FREUD, Sigmund. Obras Completas (Cia. das Letras) – Vol. 14
FREUD, Sigmund. Obras Completas (Cia. das Letras) – Vol. 14 FREUD, Sigmund. Obras Completas (Cia. das Letras) – Vol. 14
possibilidades de satisfação dos instintos primitivos. Tornou-se uma irresistível tentação, um mandamento científico, aplicar os métodos de investigação da psicanálise às mais diversas ciências do espírito, bem longe de seu solo natal. E mesmo o trabalho clínico psicanalítico lembrava incessantemente essa nova tarefa, pois era evidente que as formas da neurose traziam claras ressonâncias das mais valiosas criações de nossa cultura. O histérico é um inegável poeta, embora apresente suas fantasias de modo essencialmente mimético e sem consideração pelo entendimento dos outros; o cerimonial e os interditos do neurótico obsessivo nos impõem o julgamento de que ele criou para si uma religião particular, e mesmo as formações delirantes dos paranoicos mostram indesejada semelhança externa e parentesco interno com os sistemas de nossos filósofos. Não se pode fugir à impressão de que os enfermos empreendem, de modo associal, as mesmas tentativas de solução de seus conflitos e mitigação de suas necessidades prementes, que são chamadas de poesia, religião e filosofia, quando realizadas de forma aceitável e indispensável para uma maioria. Em 1913, Otto Rank e Hans Sachs juntaram numa rica obra (Die Bedeutung der Psychoanalyse für die Geisteswissenschaften [A importância da psicanálise para as ciências humanas]) os resultados até então obtidos com a aplicação da psicanálise às ciências humanas. Mitologia, história da literatura e história da religião parecem ser os campos mais facilmente acessíveis. Quanto ao mito, ainda não foi encontrada a fórmula definitiva que indique o seu lugar nesse contexto. Num volumoso livro sobre o complexo do incesto, 1 O. Rank demonstrou, de maneira surpreendente, que a escolha do tema, em especial nas obras dramáticas, é determinada sobretudo pelo âmbito daquilo que a psicanálise chama de complexo de Édipo. Elaborando-o nas mais variadas modificações, deformações e disfarces, o escritor busca resolver sua própria, personalíssima relação com esse tema afetivo. O complexo de Édipo, ou seja, a postura afetiva para com a família, para com pai e mãe, no sentido mais estrito, é o material 296/311
que o neurótico fracassa em dominar, e que, por isso, sempre forma o núcleo de sua neurose. Mas sua importância não se deve a alguma conjunção ininteligível para nós; ocorre que os fatos biológicos da longa dependência e da lenta maturação do novo ser humano, assim como o complicado desenvolvimento de sua capacidade de amar, traduzem-se nessa ênfase na relação com os pais e têm por consequência que a superação do complexo de Édipo coincide com o modo mais adequado de lidar com a herança arcaica, animal, do ser humano. É verdade que esta contém todas as forças necessárias para o desenvolvimento cultural posterior do indivíduo, mas elas têm de ser primeiramente separadas e trabalhadas. Tal como o indivíduo a traz consigo, essa herança arcaica não serve para os fins da vida social no interior de uma cultura. Um passo adiante, e chegamos ao ponto de partida da concepção psicanalítica da vida religiosa. O que hoje é herança para o indivíduo foi, um dia, uma nova aquisição, antes de uma longa série de gerações que a transmitiram uma à outra. Também o complexo de Édipo pode ter sua história evolutiva, portanto, e o estudo da pré-história pode levar a compreendê-la. A pesquisa supõe que a vida familiar humana configurava-se de modo bem diferente do que hoje conhecemos, e confirma essa hipótese com achados feitos entre os primitivos atuais. Submetendo o material pré-histórico e etnológico a uma elaboração psicanalítica, obtemos um resultado inesperadamente preciso: de que outrora Deus Pai andava em carne e osso pela terra e exercia seu poder senhorial como chefe de uma horda humana primeva, até que os seus filhos o mataram conjuntamente. E que por efeito desse crime liberador, e como reação a ele, surgiram as primeiras ligações sociais, as restrições morais básicas e a mais antiga forma de religião, o totemismo. Mas também que as religiões posteriores possuem o mesmo conteúdo e se empenham, por um lado, em desfazer as pistas daquele crime ou expiá-lo, introduzindo outras soluções para a luta entre pai e filhos, mas, por outro lado, não podem deixar de repetir a eliminação do pai. Também nos mitos percebemos os ecos desse enorme evento, que lança a sua sombra sobre todo o desenvolvimento da humanidade. 297/311
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possibilidades de satisfação dos instintos primitivos. Tornou-se uma irresistível<br />
tentação, um mandamento científico, aplicar os métodos de investigação<br />
da psicanálise às mais diversas ciências do espírito, bem longe de seu solo natal.<br />
E mesmo o trabalho clínico psicanalítico lembrava incessantemente essa<br />
nova tarefa, pois era evidente que as formas da neurose traziam claras<br />
ressonâncias <strong>das</strong> mais valiosas criações de nossa cultura. O histérico é um inegável<br />
poeta, embora apresente suas fantasias de modo essencialmente<br />
mimético e sem consideração pelo entendimento dos outros; o cerimonial e os<br />
interditos do neurótico obsessivo nos impõem o julgamento de que ele criou<br />
para si uma religião particular, e mesmo as formações delirantes dos paranoicos<br />
mostram indesejada semelhança externa e parentesco interno com os<br />
sistemas de nossos filósofos. Não se pode fugir à impressão de que os enfermos<br />
empreendem, de modo associal, as mesmas tentativas de solução de seus conflitos<br />
e mitigação de suas necessidades prementes, que são chama<strong>das</strong> de poesia,<br />
religião e filosofia, quando realiza<strong>das</strong> de forma aceitável e indispensável para<br />
uma maioria.<br />
Em 1913, Otto Rank e Hans Sachs juntaram numa rica obra (Die Bedeutung<br />
der Psychoanalyse für die Geisteswissenschaften [A importância da psicanálise<br />
para as ciências humanas]) os resultados até então obtidos com a aplicação da<br />
psicanálise às ciências humanas. Mitologia, história da literatura e história da<br />
religião parecem ser os campos mais facilmente acessíveis. Quanto ao mito,<br />
ainda não foi encontrada a fórmula definitiva que indique o seu lugar nesse<br />
contexto. Num volumoso livro sobre o complexo do incesto, 1 O. Rank<br />
demonstrou, de maneira surpreendente, que a escolha do tema, em especial nas<br />
obras dramáticas, é determinada sobretudo pelo âmbito daquilo que a psicanálise<br />
chama de complexo de Édipo. Elaborando-o nas mais varia<strong>das</strong> modificações,<br />
deformações e disfarces, o escritor busca resolver sua própria, personalíssima<br />
relação com esse tema afetivo. O complexo de Édipo, ou seja, a postura afetiva<br />
para com a família, para com pai e mãe, no sentido mais estrito, é o material<br />
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