto: procuramos realizar a leitura dos<br />

significados com os quais ele lê sua realidade.


1. ARQUITETURA ROMANESCA<br />

Antonio Hohlfeldt identifica em As parceiras a "impulsividade selvagem", o<br />

"surpreendente domínio técnico", a "expectativa inusitada com o suspense criado em torno daquela<br />

figura feminina" (HOHLFELDT, apud <strong>LUFT</strong>, 1983b, orelha). A sensibilidade feminina – feminina,<br />

não feminista –, conjugada ao tom intimista, perpassa a obra da autora. Seus romances são típicos<br />

romances de subsolo, pertencentes a uma linhagem introspectiva de nossa literatura, na qual se<br />

encontram, por exemplo, obras de Lúcio Cardoso (A luz no subsolo, 1936) e Clarice Lispector (A<br />

maçã no escuro, 1961). É através do tom confessional e psicológico que a escritora desenvolve seu<br />

tema essencial: o submundo emocional de personagens-narradoras que, envoltas num clima tenso e<br />

sombrio de delírio e tragédia, vivenciam um momento de crise existencial, alimentada pela<br />

memória da infância ou de recentes laços desfeitos.<br />

Em As parceiras, a narrativa não linear se divide em sete capítulos intitulados com os dias<br />

da semana. Assume a forma de um diário em primeira pessoa, em que a protagonista atua<br />

duplamente como sujeito da enunciação e do enunciado para si própria, transformando-se em um<br />

diálogo secreto.<br />

A narradora autodiegética segue um impulso memorialista e atesta sua sinceridade ao<br />

relatar os fatos e os sentimentos. É, portanto, a narradora "digna de confiança" (reliable) de que nos<br />

fala Wayne C. Booth, dentro da coerência interna da obra. Em raros trechos, ela utiliza a terceira<br />

pessoa. Se, como diz Barthes, "o eu costuma ser testemunha, enquanto o ele é autor" (BARTHES,<br />

1974, p. 136), podemos dizer que esse romance é um depoimento de busca e fuga, uma tentativa de<br />

descobrir o sentido da existência, no retorno da personagem ao universo familiar.<br />

1.1. "Árvore doente" – as personagens<br />

Três gerações de mulheres, as "raízes de Catarina von Sassen" (<strong>LUFT</strong>, 1983a, p. 143) e<br />

seus destinos entrelaçados servem de matéria romanesca. Qual o objetivo de sua neta Anelise ao<br />

contar a história dessas raízes? Não se trata apenas de uma revisão do passado, mas de uma questão<br />

de sobrevivência ("se dou com a ponta errada do fio, se descubro o lance perverso da jogada, a peça<br />

de azar, quem sabe consigo sobreviver?" – Ibidem, p. 18).<br />

O destino infeliz e solitário que une essa família de mulheres na qual os homens entraram<br />

pelo casamento ou a adoção (o primo Otávio) é inaugurado com Catarina e termina em Anelise, sua<br />

neta. Medo e perplexidade, angústia e solidão no caminho questionador do drama existencial.<br />

A narradora visualiza essas personagens como peças de um jogo de tabuleiro, o que já é<br />

denunciado pelo próprio título da narrativa. Mas de que jogo ela nos fala? "É como se a vida fosse


um jogo em que as peças mudam, mas as jogadoras são as mesmas. Incógnitas" (Ibidem, p. 17). À<br />

primeira vista, o leitor imagina que, nesse jogo, as parceiras são as personagens. Mas, não; ao longo<br />

da narrativa elas riem, roubam peças do tabuleiro, mas permanecem ocultas: "... duas velhas<br />

caspentas jogando no tabuleiro em que as sombras corriam, saltavam, caíam, devoravam-se."<br />

(Ibidem, p. 66). Jogadoras, "velhas bruxas" (Ibidem, p. 44), parceiras. Mas sempre, vencedoras. O<br />

que é reconhecido pela narradora ao afirmar que faz parte de uma "família de perdedoras" (Ibidem,<br />

p. 148), "as peças de azar no jogo, as que perdem" (Ibidem, p. 103).<br />

As personagens masculinas desempenham na narrativa papéis de meros coadjuvantes, já<br />

que a maioria nem sequer é nomeada, a não ser os que estão mais próximos da narradora: Otávio e<br />

