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2º Centenário das Invasões Francesas

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<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong><br />

A Corte Portuguesa no Brasil (1808 – 1821) – 2ª Parte<br />

A chegada da Corte ao Rio de Janeiro.<br />

29 de Outubro e 5 e 12 de Novembro 2008<br />

Já anteriormente, Julho do ano corrente, havia aqui referido, que a 22 de<br />

Janeiro de 1808, após 54 dias de mar e cerca de 6400 quilómetros percorridos, D<br />

João chegara finalmente a terras brasileiras, fazendo escala numa <strong>das</strong> primeiras<br />

cidades que os portugueses fundaram no Novo Mundo e que, até 1763, fora a sede do<br />

governo da América lusitana e a maior do Vice Reino: S. Salvador, na Baía de Todos<br />

os Santos. Aqui se manteve até 26 de Fevereiro, data em que partiu para o seu<br />

destino, o Rio de Janeiro, onde a Corte iria permanecer durante treze anos.<br />

A 14 de Janeiro, precisamente uma semana antes do Príncipe Regente ter<br />

chegado à Baía, o brigue «Voador», (pequeno navio de guerra de dois mastros),<br />

aportava na Guanabara, transmitindo a notícia de que as tropas de Junot haviam<br />

invadido Portugal e que a Família Real, com a protecção de Sua Majestade Britânica,<br />

decidira transferir-se, juntamente com a Corte, para o Rio de Janeiro até que a<br />

conjuntura europeia, em convulsão, normalizasse.<br />

Ao saber que o brigue «Voador» chegara ao Rio com a notícia de que os<br />

franceses invadiam Portugal, e que a Família Real se dirigia para o Brasil, o cronista<br />

anotou:<br />

«Nunca correio algum trouxe notícias mais tristes e, ao mesmo tempo, mais<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 1


lisonjeiras. Eu não sei explicar o assombro, a consternação, e o sentimento de todos<br />

por causa <strong>das</strong> desgraças da mãe pátria. As lágrimas corriam dos olhos de todos, e<br />

muitos ficaram sem articular uma só palavra ao ouvir tão infausta novidade. Se tão<br />

grandes eram os motivos de mágoa e aflição, não menores eram as causas de consolo<br />

e de prazer: uma nova ordem de coisas ia principiar nesta parte do hemisfério austral.<br />

O império do Brasil já se considerava projectado, e ansiosamente suspirávamos pela<br />

mão poderosa do Príncipe Regente nosso senhor para lançar a primeira pedra da<br />

futura grandeza, prosperidade e poder do novo império».<br />

O autor do extracto acabado de transcrever é Luis Gonçalves dos Santos, uma<br />

fonte da maior importância para o estudo do<br />

período em que a Corte permaneceu no Brasil.<br />

Cónego da Igreja Católica, Luis Gonçalves dos<br />

Santos, mais conhecido por Padre “Perereca”,<br />

devido à estatura baixa e franzina, «não era<br />

jornalista de profissão, mas cronista por vocação».<br />

Era um homem versado em latim, grego e filosofia,<br />

aparentando a idade de cerca de quarenta anos a quem os cabelos grisalhos davam um<br />

aspecto intelectual. O Padre Perereca registava tudo o que observava, defendendo as<br />

suas ideias de forma apaixonada, vindo a ser o melhor e mais completo repórter dos<br />

acontecimentos ocorridos entre 1808 e 1821, período em que a sede do Governo se<br />

fixou no Rio de Janeiro. Após o regresso da Corte a Lisboa, o Padre “Perereca”<br />

publicava, em 1825, os dois volumes do seu livro «Memórias para servir à história do<br />

reino do Brasil, dividi<strong>das</strong> em três épocas de felicidade, honra e glória; escritas na<br />

corte do Rio de Janeiro no ano de 1821, e ofereci<strong>das</strong> a S. Majestade El-rei nosso<br />

senhor D. João VI». Apresenta um tom laudatório, de lisonja e “deslumbramento”,<br />

porém, os pormenores demonstram um observador atento e curioso.<br />

Ao tomar conhecimento que a cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro se<br />

tornaria, dentro em pouco, a sede da monarquia portuguesa, o Vice-Rei do Brasil, D.<br />

Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos, (filho do outro Conde, a quem um touro<br />

matou na arena de Salvaterra, nas últimas toura<strong>das</strong> que se correram no reinado de D.<br />

José e que levou Rebelo da Silva a escrever «A Última Corrida de Touros em<br />

Salvaterra», uma <strong>das</strong> mais célebres narrativas do nosso Romantismo) desconhecendo<br />

ainda a decisão do Príncipe Regente fazer escala em Salvador, não perdeu tempo e<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 2


passou, rapidamente, a preparar a entrada da Corte numa cidade que, apesar de ser<br />

capital de colónia, deixava muito a desejar. Encarregado de organizar a recepção, urgia,<br />

igualmente, ir resolvendo o sério problema do alojamento, bem como a subsistência<br />

daqueles que chegavam de Portugal.<br />

Contudo, para além <strong>das</strong> questões práticas e mais imediatas, não podia deixar de<br />

ser considerado prioritário tomar<br />

medi<strong>das</strong> no sentido de receber tão<br />

ilustres personalidades,<br />

condignamente, e com o ritual que<br />

lhes era devido. Assim, dois dias<br />

depois, a 16 de Janeiro, o Senado da<br />

Câmara, espécie de vereadores do<br />

Brasil colonial, constituído pelas<br />

pessoas mais influentes da sociedade, reuniram e decidiram decretar a programação da<br />

recepção à Família Real. Os festejos incluíam cerimónias religiosas e civis, danças e<br />

diversões populares, as casas teriam de ser ilumina<strong>das</strong> e as janelas enfeita<strong>das</strong> em todo o<br />

percurso; além da procissão, do Te Deum, <strong>das</strong> luminárias, <strong>das</strong> alegorias, o povo<br />

aguardava ansioso pelas toura<strong>das</strong>, cavalha<strong>das</strong>, foguetórios, récitas, conjuntos musicais<br />

e danças, «como era comum no tempo dos vice-reis», a que era acrescentado o repicar<br />

dos sinos de to<strong>das</strong> as igrejas e o troar dos canhões na barra da Baía de Guanabara.<br />

A programação seria divulgada por funcionários do Governo que, a cavalo e em<br />

grupos, percorriam ruidosamente as ruas da cidade, seguidos pelo povo em alarido,<br />

parando nos locais de maior movimento e, «entre foguetes, soar de clarins e rufares de<br />

tambores» era anunciado o edital de convocação.<br />

Surpreendentemente, e mal os planos tinham sido traçados, no dia seguinte à<br />

publicação do edital, 17 de Janeiro, o Conde dos Arcos ficou, justificadamente,<br />

apreensivo, quando um aviso enviado pelo sistema telegráfico de semáforos da costa<br />

transmitiu a notícia de que a esquadra real fora avistada na embocadura da baía de<br />

Guanabara e o vice-rei não tivera tempo de concluir os preparativos, provocando<br />

grande alvoroço no Governo e na população do Rio de Janeiro, porquanto, pensava-se<br />

que era o próprio Regente que chegava. Só que, e para tranquilidade de D. Marcos de<br />

Noronha, o alarme era falso.<br />

De facto, quando os navios, ao final da tarde do dia 27, entraram a barra,<br />

verificou-se que sete embarcações portuguesas e três inglesas faziam parte da armada<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 3


que se havia perdido da comitiva real por altura do arquipélago da Madeira e chegara<br />

ao Rio, depois de ter feito a escala prevista em Cabo Verde. Numa <strong>das</strong> naus, a «Rainha<br />

de Portugal», viajavam<br />

apenas as irmãs de D.<br />

Maria I, D. Maria<br />

Benedita e D. Maria Ana,<br />

e as princesas Maria<br />

Francisca e Isabel Maria,<br />

filhas de D. João e<br />

Carlota Joaquina.<br />

Convida<strong>das</strong> pelo Conde<br />

dos Arcos a desembarcar, as princesas preferiram continuar a bordo até receber a<br />

confirmação de que a restante família estava a salvo na Baía, o que veio a acontecer a<br />

22 de Fevereiro, quando a Família Real já se aprontava para viajar a caminho do Rio.<br />

Afinal, a permanência da Família Real na Baía não deixou de constituir um<br />

alívio para o vice-rei, uma vez que lhe permitiu dispor de mais tempo para dar à<br />

recepção o luzimento que pretendia.<br />

Finalmente, a 7 de Março, depois de três meses e uma semana de viagem,<br />

incluindo a escala em S. Salvador da Baía, a esquadra que transportava o núcleo mais<br />

importante da Corte, a Rainha, o Príncipe Regente, a sua família mais próxima e uma<br />

parte da sua comitiva, entrava na barra do porto do Rio de Janeiro.<br />

Ao contrário do que sucedeu em S. Salvador, onde a surpresa da chegada não<br />

permitiu manifestações de regozijo, to<strong>das</strong> as fortalezas que defendiam a barra e to<strong>das</strong> as<br />

naus portuguesas e inglesas, fundea<strong>das</strong> no porto, saudaram a esquadra onde viajava o<br />

Príncipe Regente com salvas de vinte e um tiros que ecoavam pela baía e abalavam os<br />

morros da cidade, ao mesmo tempo que em to<strong>das</strong> as capelinhas, igrejas e mosteiros os<br />

sinos repicavam continuamente.<br />

Luis Gonçalves dos Santos, o conhecido Padre “Perereca”, como se fosse um<br />

repórter, registava o espectáculo da chegada:<br />

«Eram duas para as três horas da tarde, a qual estava muito fresca bela e<br />

aprazível. […] Desde a aurora o sol nos havia anunciado como o mais ditoso (dia)<br />

para o Brasil: uma só nuvem não ofuscava os seus resplendores, e cujos ardores eram<br />

mitigados pela frescura de uma forte e constante viração. Parecia que este astro<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 4


ilhante, apartando a si todo o obstáculo, como se regozijava de presenciar a<br />

triunfante entrada do primeiro soberano da Europa na mais afortunada cidade do<br />

Novo Mundo, e queria ser participante do júbilo, e aplausos de um povo embriagado<br />

no mais veemente prazer» …Rio de Janeiro, aí tens a tua augusta rainha e o teu<br />

excelso príncipe com a sua real família, as primeiras majestades que o hemisfério<br />

austral viu e conheceu. Estes são os teus soberanos e senhores, descendentes e<br />

herdeiros daqueles grandes reis que te descobriram, te povoaram e engrandeceram, ao<br />

ponto de seres, de hoje em diante, a princesa de toda a América e Corte dos senhores<br />

reis de Portugal. Enche-te de júbilo, salta de prazer, orna-te dos teus mais ricos<br />

vestidos, sai ao encontro dos teus soberanos, e recolhe com todo o respeito, veneração<br />

e amor o príncipe ditoso, que vem em nome do Senhor visitar o seu povo».<br />

Logo que a armada fundeou, D. João fez saber que permaneceria a bordo e só<br />

desembarcaria no dia seguinte, pelo que partiram ao seu encontro alguns escaleres<br />

formando em cortejo que lhe foram apresentar felicitações e cumprimentos de boas-<br />

vin<strong>das</strong>: os membros da Família Real e os nobres que haviam já chegado, uma comissão<br />

do Senado da Câmara e outra constituída por elementos do Cabido, por magistrados e<br />

oficiais do Exército, seguiram atrás do Vice-Rei, Conde dos Arcos. Depois de beijarem<br />

a mão do Príncipe Regente, deslocaram-se as mesmas comissões à nau «Afonso de<br />

Albuquerque», onde foram cumprimentar a Princesa D. Carlota Joaquina como<br />

mandava o protocolo.<br />

Quando começou a escurecer, diz o nosso cronista, «toda a cidade se iluminou<br />

de tal sorte, que não se fazia sensível a retirada do Sol, pois não houve casa, ainda do<br />

mais pobre, que por meio de luzes não manifestasse exteriormente a alegria interior<br />

dos seus moradores».<br />

O desembarque. Cerimónias festivas.<br />

O desembarque da Família Real no Rio de Janeiro, aos 8 de Março de 1808, foi<br />

mais do que uma cerimónia oficial, foi uma festa popular, porquanto os seus habitantes<br />

saudaram o futuro D. João não, propriamente, como determinavam os editais,<br />

respeitosa e carinhosamente, mas sim com um entusiasmo transbordante.<br />

Sempre em cima do acontecimento, Gonçalves dos Santos fazia a cobertura do<br />

desembarque como se fosse, nos dias de hoje, uma reportagem em directo:<br />

«…Finalmente amanheceu o suspirado dia 8 de Março, tão formoso e claro como o<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 5


antecedente; e, estando as coisas dispostas para a recepção de Suas Altezas, pelas<br />

quatro horas da mais bela e serena tarde, por entre repeti<strong>das</strong> e alegres salvas <strong>das</strong> naus<br />

portuguesas e inglesas, e por entre vivas que os respectivos marinheiros postos em<br />

parada sobre as vergas davam em altos gritos, desceu o Príncipe Regente Nosso<br />

Senhor, da nau «Príncipe Real», que o conduzia, e se meteu no bergantim com a<br />

Sereníssima Senhora Princesa do Brasil, e com os Sereníssimos Senhores Príncipe da<br />

