19.04.2013 Views

Memórias Póstumas de Brás Cubas

Memórias Póstumas de Brás Cubas

Memórias Póstumas de Brás Cubas

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Memórias</strong><br />

<strong>Póstumas</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Brás</strong><br />

<strong>Cubas</strong><br />

Machado <strong>de</strong> Assis<br />

Resenhado por Douglas Machert


AO VERME<br />

QUE<br />

PRIMEIRO ROEU AS<br />

FRIAS CARNES<br />

DO MEU CADÁVER<br />

DEDICO<br />

COMO SAUDOSA<br />

LEMBRANÇA<br />

ESTAS<br />

MEMÓRIAS PÓSTUMAS<br />

Por Douglas Machert<br />

<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

o ceticismo<br />

SENTIDO DA<br />

EXISTÊNCIA<br />

X<br />

EXISTÊNCIA<br />

SEM SENTIDO<br />

Francis Bacon -<br />

painting


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

o ceticismo<br />

CETICISMO E NIHILISMO<br />

Este último capítulo é todo <strong>de</strong><br />

negativas. Não alcancei a celebrida<strong>de</strong> do<br />

emplasto, não fui ministro, não fui califa,<br />

não conheci o casamento. Verda<strong>de</strong> é<br />

que, ao lado <strong>de</strong>ssas faltas, coube-me a<br />

boa fortuna <strong>de</strong> não comprar o pão com o<br />

suor do meu rosto. Somadas umas<br />

coisas e outras, qualquer pessoa<br />

imaginará que não houve míngua nem<br />

sobra, e conseguintemente que sai quite<br />

com a vida. E imaginará mal; porque ao<br />

chegar a este outro lado do mistério,<br />

achei-me com um pequeno saldo, que é<br />

a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira negativa <strong>de</strong>ste capítulo <strong>de</strong><br />

negativas: - Não tive filhos, não transmiti<br />

a nenhuma criatura o legado da nossa<br />

miséria. (CAP. 160 – Das Negativas)<br />

Por Douglas Machert<br />

Francis Bacon - Study for a<br />

Crouching Nu<strong>de</strong>, 1952


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

o estilo<br />

Escrevia a obra com a pena da galhofa<br />

e a tinta da melancolia (Ao Leitor)<br />

Algum tempo hesitei se <strong>de</strong>via abrir estas<br />

memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se<br />

poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a<br />

minha morte. Suposto o uso vulgar seja<br />

começar pelo nascimento, duas consi<strong>de</strong>rações<br />

me levaram a adotar diferente método: a<br />

primeira é que eu não sou propriamente um<br />

autor <strong>de</strong>funto, mas um <strong>de</strong>funto autor, para<br />

quem a campa foi outro berço; a segunda é que<br />

o escrito ficaria assim mais galante e mais<br />

novo. Moisés, que também contou a sua morte,<br />

não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença<br />

radical entre este livro e o Pentateuco. (Cap1 – Óbito<br />

do Autor)<br />

Por Douglas Machert<br />

PESSIMISMO + IRONIA =<br />

SARCASMO<br />

CARÁTER ICONOCLATA E<br />

DESSACRALIZADOR<br />

Francis Bacon – Head III


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

o estilo<br />

ESTE LIVRO E O MEU ESTILO<br />

Começo a arrepen<strong>de</strong>r-me <strong>de</strong>ste livro. Não que<br />

ele me canse; eu não tenho que fazer; e,<br />

realmente, expedir alguns magros capítulos para<br />

esse mundo sempre é tarefa que distrai um<br />

pouco da eternida<strong>de</strong>. Mas o livro é enfadonho,<br />

cheira a sepulcro, traz certa contração<br />

cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o<br />

maior <strong>de</strong>feito <strong>de</strong>ste livro és tu, leitor. Tu tens<br />

pressa <strong>de</strong> envelhecer, e o livro anda <strong>de</strong>vagar; tu<br />