Tiago.<br />

Catarina e suas filhas Beatriz, Dora, Norma (e suas filhas Vânia e Anelise), e Sibila estão<br />

unidas por elos mais fortes do que o sangue: "... me senti próxima de minha avó: também Catarina<br />

tivera uma realidade insuportável a enfrentar e assumira aquilo a seu modo" (Ibidem, p. 124).<br />

Círculo de vidas femininas que começa/termina com Catarina/Anelise. As parceiras/perdedoras.<br />

Mas se as personagens femininas são desenhadas em profundidade, desnudando seus mais<br />

íntimos sentimentos, as masculinas são esbatidas em rápidas pinceladas, pinceladas que se<br />

relacionam com a sexualidade: o avô "virilhas em fogo" (Ibidem, p. 14); o tio suicida "por não<br />

poder cumprir seus deveres conjugais" (Ibidem, p. 36); o pai "complacente" (Ibidem, p. 29); o<br />

cunhado "farrista" (Ibidem, p. 97). Otávio é o "efebo, criatura andrógina" (Ibidem, p. 68). Com<br />

exceção de Tiago, em que tudo é "saudável" (Ibidem, p. 83), parece que há entre os homens e as<br />

mulheres da narrativa uma forte pulsão sexo/morte.<br />

A questão da sexualidade talvez seja a origem das tragédias dessa família. Procuraremos<br />

enfocar as personagens de acordo com polos antinômicos da sexualidade, segundo Bataille: o<br />

excesso/a carência e o proibido/a transgressão.<br />

No polo excesso, enquadram-se o avô, o cunhado e a própria Anelise no início de seu<br />

casamento com Tiago: "fazendo amor delirantemente" (Ibidem, p. 101). É o momento da<br />

sexualidade plenamente assumida, predominando o elemento masculino.<br />

No polo oposto, carência, encaixam-se o tio (pela sua impotência) e todas as mulheres da<br />

família, inclusive a narradora no final de seu casamento: "quando foi a última vez?" (Ibidem, p.<br />

118). Parece que aí se confirma a tradição que opõe o ativo/masculino ao passivo/feminino e nesse<br />

polo da carência predomina o elemento feminino.<br />

No campo do proibido, há vários desdobramentos: o ambíguo Otávio, cujo<br />

homossexualismo é sugerido pela narradora; o amor impossível entre Anelise e Otávio; a cena de<br />

amor no jardim; o proibido ligado à sugestão de homossexualismo e à morte (Anelise/Adélia e


Catarina/enfermeira); a ligação com a reprodução: Vânia e seu pacto de não ter filhos; os abortos de<br />

Catarina e Anelise: "expulsava o filho como um objeto estranho, um intruso" (Ibidem, p. 114).<br />

No âmbito da transgressão, temos a cena sexual da mulher de Otávio com o rapazote e as<br />

violações: de Catarina: "minha avó vomitava quando o marido saía de cima dela" (Ibidem, p. 120);<br />

de Zico: "foi violentado... por uns rapazes" (Ibidem, p. 129) e da donzela medieval do filme<br />

mencionado no romance: "violada no mato por dois vagabundos" (Ibidem, p. 130).<br />

A interdependência entre o proibido e a transgressão e a oposição talvez aparente entre<br />

sexualidade em excesso e em carência levam-nos a refletir com Bataille, que "o erotismo é o<br />

desequilíbrio no qual o ser a si próprio se põe em questão, conscientemente" (BATAILLE, 1980, p.<br />

29) e que "o movimento de amor, levado ao extremo, é um movimento de morte" (Ibidem, p. 38).<br />

1.2. Sótão – ligação do real com o maravilhoso<br />

Anelise retorna ao local de sua infância e juventude, caminha pela praia, sobe o morro,<br />

visita o cemitério, sempre acompanhada de seu "cortejo fiel: os mortos, os loucos, os suicidas, os<br />

dúbios e desamparados; os culpados, os solitários" (<strong>LUFT</strong>, 1983a, p. 147). Nesse itinerário, que não<br />

é somente espacial, realiza uma profunda viagem ao interior de si mesma.<br />

O casarão, o passado, o contexto do fantástico, do insólito à noite, "casa habitada por<br />

velhas e fantasmas" (Ibidem, p. 33). O Chalé, o presente que absorve o passado, "casa dos<br />

fantasmas" (Ibidem, p. 16). Em ambos, o sótão. Mas o sótão, apesar de ser "uma palavra triste e<br />

sozinha" (Ibidem, p. 12) não era sombrio: havia "a claridade do quarto, onde tudo era branco:<br />

paredes, cortinas, tapete, móveis, até as rendas do vestido comprido de sua moradora" (Ibidem, p.<br />