Beira, Infantes e Infantas, e acompanhado de toda a Corte, com que saíra de Lisboa e<br />

de outras personagens distintas, que de terra o foram buscar a bordo, ou que <strong>das</strong> naus<br />

desembarcaram (o que tudo fazia uma comitiva muito numerosa e brilhante de<br />

escaleres, lanchas e outras embarcações menores) se dirigiu para a cidade em<br />

direitura do lugar do desembarque…».<br />

Continuando a descrever as comemorações festivas com base nos relatos do<br />

Padre “Perereca”, o celebrado cronista registava que o bergantim real avançou à frente<br />

do cortejo, passou em frente da Ilha <strong>das</strong> Cobras e alcançou, finalmente, a rampa do<br />

cais. Então, do Morro do Castelo «precipitou-se para o desembarcadouro uma<br />

multidão ovante, (orgulhosa) gritando e gesticulando todo o entusiasmo que a<br />

exaltava».<br />

Na parte mais alta da rampa do cais havia sido, nesse dia, armado,<br />

especialmente para a ocasião, um altar. Ao pisar terra, o Príncipe Regente beijou a<br />

Santa Cruz nas mãos do Chantre Filipe da Cunha e Sousa; depois ajoelhou com toda a<br />

Família Real e recebeu as turificações (incensação) e a água benta, rodeado pelo<br />

Cabido da Catedral, todo paramentado de pluviais (capas) de seda de ouro branca.<br />

Finda esta cerimónia organizou-se a procissão solene em direcção à Sé<br />

Catedral: o Príncipe Regente, a Princesa D. Carlota Joaquina, toda a Família Real foi<br />

recolhida sob um «precioso pálio de seda de ouro encarnada, cujas varas eram<br />

sustenta<strong>das</strong> pelo juiz de fora, presidente do Senado da Câmara, Agostinho Petra de<br />

Bettencourt, pelos vereadores Manuel José da Costa, Francisco Xavier Pires, Manuel<br />

Pinheiro Guimarães, procurador José Luis Álvares, escrivão António Martins Brito e<br />

cidadãos Anacleto Elias da Fonseca e Amaro Velho da Silva».<br />

À frente do cortejo seguiam as autoridades do Rio de Janeiro, as mais distintas<br />

pessoas civis e militares que não se encontravam em serviço, «vesti<strong>das</strong> de corte».<br />

Juntamente, seguiam os religiosos de S. Francisco, os Barbadinhos, seminaristas de<br />

José, de S. Joaquim e da Lapa, os magistrados sem lugares determinados; depois vinha<br />

o estandarte da Câmara, empunhado por um cidadão, «o qual trajava vestido de seda<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 6


preta, capa da mesma, colete e meias de seda branca, chapéu meio abado com plumas<br />

brancas, e presilha de pedras preciosas, e cuja capa era ornada com ban<strong>das</strong> de seda<br />

ricamente bordada». Era ladeado por duas compri<strong>das</strong> fileiras de homens trajados da<br />

mesma maneira, que formavam a «guarda do estandarte». Atrás da Cruz do Cabido da<br />

Sé ia todo o clero da cidade, também em duas alas com o próprio Cabido a fechar,<br />

«todos de sobrepelizes muito ricas». Vinha, então, o pálio, sob o qual caminhava<br />

lentamente o Príncipe D. João e a Família Real<br />

Ao longo do percurso, do cais à Catedral, as ruas estavam cobertas de fina areia<br />

branca, folhas e ervas odoríferas; as portas <strong>das</strong> casas estavam escondi<strong>das</strong> por cortinados<br />

de damasco e de to<strong>das</strong> as janelas e varan<strong>das</strong>, decora<strong>das</strong> com colchas e tapeçarias eram<br />

lança<strong>das</strong> flores à passagem da comitiva real. O povo, que se apinhava nas ruas Direita e<br />

do Rosário, saudava D. João, gritando: «Viva o nosso Príncipe, viva o imperador do<br />

Brasil».<br />

Na rua do Rosário armara-se um coreto «onde melodiosas vozes, tanto<br />

instrumentais como vocais, cantavam os músicos hinos em louvor de Sua Alteza Real,<br />

ao mesmo tempo que uma perene chuva de mimosas e suaves flores caía sobre Suas<br />

Altezas, lançada pelas mãos da formosura e inocência…».<br />

O acompanhamento chegou, finalmente, à Sé, onde a Família real avançou não<br />

sem dificuldades. Os sinos da igreja de S. Francisco e do Senhor do Bom Jesus<br />

repicavam, incessantemente, apregoando aos quatro ventos a celebridade daquele dia<br />

de festa.<br />

Na Sé foi rezada missa a grande instrumental, cantaram-se os hinos «Te Deum<br />

Laudamus», o «Hino da Graça, as Antífonas «Sub tuum poesidium», o «Beate<br />

Sebastiane» e o «Domine salvum fac Principem», este entoado pelo Chantre.<br />

Após as orações, e concluída a acção de graças pelo sucesso da viagem, o<br />

Príncipe e a Família Real, acompanhados da fidalguia, Cabido, clero, câmara<br />

municipal, magistrados, oficiais superiores e as pessoas mais distintas da cidade<br />

dirigiram-se, em coches próprios, ao Largo do Paço Real onde Suas Altezas<br />

concederam o beija mão antes de se recolherem ao palácio.<br />

À noite foram surgindo as iluminações, especialmente a que fora mandada<br />

colocar em frente do cais, ao lado do palácio, onde tinham erguido uma alegórica<br />

arquitectura cenográfica, composta por uma série de arca<strong>das</strong>, uni<strong>das</strong> por uma<br />

balaustrada com ornamentos diversos – pirâmides, vasos, inscrições emblemáticas e<br />

dedicatórias… Sobre o arco da frente elevava-se um elegante frontispício coroado com<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 7


as Reais Quinas Portuguesas. Iluminado por milhares de lumes em copos de diversas<br />

cores, tinha, ainda, um grande medalhão com a efígie de D. João «sustentada por dois<br />

génios que mostravam o Brasil, o qual na figura de um gentil e engraçado índio, todo<br />

absorto de prazer, ofertava de joelhos a S. A. os seus tesouros, para os quais apontava<br />

com a mão esquerda; e sustentando na direita o coração, oferecia-o ao mesmo Real<br />

Senhor com estas palavras que se liam, como saindo-lhe da boca: «Mais que tudo o<br />

coração…».<br />

Fazia ainda parte da mesma alegoria, representado noutro medalhão, o<br />

panorama da entrada do porto com a nau «Príncipe Real» entrando na Baía de<br />

Guanabara. Nas ruas à volta, a festa continuou pela noite dentro, com fogos, músicas e<br />

declamações em homenagem aos que acabavam de chegar ao Rio de Janeiro.<br />

Devido ao seu estado de saúde a Rainha só desembarcou dois dias depois, na<br />

tarde do dia 10. Ao chegar a terra, acompanhada do filho e dos Infantes foi recolhida<br />

debaixo de um pálio e transportada «em uma cadeirinha de braços que levavam os<br />

criados da Casa Real, por entre mil vivas dos vassalos, repiques dos sinos, e ruído<br />

estrondoso de centenas de fogos volantes, que de várias partes ao mesmo tempo se<br />

lançavam no ar, até à entrada principal do Palácio; e, saindo pela porta lateral, foi<br />

conduzida com a mesma comitiva pela praça até à entrada do quarto, que se achava<br />

preparado para Sua Majestade…Ali ficou com um olhar incerto de idiotia e senilidade,<br />

rodeada por D. Carlota Joaquina, pela Infanta D. Mariana, por to<strong>das</strong> as suas netas,<br />

damas e cria<strong>das</strong> que a vieram receber com lágrimas de ternura e amor…».<br />

Nas primeiras noites, uma multidão, sempre extasiada, saía ao largo do Paço e<br />

contemplava o Palácio, para ver o Príncipe Regente e as pessoas reais que chegavam às<br />

janelas e algumas vezes saíam em passeio até à rua Direita, por entre o povo que<br />

ajoelhava religioso e feliz, à passagem «daquela família quase divina». Os festejos<br />

foram encerrados, oficialmente, em 15 de Março, terminando com mais uma cerimónia<br />

de acção de graças na Igreja do Rosário e um beija-mão no Paço.<br />

Sublinhe-se que a notícia da chegada da Corte ao Rio de Janeiro teve enorme<br />

propagação, provocando largas e espontâneas manifestações de regozijo. E mais,<br />

quando houve conhecimento que a Corte estava a caminho do Brasil, algumas regiões<br />

não deixaram de aplaudir e vibrar com tal facto. Assim, ainda em Janeiro de 1808, em<br />

S. Paulo, antes mesmo do desembarque, o comerciante inglês, John Mawe,<br />

testemunhou as orações diárias realiza<strong>das</strong> na Sé Catedral pelo Bispo D. Mateus de<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 8


Abreu Pereira, para que o Príncipe Regente e a sua comitiva chegassem a bom porto e<br />

pelo rápido estabelecimento do Império brasileiro: «Vinde reinar nos corações de<br />

vossos fieis americanos, ainda mais do que no seu vasto continente. Um novo Império,<br />

novo mundo, novo céu e nova terra vos desejam e vos chamam, […] Em meio de tanta<br />

perturbação e tantas calamidades o bom Senhor lançou vistas piedosas sobre nós;<br />

livrou o nosso bom príncipe de cair nas sanguinosas mãos dos inimigos […]».<br />

A ilha de Santa Catarina, já depois da Família Real ter aportado ao Rio, em<br />

Abril de 1808, homenageou o Príncipe na missa realizada no dia 24, quando um orador<br />

ousou compará-lo a D. Sebastião, «felicitando-o por sua melhor fortuna». Nesse<br />

mesmo dia um espectáculo de pirotecnia deixava o povo boquiaberto: «…pelas onze<br />

horas [da noite] começou a latada de fogo [que se] havia armado no meio da Praça,<br />

cujo elegante princípio foi por este modo: uma pomba por uma corda correu de um<br />

lado cheia de fogo a acender um letreiro que mostrou muito tempo estas iniciais – V. S.<br />

A. R. (Viva Sua Alteza Real), o que teve imensos vivas. Outra pomba por outro lado da<br />

mesma sorte correndo fez iluminar outro letreiro que dizia – Feliz o Brasil. Depois<br />

apareceu um bonito fogo, à imitação de luminárias, que durou muito vivo mais de dez<br />

minutos […]. Seguiu-se depois entrar na praça um navio de fogo, seguindo-se depois<br />

disso ro<strong>das</strong>, chafarizes, pistolas etc. Finalmente concluiu esta brilhante função<br />

aparecendo na Praça um vistoso carro enramado que, dando volta em roda da mesma<br />

praça, deitou ao ar cento e tantos foguetes de respostas».<br />

Ao fim e ao cabo era a monarquia que se instalava na nossa antiga colónia<br />

americana e os festejos pareciam dar a entender que, sob o ponto de vista local, teria<br />

vindo para ficar; talvez, por isso o dia 7 de Março se tivesse tornado memorável sendo<br />

considerado feriado até 1820.<br />

Instalação da Corte. A lei <strong>das</strong> “aposentadorias”.<br />

Após as cerimónias festivas da recepção, uma outra realidade se deparava não<br />

só àqueles que tinham acabado de entrar na capital da colónia, mas também aos seus<br />

residentes.<br />

De facto, a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro acompanhada da Corte,<br />

bem como de milhares de portugueses criava, de imediato, um complicado problema de<br />

instalação e alojamento que não seria fácil resolver, porquanto o afluxo de reinóis<br />

(naturais do Reino) constituía um considerável aumento da população do Rio que, de<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 9


um momento para o outro, passou de sessenta para setenta mil, não deixando de causar<br />

um natural impacto nos residentes. Era o preço a pagar pelo «enobrecimento e a<br />

distinção que a presença da Corte e a sua elevação a sede da monarquia conferiam à<br />

cidade do Rio de Janeiro».<br />

Urgia, pois, tomar providências rápi<strong>das</strong>. Antes de mais, era necessário proceder<br />

à acomodação da Família Real que, na circunstância, teria que se adaptar a habitações<br />

mais modestas, longe da sumptuosidade e dos amplos espaços como o Palácio de<br />

Mafra, preferido de D. João, e Queluz, residência de D. Maria.<br />

Nos primeiros dias o Príncipe Regente, D. Carlota Joaquina e os filhos ficaram<br />

alojados no remodelado paço dos vice-reis, agora Paço Real, no Largo do Carmo, o que<br />

não terá agradado nada à Princesa, pois estava habituada a viver apartada do marido e,<br />

assim, só descansaria quando a situação “normalizasse”, o que, de facto, em breve viria<br />

a acontecer.<br />

Devido à reduzida dimensão do Palácio, foi necessário adaptar o Convento do<br />

Carmo, a Casa da Câmara e a cadeia, ligando-os por um passadiço improvisado, o que<br />

era, naturalmente, uma forma engenhosa de aumentar o espaço habitável e, ao mesmo<br />

tempo, resguardar a privacidade real, pois que para passar de um prédio para outro não<br />

era necessário sair à rua. O referido Convento, a parte mais nobre, que dava sobre o<br />