amas a narração direita e nutrida, o estilo regular<br />

e fluente, e este livro e o meu estilo são como os<br />

ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e<br />

param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam<br />

o céu, escorregam e caem... CAP 71 - O Senão do Livro<br />

Por Douglas Machert<br />

Goya - Due vecchi<br />

che mangiano


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

O <strong>de</strong>funto e o<br />

<strong>de</strong>lírio<br />

<strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> nos conta suas<br />

memórias. Supostamente <strong>de</strong>funto<br />

autor, afirma que morreu, aos 64<br />

anos, <strong>de</strong> pneumonia quando<br />

trabalhava num “sensacional”<br />

invento, um emplastro antihipocondríaco.<br />

No sepultamento<br />

estavam presentes apenas onze<br />

pessoas. Nos conta também um<br />

<strong>de</strong>lírio durante uma visita <strong>de</strong> Virgília:<br />

um hipopótamo branco o leva a uma<br />

planície extensa e gelada, on<strong>de</strong><br />

encontra com Natureza ou Pandora.<br />

Esta o eleva a uma montanha, e lhe<br />

mostra a sucessão dos séculos.<br />

Por Douglas Machert


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

<strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> nasceu no dia 20 <strong>de</strong><br />

outubro <strong>de</strong> 1805. Demasiadamente<br />

mimado pelo pai, foi um menino<br />

endiabrado. Nos conta <strong>de</strong><br />

Prudêncio: que, em criança,<br />

montava-o, punha-lhe um freio na<br />

boca, e <strong>de</strong>sancava-o sem<br />

compaixão; ele gemia e sofria.<br />

Aos <strong>de</strong>zessete anos apaixona-se<br />

por Marcela. Para agradá-la, gasta<br />

<strong>de</strong>mais - ela gostava <strong>de</strong> jóias.<br />

Marcela amou-me durante quinze<br />

meses e onze contos <strong>de</strong> réis.<br />

Marcela<br />

Por Douglas Machert<br />

Münch - RED AND WHITE


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Quando o pai tomou conhecimento<br />

<strong>de</strong>sses esbanjamentos, mandou-o para<br />

Coimbra cursar Direito. Lá formou-se<br />

em um advogado medíocre.<br />

Regressa ao Rio: sua mãe está à beira<br />

da morte. Após o falecimento <strong>de</strong>sta,<br />

passa uns dias na Tijuca. Lá conhece<br />

Eugênia (a flor da moita) e mantém um<br />

romance passageiro. <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

<strong>de</strong>siste da relação pois, apesar <strong>de</strong><br />

moça bonita, tem um <strong>de</strong>feito na perna<br />

que a fazia coxear um pouco.<br />

Eugênia<br />

Por Douglas Machert<br />

Münch - RED AND WHITE


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Virgília<br />

Ainda na Tijuca, <strong>Brás</strong> recebe a visita do pai,<br />

que tem dois projetos: casá-lo e fazê-lo<br />

<strong>de</strong>putado. Assim, apresentado ao<br />

Conselheiro Dutra, que promete ajudá-lo na<br />

pretendida ascensão política, conhece<br />

Virgília. Pareciam que os sonhos do pai<br />

estavam prestes a realizar-se. Entretanto,<br />

surge Lobo Neves, que não somente<br />

“rouba” Virgília, como também cai nas<br />

graças do Conselheiro Dutra. O pai <strong>de</strong><br />

<strong>Brás</strong>, profundamente <strong>de</strong>sapontado e<br />

magoado, falece em alguns meses.<br />

Por Douglas Machert<br />

Klimt - Judith I


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Virgília<br />

Virgília casa-se com Lobo Neves, que,<br />

pouco tempo <strong>de</strong>pois, elege-se<br />

<strong>de</strong>putado. No entanto, Virgília e <strong>Brás</strong><br />

encontram-se com freqüência e<br />

tornam-se amantes. Nessa época,<br />

<strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> encontra seu ex-colega <strong>de</strong><br />