12). Isso quando Catarina era viva. Porque, após sua morte, segundo tia Bea, "é sujo e feio lá em<br />

cima. Desarrumado. Não tem nada para uma menina ver" (Ibidem, p. 31).<br />

O sótão, de início, é a moradia de loucura de Catarina, cujo ápice é "o sótão do sótão, onde<br />

não se precisava falar, escrever" (Ibidem, p. 41). Mais tarde, é o local onde Otávio guarda "as<br />

misteriosas caixas de sapato" (Ibidem, p. 68) com vermes "verdes, pelados, nojentos, entre folhas de<br />

amoreira" (Ibidem). São misteriosas também porque vão antecipar os pequenos caixões de Adélia (a<br />

amiguinha da narradora), Bila (a tia Sibila) e Lalo (seu filho): "era uma caixa de sapato ou um<br />

caixãozinho de criança?" (Ibidem, p. 111). Ao olhar o rosto de Lalo, Anelise o compara a uma<br />

"caixa de segredos que ninguém desvendava" (Ibidem, p. 133).<br />

Bachelard, lembrando uma comparação de Jung em L'homme à la découverte de son âme,<br />

afirma que "em lugar de enfrentar o porão (o inconsciente), o 'homem prudente' de Jung busca<br />

coragem nos álibis do sótão" (BACHELARD, s/d, p. 31).


Anelise sente-se atraída pelos espaços altos: primeiro, o sótão; depois, o morro<br />

transformado em sótão, com seu cemitério, "lugar onde sumiam as coisas que amei" (<strong>LUFT</strong>, 1983a,<br />

p. 44).<br />

A escada em caracol, o quarto branco no terceiro andar, a balaustrada, a porta de vidro. O<br />

sótão, um refúgio e uma fuga: "guarda o passado assim como domina o espaço" (BACHELARD,<br />

s.d, p. 35). "Sempre aquele sótão por cima da solidão da gente” (<strong>LUFT</strong>,1993a, p. 37). Cada<br />

personagem o assume de forma particular. Em Catarina, ele se manifesta através das falas e das<br />

cartas sem destinatário; em Beatriz, é a virgindade; para Dora, são os anjos que desenha e os<br />

monstros que pinta; em Norma, é a cantiga alemã que canta e toca ao piano; para Vânia, é o<br />

casamento infeliz.<br />

Até que, após tantos e sucessivos sofrimentos na vida da família e na sua própria, a<br />

narradora o incorpora: “Fizera um sótão para mim mesma, com traves, madeirames, tijolos tirados<br />

das escuridões desde a minha infância” (Ibidem, p. 121). “Meu sótão era eu...” (Ibidem, p. 124).<br />

Enfim, passado o temor e o fascínio que o sótão exercera sobre ela, Anelise reconhece que<br />

agora é “um corpo sem memória, feito sótão cheio de moradores esquisitos” (Ibidem, p. 112).<br />

Aliás, Bachelard já mencionara essa relação de igualdade entre o quarto e o ser: “a<br />

intimidade do quarto transforma-se na nossa própria intimidade (...) o quarto é, em profundidade,<br />

nosso quarto, o quarto está em nós” (BACHELARD, s/d, p. 166).<br />

O sótão é o elemento espacial que liga o real ao maravilhoso. Sua onipresença na narrativa<br />

denuncia o espaço interior, o espaço que incorpora o ser, desenvolvendo o valor da intimidade<br />

profunda, desvelada e revelada.<br />

1.3. Passado de fantasmas x presente vazio<br />

O ir-e-vir da narrativa é trabalhado em flash-back, em cortes temporais. A narradora,<br />

conforme o fluxo de sua memória, relata o passado e o presente, evidenciando-se que ela tenta<br />

explicar o último através do primeiro: “refugiada nas lembranças para não ter que decidir a vida,<br />

mergulhar no passado para não enfrentar o futuro. Ou para entender o presente?” (<strong>LUFT</strong>, 1983a, p.<br />

94).<br />

O fio narrativo é conduzido através do tempo, num movimento pendular: a busca do<br />

passado, sua inserção no presente e sua projeção no futuro. Através da anamnese, a personagem-<br />

narradora empreende sua viagem em busca do tempo perdido, como Proust. Através do “cemitério<br />

particular da memória” (Ibidem, p. 18), a narradora, à semelhança do Ulisses, de Joyce, delimita<br />

não o período de um dia, mas o de sete dias, para a compreensão de sua história.


