FREUD, Sigmund. Obras Completas (Cia. das Letras) – Vol. 14

FREUD, Sigmund. Obras Completas (Cia. das Letras) – Vol. 14 FREUD, Sigmund. Obras Completas (Cia. das Letras) – Vol. 14

ideiaeideologia.com
from ideiaeideologia.com More from this publisher
19.04.2013 Views

objeto de desejo. Sem dúvida haverá a tendência, de modo puramente racionalista, a fazer remontar o desejo de homem ao desejo de filho, já que em algum momento a mulher compreende que sem ajuda do homem não pode ter um filho. Mais provavelmente, no entanto, o desejo de homem surge independente do desejo de ter filho, e, quando emerge — por motivos compreensíveis, que pertencem à psicologia do Eu —, o antigo desejo de ter um pênis se junta a ele, como reforço libidinal inconsciente. A importância do processo descrito está em que uma parcela da masculinidade narcísica da jovem mulher passa a feminilidade, tornando-se inofensiva para a função sexual feminina. Por um outro caminho, também uma parte do erotismo da fase pré-genital torna-se apta para a utilização na fase do primado genital. Pois a criança é vista como “Lumpf” (ver a análise do menino Hans), ** como algo que se separa do corpo através do intestino; assim, um montante de investimento libidinal que se aplicava ao conteúdo do intestino pode ser estendido à criança que nasceu através do intestino. Um testemunho que a linguagem fornece, dessa identidade entre criança e excremento, acha-se na expressão “dar um filho”. *** O excremento é o primeiro presente, uma parte de seu corpo, da qual o bebê se separa apenas por injunção da pessoa amada, com a qual ele espontaneamente lhe demonstra sua ternura, pois via de regra ele não suja pessoas estranhas. (Mesmas reações, embora menos intensas, no caso da urina.) Na defecação o bebê tem que decidir, pela primeira vez, entre a atitude narcísica e a de amor ao objeto. Ou ele entrega docilmente o cocô, “sacrifica-o” ao amor, ou o retém para a satisfação autoerótica, mais tarde para a afirmação de sua própria vontade. Com essa última decisão vai se constituir a teimosia (obstinação), que portanto se origina de uma perseverança narcísica no erotismo anal. É provável que o primeiro significado em que se detém o interesse por fezes não seja ouro-dinheiro [Gold-Geld], mas presente [Geschenk]. A criança não conhece outro dinheiro senão aquele que lhe é presenteado, nenhum dinheiro próprio, seja ganhado ou herdado. Como as fezes são o seu primeiro presente, 192/311

ela facilmente transfere o interesse dessa matéria para aquela nova, que lhe surge como o mais importante presente na vida. Quem duvida dessa derivação do presente pode consultar sua experiência na clínica psicanalítica, estudar os presentes que como médico recebe do paciente, e atentar para as tempestuosas transferências que podem ser despertadas por um presente seu ao paciente. De modo que o interesse nas fezes continua em parte como interesse no dinheiro, e em parte é transposto para o desejo de ter filho. Nesse desejo de filho convergem um impulso erótico-anal e um genital (inveja do pênis). Mas o pênis também possui uma importância erótico-anal independente do interesse na criança. A relação entre o pênis e o canal de membrana mucosa por ele preenchido e excitado já é prefigurada na fase pré-genital, sádico-anal. O bolo fecal — ou “vara de cocô”, na expressão de um paciente — é por assim dizer o primeiro pênis, e a mucosa por ele excitada, a do reto. Há pessoas cujo erotismo anal permanece forte e inalterado até a época da pré-puberdade (dez a doze anos); delas ficamos sabendo que já nessa fase pré-genital desenvolvem, em fantasias e em jogos perversos, uma organização análoga à genital, na qual pênis e vagina são representados pela vara fecal e o intestino. Em outras pessoas — neurótico-obsessivas — podemos conhecer o resultado de uma degradação regressiva da organização genital. Manifesta-se no fato de toda fantasia originalmente concebida no plano genital ser transposta para o anal, o pênis ser substituído pela vara de fezes, a vagina pelo intestino. Quando o interesse pelas fezes retrocede de modo normal, a analogia orgânica aqui apresentada tem o efeito de transferi-lo para o pênis. Se depois, nas pesquisas sexuais [infantis], descobre-se que a criança nasceu do intestino, ela se torna o principal herdeiro do erotismo anal, mas o precursor da criança foi o pênis, tanto nesse como em outro sentido. Estou certo de que agora se tornou impossível abarcar todas as múltiplas relações da série excremento—pênis—criança, e por isso tentarei remediar a falta com uma representação gráfica, em cuja discussão o mesmo material pode ser apreciado novamente, numa outra sequência. É pena que esse recurso 193/311

objeto de desejo. Sem dúvida haverá a tendência, de modo puramente racionalista,<br />

a fazer remontar o desejo de homem ao desejo de filho, já que em algum<br />

momento a mulher compreende que sem ajuda do homem não pode ter um<br />

filho. Mais provavelmente, no entanto, o desejo de homem surge independente<br />

do desejo de ter filho, e, quando emerge — por motivos compreensíveis, que<br />

pertencem à psicologia do Eu —, o antigo desejo de ter um pênis se junta a<br />

ele, como reforço libidinal inconsciente.<br />

A importância do processo descrito está em que uma parcela da masculinidade<br />

narcísica da jovem mulher passa a feminilidade, tornando-se inofensiva<br />

para a função sexual feminina. Por um outro caminho, também uma parte do<br />

erotismo da fase pré-genital torna-se apta para a utilização na fase do primado<br />

genital. Pois a criança é vista como “Lumpf” (ver a análise do menino Hans), **<br />

como algo que se separa do corpo através do intestino; assim, um montante de<br />

investimento libidinal que se aplicava ao conteúdo do intestino pode ser estendido<br />

à criança que nasceu através do intestino. Um testemunho que a linguagem<br />

fornece, dessa identidade entre criança e excremento, acha-se na expressão<br />

“dar um filho”. *** O excremento é o primeiro presente, uma parte de<br />

seu corpo, da qual o bebê se separa apenas por injunção da pessoa amada, com<br />

a qual ele espontaneamente lhe demonstra sua ternura, pois via de regra ele<br />

não suja pessoas estranhas. (Mesmas reações, embora menos intensas, no caso<br />

da urina.) Na defecação o bebê tem que decidir, pela primeira vez, entre a atitude<br />

narcísica e a de amor ao objeto. Ou ele entrega docilmente o cocô,<br />

“sacrifica-o” ao amor, ou o retém para a satisfação autoerótica, mais tarde para<br />

a afirmação de sua própria vontade. Com essa última decisão vai se constituir a<br />

teimosia (obstinação), que portanto se origina de uma perseverança narcísica<br />

no erotismo anal.<br />

É provável que o primeiro significado em que se detém o interesse por<br />

fezes não seja ouro-dinheiro [Gold-Geld], mas presente [Geschenk]. A criança não<br />

conhece outro dinheiro senão aquele que lhe é presenteado, nenhum dinheiro<br />

próprio, seja ganhado ou herdado. Como as fezes são o seu primeiro presente,<br />

192/311

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!