escola primária, o Quincas Borba, que<br />

se tornara mendigo. Depois do<br />

encontro, <strong>Brás</strong> percebe que Quincas<br />

lhe roubara o relógio.<br />

Por Douglas Machert<br />

Klimt - Judith I


Blake - Whirlwind of Lovers<br />

<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Turbilhão do amor<br />

Os encontros entre<br />

Virgília e <strong>Brás</strong> suscitam<br />

vários comentários.<br />

Enquanto <strong>Brás</strong> propõe<br />

fuga para um lugar<br />

distante, Virgília sugere<br />

uma casinha em alguma<br />

rua escondida. Dona<br />

Plácida, ex-empregada<br />

<strong>de</strong> Virgília, será a<br />

encarregada <strong>de</strong> cuidar<br />

<strong>de</strong>ssa casa.<br />

Por Douglas Machert


Blake - Whirlwind of Lovers<br />

<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Turbilhão do amor<br />

Lobo Neves é <strong>de</strong>signado<br />

presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma província<br />

no nor<strong>de</strong>ste. <strong>Brás</strong>,<br />

<strong>de</strong>sesperado, pe<strong>de</strong> a Virgília<br />

que não o abandone.<br />

Quando tudo parece sem<br />

solução, Lobo Neves<br />

convida <strong>Brás</strong> para ser seu<br />

secretário, que aceita.<br />

Diante dos comentários que<br />

aumentam, Cotrim, casado<br />

com Sabina, irmã <strong>de</strong> <strong>Brás</strong>,<br />

procura fazê-lo ver que a<br />

viagem seria uma aventura<br />

muito perigosa.<br />

Por Douglas Machert


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Do 13 ao 31<br />

No entanto, Lobo Neves,<br />

extremamente supersticioso, acaba<br />

não aceitando o cargo, porque o<br />

<strong>de</strong>creto <strong>de</strong> nomeação fora publicado<br />

no Diário Oficial num dia 13. Recebe<br />

também uma carta anônima<br />

<strong>de</strong>nunciando os amores da esposa<br />

com o amigo – eis o conflito entre a<br />

Honra e o Interesse.<br />

Virgília engravida e per<strong>de</strong> o filho.<br />

De quem?<br />

Lobo Neves é novamente nomeado<br />

presi<strong>de</strong>nte, e <strong>de</strong>sta vez, a data é <strong>de</strong> 31.<br />

Olhem para as sutilezas da vida!<br />

Por Douglas Machert<br />

Francis Bacon, Self portrait


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Do 13 ao 31<br />

<strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> diz a<strong>de</strong>us a Virgília,<br />

almoça como se nada <strong>de</strong><br />

importante tivesse acontecido.<br />

Aliás, o tempo havia passado e,<br />

embora ainda se sentisse forte e<br />

com saú<strong>de</strong>, era já um cinquentão.<br />

Sabina, preten<strong>de</strong> "arranjar" um<br />

casamento para <strong>Brás</strong>: uma moça<br />

prendada chamada Nhá-Loló.<br />

Mesmo sem entusiasmo, <strong>Brás</strong><br />

aparenta interesse pelo projeto. No<br />

entanto, mais uma fatalida<strong>de</strong>: Nhá-<br />

Loló morre durante uma epi<strong>de</strong>mia.<br />

Por Douglas Machert<br />

Francis Bacon, Self portrait


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

O tempo vai passando. <strong>Brás</strong> torna-se<br />

<strong>de</strong>putado (também, medíocre). Sua<br />

preocupação era o tamanho da<br />

barretina que usava a Guarda<br />

Nacional. Na Assembléia, encontra<br />

com Lobo Neves que havia voltado<br />

da província .<br />

Reencontra-se também com Virgília,<br />

que não tinha mais a beleza antiga. O<br />

<strong>de</strong>sinteresse recíproco põe fim aos<br />

amores tão ar<strong>de</strong>ntes<br />

Por Douglas Machert<br />

A mão pesada do tempo<br />

Blake - Pietá


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Quincas Borba reaparece e restitui o<br />

relógio roubado. Passa a ser um<br />

freqüentador da casa <strong>de</strong> <strong>Brás</strong>. Havia<br />

mudado muito: não era mais<br />

mendigo (recebera uma herança <strong>de</strong><br />

um tio em Barbacena) e virara<br />

filósofo: inventara uma teoria<br />

filosófico-religiosa, o Humanitismo, a<br />

qual o próprio <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> passou a<br />

se interessar.<br />

Por Douglas Machert<br />

A mão pesada do tempo<br />

Blake - Pietá


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Perdas e <strong>de</strong>cadências<br />