Largo do Paço, ficou destinado aos aposentos da Rainha e <strong>das</strong> suas aias, pelo que os<br />

carmelitas foram transferidos para o Seminário da Lapa.<br />

A residência de D. João parece ter sido temporária. Com efeito, não tardou que<br />

se tivesse mudado para um palácio mais amplo e confortável, (e longe da mulher)<br />

situado no actual Bairro de S. Cristóvão, próximo do Morro da Mangueira e do Estádio<br />

do Maracanã. Um grande negociante português, Elias António Lopes, «resolveu ceder<br />

ao Príncipe Regente uma casa de campo nos subúrbios da cidade, a Chácara do Elias,<br />

em S. Cristóvão, dizendo não ter outro interesse senão o bem-estar de Sua Majestade.<br />

De toda a maneira, ajeitavam-se as coisas: Elias Lopes receberia de volta mais tarde,<br />

devidamente inflacionado, o valor da sua “oferta”, e a Princesa Carlota Joaquina<br />

permaneceria no Paço real, bem no centro da Corte e, principalmente, afastada do<br />

marido».<br />

Depois de instalada a Corte, o mais complicado seria encontrar habitações para<br />

aqueles que com ela tinham feito a viagem, nomeadamente nobres, magistrados,<br />

militares, oficiais-maiores, homens de negócio, etc.<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 10


Mesmo antes da chegada da frota, pouco tempo antes da sua entrada na Baía de<br />

Guanabara, a notícia de que a comitiva se dirigia para o Rio de Janeiro, pôs o Vice –<br />

Rei, Conde dos Arcos, em alvoroço que, perante a falta crónica de casas, determinou<br />

medi<strong>das</strong>, algumas delas considera<strong>das</strong> violentas, requisitando edifícios públicos e<br />

particulares, bem como desalojando, por vezes, os seus legítimos proprietários e<br />

inquilinos. Aqueles que ocupavam as melhores casas foram intimados a largar mão<br />

delas aos fidalgos e mais senhores da comitiva real, ordenando que se afixassem nesses<br />

prédios editais para o despejo sumário, escrevendo a giz, nas portas, as iniciais P. R.<br />

(Príncipe Regente), que a ironia popular, em breve, começou a interpretar como<br />

«Ponha-se na Rua», ou «Prédio Roubado». Era o odiado regime de “aposentadoria”.<br />

Hipólito da Costa, editor do «Correio Braziliense» (jornal que se publicava em<br />

Inglaterra), sem “papas” na língua, afirmava que o sistema de “aposentadorias” era um<br />

regulamento anacrónico, desfasado, «medieval», um «ataque directo ao sagrado<br />

direito de propriedade», que «poderia tornar o novo governo num Brasil odioso para o<br />

seu povo». Com efeito, era uma lei rudimentar, uma espécie de recolonização, uma<br />

nova onda de colonos a substituir os antigos.<br />

O recurso ao famigerado regime <strong>das</strong> requisições e da “aposentadoria”, não<br />

deixou de, a curto prazo, agravar a crise. Como muitas casas eram requisita<strong>das</strong> sem<br />

mais explicações, não eram poucos aqueles que suspendiam os planos para a<br />

construção de novos prédios, retirando os seus investimentos da cidade, havendo,<br />

também, proprietários que paralisavam as obras, ou defendendo-se, «simulando ou<br />

mesmo realizando obras perfeitamente dispensáveis nas suas residências. Obras<br />

eternas […] nas quais os andaimes passavam a constituir parte integrante <strong>das</strong><br />

facha<strong>das</strong>, paredes que nunca mais se levantavam ou derrubavam, e nos telhados havia<br />

sempre um ou outro reparo a fazer». Outros, ainda, faziam-se desentendidos e não<br />

davam andamento aos pedidos do Governo.<br />

Obviamente, que os habitantes locais, como se prova pelos seus testemunhos,<br />

não viam com bons olhos este serviço que lhes era pedido; além de se tratar de uma<br />

arbitrariedade, os novos moradores não só regateavam o preço <strong>das</strong> ren<strong>das</strong>, como<br />

também consideravam as moradias mal construí<strong>das</strong> e desconfortáveis. E, assim, se iam<br />

criando ressentimentos em relação aos recém-chegados, os quais abusando do sistema<br />

de “aposentadorias” manifestavam-se arrogantes, prepotentes e até violentos. Como a<br />

gente de maior nobreza e distinção necessitava de grandes casas para se instalar, era<br />

forçoso despejar duas ou três. D. Gabriela de Sousa Coutinho, esposa do ministro,<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 11


Rodrigo de Sousa Coutinho, refere-se, por tal motivo, às «violências para alojar todos<br />

os recém-chegados, tanto grandes como pequenos».<br />

Um, entre vários casos de prepotência, é o do Conde de Belmonte, o qual se<br />

apoderou de uma casa acabada de construir pelo comandante do porto, e nunca fora<br />

habitada. Durante cerca de dez anos ali se aboletou, sem nada pagar, enquanto o<br />

proprietário se viu obrigado, com a sua numerosa família, a mudar-se para uma<br />

pequena moradia ao lado da mansão ocupada pelo Conde, que chegou ao extremo de se<br />

apoderar dos escravos do comandante, sem dizer “água vai”, isto é, sem lhe dar<br />

qualquer satisfação.<br />

Também a duquesa de Cadaval, cujo marido tinha morrido durante a escala em<br />

S. Salvador da Baía, ocupou uma chácara (propriedade rural com casa de habitação), do<br />

coronel de milícias Manuel Alves da Costa e por lá se manteve sem sequer pagar um<br />

tostão de renda. Quando o proprietário resolveu reclamar a casa, a duquesa respondeu<br />

que não tinha lugar para onde ir, oferecendo, 600 mil réis mensais, que o legítimo dono<br />

considerou pouco. O certo é que a nobre inquilina fez-se de surda e lá foi<br />

permanecendo. Em 1821, quando voltou para Portugal na companhia de D. João VI,<br />

mandou depositar no Banco a importância de 600 mil réis, sem agradecer ou dar<br />

explicações ao coronel.<br />

Ao fim e ao cabo, esta situação provocada pelo sistema de “aposentadoria”, que<br />

só seria suspenso ao fim de dez anos, não deixou de gerar impasses e conflitos de maior<br />

monta. Acrescente-se, finalmente, que este movimento migratório, em relação ao Rio<br />

de Janeiro, não podia deixar de transformar a cidade na sua fisionomia urbanística e<br />

social.<br />

Novo elenco ministerial.<br />

A mudança da Corte portuguesa para os seus domínios da América do Sul, em<br />

1808, transformou, profundamente, como se verá, a situação do Brasil, que de simples<br />

colónia, embora denominada Estado e geralmente considerada Vice-Reino, passou, de<br />

um momento para o outro, à condição de sede da monarquia lusitana, resultando daí a<br />

necessidade de uma ampla reorganização administrativa <strong>das</strong> Secretarias de Estado,<br />

Tribunais e Repartições antes situa<strong>das</strong> em Lisboa e, também, a adaptação à nova ordem<br />

de coisas já existentes no Rio de Janeiro.<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 12


Ainda no decorrer <strong>das</strong> comemorações festivas, três dia após o desembarque de<br />

D. João, foi constituído o Ministério que devia fundar os alicerces capazes de poder<br />

sustentar a nova situação da monarquia. O cenário do novo Ministério não deixaria de<br />

ser previsível: embora a ruptura com a França não tivesse sido, ainda, declarada, o<br />

novo alinhamento internacional do País apontava para objectivos bem definidos, tanto<br />

mais que o Ministério que se encontrava em funções no momento da passagem para o<br />

Brasil, havia sido formado por pressão do embaixador francês, que exigiu a demissão<br />

de D. João de Almeida de Melo e Castro e D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ambos<br />

anglófilos assumidos.<br />

Reforçados os laços com a Inglaterra e repudiada a tutela francesa, a que<br />

Portugal se tinha visto obrigado pela «dura Ley da necessidade», e proclamado<br />

abertamente as suas sinceras predilecções britânicas, o Príncipe Regente ao organizar o<br />

seu primeiro Ministério, na antiga colónia, não podia deixar de abrir as portas do poder<br />

aos estadistas mais devotados à Inglaterra.<br />

Certamente ainda em Lisboa, e durante a viagem, seriam já várias as figuras,<br />

nomeadamente aquelas que se inclinavam para a velha aliada, a perfilar-se para os<br />

lugares mais apetecidos. Antes da chegada ao Rio, ainda em S. Salvador da Baía, o<br />

Marquês de Belas, que gozava de alguma influência junto do Príncipe, numa memória<br />

que lhe dirigiu, sugeria que o Gabinete adoptasse uma forma diferente, ficando apenas<br />

um ministro com a tutela de to<strong>das</strong> as secretarias de Estado e também com a Junta da<br />

Fazenda, acrescentando que a responsabilidade desse cargo deveria ser atribuída a D.<br />

Fernando José de Portugal e Castro.<br />

As intrigas palacianas desenvolviam-se, e difundiam-se comportamentos<br />

movidos por ambições pessoais e políticas, bem como os projectos de governo. Neste<br />

aspecto era “mestre” D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que não deixou de lançar mão da<br />

intriga para realizar as suas ambições. Desejoso de afastar Araújo de Azevedo do<br />

Ministério, e porque visava ser Secretário de Estado no novo elenco a formar no Rio de<br />

Janeiro, redigiu, por seu próprio punho, um escrito, com a finalidade de chegar ao<br />

conhecimento do Príncipe em que «denunciava não só a política, mas a própria pessoa<br />

de António de Araújo de Azevedo, o seu principal adversário, que acusava de sustentar<br />

que se a marinha não estivera pronta mais cedo para a retirada da Família Real era<br />

porque o Príncipe só mesmo no fim se resolvera a largar o Reino. Mais tarde acusá-lo-<br />

ia também de manter uma correspondência cifrada com o seu antigo secretário, que<br />

permanecia em Paris». Aliás, era hábito de D. Rodrigo denunciar e criticar, junto de D.<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 13


João, a acção, as atitudes ou até o carácter de outros membros do Governo e<br />

conselheiros de Estado. É certo que D. Rodrigo acabou por fazer parte do “staff”<br />

ministerial, como seria natural, mas não no lugar que ambicionava.<br />

O novo Ministério passou a ser constituído por D. Fernando José de Portugal e<br />

Castro, futuro Conde e Marquês de Aguiar, que foi nomeado presidente do Erário<br />

Régio e ministro assistente ao despacho, que equivalia ao de primeiro ministro, com<br />

precedência sobre os colegas e conhecimento dos assuntos de to<strong>das</strong> as pastas. A<br />

indicação do Marquês de Belas ao Príncipe Regente, já referida, e o facto de ter<br />

conhecimento do Brasil, como governador da Baía e depois vice-rei entre 1801 e 1806,<br />

terão sido argumentos de peso para a sua nomeação. Formado em Leis pela<br />

Universidade de Coimbra, homem de cultura, acerca <strong>das</strong> suas faculdades se pronunciou<br />

favoravelmente Laura Junot, nada “meiga” e, muitas vezes, verrinosa nas suas<br />

apreciações, colocando-o, a par de D. Rodrigo como um dos dois homens mais capazes<br />

para o governo do País.<br />

Esta preferência de modo nenhum agradava a Sousa Coutinho, pois além de não<br />

ter conseguido a chefia do Governo, significava a subordinação a uma personalidade<br />

que, quando o próprio D. Rodrigo era ministro da Marinha e Ultramar, estivera sob a<br />

sua tutela na qualidade de Governador da Baía, situação que chegou mesmo a constar<br />

junto do Príncipe Regente.<br />

Entre outros factores, a<br />

aproximação com a Inglaterra<br />

implicava, pelo menos,<br />

temporariamente, a colocar na<br />

“prateleira”, ou num lugar de<br />

pouca visibilidade política,<br />

António de Araújo de Azevedo,<br />

que muitos acusavam de<br />

demasiado receptivo à influência<br />

francesa, conseguindo D.<br />

Rodrigo tomar para si a gerência <strong>das</strong> pastas que Araújo sobraçara, Estrangeiros e<br />

Guerra.<br />

Entrando para o Governo, D. Rodrigo, que o Príncipe Regente, pouco depois,<br />

elevava a 1º Conde de Linhares, era tido «com razão pelo principal e corifeu do<br />

partido inglês».<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 14


Descendente de Martim Afonso de Sousa, neto de brasileira, discípulo e<br />

afilhado do Marquês de Pombal, D. Rodrigo de Sousa Coutinho era formado em<br />

Direito pela Universidade de Coimbra, iniciando a sua carreira diplomática com pouco<br />

mais de vinte anos, tornando-se o principal responsável pela mudança da Família Real<br />

para o Brasil.<br />

Como reformador e legislador político estudou «com largueza inteligente»,<br />

executando, em parte, um vastíssimo plano que incluía a defesa e o desenvolvimento de<br />

