FREUD, Sigmund. Obras Completas (Cia. das Letras) – Vol. 14
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dos pais. Agora devo acrescentar que também essa maneira de perturbar é a mesma em todos os casos. Posso imaginar que agora me expus a graves suspeitas por parte do leitor. Se esses argumentos em favor de uma tal concepção da “cena primária” estavam à minha disposição, como pude assumir a responsabilidade de defender primeiro uma outra, que parecia tão absurda? Ou eu teria feito essas novas observações, que me obrigaram a modificar minha concepção inicial, no intervalo entre a primeira redação da história clínica e este acréscimo, e por algum motivo não quis confessá-lo? Mas confesso, em troca, uma outra coisa: que desta vez pretendo encerrar a discussão sobre o valor de realidade da cena primária com um non liquet. * Este caso clínico não chegou ao fim; mais adiante emergirá um fator que deve perturbar a certeza que acreditamos desfrutar neste momento. Então restará somente remeter o leitor às passagens de minhas Conferências em que tratei o problema das fantasias ou cenas primordiais.] VI. A NEUROSE OBSESSIVA Pela terceira vez experimentava ele uma influência que mudou de maneira decisiva o seu desenvolvimento. Quando tinha quatro anos e meio e seu estado de irritabilidade e angústia continuava sem melhora, a mãe decidiu fazer que conhecesse a história bíblica, na esperança de distraí-lo e edificá-lo. E conseguiu; essa introdução da religião pôs fim à fase anterior, mas acarretou a substituição dos sintomas de angústia por sintomas obsessivos. Até então ele não podia adormecer com facilidade, porque temia sonhar coisas ruins como naquela noite de Natal; agora tinha que beijar todas as imagens de santos do quarto antes de dormir, recitar as orações e fazer incontáveis sinais da cruz sobre si mesmo e sobre o leito. Sua infância se mostra então claramente dividida nas épocas seguintes: primeiro, o tempo preliminar até a sedução (três anos e meio), em que ocorre a 54/311
cena primária; em segundo lugar, o tempo da mudança de caráter, até o sonho angustiante (quatro anos); terceiro, o da fobia de animais, até a iniciação na religião (quatro anos e meio), e a partir daí o da neurose obsessiva, até os dez anos de idade. A transição imediata e pura de uma fase a outra não é da natureza dessas coisas, nem da de nosso paciente, que se caracteriza, ao contrário, pela conservação de tudo o que passou e a coexistência das mais diversas correntes. O comportamento malcriado não desapareceu quando sobreveio a angústia, e prosseguiu, diminuindo lentamente, até o período da devoção religiosa. Mas da fobia de lobos não há mais traço nessa última fase. A neurose obsessiva transcorreu de modo descontínuo; o primeiro acesso foi o mais longo e mais intenso, outros vieram quando ele tinha oito e dez anos, a cada vez ocasionados por circunstâncias que se ligavam visivelmente ao conteúdo da neurose. A mãe lhe contou ela mesma a História Sagrada, e além disso fez a Nânia ler em voz alta um livro sobre o tema, adornado de ilustrações. A ênfase principal da narrativa caiu naturalmente sobre a história da Paixão. A Nânia, que era bem devota e supersticiosa, dava explicações sobre o que lia, mas também tinha que escutar todas as objeções e dúvidas do pequeno crítico. Se os conflitos que começavam a agitá-lo terminaram por fim com a vitória da fé, a influência da Nânia não deixou de ter participação nisso. O que ele me relatou como lembrança de suas reações à iniciação religiosa deparou de início com a minha completa descrença. Aqueles não podiam ser, era minha opinião, os pensamentos de um garoto de quatro anos e meio ou cinco; provavelmente ele transpunha para esse passado remoto o que se originava da reflexão do adulto de quase trinta anos. 24 O paciente não quis saber dessa correção, porém; e não foi possível convencê-lo, como fiz em muitas outras diferenças de juízo entre nós; por fim, a coerência entre os seus pensamentos lembrados e os sintomas relatados, e o modo como se encaixam no seu desenvolvimento sexual, me obrigaram a lhe dar crédito. Então disse a mim mesmo que justamente essa crítica às teorias da religião, de que eu não 55/311
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mesma em todos os casos.<br />
Posso imaginar que agora me expus a graves suspeitas por parte do leitor.<br />
Se esses argumentos em favor de uma tal concepção da “cena primária” estavam<br />
à minha disposição, como pude assumir a responsabilidade de defender<br />
primeiro uma outra, que parecia tão absurda? Ou eu teria feito essas novas observações,<br />
que me obrigaram a modificar minha concepção inicial, no intervalo<br />
entre a primeira redação da história clínica e este acréscimo, e por algum<br />
motivo não quis confessá-lo? Mas confesso, em troca, uma outra coisa: que<br />
desta vez pretendo encerrar a discussão sobre o valor de realidade da cena<br />
primária com um non liquet. * Este caso clínico não chegou ao fim; mais adiante<br />
emergirá um fator que deve perturbar a certeza que acreditamos desfrutar<br />
neste momento. Então restará somente remeter o leitor às passagens de minhas<br />
Conferências em que tratei o problema <strong>das</strong> fantasias ou cenas primordiais.]<br />
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Pela terceira vez experimentava ele uma influência que mudou de maneira decisiva<br />
o seu desenvolvimento. Quando tinha quatro anos e meio e seu estado<br />
de irritabilidade e angústia continuava sem melhora, a mãe decidiu fazer que<br />
conhecesse a história bíblica, na esperança de distraí-lo e edificá-lo. E conseguiu;<br />
essa introdução da religião pôs fim à fase anterior, mas acarretou a<br />
substituição dos sintomas de angústia por sintomas obsessivos. Até então ele<br />
não podia adormecer com facilidade, porque temia sonhar coisas ruins como<br />
naquela noite de Natal; agora tinha que beijar to<strong>das</strong> as imagens de santos do<br />
quarto antes de dormir, recitar as orações e fazer incontáveis sinais da cruz<br />
sobre si mesmo e sobre o leito.<br />
Sua infância se mostra então claramente dividida nas épocas seguintes:<br />
primeiro, o tempo preliminar até a sedução (três anos e meio), em que ocorre a<br />
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