Procurado por Virgília, já idosa, <strong>Brás</strong> ampara<br />

dona Plácida. Quanto aos cinco contos, não<br />

vale a pena dizer que um carteiro da vizinhança<br />

fingiu-se enamorado <strong>de</strong> Dona Plácida, logrou<br />

espertar-lhe os sentidos, ou a vaida<strong>de</strong>, e casou<br />

com ela; no fim <strong>de</strong> alguns meses inventou um<br />

negócio, ven<strong>de</strong>u as apólices e fugiu com o<br />

dinheiro. Dona Plácida morre pouco <strong>de</strong>pois.<br />

É um período cheio <strong>de</strong> perdas e <strong>de</strong>cadências:<br />

Não acabarei, porém, o capítulo, sem dizer que<br />

vi morrer no hospital da Or<strong>de</strong>m, adivinhem<br />

quem?... a linda Marcela; e via-a morrer no<br />

mesmo dia em que, visitando um cortiço, para<br />

distribuir esmolas, achei... Agora é que não são<br />

capazes <strong>de</strong> adivinhar.., achei a flor da moita,<br />

Eugênia, tão coxa como a <strong>de</strong>ixara, e ainda mais<br />

triste.<br />

Por Douglas Machert<br />

Francis Bacon - Studies of Isabel<br />

Rawsthorne


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

Perdas e <strong>de</strong>cadências<br />

Morre, também, Lobo Neves, e Virgília chorou<br />

com sincerida<strong>de</strong> o marido, como o havia<br />

traído com sincerida<strong>de</strong>.<br />

<strong>Brás</strong> fracassa na tentativa <strong>de</strong> virar ministro <strong>de</strong><br />

Estado. Frustrado, funda um jornal <strong>de</strong><br />

oposição. Percebe, também, que Quincas<br />

Borba está completamente louco.<br />

<strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> <strong>de</strong>ixou este mundo pouco <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> Quincas Borba. Depois <strong>de</strong> um balanço da<br />

vida, conclui <strong>de</strong> forma pessimista:<br />

Por Douglas Machert<br />

Francis Bacon - Portrait 1949


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

O balanço<br />

ENTRE A MORTE do Quincas Borba e a minha, mediram os sucessos<br />

narrados na primeira parte do livro. O principal <strong>de</strong>les foi a invenção do<br />

emplasto <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, que morreu comigo, por causa da moléstia que<br />

apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens,<br />

acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração<br />

do Céu. O caso <strong>de</strong>terminou o contrário; e aí vos ficais eternamente<br />

hipocondríacos.<br />

Este último capítulo é todo <strong>de</strong> negativas. Não alcancei a celebrida<strong>de</strong><br />

do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento.<br />

Verda<strong>de</strong> é que, ao lado <strong>de</strong>ssas faltas, coube-me a boa fortuna <strong>de</strong> não<br />

comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não pa<strong>de</strong>ci a morte <strong>de</strong> D.<br />

Plácida, nem a semi<strong>de</strong>mência do Quincas Borba. Somadas umas cousas e<br />

outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e<br />

conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao<br />

chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo,<br />

que é a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira negativa <strong>de</strong>ste capítulo <strong>de</strong> negativas: --Não tive filhos,<br />

não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.<br />

Por Douglas Machert


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> - o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> fama<br />

A MULTIDÃO<br />

Essa idéia era nada menos que a invenção <strong>de</strong><br />

um medicamento sublime, um emplasto antihipocondríaco,<br />

<strong>de</strong>stinado a aliviar a nossa<br />

melancólica humanida<strong>de</strong>. Na petição <strong>de</strong><br />

privilégio que então redigi, chamei a atenção<br />

do governo para esse resultado,<br />

verda<strong>de</strong>iramente cristão. Todavia, não neguei<br />

aos amigos as vantagens pecuniárias que<br />

<strong>de</strong>viam resultar da distribuição <strong>de</strong> um produto<br />

