FREUD, Sigmund. Obras Completas (Cia. das Letras) – Vol. 14

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desempenhou o mesmo papel de pai, e foi dotado da mesma influência paterna, para o bem e para o mal. O destino o presenteou com uma singular ocasião de reviver sua fobia de lobos no tempo do ginásio, e de tornar a relação que lhe servia de base o ponto de partida de graves inibições. O professor que dava aulas de latim à sua turma se chamava Wolf [lobo]. Desde o início ele se sentiu intimidado por esse professor, uma vez sofreu grave censura dele, por um erro tolo cometido numa tradução do latim, e não se livrou mais de um medo paralisante dele, que logo se transferiu para outros professores. Mas o ensejo que o levou a tropeçar na tradução também não era insignificante. Ele tinha que verter a palavra “filius”, e a traduziu pelo francês “fils”, em vez da palavra correspondente na língua materna. De fato, o lobo continuava sendo o pai. 14 O primeiro “sintoma passageiro” 15 que o paciente produziu na terapia remontava também à fobia de lobos e ao conto dos sete cabritinhos. No aposento em que se realizaram as primeiras sessões havia um grande relógio de caixa na parede oposta a ele, que ficava deitado sobre um divã, de costas para mim. Notei que de quando em quando ele virava o rosto para mim, olhava-me com expressão amável, como que me tranquilizando, e em seguida voltava o olhar para o relógio. Na época achei que era um sinal de sua ânsia em terminar a sessão. Muito tempo depois o paciente me lembrou desse jogo de gestos e me deu a explicação para ele, ao me lembrar que o mais jovem dos sete cabritinhos achava esconderijo na caixa do relógio, enquanto os seis irmãos eram devorados pelo lobo. Ele queria então dizer: “Seja bom comigo. Devo sentir medo de você? Você quer me devorar? Devo me esconder de você na caixa do relógio, como o cabritinho mais novo?”. O lobo do qual ele sentia medo era sem dúvida o pai, mas o medo do lobo estava ligado à condição da postura erguida. Sua recordação afirmava com grande certeza que a imagem de um lobo andando com as quatro patas ou deitado na cama, como no “Chapeuzinho Vermelho”, nunca o apavorara. A posição que ele vira a mulher assumir, conforme a nossa construção da cena 38/311

primária, não se revestia de significação menor; mas esta permanecia limitada à esfera sexual. O mais singular fenômeno de sua vida amorosa, após a maturidade, eram acessos de paixão sensual compulsiva, que surgiam e novamente desapareciam em misteriosa sequência, desencadeavam nele uma enorme energia, mesmo em épocas de inibição, e se subtraíam totalmente ao seu controle. Tenho que adiar a plena apreciação desses amores compulsivos, devido a alguns nexos especialmente valiosos, mas posso dizer que estavam ligados a uma condição determinada, que se ocultava à sua consciência e que se deu a conhecer apenas na terapia. A mulher tinha que adotar a posição que atribuímos à mãe na cena primária. Desde a puberdade ele sentia como a maior atração da mulher os traseiros grandes e salientes; um coito que não fosse por trás dificilmente lhe dava prazer. A ponderação crítica tem o direito de objetar que essa preferência sexual pelas partes traseiras do corpo é característica geral das pessoas que tendem à neurose obsessiva, e não autoriza que a derivemos de uma impressão especial da infância. Pertence ao quadro da disposição eróticoanal e é um dos traços arcaicos que distinguem tal constituição. A copulação por trás — more ferarum [à maneira dos animais] — pode mesmo ser vista como a forma filogeneticamente mais antiga. Também voltaremos a esse ponto numa discussão posterior, quando tivermos apresentado o material restante sobre a sua condição inconsciente para o amor. Continuemos a nossa discussão dos vínculos entre o sonho e a cena primária. Conforme o que pudemos esperar até agora, o sonho deveria mostrar ao menino, que se alegrava com a realização de seus desejos no Natal, a imagem da satisfação sexual com o pai, tal como tinha visto naquela cena primária, como modelo da satisfação que ele próprio ansiava do pai. Em vez dessa imagem, porém, surgiu o material da história que o avô tinha narrado pouco antes: a árvore, os lobos, a ausência de cauda na forma da supercompensação, nas caudas espessas dos supostos lobos. Aqui nos falta um nexo, uma ponte associativa que conduza do teor da história primordial àquele da história dos lobos. Essa ligação é dada novamente pela postura, e apenas por 39/311

primária, não se revestia de significação menor; mas esta permanecia limitada à<br />

esfera sexual. O mais singular fenômeno de sua vida amorosa, após a maturidade,<br />

eram acessos de paixão sensual compulsiva, que surgiam e novamente desapareciam<br />

em misteriosa sequência, desencadeavam nele uma enorme energia,<br />

mesmo em épocas de inibição, e se subtraíam totalmente ao seu controle.<br />

Tenho que adiar a plena apreciação desses amores compulsivos, devido a alguns<br />

nexos especialmente valiosos, mas posso dizer que estavam ligados a uma<br />

condição determinada, que se ocultava à sua consciência e que se deu a conhecer<br />

apenas na terapia. A mulher tinha que adotar a posição que atribuímos à<br />

mãe na cena primária. Desde a puberdade ele sentia como a maior atração da<br />

mulher os traseiros grandes e salientes; um coito que não fosse por trás dificilmente<br />

lhe dava prazer. A ponderação crítica tem o direito de objetar que essa<br />

preferência sexual pelas partes traseiras do corpo é característica geral <strong>das</strong><br />

pessoas que tendem à neurose obsessiva, e não autoriza que a derivemos de<br />

uma impressão especial da infância. Pertence ao quadro da disposição eróticoanal<br />

e é um dos traços arcaicos que distinguem tal constituição. A copulação<br />

por trás — more ferarum [à maneira dos animais] — pode mesmo ser vista<br />

como a forma filogeneticamente mais antiga. Também voltaremos a esse<br />

ponto numa discussão posterior, quando tivermos apresentado o material restante<br />

sobre a sua condição inconsciente para o amor.<br />

Continuemos a nossa discussão dos vínculos entre o sonho e a cena<br />

primária. Conforme o que pudemos esperar até agora, o sonho deveria<br />

mostrar ao menino, que se alegrava com a realização de seus desejos no Natal,<br />

a imagem da satisfação sexual com o pai, tal como tinha visto naquela cena<br />

primária, como modelo da satisfação que ele próprio ansiava do pai. Em vez<br />

dessa imagem, porém, surgiu o material da história que o avô tinha narrado<br />

pouco antes: a árvore, os lobos, a ausência de cauda na forma da supercompensação,<br />

nas cau<strong>das</strong> espessas dos supostos lobos. Aqui nos falta um nexo,<br />

uma ponte associativa que conduza do teor da história primordial àquele da<br />

história dos lobos. Essa ligação é dada novamente pela postura, e apenas por<br />

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