Portugal e dos seus domínios nos quadros de política nacional e internacional, que mais<br />

convinha aos portugueses. Para além de, ao longo dos anos, ter mostrado estofo de<br />

governante, Sousa Coutinho conhecia a fundo os problemas do Brasil. Antes de<br />

embarcar para o Rio de Janeiro, o Conde de Linhares havia já escrito sobre o Brasil<br />

uma memória completa para a transformação da nossa colónia da América num estado<br />

imperial. Foi ele, na opinião da historiadora americana Kirsten Schultz, quem «retomou<br />

o projecto de Pombal de compensar a fraqueza de Portugal na Europa promovendo o<br />

desenvolvimento dos seus territórios na América».<br />

O progresso do Brasil desde 1808 a 1812, ano do seu falecimento, em todos os<br />

campos da administração, parece dever-se a este político realista e dinâmico; D.<br />

Rodrigo não só trabalhava como fazia os outros trabalharem, obrigando todos os que o<br />

cercavam a esforçarem-se em prol do bem público, e para isso afastava os ociosos e os<br />

corruptos. Com uma alta noção de Estado, há quem tenha afirmado que, em muitos<br />

aspectos, possuía uma craveira de estadista comparável a Pombal.<br />

Deve sublinhar-se que para o ascendente de Linhares muito contribuiu a<br />

influência de seu irmão, D. Domingos de Sousa Coutinho, nosso embaixador em<br />

Londres, nomeadamente do relacionamento privilegiado que qualquer deles mantinha<br />

com Lord Strangford, chegado ao Rio em Agosto de 1808, como representante de Sua<br />

Majestade Britânica. Também o apoio do Príncipe Regente terá sido decisivo para<br />

sustentar a posição de Sousa Coutinho, perante as intrigas que propalavam a fim de o<br />

afastar do Governo, acusando-o daquilo que era mais do que evidente, o seu pendor<br />

anglófilo.<br />

O novo Governo do Rio de Janeiro integrava, ainda, João Rodrigues de Sá e<br />

Meneses, Visconde de Anadia, antigo ministro na Holanda e Nápoles, que foi<br />

reconduzido na pasta da Marinha. Conquanto não se lhe reconhecessem dons de<br />

estadista, era um homem culto e estava a par dos grandes problemas da Europa do<br />

tempo.<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 15


Por motivos que, agora e aqui, não interessa trazer a “lume”, as suas<br />

competências estavam muito reduzi<strong>das</strong>, além de que a sua recondução parece ter<br />

causado alguma surpresa, uma vez que a viagem para o Brasil pusera a descoberto o<br />

estado em que se encontrava a marinha nacional, não deixando de pôr em “xeque” a<br />

sua reputação.<br />

Segundo Oliveira Lima, este primeiro Ministério, que fazia questão em<br />

implantar uma estrutura administrativa nas terras de Santa Cruz, foi confiado a pessoas<br />

mais prepara<strong>das</strong> do que as que cercavam o Príncipe Regente em Lisboa. Certamente, o<br />

terá sido. Porém, o juízo popular, transposto em estilo joco-sério para o «Correio<br />

Braziliense», comparava a trindade ministerial a três relógios diferentes, o que,<br />

naturalmente, foi motivo de caçoada: um atrasado (D. Fernando de Portugal); outro<br />

parado (Visconde de Anadia) e o terceiro sempre adiantado (D. Rodrigo de Sousa<br />

Coutinho).<br />

Se bem que os colegas do Conde de Linhares não fossem, nem de longe nem de<br />

perto, simples “verbos de encher”, o ministro e secretário dos Estrangeiros e Guerra era<br />

sem dúvida, e foi-o até à sua morte prematura, a figura orientadora e inspiradora do<br />

novo Governo.<br />

Reorganização administrativa.<br />

Com o Reino sob ocupação francesa e não sendo possível prever o tempo de<br />

regresso, o Gabinete tinha de agir com urgência e resolver a montanha de problemas<br />

administrativos que a transferência da Corte para o Brasil não podia deixar de ter<br />

provocado. Assim, durante os primeiros meses, a máquina governamental trabalhou em<br />

ritmo acelerado, produzindo leis em série, revogando restrições coloniais e emitindo<br />

decretos.<br />

Logo à partida, deparava-se com o grande número de funcionários que iam<br />

emperrando a máquina administrativa por via dos muitos cargos criados para satisfazer<br />

aqueles que vieram com o Príncipe Regente, pretextando lealdade e devoção à sua<br />

pessoa, reclamando agora fartos meios de subsistência, em troca dos que, lembravam,<br />

haver abandonado no Reino à cobiça francesa. Naturalmente, os cargos mais rentáveis<br />

eram atribuídos, quase exclusivamente, a nobres portugueses, muitos deles a “leste”<br />

dos problemas da colónia, criando-se, ou recriando-se, departamentos que pouco<br />

tinham a ver com a realidade brasileira, porquanto as disposições apontavam mais para<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 16


uma questão de conseguir emprego para os milhares de burocratas, acabados de chegar<br />

do Reino, do que propriamente para servir as necessidades do Brasil.<br />

No entender do sociólogo Raymundo Faoro, os fidalgos de alta linhagem e que<br />

dispunham de bens próprios de vida não acompanharam, salvo raras excepções, o<br />

Príncipe Regente. A maior parte, «a chusma de satélites: monsenhores,<br />

desembargadores, legistas, médicos, empregados da Casa Real, os homens do serviço<br />

privado e protegidos de D. João, eram vadios e parasitas que continuariam no Rio de<br />

Janeiro o ofício exercido em Lisboa: comer à custa do Estado e nada fazer para o bem<br />

da nação». Em jeito de parêntesis, direi que esta “coisa” de comer à mesa, ou à conta<br />

do orçamento, e não dar a cabeça ou o corpo ao “manifesto”, parece, repito, parece, não<br />

me ser de todo estranha e, se calhar, nestes nossos tempos, já em edição… “correcta” e<br />

“aumentada”.<br />

Diga-se a este propósito, que também a fraude, o enriquecimento ilícito, enfim a<br />

corrupção, eram situações “normais” por todo o nosso império, embora tenham surgido<br />

de forma mais notória na nova capital portuguesa devido à entrada súbita de milhares<br />

de burocratas, criando, assim, condições favoráveis, especialmente às pessoas liga<strong>das</strong> à<br />

Corte, para abusos e acumulação de várias fortunas cuja origem não podia oferecer<br />

quaisquer dúvi<strong>das</strong>. Apenas dois exemplos bem significativos: Joaquim José de<br />

Azevedo, o tesoureiro da Casa Real que, em Novembro de 1807, organizou o embarque<br />

da nobreza e familiares do Príncipe Regente para o Brasil, enriqueceu tão rapidamente<br />

que se tornou banqueiro da Corte, chegando a fornecer «um empréstimo sem juros ao<br />

tesouro…que enchia cinco carruagens cheias de prata e onze escravos carregados de<br />

ouro». Bento Maria Targini, de origem italiana, iniciou o serviço público num cargo<br />

menor da burocracia, porém, sendo inteligente e organizado foi nomeado escriturário<br />

do Real Erário. Ao conseguir tornar-se muito próximo de D. João e de D. Carlota<br />

Joaquina, e convivendo na intimidade da Família Real, depressa chegou ao topo da<br />

referida repartição, sendo o encarregado de administrar as finanças públicas, o que<br />

incluía todos os contratos e pagamentos da Corte. Aqui, de facto… a ocasião fez o<br />

ladrão.<br />

O poder de Azevedo e Targini, nos seus departamento era tal, que ambos foram<br />

promovidos, pelo Príncipe Regente, de barão a visconde. Esta situação, como não podia<br />

deixar de ser, foi aproveitada pela proverbial “gozação” dos “cariocas”:<br />

«Quem furta pouco é ladrão<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 17


Quem furta muito é barão<br />

Quem mais furta e esconde<br />

Passa de barão a visconde.<br />

Furta Azevedo no Paço<br />

Targini rouba no Erário<br />

E o povo aflito carrega<br />

Pesada cruz ao Calvário».<br />

Os próprios estrangeiros que viviam na Corte denunciaram o desregramento da<br />

vida “carioca”, a corrupção dos funcionários e a desordem moral dos serviços públicos,<br />

como ressalta no «Lundú de Pai João», reproduzido numa interessante monografia de<br />

Artur Ramos, «O Folclore Negro do Brasil»:<br />

«Baranco dize – preto fruta,<br />

Preto fruta co razão;<br />

Sinhô baranco também fruta<br />

Quando panha ocasião<br />

Nosso preto fruta garinha<br />

Fruta saco de feijão;<br />

Sinhô baranco quando fruta<br />

Fruta prata e patacão.<br />

Nosso preto quando fruta,<br />

Vai pará na correcção;<br />

Sinhô baranco quando fruta<br />

Logo sai sinhô barão».<br />

Não foram poucos aqueles que, em breve, passaram a viver muito acima dos<br />

meios que poderiam ter conseguido legitimamente, pois a roubalheira em nome da<br />

Coroa tornou-se prática generalizada.<br />

A transferência da sede da monarquia para o Rio de Janeiro determinou a rápida<br />

criação ou a reforma de organismos de apoio, não apenas para o Governo do Brasil,<br />

mas também para manter a ligação oficial com o Conselho de Regência, em Lisboa.<br />

Além <strong>das</strong> Secretarias de Estado, já referi<strong>das</strong>, o Governo teria de instalar e pôr a<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 18


funcionar os sectores <strong>das</strong> suas principais áreas de actuação: segurança e polícia, justiça,<br />

fazenda e área militar. Sublinhe-se que não se tratava de partir do zero, porquanto a<br />

Coroa sempre administrou e controlou o Brasil com base nas «Ordenações Filipinas»,<br />

código legal que vigorava em Portugal desde o século XVII vindo a encontrar, por<br />

conseguinte, no Rio de Janeiro e demais capitanias, instituições e repartições<br />

vincula<strong>das</strong> e basicamente réplicas <strong>das</strong> que havia no Reino. Até então, a administração<br />

da metrópole estendia-se à colónia num organograma hierárquico, e que abarcava o<br />

Governo-Geral do Brasil, o governo <strong>das</strong> capitanias e o <strong>das</strong> câmaras municipais. Assim,<br />

o processo de implantação foi tanto de sobreposição e fusão como de adequação e<br />

sendo do interesse da Coroa, também de inovação, uma vez que as «Ordenações»<br />

deixavam bem claro que «o rei é lei animada sobre a terra e pode fazer lei e revogá-la<br />

quando vir que convém assim fazer».<br />

Santos:<br />

Sobre a estrutura judicial, vejamos o que nos diz o Padre Luiz Gonçalves dos<br />

«Tendo agora o Brasil com a augusta presença do Príncipe Regente Nosso<br />

Senhor uma elevada graduação política, e por consequência devendo ter tribunais<br />

superiores, a que os povos possam recorrer, especialmente naqueles negócios, que<br />

imediatamente dependem <strong>das</strong> reais resoluções, depois <strong>das</strong> consultas, dos mesmos<br />

tribunais, Sua Alteza Real houve por bem pelo alvará de 22 de Abril criar nesta Corte<br />

do Brasil um tribunal superior, denominado Mesa do Desembargo do Paço, e da<br />

Consciência e Ordens[…]. A este régio tribunal competirão todos os negócios, que<br />

anteriormente pertenciam ao Desembargo do Paço mesa da Consciência e Ordens, e<br />

Conselho do Ultramar em Lisboa; e os seus desembargadores gozarão <strong>das</strong> mesmas<br />

honras, e privilégios, que gozam os desembargadores, e conselheiros daqueles<br />

tribunais».<br />

A estrutura judicial já dispunha no Brasil do Tribunal da Relação e<br />

desembargadores dos agravos e apelações e ouvidores gerais do cível e do crime,<br />

vinculado à Casa da Suplicação, em Lisboa, e que era o grande tribunal de todo o<br />

Reino. A partir de agora, a própria Casa da Suplicação tinha a sua sede no Rio e<br />

absorvia o Tribunal da Relação local; outros antigos tribunais portugueses vieram<br />

também com a Corte, como o Desembargo do Paço, instância superior que encabeçava<br />

o organograma e Mesa da Consciência e Ordens que mantinha o vínculo com o<br />

Arcebispado do Brasil.<br />

Outra necessidade premente era a formação e reorganização de instituições, ou<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 19


estabelecimentos, respeitantes à administração económica e financeira. Deste modo, o<br />

Príncipe Regente, entendendo «ser indispensável estabelecer-se nesta Corte do Brasil<br />

um erário, ou tesouro geral público, e um conselho de sua Real Fazenda para a mais<br />

exacta administração, arrecadação, distribuição, assentamento e expedição <strong>das</strong> ren<strong>das</strong><br />

do Estado», determinou, pelo alvará de 28 de Julho de 1808, a criação do Real Erário e<br />

do Conselho da Fazenda com as mesmas atribuições que tinham em Lisboa e passando<br />

a administrar de perto as já existentes Junta da Fazenda, Alfândega, Intendência da<br />

Marinha e Armazéns Reais. Por alvará de 12 de Outubro de 1808 foi fundado o Banco<br />

do Brasil, instituição que ainda não havia em Portugal, sendo os objectivos referidos no<br />

diploma: «para fomentar e engrandecer o crédito público e animar a riqueza do<br />

comércio e da população». Assim se facilitava o uso <strong>das</strong> operações de câmbio e<br />

integravam-se os usos de descontos e rebates, como se fazia nas «Nações cultas e<br />

ilumina<strong>das</strong>». A fim de dotar a instituição bancária com pessoal qualificado para o seu<br />

bom funcionamento, o Príncipe Regente decidiu, quando ainda estava em S. Salvador,<br />

criar uma cadeira de Economia Política no Rio de Janeiro, entregando a sua regência ao<br />