<strong>de</strong> tamanhos e tão profundos efeitos. Agora,<br />

porém, que estou cá do outro lado da vida,<br />

posso confessar tudo: o que me influiu<br />

principalmente foi o gosto <strong>de</strong> ver impressas<br />

nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas,<br />

e enfim nas caixinhas do remédio, estas três<br />

palavras: Emplasto <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>. Para que<br />

negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do<br />

cartaz, do foguete <strong>de</strong> lágrimas. O Emplato<br />

Multidão, cujo amor<br />

cobicei até à morte,<br />

era assim que eu me<br />

vingava às vezes <strong>de</strong><br />

ti; <strong>de</strong>ixava<br />

burburinhar em volta<br />

do meu corpo a<br />

gente humana, sem a<br />

ouvir. Na Platéia<br />

BRÁS CUBAS = DEUS<br />

Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A<br />

manhã era linda. Veio por ali fora, mo<strong>de</strong>sta e negra,<br />

espairecendo as suas borboletices. Passa pela minha<br />

janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto<br />

um homem; não sabia, portanto, o que era o homem;<br />

<strong>de</strong>screveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu<br />

que me movia, que tinha olhos,braços, pernas, um ar<br />

divino, uma estatura colossal. Então disse consigo:<br />

“Este é provavelmente o inventor das borboletas.” A<br />

idéia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, insinuou-lhe<br />

que o melhor modo <strong>de</strong> agradar ao seu criador era beijá-lo<br />

na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por<br />

mim, não é foi impossível pousar na que vidraça, viu dali o retrato <strong>de</strong> meu pai,<br />

e <strong>de</strong>scobrisse meia verda<strong>de</strong>,<br />

que estava ali o pai do<br />

inventor das borboletas, e<br />

voou a pedir-lhe<br />

misericórdia.<br />

Pois um golpe <strong>de</strong> toalha<br />

rematou a aventura. Vejam<br />

como é bom ser superior às<br />

borboletas!... uni o <strong>de</strong>do<br />

gran<strong>de</strong> ao polegar, <strong>de</strong>spedi<br />

um piparote e o cadáver<br />

caiu no jardim. Era tempo;<br />

aí vinham já as próvidas<br />

Por Douglas Machert<br />

Orozco -<br />

Demagigo<br />

formigas... A Borboleta Preta<br />

H R Ginger -<br />

Children Grün


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> - as<br />

relações inter-pessoais<br />

O VERGALO<br />

Interrompeu minhas reflexões um ajuntamento;<br />

era um preto que vergalhava outro na praça. O<br />

outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas<br />

únicas palavras: - “Não, perdão, meu senhor,<br />

perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada<br />

súplica, respondia com uma vergalhada nova.<br />

- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão,<br />

bêbado!<br />

- Meu senhor! gemia o outro.<br />

- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.<br />

Parei, olhei ... Justos céus! Quem havia <strong>de</strong> ser o<br />

do vergalho? Nada menos que o meu moleque<br />

Prudêncio, - o que meu pai libertara alguns anos<br />

antes. Cheguei-me; ele <strong>de</strong>teve-se logo e pediu-me<br />

a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era<br />

escravo <strong>de</strong>le.<br />

- É, sim, nhonhô.<br />

- Fez-te alguma coisa?<br />

- É um vadio e um bêbado muito gran<strong>de</strong>. Ainda<br />

hoje <strong>de</strong>ixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá<br />

embaixo na cida<strong>de</strong>, e ele <strong>de</strong>ixou a quitanda para ir<br />

na venda beber.<br />

- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.<br />

- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pe<strong>de</strong>.<br />

Entra para casa, bêbado!<br />

Era um modo que o Prudêncio tinha <strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>sfazer das pancadas recebidas, - transmitindoas<br />