A narrativa cíclica inicia no Domingo, o dia do Senhor dos latinos e termina no Sábado,<br />

palavra derivada do termo hebraico Shabath, que traduz o repouso indicado na velha lei judaica<br />

como sendo o dia dedicado ao descanso e às orações.<br />

É interessante observar que a narradora, ao partir para o Chalé, deixara uma carta para<br />

Tiago, “com o PS sem nenhum sentido, de que ficaria aqui até domingo” (Ibidem, p. 143). Por que<br />

razão, então, a narrativa termina no sábado, antecipando o prazo que ela própria havia estabelecido?<br />

Será que, ao recuperar finalmente a identidade perdida, ela se permite o “descanso” do sábado?<br />

Essa é mais uma das muitas perguntas que a narrativa deixa ao leitor.<br />

A divisão em sete capítulos remete, também, ao mito da criação do mundo. Só que o<br />

mundo de Anelise já está criado: o que ela faz é transpor a fronteira do presente, para alcançar os<br />

motivos esquecidos do passado.<br />

A narradora “para” de viver ao se deslocar para o Chalé, onde está isenta de tudo para<br />

tentar entender o passado. Essa interrupção é necessária porque, como diz Pouillon, “o real é o<br />

passado; é real por estar sempre presente, porque, por assim dizer, ele é que o presente”<br />

(POUILLON, 1974, p. 174). A matéria romanesca conecta o passado com o presente. A fusão dos<br />

tempos se dá por uma correspondência dos fatos do passado no presente, cuja redundância<br />

estabelece uma certa ambiguidade temporal.<br />

Devemos lembrar que a narrativa é um dos romances “com” de que nos fala Pouillon:<br />

existe apenas um ponto de vista de ator. Portanto, a defasagem, a descontinuidade e a desordem<br />

cronológicas estão ligadas diretamente a esse fato. Nas palavras de Rousset, “’je conte’ est un<br />

présent,’mon histoire’ ou ‘ma vie’ sont du passé par rapport à ce moment où l’on parle” (eu conto<br />

é um presente, minha história ou minha vida são do passado em relação ao momento em que falo)<br />

(ROUSSET, 1973, p. 17).<br />

A temporalidade é essencialmente dispersão, transformação. Como captar o momento<br />

fugidio, o presente de imediato transmudado em passado? De acordo com Rousset, sabemos que<br />

“un passé sera raconté, mais en fonction de la situation actuelle du narratcur” (um passado será<br />

contado, mas em função da situação atual do narrador) (Ibidem, p. 25). Anelise revive o seu<br />

passado, mas ele atinge o leitor através do presente da narrativa.<br />

Para os gregos antigos, o tempo era Chronos, o maligno pai de todos os seres vivos, que<br />

invariavelmente devorava todos os seus filhos. Ao tentar resgatar a si mesma, a narradora também<br />

resgata a avó; ao tentar resgatar a contingência do encadeamento temporal, ela é praticamente<br />

“devorada” pelo peso das lembranças. Anelise é seu passado e seu presente.<br />

2. ENTRE O REAL E O MARAVILHOSO


A subjetividade da personagem, a objetividade do mundo e o poder de os acontecimentos<br />

subjugarem ambos vão indicar a dinâmica estruturante ficcional, definindo, consequentemente, o<br />

padrão narrativo.<br />

Em As parceiras, coexistem dois planos: o real e o maravilhoso, mas não é tão fácil<br />

estabelecer os limites entre eles. Há uma zona de interseção, que não pertence especificamente a<br />

nenhum dos planos, mas que lhes serve de ligação.<br />

No plano real, temos as personagens, o espaço e os acontecimentos do enredo. Estes<br />

sobrepujam os outros dois, impondo-lhes sua lógica significante. Esse domínio atesta-se pela sua<br />

própria redundância no passado e no presente. Citaremos os mais relevantes: a violação (de<br />

Catarina e Zico); os abortos (de Catarina e Anelise); os frutos maduros e excepcionais (de Catarina<br />

e Anelise); a loucura (de Catarina, refletindo-se no comportamento de suas filhas e netas); o<br />

suicídio (de Catarina e do marido de Beatriz, ambos por problemas sexuais); a morte no mar (de<br />