Dr. José da Silva Lisboa, deputado da<br />

Mesa da Inspecção da Agricultura e<br />

Comércio da Baía.<br />

Além <strong>das</strong> questões já<br />

referi<strong>das</strong> de administração geral,<br />

justiça e organização económica e<br />

financeira do Estado, era também<br />

prioritária uma estruturação em<br />

matéria de defesa e segurança. Apesar<br />

da abertura dos portos ter sido uma “machadada” no sistema colonial, o Governo<br />

mantinha-se no firme propósito de defender o ideário absolutista, embora já fragilizado,<br />

bem como o seu território americano e o seu trono.<br />

Conquanto, as ameaças mais temi<strong>das</strong> na Europa fossem provenientes do<br />

exemplo da Revolução Francesa, no Brasil, além dos ideais iluministas e daqueles dos<br />

Estados Unidos, «os ventos que sopravam da própria vizinhança precisavam ser<br />

desviados». Recorde-se que as colónias espanholas se encontravam envolvi<strong>das</strong> no<br />

processo revolucionário que as levaria à independência e que, nesse ano de 1808,<br />

Simão Bolívar tomava o poder em Caracas, ao mesmo tempo que rebentavam revoltas<br />

contra a Espanha no Equador e na Bolívia.<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 20


Assim, e por isso mesmo, um alvará de 10 de Maio criava a Intendência Geral<br />

da Polícia da Corte e do Estado do Brasil, à semelhança da que existia em Portugal<br />

desde 1760, e cujo regulamento deveria ser rigorosamente cumprido por to<strong>das</strong> as<br />

autoridades criminais e civis existentes nas cidades e vilas <strong>das</strong> capitanias.<br />

Como se torna bem claro, os objectivos eram em grande parte de ordem<br />

política: salvaguardar a estabilidade <strong>das</strong> instituições tradicionais da monarquia, tratando<br />

de vigiar e perseguir «os espiões e partidistas dos franceses, de prevenir os crimes<br />

secretos, forjados nas trevas em clubes e lojas que minavam o Estado e a religião, e<br />

limpar a cidade de vadios que perturbassem a ordem civil e a tranquilidade públicas».<br />

O desembargador Paulo Fernandes Viana foi nomeado Intendente Geral da<br />

Polícia, cargo que exerceu até 1821 e com amplos poderes, porquanto, quase tudo era<br />

considerado caso de polícia: «a guarda da pessoa real, a organização da guarda real e<br />

o estabelecimento de quartéis, as obras municipais, a fiscalização dos teatros e<br />

diversões públicas, a matrícula dos veículos e embarcações, o registo dos estrangeiros<br />

e a expedição de passaportes, a promoção e o policiamento de festas públicas, a<br />

detenção de escravos fugidos, a perseguição e prisão de pessoas ou grupos que<br />

criticassem o Governo ou a ele se opusessem».<br />

Com todos os melhoramentos já mencionados e outros que serão ainda<br />

referidos, o Brasil deixou, praticamente, de ser uma colónia de Portugal desde a<br />

chegada da Família Real a terras de Santa Cruz. Esta nova situação acabaria por ser<br />

confirmada quando o Príncipe Regente elevou o Brasil à condição de Reino Unido aos<br />

de Portugal e Algarves, modificando-se, por esse motivo, as respectivas armas e títulos<br />

dos soberanos e príncipes herdeiros.<br />

O «manifesto» do Rio de Janeiro. Nova orientação na política externa.<br />

Segura a Corte no Brasil, após a Casa de Bragança como Casa reinante ter sido<br />

considerada extinta por determinação de Bonaparte, o Gabinete do Rio definiu<br />

igualmente uma nova atitude em face da agressão e dos agravos do Governo francês.<br />

Efectivamente, pouco depois da sua entrada para o Governo, na qualidade de<br />

Ministro dos Estrangeiros e Guerra, D. Rodrigo de Sousa Coutinho tomou por si só,<br />

(com o próprio Strangford ainda ausente em Inglaterra) a iniciativa de propor em Abril<br />

de 1808, a publicação de um «manifesto, ou exposição justificativa do procedimento da<br />

Corte de Portugal a respeito da França», e que viria a servir de referência formal da<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 21


viragem da política portuguesa.<br />

Os pretextos imediatos da publicação do «manifesto», em 1 de Maio de 1808,<br />

terão sido, por um lado, o conhecimento, através dos jornais ingleses (onde se<br />

transcreve o “Moniteur”) dos relatórios do Ministro dos Negócios Estrangeiros francês<br />

em que se explicava a ocupação de Portugal pela má fé e duplicidade do Governo de<br />

Lisboa; e, por outro, a notícia de que Junot abolira em 1 de Fevereiro o Conselho de<br />

Regência nomeado em Lisboa pelo Príncipe Regente. Esta situação impedia, desde<br />

logo, qualquer hipótese de diálogo com a França, reforçando, assim, a posição política<br />

de Sousa Coutinho.<br />

A proposta do “manifesto” apresentada ao Príncipe Regente propunha-se fazer a<br />

«exposição verídica e exacta da sua conduta, sustentada por factos incontestáveis, a<br />

fim de que os seus vassalos, a Europa imparcial e ainda a mais remota posteridade<br />

pudessem julgar da firmeza da […] conduta de Portugal».<br />

O «manifesto» começava por fazer a história do posicionamento de Portugal,<br />

traçando o quadro geral da política externa portuguesa desde o princípio da Revolução<br />

Francesa até à época da invasão do Reino, não se restringindo apenas à análise dos<br />

acontecimentos que a haviam imediatamente precedido.<br />

Assim, não deixava de acusar, veementemente, o procedimento da França e de<br />

Napoleão pelo apresamento de navios portugueses sem declaração de guerra e as<br />

permanentes e arbitrárias exigências pecuniárias logo a seguir à paz de 1801; também<br />

os abusos do General Lannes não eram esquecidos, bem como o menosprezo por uma<br />

neutralidade cujo reconhecimento fora obtido à custa de enormes sacrifícios e, até a<br />

pilhagem de todos os géneros coloniais e matérias primas.<br />

pontos base:<br />

Em síntese, creio poder considerar-se que o «manifesto» se apoiava em três<br />

O primeiro vincava a incontestável neutralidade portuguesa durante todo o<br />

período em questão, o que tinha por objectivo demonstrar a injustiça da guerra movida<br />

a Portugal pela França. Porém, a defesa deste ponto apresentava alguma fragilidade em<br />

relação à década de 1790, por via da participação portuguesa na Campanha do<br />

Rossilhão. No entanto, a dificuldade foi, ou julgava-se, ultrapassada pelo recurso à tese<br />

então apresentada pela nossa diplomacia: Portugal considerava, apenas, ter-se limitado<br />

a prestar à Espanha os socorros exigidos pela aliança que vigorava entre os dois países,<br />

não se podendo encarar tal participação como um acto de guerra contra a França.<br />

A segunda ideia base consistia em demonstrar a constante fidelidade à aliança<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 22


inglesa; mesmo no período “nebuloso” que decorreu entre Agosto e Novembro de<br />

1807, Portugal não deixou de manter «uma plena confiança na amizade do seu antigo e<br />

fiel aliado Sua Majestade Britânica» e, até quando o Governo português acedeu à<br />

clausura dos portos, terá sido um facto que, por uma questão de estratégia política, a<br />

própria Inglaterra deu o seu “agreement”.<br />

O terceiro ponto do texto de Sousa Coutinho destacava o carácter benéfico da<br />

aliança com a Grã – Bretanha, referindo quer a disponibilidade do Governo de S. M. B.<br />

para oferecer a Portugal «toda a qualidade de socorros», na iminência de uma invasão<br />

francesa, em 1806, quer as melhores condições que a Inglaterra conseguira para<br />

Portugal no tratado de Londres de 1801, comparando-as com aquelas estipula<strong>das</strong> no<br />

tratado de Badajoz e de Madrid, firmado pouco antes.<br />

Após a exposição histórica, o «manifesto» apresentava uma «declaração» onde<br />

se determinava a ruptura de «toda a comunicação com a França», autorizando os<br />

súbditos portugueses a «fazer guerra por terra e mar aos vassalos do Imperador dos<br />

franceses» e se afirmava a nulidade de todos os tratados que Napoleão «obrigou» a<br />

assinar, nomeadamente os de Badajoz e de Madrid em 1801 e o de neutralidade em<br />

1804.<br />

Finalmente, explicitava os princípios gerais que orientariam a política externa<br />

portuguesa: «Sua Alteza Real não deporá jamais as armas, senão de acordo com o seu<br />

antigo e fiel aliado Sua Majestade Britânica; e não consentirá em caso algum na<br />

cessão do reino de Portugal, que forma a mais antiga parte da herança e dos direitos<br />

da sua augusta família Real». Apenas quando o Imperador dos franceses anuísse<br />

concordar «sobre todos os pontos às justas reclamações de Sua Alteza o Príncipe<br />

Regente de Portugal e abandonasse o tom absoluto e imperioso com que dominava a<br />

Europa oprimida», seria possível reatar as relações com a França.<br />

Aparentemente o «manifesto» limitava-se a formalizar os princípios que a<br />

própria situação impunha, tornando, assim, difícil a sua contestação. Porém, o certo é<br />

que, quando apresentado e discutido em Conselho de Estado, o texto de D. Rodrigo de<br />

Sousa Coutinho mereceu reservas de quase todos os Conselheiros.<br />

Curiosamente, de todos os Conselheiros, foi Araújo de Azevedo, grande rival de<br />

Sousa Coutinho, que apresentou um dos pareceres menos críticos, baseado<br />

exclusivamente na exposição histórica e sem nunca abordar o conteúdo político do<br />

«manifesto». Talvez o tivesse feito por uma questão de estratégia política com vista,<br />

num futuro próximo, a regressar ao lugar de que tinha sido apeado pelo Conde de<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 23


Linhares, Sousa Coutinho o que, de facto, veio a acontecer.<br />

Consideremos, agora, alguns dos pontos de vista discordantes:<br />

A Corte de Lisboa quebrou efectivamente a neutralidade, da<strong>das</strong> as convenções<br />

que então fizera com a Espanha e a Grã-Bretanha, envolvendo-se em guerra com a<br />

França; quanto à oferta de socorros disponibilizados pelo Governo inglês em 1806,<br />

contesta-se ter havido qualquer perigo iminente de invasão francesa por esse tempo; em<br />

relação ao Tratado de Londres consideram que as suas condições não foram favoráveis<br />

ao interesse nacional; sublinhavam que, se se declarava guerra à França, também seria<br />

lógico fazê-lo igualmente à Espanha, que participara da invasão, concluindo porém,<br />

que «seria melhor em tal caso não fazer nenhuma dessas declarações».<br />

Todos os Conselheiros concordavam em moderar a linguagem do «manifesto»,<br />

evitando expressões injuriosas relativamente a Napoleão e aos seus generais, a fim de<br />

não irritar, ainda mais, a sua animosidade e prováveis retaliações, atendendo à<br />

ocupação do Reino e que o principal objectivo era a sua restauração. E mais, essa<br />

moderação seria necessária, porquanto era conveniente que o «manifesto» a publicar se<br />

abstivesse «quanto for possível da mais leve parcialidade, que traga consigo a ideia de<br />

uma futura predilecção política a favor de qualquer <strong>das</strong> Potências principais<br />

beligerantes, segundo o axioma inegável em política, que a utilidade e o interesse do<br />

Estado deve [sic] única e exclusivamente dirigir o seu sistema político». Convinha, de<br />

facto, deixar uma “porta” aberta para preservar as possibilidades de um diálogo futuro<br />

com Paris.<br />

Apesar de no final, o Conde de Linhares estar em minoria, se não mesmo<br />

isolado no seu projecto, foi a sua proposta que prevaleceu, vindo o «manifesto» a ser<br />

publicado com a data de 1 de Maio de 1808 e correspondendo quase por completo ao<br />

texto inicial, tanto no que respeita à forma como ao conteúdo. Neste aspecto, apenas<br />

teve algum significado a supressão da referência ao episódio do afastamento do próprio<br />

Sousa Coutinho e de D. João de Almeida de Melo e Castro do Governo, por pressão do<br />

embaixador Lannes sobre D. João, o que num documento a ser divulgado nas Cortes<br />

europeias seria algo desprestigiante para o Príncipe Regente.<br />

Como hipótese provável, para impor a sua proposta, não é de rejeitar que D.<br />

Rodrigo tenha argumentado com a necessidade premente de manter, e até reforçar, o<br />

apoio do Governo inglês, o que exigia uma posição sem tibiezas, clara e firme, em<br />

relação à França. E talvez seja bom lembrar que Sousa Coutinho era amigo de<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 24


Strangford e irmão do nosso embaixador em Londres, D. Domingos de Sousa<br />

Coutinho.<br />

A nova orientação da política externa portuguesa no «manifesto», ao mesmo<br />

tempo que marcava o ascendente de Sousa Coutinho na Corte do Rio, funcionava no<br />

sentido de que a aliança inglesa retomasse uma importância decisiva na sobrevivência<br />

da monarquia portuguesa. Mesmo considerando que a sua transferência para o Rio de<br />