a outro.Agora, porém, que era livre, dispunha<br />

<strong>de</strong> si mesmo, dos braços, das pernas, podia<br />

trabalhar, folgar, dormir, <strong>de</strong>sagrilhoado da antiga<br />

condição, agora é que ele se <strong>de</strong>sbancava:<br />

comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto<br />

juro, as quantias que <strong>de</strong> mim recebera. Capítulo 68 -<br />

O Vergalho<br />

Por Douglas Machert


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> – o sentido da vida<br />

- Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua<br />

inimiga.<br />

Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado<br />

<strong>de</strong> susto.<br />

- Não te assustes, disse ela, minha inimiza<strong>de</strong> não<br />

mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não<br />

quero outro flagelo.<br />

- E por que Pandora?<br />

- Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o<br />

maior <strong>de</strong> todos, a esperança, consolação dos homens.<br />

Creia; eu não sou somente a vida; sou também a<br />

morte, e tu estás prestes a <strong>de</strong>volver-me o que te<br />

emprestei. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi<br />

mais alguns anos.<br />

- Pobre minuto!<br />

exclamou. Para<br />

que queres tu<br />

mais alguns<br />

instantes <strong>de</strong><br />

vida! Para<br />

<strong>de</strong>vorar e seres<br />

<strong>de</strong>vorado<br />

<strong>de</strong>pois! - O Delírio<br />

H R Giger – Li I<br />

NATUREZA OU PANDORA; SOU<br />

TUA MÃE E TUA INIMIGA<br />

O HOMEM, A HISTÓRIA E A<br />

FELICIDADE<br />

Os séculos <strong>de</strong>sfilavam num turbilhão -- flagelos<br />

e <strong>de</strong>lícias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa cousa que se chama glória<br />

até essa outra que se chama miséria, e via o amor<br />

multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a<br />

<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>. Aí vinham a cobiça que <strong>de</strong>vora, a cólera<br />

que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena,<br />

úmidas <strong>de</strong> suor, e a ambição, a fome, a vaida<strong>de</strong>, a<br />

melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o<br />

homem, como um chocalho, até <strong>de</strong>struí-lo, como<br />

um farrapo. Então o homem, flagelado e rebel<strong>de</strong>,<br />

corria diante da fatalida<strong>de</strong> das cousas, atrás <strong>de</strong><br />

uma figura nebulosa e esquiva, feita <strong>de</strong> retalhos,<br />

um retalho <strong>de</strong> impalpável, outro <strong>de</strong> improvável,<br />

outro <strong>de</strong> invisível, cosidos todos a ponto precário,<br />

com a agulha da imaginação; e essa figura, -- nada<br />

menos que a quimera da felicida<strong>de</strong>. O Delírio<br />

Willian Blake -<br />

Por Douglas Machert<br />

Nabucodonosso<br />

r


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong><br />

O HUMANITISMO<br />

- Humanitas, dizia Quicas Borba, o princípio<br />

das coisas, não é outro senão o mesmo homem<br />

repartido por todos os homens. Explicou-me<br />

que, o Humanitismo ligava-se ao Bramanismo,<br />

na distribuição dos homens pelas diferentes<br />

partes do corpo <strong>de</strong> Humanita. Assim, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r<br />

do peito ou dos rins <strong>de</strong> Humanitas, isto é, ser<br />

um forte, não era o mesmo que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r dos<br />

cabelos ou da ponta do nariz.<br />

O Quincas Borba, disse. O que o teu criado<br />

tem é um sentimento nobre e perfeitamente<br />

regido pelas leis do Humanitismo: é o orgulho<br />

da servilida<strong>de</strong>. A intenção <strong>de</strong>le é mostrar que<br />

não é criado <strong>de</strong> qualquer. - Depois chamou a<br />

minha atenção para os cocheiros <strong>de</strong><br />

casa-gran<strong>de</strong>, mais impertigados que o amo,<br />

para os criados <strong>de</strong> hotel, cuja solicitu<strong>de</strong><br />

obe<strong>de</strong>ce às variações sociais da freguesia, etc.<br />

E concluiu que era tudo a expressão daquele<br />

sentimento <strong>de</strong>licado e nobre, - prova cabal <strong>de</strong><br />

que muitas vezes o homem, ainda a engraxar<br />

botas, é sublime.<br />

CAP 156 – Orgulho da Servilida<strong>de</strong><br />

Por Douglas Machert


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> – a moral<br />

-- É minha! dizia eu ao chegar à porta <strong>de</strong> casa.<br />

Mas aí, como se o <strong>de</strong>stino ou o acaso, luziu-me no chão<br />

uma coisa redonda e amarela. Abaixei-me; era uma<br />

moeda <strong>de</strong> ouro.<br />

-- É minha! repeti eu a rir-me, e meti-a no bolso.<br />

Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia<br />

seguinte, senti uns repelões da consciência, e uma voz<br />

que me perguntava por que diabo seria minha uma<br />

moeda que eu não herdara nem ganhara, mas somente<br />

achara na rua. Evi<strong>de</strong>ntemente não era minha, e talvez <strong>de</strong><br />

um pobre, algum operário que não teria com que dar <strong>de</strong><br />

comer à mulher e aos filhos. Cumpria restituir a moeda.<br />

Enviei um carta ao chefe <strong>de</strong> polícia, remetendo-lhe o<br />

achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance,<br />

fizesse <strong>de</strong>volvê-lo às mãos do verda<strong>de</strong>iro dono.<br />