Adélia e dos pais de Anelise).<br />

Contudo, esses paralelos não são totalmente sombrios. Alguns são simples ou luminosos<br />

como, por exemplo, a alegria de viver (de Adélia e Dora), a identificação de personagens pelos<br />

perfumes (de Catarina e Beatriz, respectivamente alfazema e leite de rosas) ou pelos sons (de<br />

Norma e Otávio, ao piano).<br />

No plano maravilhoso, figuram os anjos (relacionados a Otávio, Zico, Lalo, mas também<br />

aos desenhos de Dora); a fada (Norma, a mãe); os anõezinhos e a bruxa (o universo de fantasia<br />

criado pela narradora quando criança); os duendes (associados pela narradora aos abortos de<br />

Catarina). Mas, sobretudo, a constante referência a fantasmas (de Catarina e Adélia).<br />

O real e o maravilhoso constroem paralelamente a sua lógica e é no seu encontro que<br />

reside a ambiguidade da narrativa. Nesse contexto, são bastante adequadas as palavras de Antonio<br />

Carlos Villaça:<br />

Ambiguidade, eis o que caracteriza a ficção de Lya Luft. (...) Participamos do texto, nele<br />

nos integramos, somos envolvidos por ele, pela sua pungência, pela estranheza das personagens,<br />

entre a morbidez e o devaneio, somos dominados por esse dom, que Lya possui, de recriar a vida,<br />

organizadamente, de dentro para fora. (VILLAÇA, apud <strong>LUFT</strong>, 1984, contracapa).<br />

A primeira ambiguidade da narrativa parece configurar-se no próprio título do romance. As<br />

parceiras são as mulheres da família de Catarina von Sassen, especialmente a narradora Anelise e<br />

sua avó, divididas entre a sanidade e a loucura. Mas também, sem dúvida, a vida e a morte: “então a<br />

traidora não era só a morte: era a vida também, a parceira, a outra bruxa soprando velas na noite.”<br />

(Ibidem, p. 124).<br />

Tentando sobreviver, como revela no início da narrativa, Anelise coloca-se ao lado da vida<br />

e da sanidade. Catarina, ao contrário, enlouquece e está morta. Entre a sanidade e a loucura, o sótão.


Para a avó, a loucura se traduzia em murmurar e escrever; para sua neta, a sanidade é pensar e<br />

escrever. Escrever para entender o passado. Pensar é escrever.<br />

3. CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES FINAIS<br />

O desfecho da narrativa se ramifica em várias perguntas que tentam elucidá-la. Quem é a<br />

excêntrica veranista postada no alto do morro? É o fantasma de Catarina? Será que Anelise se<br />

suicida ao imaginar encontrar-se com o fantasma da avó? Ou ela sobrevive e enlouquece como<br />

Catarina? A narradora recupera sua identidade perdida ao relembrar o passado? Ou o encontrar-se<br />

consigo mesma se processa através da própria escritura do texto? Tentar responder a essas<br />

perguntas serve unicamente para confirmar que essa é uma “obra aberta”, no dizer de Umberto Eco.<br />

E que penetrar nesse romance de Lya Luft, no submundo emocional dessas personagens, dotadas de<br />

uma poesia mórbida, pode ser a melhor resposta.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos<br />

Leal. Rio de Janeiro: Eldorado, s.d.<br />

BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos/O grau zero da escritura. Trad. Heloysa de Lima<br />

Dantas, Anne Arnichand, Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1974.<br />

BATAILLE, Georges. O erotismo. 2.ed. Trad. João Bénard da Costa. Lisboa: Moraes Editores,<br />

1980.<br />

BOOTH, Wayne C. The rhetorique of fiction. Chicago: The University of Chicago Press, 1961.<br />

<strong>LUFT</strong>, Lya. As parceiras. 4.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983a.<br />

__________. A asa esquerda do anjo. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983b.<br />

__________. Reunião de família. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.<br />

POUILLON, Jean. O tempo no romance. Trad. Heloísa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix /<br />

EdUSP, 1974.<br />

ROUSSET, Jean. Narcisse romancier: essai sur la première personne dans de Roman. Paris: José<br />

Corti, 1973.<br />

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1970. (Debates, 14)


(Artigo recebido em 21 de março de 2011 e aprovado para publicação em 28 de abril de 2011.)

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