Janeiro a pudesse, no imediato, pôr a salvo de qualquer ataque estrangeiro, do apoio<br />

britânico dependia não só a possibilidade da sede do Governo regressar a Lisboa, mas<br />

também a própria cobertura da navegação no Atlântico sem a qual o Brasil, que vivia<br />

essencialmente do comércio de exportação, não tardaria a ficar à beira do colapso<br />

económico.<br />

Mas…esta forte ligação à Inglaterra (leia-se dependência) não deixava, e não<br />

deixou, também, de apresentar sérios problemas. Para além de outras situações lesivas<br />

do interesse nacional, a intervenção militar inglesa no País e a autonomia com que foi<br />

conduzida provocando situações abusivas de toda a ordem, e em todos os sectores da<br />

sociedade portuguesa, depressa deu azo às maiores dificuldades e desentendimento<br />

com as autoridades do Reino. Daí que a prepotência britânica em Portugal, durante a<br />

presença da Corte no Brasil, possa ser considerada como um factor de primeira linha na<br />

conspiração abortada de 1817 e na revolução vitoriosa de 24 de Agosto de 1820, levada<br />

a cabo pelas tropas rebela<strong>das</strong> contra o domínio inglês e que levou à implantação do<br />

liberalismo e consequentemente à primeira Constituição Portuguesa, em 1822.<br />

Tratados com a Inglaterra.<br />

Tratados com a Inglaterra, ou…”tramados” pela Inglaterra? Bom, suponho, ou<br />

melhor, sei, que ao longo da nossa história, uma coisa implicava a outra – “tramas” que<br />

o imperialismo inglês tecia. De facto os Tratados de 1810, um de Amizade e Aliança e<br />

outro de Comércio e Navegação constituem, não só a prova de uma ascendência<br />

britânica, como também o reflexo da sua política imperialista. Aproveitando-se de uma<br />

situação crítica, tanto no Reino como no Brasil, a Inglaterra punha e dispunha a seu<br />

belo prazer de tudo o que servisse os seus interesses<br />

Já vinha de longe a ambição da Grã-Bretanha no sentido de estabelecer um<br />

tratado de comércio com Portugal, que pusesse termo à proibição da entrada de alguns<br />

produtos e que lhe permitisse o acesso directo aos mercados brasileiros. Não poucas<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 25


vezes, em finais do século XVIII, Londres havia pressionado Lisboa a fim de se<br />

iniciarem negociações visando a concretização de um tal tratado. Em 1776, na<br />

sequência de um tratado anglo-francês, o Tratado de Éden, a Inglaterra apertou o cerco,<br />

tornando-se mais insistente, só que a resistência da diplomacia portuguesa e depois as<br />

convulsões resultantes da Revolução Francesa frustraram as pretensões britânicas. A<br />

ocasião surgia agora, (guardado estava o “bocado”) com a mudança da situação político<br />

– diplomática e que obrigou a Corte a transferir-se para o Brasil.<br />

Situação político - diplomática obriga Portugal a aceitar um tratado<br />

“leonino” – desleal e oportunista.<br />

Antes de mais, por razões de ordem política, a Inglaterra tinha sido a potência<br />

que, através da sua esquadra naval, apoiou a retirada para o Brasil, além de que a sua<br />

protecção seria sempre fundamental a fim de conservar o império luso-brasileiro<br />

intacto e na posse dos Braganças, quando se concertasse a paz geral.<br />

Convém recordar que já no artº 6º da Convenção de Outubro de 1807, esteve<br />

expressa a garantia de que Sua Majestade Britânica nunca reconheceria como rei de<br />

Portugal «Príncipe algum que não fosse «o herdeiro e representante legítimo» da Casa<br />

de Bragança, mas…tendo como contrapartida e condição implícita a obrigação<br />

estipulada no artº 7º, de se negociar um tratado de auxílio e comércio entre o Governo<br />

português e a Grã-Bretanha.<br />

Posteriormente, em Abril de 1808, a vinculação entre o auxílio político-militar e<br />

a assinatura de um acordo de comércio com a Inglaterra é claramente assumido no<br />

parecer do Marquês de Belas, quando consultado, como Conselheiro de Estado, sobre o<br />

projecto do «manifesto», sugerindo: «Bom remédio e único; não se perca tempo; faça-<br />

se com a Inglaterra um Tratado de Comércio, ou com outro qualquer pretexto, e seja o<br />

artigo principal: Que Inglaterra não há-de fazer a Paz sem o Príncipe de Portugal ser<br />

restituído ao seu Trono na Europa com to<strong>das</strong> as respectivas indemnizações: Publique-<br />

se este Tratado: nada sobre este ponto de vista secreto: na publicidade consiste o<br />

maior interesse». Praticamente tratava-se da concessão de facilidades comerciais em<br />

troca de garantias políticas.<br />

Mesmo para além de qualquer pressão política, existiam motivos de ordem<br />

económica suficientemente consideráveis para imporem ao Governo do Rio uma<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 26


concertação com a Inglaterra, embora este país apenas representasse um comprador de<br />

certa monta quanto ao algodão e, em menor aquisição, os couros brasileiros.<br />

Dos géneros produzidos no Brasil, quase todo o açúcar, o cacau, o tabaco, e o<br />

café, bem como metade do algodão eram, até 1807, exportados para os mercados da<br />

Europa, nomeadamente Hamburgo e portos italianos. Acontece que, com o Bloqueio<br />

Continental imposto por Napoleão, os referidos mercados tornaram-se inacessíveis,<br />

sendo a conjuntura ainda agravada pelo bloqueio marítimo britânico; deste modo, só<br />

com muita dificuldade, e por vias indirectas, se poderiam atingir.<br />

Em tais circunstâncias, pairando a ameaça de asfixia sobre a economia<br />

brasileira, o único mercado alternativo era a Grã-Bretanha. Porém, com excepção do<br />

algodão, a Inglaterra não tinha por hábito importar as produções brasileiras, uma vez<br />

que consumia os artigos dos seus próprios domínios coloniais. Em relação ao açúcar e<br />

café brasileiros as taxas aplica<strong>das</strong> tornavam a sua importação proibitiva, e isto com a<br />

finalidade de proteger os géneros similares <strong>das</strong> colónias inglesas que beneficiavam de<br />

uma elevada protecção alfandegária.<br />

Havia, no entanto, algum campo de manobra que justificava a esperança de<br />

conseguir a entrada de, pelo menos, certos produtos brasileiros, enquanto que naqueles<br />

onde tal se afigurava inviável, (caso sobretudo do açúcar) se tornaria vital que a<br />

Inglaterra os adquirisse para posterior reexportação a partir dos portos britânicos para<br />

o continente europeu – por via legal, nas zonas eventualmente não controla<strong>das</strong> por<br />

Napoleão e, por contrabando, nas outras.<br />

Obviamente, tudo isto impunha como necessidade imperiosa a negociação de<br />

um acordo com a Grã-Bretanha, a quem esse acordo não interessaria menos, como<br />

forma de assegurar a entrada no mercado brasileiro de produtos ingleses até então<br />

também proibidos, sobretudo os tecidos de algodão e, mesmo, igualmente importante,<br />

garantir a posição do domínio e privilégio no comércio externo brasileiro.<br />

Carta Régia de 28 de Janeiro 1808. O fim do «Pacto Colonial».<br />

A negociação de um tratado levaria o seu tempo, pelo que a pressão <strong>das</strong><br />

circunstâncias obrigou a que fosse definido um novo regime mercantil ainda antes de<br />

concluído qualquer acordo comercial.<br />

O primeiro e decisivo passo foi dado, de imediato, a 28 de Janeiro, uma semana<br />

após a chegada do Príncipe Regente a S. Salvador da Baía, pela Carta Régia que<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 27


decretava a abertura dos portos do Brasil ao comércio dos navios estrangeiros – medida<br />

promulgada «interina e provisoriamente», enquanto não fosse consolidado «um sistema<br />

geral que efectivamente regule tais matérias», como registava o preâmbulo da referida<br />

carta.<br />

A Carta Régia foi assinada por D. João, com a ausência de Araújo e Azevedo e<br />

Rodrigo de Sousa Coutinho, embarcados em navios que aportaram directamente ao Rio<br />

de Janeiro, pelo que «o projecto, suscitado talvez, certamente ponderado em viagem<br />

amadureceu ao contacto <strong>das</strong> necessidades locais, visíveis para todos e sobre que o<br />

Conde da Ponte, Governador da Baía, não teria deixado de chamar a atenção do<br />

Regente. Como havia a escassa marinha nacional, parte sequestrada pelo inimigo nos<br />

portos do reino, de prover às faltas da colónia, maiores agora, pela presença da Corte<br />

e inevitáveis urgências da administração?...».<br />

O fim do «pacto colonial» acabava de dar origem a um vazio que tinha de ser<br />

preenchido por novo conjunto de regras, que visasse outro processo de articulação <strong>das</strong><br />

economias brasileira e portuguesa em relação aos mercados internacionais.<br />

Porém, as concessões previstas, ainda em Lisboa, na Convenção de 22 de<br />

Outubro, onde se previa a hipótese de bloqueio dos portos do litoral metropolitano,<br />

estabelecia que se facultaria ao comércio inglês um único porto (em princípio o de<br />

Santa Catarina), tinham uma amplitude muito inferior àquelas que foram estipula<strong>das</strong><br />

na Carta Régia de 28 de Janeiro de 1808. É provável que este facto tivesse a ver com a<br />

pressão dos interesses locais na causa do abandono de to<strong>das</strong> as restrições à abertura dos<br />

portos e, com José da Silva Lisboa, advogado e baiano, o seu porta-voz que, «como<br />

bom discípulo que era de Adam Smith, terá defendido com êxito a necessidade de se<br />

baixarem os direitos de entrada, para facilitar todo o giro do comércio».<br />

Entretanto, uma outra medida, o alvará de 28 de Abril de 1808, lançou o último<br />

golpe no sistema do «pacto colonial», abolindo «toda e qualquer proibição» que no<br />

Brasil e nos domínios ultramarinos vigorasse sobre o exercício da actividade industrial,<br />

sendo permitido desde então, a qualquer dos seus habitantes «estabelecer todo o género<br />

de manufacturas, sem exceptuar algumas, fazendo os seus trabalhos, como entenderem<br />

que mais lhes convém […]».<br />

Ao mesmo tempo, mas independentemente do que se passava no Brasil, o<br />

monopólio mercantil português ia abrindo brechas por outro lado: em Londres, o nosso<br />

embaixador, Domingos de Sousa Coutinho, logo a seguir à abertura dos portos<br />

brasileiros, pressionado por inúmeros avisos, impressos, cartas, petições, visitas, tudo<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 28


com a finalidade de o convencer a permitir autorização para que os navios ingleses se<br />

pudessem dirigir directamente aos portos brasileiros. Igualmente assediado pelo<br />

Governo britânico, D. Domingos acabou por ceder, emitindo as licenças pedi<strong>das</strong>,<br />

mesmo no caso dos tecidos de algodão, cuja importação era proibida tanto na<br />

metrópole como nos domínios portugueses. Diga-se que os ingleses acorreram<br />

imediatamente ao Rio a abrir casas comerciais e, três anos depois, em 1811, já<br />

contavam com setenta e cinco.<br />

Certamente, o nosso embaixador, com as referi<strong>das</strong> concessões pretendia obter<br />

contraparti<strong>das</strong>, preparando o terreno para o tratado. Aliás, foi D. Domingos, irmão de<br />

D. Rodrigo, quem redigiu o primeiro esboço do Convénio. Este documento veio a<br />

constituir a matriz de todos os projectos subsequentes, porém, foi sendo alterado ao<br />

longo dos meses que se seguiram, acrescentando várias cláusulas pelas quais a Coroa<br />

portuguesa assumia novos compromissos, quase sempre favoráveis (ou nunca<br />

desfavoráveis) à Inglaterra, o que não deixava de ser uma situação “normal”.<br />

Tratados de 1810. Negociações. Cláusulas.<br />

As negociações com a Inglaterra previstas pelo Convénio de 1807, realiza<strong>das</strong><br />

em Lisboa, foram inicia<strong>das</strong> a partir de Março de 1808 e prosseguiram em Agosto do<br />

mesmo ano, agora já com a presença de Strangford, plenipotenciário inglês, e que<br />

viajara acompanhado do projecto.<br />

Aparentemente, o plenipotenciário português, D. Rodrigo de Sousa Coutinho,<br />

ainda procurou dar-lhes uma base diferente daquela que estava consagrada na minuta e<br />

redigida, como se disse, por seu irmão, ao solicitar «alguma reciprocidade a favor dos<br />

géneros e produções do Brasil, em consequência <strong>das</strong> facilidades, favores e graças que<br />

Sua Alteza Real, o Príncipe Regente, seu amo, tinha concedido às produções e<br />

manufacturas da Grã-Bretanha […]». Strangford não afastou de imediato tal hipótese,<br />

ao sugerir na sua resposta que «as disposições necessárias para favorecer o comércio<br />

se fizessem por meio de uma Convenção ou Tratado, e não por uma simples e<br />

recíproca declaração, que não bastaria a procurar a derrogação (revogação, abolição)<br />