Man<strong>de</strong>i a carta e almocei tranqüilo. Minha consciência<br />

valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada,<br />

sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma<br />

janela que se abriu para o outro lado da moral.<br />

Assim, eu, <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, <strong>de</strong>scobri uma lei sublime, a lei da<br />

equivalência das janelas, e estabeleci que o modo <strong>de</strong><br />

compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim <strong>de</strong> que<br />

a moral possa arejar continuamente a consciência. (CAP<br />

51 - É Minha)<br />

LEI DA EQUIVALÊNCIA DAS<br />

JANELAS<br />

Por Douglas Machert<br />

RELATIVIZAÇÃO DA MORAL<br />

Súbito <strong>de</strong>u-me a consciência um repelão,<br />

acusou-me <strong>de</strong> ter feito capitular a probida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Dona Plácida, obrigando-a a um papel torpe,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma longa vida <strong>de</strong> trabalho e<br />

privações. Medianeira não era melhor que<br />

concubina, e eu tinha-a baixado a esse ofício, à<br />

custa <strong>de</strong> obséquios e dinheiros. Foi o que me<br />

disse a consciência; e eu fiquei uns <strong>de</strong>z<br />

minutos sem saber que lhe replicasse.<br />

Mas aleguei que a velhice <strong>de</strong> Dona Plácida<br />

estava agora ao abrigo da<br />

mendicida<strong>de</strong>: era<br />

uma compensação. E<br />

raciocinei então que,<br />

se não fossem os<br />

meus amores,<br />

provavelmente Dona<br />

Plácida acabaria<br />

como tantas outras<br />

criaturas humanas;<br />

don<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>ria<br />

<strong>de</strong>duzir que o vício é<br />

muitas vezes o<br />

estrume da virtu<strong>de</strong>.<br />

CAP 76 – O Estrume<br />

Goya<br />

1


<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> – a<br />

fragilida<strong>de</strong><br />

CONTRADIÇÕES DE CARÁTER EM<br />

BRÁS CUBAS<br />

Entre a morte do Quincas Borba e a minha,<br />

mediaram os sucessos narrados na primeira<br />

parte do livro. O principal <strong>de</strong>les foi a invenção<br />

do emplasto <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, que morreu comigo,<br />

por causa da moléstia que apanhei. Divino<br />

emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os<br />

homens, acima da ciência e da riqueza, porque<br />

eras a genuína e direta inspiração do céu. O<br />

acaso <strong>de</strong>terminou o contrário; e ai vos ficais<br />

eternamente hipocondríacos.<br />

Este último capítulo é<br />

todo <strong>de</strong> negativas. Não<br />

alcancei a celebrida<strong>de</strong><br />

do emplasto, não fui<br />

ministro, não fui califa,<br />

não conheci o<br />

casamento. CAP 160 Das<br />

Negativas<br />

AS MÁSCARAS<br />

Talvez espante ao leitor a franqueza com que<br />

lhe exponho e realço a minha mediocrida<strong>de</strong>;<br />

advirta que a franqueza é a primeira virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um <strong>de</strong>funto. Na vida, o olhar da opinião, o<br />

contraste dos interesses, a luta das cobiças<br />

obrigam a gente a calar os trapos velhos, a<br />

disfarçar os rasgões e os remendos, a não<br />

esten<strong>de</strong>r ao mundo as revelações que faz à<br />

consciência; e o melhor da obrigação é quando,<br />

à força <strong>de</strong> embaçar os outros, embaça-se um<br />

homem a si mesmo.... CAP. 24 - Curto, Mas Alegre<br />

Francis Bacon –<br />

Self Portrait<br />

Por Douglas Machert<br />

Francis Bacon -<br />

Head<br />

1

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!