<strong>das</strong> leis, ou proibitivas ou onerosas pelos direitos que estabelecem e por ora opõem na<br />

Grã-Bretanha um grande obstáculo à venda dos géneros do Brasil, e concorrem assim<br />

a diminuir a mútua comunicação e extensão que o comércio deve ter».<br />

Por esta altura não se conhecia ainda o «bill» (a nota) do Parlamento britânico<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 29


datado de 25 de Junho (Strangford saíra da Grã-Bretanha em Maio e a notícia só em<br />

Setembro poderia ter chegado ao Rio de Janeiro). Essa resolução do Parlamento<br />

permitia a entrada dos produtos vindos do Brasil, desde que não proibidos por lei,<br />

pagando os mesmos direitos de importação e sisa que recaíam sobre os de outros países<br />

estrangeiros. Tratava-se da extensão ao Brasil do princípio de nação mais favorecida;<br />

por outro lado, o mesmo «bill» concedia ainda facilidades de depósito e armazenagem,<br />

para exportação exterior.<br />

A Convenção assinada a 28 de Fevereiro de 1809 por Sousa Coutinho e<br />

Strangford, como plenipotenciários de Portugal e da Grã-Bretanha, mantinha a mesma<br />

estrutura e os princípios que já constavam do projecto de D. Domingos, no que dizia<br />

respeito às relações mercantis bilaterais.<br />

Assim, o artº 5º estabelecia uma «livre, inteira e recíproca liberdade de<br />

comércio entre os respectivos vassalos <strong>das</strong> duas Altas Partes Contratantes, e em todos<br />

e cada um dos territórios e domínios de ambas»; o artº 7º determinava «uma perfeita<br />

reciprocidade nos direitos e impostos», a pagar pelos navios dos dois países; o artº 19º<br />

declarava a admissão de todos os produtos britânicos nos portos e domínios da Coroa<br />

portuguesa, mediante o pagamento de direitos de 15% «ad valorem» (segundo o valor<br />

<strong>das</strong> mercadorias declara<strong>das</strong> no despacho) e taxa de 16% para as portuguesas ou para as<br />

estrangeiras transporta<strong>das</strong> em navios portugueses; o artº 21º concedia o tratamento de<br />

nação mais favorecida conferido às exportações portuguesas para a Grã-Bretanha e, no<br />

seguinte, a concessão de facilidades na reexportação daqueles produtos que não tinham<br />

entrada no mercado brasileiro, por fazerem concorrência aos <strong>das</strong> colónias inglesas.<br />

A reciprocidade era imperfeita e, até, totalmente aparente neste quadro livre-<br />

cambista e muito prejudicial, especialmente, para a antiga metrópole. A este respeito as<br />

reivindicações dos sectores brasileiros pouco se fizeram sentir e …compreende-se. Para<br />

esta orientação livre-cambista não deve ter sido estranho o “dedo”, e até a “mão” de<br />

Canning, Ministro dos Estrangeiros britânico, com quem Domingos de Sousa Coutinho<br />

mantinha laços muito estreitos, de tal modo que submetia à sua aprovação uma grande<br />

parte dos ofícios remetidos para o Rio, não sendo, pois, de rejeitar que os artigos sobre<br />

as relações comerciais entre a Grã-Bretanha e o Brasil tivessem a sua orientação. A sua<br />

influência, ou melhor, prepotência, era tal que, como veremos já adiante, se recusou a<br />

ratificar o tratado enquanto a cláusula respeitante à Inquisição não fosse retirada,<br />

cláusula que excluía os súbditos de S. M. B. da alçada do Santo Ofício.<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 30


Também a cláusula que transformava o porto de Santa Catarina em porto<br />

franco, local privilegiado para o comércio, legal ou por contrabando, com as colónias<br />

espanholas e que vinha facilitar os interesses britânicos na bacia do Prata não foi<br />

excluída, passando a constituir o art. 25ºdo Tratado.<br />

O artº 28º viria a tornar-se um dos mais importantes nas futuras relações<br />

diplomáticas portuguesas, porquanto tocava um ponto muito sensível para os sectores<br />

dominantes do Brasil: o tráfico negreiro. No sentido de cooperar com Sua Majestade<br />

britânica, o rei Jorge III, D. João comprometia-se a adoptar os mais eficazes meios de<br />

conseguir uma gradual abolição do comércio de escravos em toda a extensão dos seus<br />

domínios.<br />

Já depois da ratificação do tratado, o nosso representante, o Conde de Linhares,<br />

em nota dirigida a Strangford pedia que «se declarasse que não se impediria este<br />

comércio em todos aqueles portos onde os vassalos de Sua Alteza Real actualmente o<br />

fazem, pois que o mesmo augusto senhor não pode deixar de assim o permitir, não só<br />

para satisfazer às urgentes instâncias dos seus vassalos, que julgam que sem este meio<br />

não poderiam continuar as suas culturas no estado actual <strong>das</strong> cousas; mas porque os<br />

negociantes desta parte dos Estados de Sua Alteza Real se julgam assim espoliados de<br />

um comércio a que estão acostumados e que reputam o mais essencial para a<br />

prosperidade do país» … pois a substituição dos escravos por «uma povoação de<br />

brancos livres e bons cultivadores» só poderia fazer-se gradualmente, como «fruto <strong>das</strong><br />

sábias providências» que já se haviam tomado para «chamar colonos europeus» – pelo<br />

que D. João não poderia «deixar de sustentar um ramo de comércio que detesta, mas<br />

que é necessário e indispensável […]».<br />

Outras cláusulas há no tratado que revelam as imposições e prepotência<br />

britânica, mandando, descaradamente, a reciprocidade às “malvas”. Vejamos: o<br />

projecto do nosso embaixador em Londres previa a possibilidade de se manterem os<br />

juízes conservadores – a quem cabia julgar, em território português, as questões em que<br />

se envolvessem súbditos britânicos – mas com a condição de, em reciprocidade, se<br />

criar no Tribunal do Almirantado uma comissão especial, com funções semelhantes em<br />

relação aos portugueses residentes na Grã-Bretanha. Obviamente, esta reciprocidade<br />

nunca se veio a verificar.<br />

Muito importante para as relações entre os dois países era uma cláusula do art. 8º<br />

do Tratado de Aliança, que anulava a limitação a seis navios de guerra britânicos<br />

admissíveis simultaneamente nos portos portugueses. A nova cláusula imposta pela<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 31


Inglaterra autorizava os navios ingleses a ancorar nos portos brasileiros, sem limitação<br />

do seu número, proibindo que idêntico privilégio fosse concedido a outra nação. Esta<br />

imposição equivalia a proibir ao Estado luso-brasileiro qualquer estatuto de neutralidade<br />

em caso de conflito internacional, transformando o país numa base de apoio à frota de<br />

guerra inglesa e colocava Portugal na dependência política da Inglaterra.<br />

Este mesmo tratado previa ainda que, em caso de guerra, os navios de ambos os<br />

países contratantes não poderiam transportar os produtos ou mercadorias de qualquer<br />

país inimigo de algum deles, porém, tratava-se de mais uma disposição imposta pela<br />

Inglaterra.<br />

Tudo corria, inequivocamente, a favor da Inglaterra e nem o prazo de validade<br />

do tratado escapou. Em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho, tinha em projecto<br />

um acordo provisório a vigorar por um número restrito de anos, ou até à paz geral,<br />

porém, acabou por estipular-se, isto é, os ingleses estipularam, que o tratado seria<br />

«ilimitado no ponto de vista da sua duração», podendo ser revisto de quinze em quinze<br />

anos por acordo mútuo, mantendo a sua vigência mesmo que a Família Real<br />

regressasse a Lisboa. Diga-se, a este propósito que, em consequência da evolução dos<br />

acontecimentos no Congresso de Viena, (1815), foi declarado nulo o Tratado de 1810,<br />

contudo, os ingleses conseguiram iludir a sua prática aplicação, de modo que a<br />

anulação formal de tal diploma só veio a ser possível em 30 de Maio de 1836.<br />

Quanto à cláusula referente à Inquisição foi modificada devido à pressão de<br />

Strangford. Inicialmente, D. Domingos apenas admitia que os comissários do Santo<br />

Oficio procedessem a sequestros de bens na América, porém, o art. 19º do tratado de<br />

1809 obrigava o nosso Governo a «jamais criar ou estabelecer este Tribunal no<br />

Brasil». Como não era costume, causou alguma surpresa o facto de esta situação<br />

provocar, do lado português, forte resistência à ratificação do tratado. Como Strangford<br />

participará, mais tarde, em carta a D. Domingos, o Núncio – em conluio com D. João<br />

de Almeida, que desejaria o afastamento de D. Rodrigo – teria feito crer ao «bom do<br />

Príncipe Regente que ele iria direito ao inferno se se deixasse corromper por um<br />

plenipotenciário herético». O certo é que à última hora, a pressão teve, neste caso,<br />

força suficiente para conduzir a uma renegociação, conseguindo de Strangford a<br />

introdução no tratado de um artigo adicional secreto em que Inquisição conferia<br />

imunidade aos súbditos britânicos residentes no país.<br />

O Príncipe Regente acabou por ratificar o tratado, porém, Canning, ao tomar<br />

conhecimento do «artigo adicional e secreto» anulando a cláusula sobre o Santo<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 32


Ofício, decidiu-se a não conceder a ratificação ao tratado concluído no Rio, preparando<br />

novo projecto que foi logo enviado para o Brasil e que previa a assinatura não de um<br />

mas de dois tratados, um de aliança e amizade e outro de comércio e navegação. A<br />

ratificação só veio a acontecer em Fevereiro de 1810, quando o nosso Governo assumiu<br />

o compromisso de, através do art. 9º do tratado de aliança, jamais vir a instalar no<br />

Brasil o Tribunal da Inquisição.<br />

Oliveira Lima, uma fonte obrigatória no estudo deste período, refere que o<br />

Tratado de 1810 foi franca e inequivocamente favorável à Grã-Bretanha, se bem que<br />

diga o preâmbulo ter ele por fito «adoptar um sistema liberal de comércio, fundado<br />

sobre as bases da reciprocidade, e mútua conveniência, que pela descontinuação de<br />

certas proibições, e direitos proibitivos, pudesse procurar as mais sóli<strong>das</strong> vantagens de<br />

ambas as partes, às produções e indústria nacionais, e dar ao mesmo tempo a devida<br />

protecção tanto à renda pública, como aos interesses do comércio justo e legal».<br />

Como eles dizem, os ingleses, “no comment”…<br />

Finalizando este capítulo, e à margem do Tratado, mas, ainda em pleno período<br />

negocial, a 21 de Abril de 1809, foi assinada uma Convenção sobre um empréstimo de<br />

600.000 libras esterlinas. Este apoio da Grã-Bretanha exigia garantias vexatórias, não<br />

sendo muito perceptível no documento qual a taxa da operação. Sabe-se que, no art. II<br />

da Convenção constava o seguinte: «Sua Alteza Real, o Príncipe Regente de Portugal<br />

obriga-se a pagar o juro deste empréstimo pelo preço que for acordado…».<br />

As garantias eram constituí<strong>das</strong> «pela porção dos rendimentos da Ilha da<br />

Madeira necessários à liquidação de amortização e juros e, como segurança adicional,<br />

o penhor mercantil do pau-brasil vendido em Inglaterra, para onde o Brasil se<br />

obrigava a mandar vinte mil quintais desse produto, até à extinção do empréstimo…».<br />

Os prazos de pagamento de amortizações eram semestrais.<br />

Em artigo separado deste contrato de financiamento, ficava acertado que os<br />

adiantamentos pecuniários efectuados por Jorge III ao Príncipe Regente desde a sua<br />

partida para o Brasil, seriam reembolsados ao monarca britânico fora dos referidos<br />

empréstimos.<br />

Era assim, explorando-nos até ao “tutano”, que o nosso antigo e “fiel” aliado<br />

auxiliava um país, obrigatoriamente atento, venerador e obrigado.<br />

Críticas ao Tratado.<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 33


Ao organizar o plano respeitante à presença da Corte portuguesa no Brasil<br />

(1808-1821), não estava no meu espírito que o capítulo referente às negociações que<br />

levaram ao Tratado de 1810 passasse para além do essencial, ou simples enumeração,<br />

<strong>das</strong> suas disposições. Embora sem grande pormenorização, passou. E passou, porque<br />

considerei que algum desenvolvimento do processo negocial e respectivo clausulado,<br />

na sua descrição, seriam suficientes para pôr a nu os malefícios do Tratado.<br />

Porém, atendendo a que o Tratado foi, talvez, o acto mais importante do<br />

domínio colonial, por via <strong>das</strong> enormes consequências que gerou, julgo, justificar-se<br />

uma abordagem às críticas de um convénio que foi aquilo que os ingleses quiseram,<br />

claramente apoiados por D. Rodrigo de Sousa Coutinho e seu irmão, D. Domingos,<br />

“pai” do projecto e, sem dúvida, bem orientados (ou desorientados!) por Canning e<br />

Strangford.<br />

Que o Tratado foi ruinoso para Portugal, foi, o que, aliás, ficou bem patente nas<br />

cláusulas referi<strong>das</strong> no capítulo anterior,<br />

Note-se que, de início, os efeitos do convénio até foram benéficos para o Brasil,<br />

porquanto a grande quantidade de produtos britânicos que enxamearam o mercado<br />

brasileiro, a preços sem concorrência, fizera baixar o custo de vida; no entanto, tal<br />

situação prejudicava o comércio português, provocando grande desfasamento entre a<br />

política seguida pela Coroa relativamente ao desenvolvimento da colónia e as<br />

exigências da metrópole.<br />

Porém, este período de baixa de preço foi “sol” de pouca dura, uma vez que, em<br />

breve, surgia uma inversão provocada pelo facto de o Brasil, devido ao seu atraso<br />

industrial e às limitações impostas aos seus produtos agrícolas por parte da Grã-<br />

Bretanha, não conseguir exportar produção suficiente para equilibrar o peso da<br />

importação originando, assim, uma balança comercial deficitária.<br />

Sublinhe-se que, as manufacturas eram proibi<strong>das</strong> no Brasil exceptuando os<br />

«artigos de grosseria próprios para escravos», pelo que as medi<strong>das</strong> económicas<br />

inscritas nos tratados com a Inglaterra impediram o desenvolvimento de qualquer surto<br />

manufactureiro quando a proibição foi abolida, pois não havia hipótese de concorrência<br />

entre uma indústria nascente e a principal potência industrial da época.<br />

Poucos dias depois da ratificação dos tratados com a Grã-Bretanha, o Príncipe<br />

Regente sentiu-se na obrigação de explicar, pela Carta Régia de 7 de Março, as razões<br />

que o levaram a firmar o acordo, dirigindo-se ao Clero, Nobreza e Povo» de Portugal:<br />

[…] Para criar um Império nascente, fui servido adoptar os princípios mais<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 34


demonstrados de sã economia política, quais os da liberdade, e fraqueza do comércio,<br />

o da diminuição dos direitos <strong>das</strong> alfândegas, unidos aos princípios mais liberais, de<br />

maneira que promovendo-se o comércio, pudessem os cultivadores do Brasil achar o<br />

melhor consumo para os seus produtos […], que é o mais essencial modo de o fazer<br />

prosperar, e de muito superior ao sistema restrito, e mercantil […]. Os mesmos<br />

princípios de um sistema grande, e liberal do comércio são muito aplicáveis ao Reino<br />

[…]. Estes mesmos princípios ficam corroborados com o sistema liberal de comércio<br />

que, de acordo com o meu antigo, fiel, e grande aliado, Sua Majestade Britânica,<br />

adoptei os Tratados de Aliança e Comércio, que acabo de ajustar com o mesmo<br />

Soberano».<br />

Considerado sob o ponto de vista da colónia, o Tratado apresentava-se muito<br />

mais desfavorável para Portugal, pois o Brasil lucraria sempre com qualquer acordo<br />

mercantil que lhe permitisse estabelecer relações comerciais directamente com outros<br />

países e libertar-se do monopólio metropolitano.<br />

Mesmo assim, entre aqueles que, no Brasil foram convidados a pronunciar-se<br />

sobre o Tratado, dando o seu parecer, (em Portugal a ninguém foi dada esta<br />

oportunidade) alguns não deixaram de manifestar certas reservas. A generalidade dos<br />

pareceres apontava para o facto de se ter ido longe de mais nas cedências às pretensões<br />

britânicas; as cláusulas acerta<strong>das</strong> (desacerta<strong>das</strong> para nós) concediam à Inglaterra<br />

vantagens de tal ordem que iam para além dos «justos limites», como até reconheciam<br />

os que tinham a concertação por conveniente ou, mesmo, aqueles que eram os mais<br />

“ferrenhos” adeptos do livre cambismo<br />

O parecer do desembargador Luis José de Melo acentuava o facto de que a<br />

ocasião era pouco propícia para se efectivar um compromisso de ordem comercial a<br />

longo prazo e acrescentava: «Portugal estava numa situação de dependência», era a<br />

Grã-Bretanha quem defendia o litoral português, afiançava e assegurava «a nossa<br />

existência política», competindo-lhe ainda «no ajuste da Paz geral» negociar os nossos<br />

interesses. O desembargador parece querer dar a entender que o Tratado nos seria<br />

sempre mais desfavorável, mas… é precisamente a situação por ele descrita, que não<br />

permite outra saída, senão, independentemente <strong>das</strong> condições, aceitar o Tratado.<br />

Apanhando-nos na “mó de baixo”, a Inglaterra iria explorar, e bem, essa situação.<br />

Pressão da imprensa portuguesa em Londres.<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 35


Desde a sua ratificação que o Tratado de 1810 foi alvo de violentas críticas no<br />

«Correio Braziliense». O seu editor, Hipólito da Costa, reprovava a falta de<br />

reciprocidade verdadeira do estipulado, as superiores condições permiti<strong>das</strong> aos ingleses<br />

no território brasileiro, em contraste com os próprios naturais do país, bem como a sua<br />

influência «em retardar ou impedir a prosperidade do nascente império do Brasil».<br />

Acrescente-se que, já nível oficial, o Tratado dera origem, quase de imediato, a<br />

questões de «interpretação e de aplicação», reflectindo-se na correspondência<br />

diplomática.<br />

Influência do «Correio Braziliense» ou não, entre os primeiros a queixar-se<br />

estão os negociantes portugueses em Londres. Associados num “clube”, e vendo<br />

gora<strong>das</strong> as suas esperanças de beneficiarem com o acordo, protestaram, desde logo,<br />

junto do nosso embaixador na cidade do Tamisa e, através do diplomata, enviaram para<br />

a Corte do Rio de Janeiro várias notas e memórias, onde se insurgiam contra o não<br />

cumprimento do Tratado, por parte <strong>das</strong> autoridades britânicas.<br />

Posteriormente, em carta de 25 de Agosto de 1913, estas diligências e<br />

reclamações, foram dirigi<strong>das</strong> pelo”clube” ao jornal «Investigador Português em<br />

Inglaterra», sendo depois publicada noutros periódicos de origem portuguesa que,<br />

então, saíam a lume na capital britânica.<br />

A referida carta fazia saber que os comerciantes portugueses continuavam a<br />

suportar as mesmas restrições e os mesmos encargos de todos os outros estrangeiros,<br />

apesar do acordo os ter colocado em pé de igualdade com os britânicos. E mais, «não<br />

lhes concediam a possibilidade de abrir conta no Banco de Inglaterra, para<br />

descontarem letras no giro comercial; não gozavam dos prazos facultados aos ingleses<br />

para liquidação dos direitos de alfândega; e pesavam ainda sobre os navios<br />

portugueses tributos e despesas que os nacionais da Grã-Bretanha não pagavam».<br />

Tudo isto contrariava a letra e o espírito do Tratado, contrastando com as condições<br />

que se ofereciam aos súbditos britânicos em Portugal, que cumpria, ou era obrigado a<br />

cumprir, estritamente, o acordado.<br />

Mais complicada se apresentava a situação para a burguesia mercantil de<br />

Lisboa, lesada pelos princípios básicos do Tratado. Embora não dispondo de um campo<br />

de manobra (no domínio da liberdade) tão alargado como o dos negociantes de<br />

Londres, também os negociantes lisboetas se movimentaram, associando-se, no sentido<br />

de levar o Governo a tomar «as medi<strong>das</strong> necessárias nas actuais circunstâncias a bem<br />

dos dois pontos – facilitar e suscitar o melhoramento e aumento da navegação<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 36


nacional e poupar por isso mesmo toda a necessidade de ingerência da estrangeira; e<br />

promover todo o comércio, remediando todos os danos que ao do Continente ameaça a<br />

mudança de todo o sistema político da Europa».<br />

Os documentos enviados pelos negociantes portugueses em Londres e da praça<br />

de Lisboa ao Governo, através dos canais diplomáticos, não constituíram as únicas<br />

represálias discordantes do Tratado de 1810. Entre 1813 e 1814, toda a imprensa<br />

nacional livre, isto é, a que se publicava em Inglaterra, é rica em correspondência de<br />

leitores e artigos de opinião dos próprios redactores dos jornais, que põem a descoberto<br />

os efeitos nefastos do acordo e, fazem-no em ataques mais incisivos e directos do que<br />

nos requerimentos dirigidos às instâncias superiores que, necessariamente, teriam de<br />

ser mais moderados.<br />

Todos estes movimentos, associados a outros vindos a público, exerciam uma<br />

clara pressão sobre a Corte portuguesa que não deixava de ter o seu peso. Note-se,<br />

porém, que neste caso do «Investigador Português», era uma pressão consentida visto<br />

que, então, o jornal era subsidiado pela embaixada portuguesa em Londres e, que, por<br />

esta razão, poderia usar o “lápis azul” da época, isto é, silenciando os comentários tidos<br />

por inconvenientes.<br />

O certo é que o Governo do Rio de Janeiro passou a assumir como suas as<br />

críticas à Grã-Bretanha pelo incumprimento do acordo.<br />

O Conde <strong>das</strong> Galveias, D. João de Almeida, que substituíra nos Negócios<br />

Estrangeiros, Linhares, falecido em 1812, respondendo ao embaixador português, em<br />

Londres, D. Pedro de Sousa Holstein, Duque de Palmela, (que substituíra, seu tio D.<br />

Domingos) à comunicação de que não havia «em Inglaterra um só artigo do Tratado<br />

executado como devia ser em favor dos portugueses», fez-lhe chegar um despacho,<br />

datado de 6 de Outubro de 1813, ordenando-lhe que procedesse a «to<strong>das</strong> aquelas<br />

representações que convém para que se efectuem as estipulações do Tratado que se<br />

acham por observar». Precisamente três meses depois, a 7 de Janeiro de 1814, outro<br />

despacho, agora num tom mais inflamado, lamentava «as desagradáveis negociações<br />

que com tantas e tão inespera<strong>das</strong> variações se prosseguem e têm prosseguido em<br />

tantas localidades diferentes para ajustar as intermináveis altercações que se tem<br />

suscitado sobre a inteligência e disposições do complicado tratado de comércio que<br />

tantos trabalhos e desassossego nos tem causado, e quiçá possa ocasionar outros<br />

ainda maiores e de gravíssimas consequências».<br />

Forte, forte, foi a acção desenvolvida pelo ex-ministro Araújo de Azevedo,<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 37


agora na posição de Conselheiro de Estado, que se opôs formalmente à celebração do<br />

Tratado, constituindo, efectivamente, o pólo de resistência às manobras do grupo<br />

liderado por Sousa Coutinho / Strangford, como comprovam os documentos publicados<br />

por Ângelo Pereira.<br />

Araújo de Azevedo, Conde da Barca, lutou quanto lhe foi possível contra a<br />

assinatura do Tratado, apercebendo-se <strong>das</strong> perniciosas consequências no comércio e<br />

indústria nacionais. Foi uma luta intensa a que se travou entre os que favoreciam a<br />

conclusão do famoso documento e<br />

aqueles que a contestavam.<br />

Strangford, que dominava D.<br />

Rodrigo, conforme se pode deduzir<br />

do próprio relatório que Linhares<br />

enviou ao Príncipe, chegou ao ponto<br />

de caluniar os adversários,<br />

insinuando, por mais de uma vez,<br />

que eram «estranhas» as relações da<br />

Princesa com o Almirante Smith,<br />

«este amigo e cúmplice de Araújo».<br />

Para Londres, queixava-se a D.<br />

Domingos, do comportamento de<br />

alguns ingleses, de Sidney Smith,<br />

do <strong>2º</strong> Marquês de Pombal, do<br />

Núncio, de Araújo de Azevedo e de Gambier, em cuja casa se reuniam os elementos<br />

opositores («C´est là où s´est formée cette nouvelle opposition») aos seus interesses.<br />

Para Strangford era Araújo que movia esta oposição. Pedia, ainda, ao embaixador que,<br />

«em nome do Céu», fizesse tudo quanto lhe fosse possível «pour ouvrir les yeux du<br />

Ministère Anglais sur la conduite que tiennent ici quelques uns le leurs Agents». Neste<br />

caso, visava particularmente Sir Sidney Smith, que lhe fazia “sombra”, não<br />

descansando, de facto, enquanto não conseguiu que o Governo londrino o recambiasse<br />

para Inglaterra.<br />

À medida que a Inglaterra impunha as cláusulas do acordo, Portugal estava cada<br />

vez mais nas mãos do Governo de Londres, nunca ficando tão marcada uma relação de<br />

dependência como aquela que resultou do Tratado, negociado no Rio de Janeiro, e do<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 38


qual escreveu o Duque de Palmela ter sido «na forma e na substância o mais lesivo e o<br />

mais desigual que jamais se contraiu entre duas nações independentes».<br />

Não era fácil a conclusão de um tratado equitativo, porquanto, para além de<br />

interesses que eram inconciliáveis, existia uma forte ansiedade pelo futuro político da<br />

metrópole, muito generalizada na Corte do Rio e que, obviamente, predispunha às<br />

maiores concessões à potência protectora. Deste modo, o Brasil tinha caído numa<br />

situação que o Tratado de 1810 confirmava: uma colónia britânica.<br />

Carlos Jaca A Corte Portuguesa no Brasil 39

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