POÉTICA DOS CINCO SENTIDOS - Livraria Martins Fontes
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igual causa das mãos do tecelão. A ponta-de-prata desliza no cartão, abrindo<br />
um levíssimo suspiro de sombra no limiar da claridade ofuscante do<br />
unicórnio. Animal macho como o debuxador que vai agora traçar o seu<br />
retrato verdadeiro, o seu de si mesmo retrato, na melancolia dos olhos, na<br />
dobra vencida dos joelhos, enquanto a defesa longa e aguda, o chifre branco,<br />
se ergue para o ar, afastado do objecto do seu desejo. Nos pulsos do<br />
debuxador as veias batem, e entre os segredos do peito, como no interior<br />
duma gruta, ressoa a insistente pergunta e a fugidia resposta do coração. O<br />
chifre branco detém-se no ar e nenhuma donzela gritará nesta hora a sua<br />
ansiada dor de mulher.<br />
Só falta cobrir de flores todo o espaço livre, ir procurá-las aos campos, dispô-las<br />
em molhos sobre a mesa, e copiar cuidadosamente, sem invenção<br />
acrescentada, as folhagens e as pétalas, macias ou ásperas aquelas, dispostas<br />
estas em cachos ou em estrelas, em grinaldas e iluminações. E feito isto, que<br />
demorado foi, sobre a tábua se pousará com um rumor claro a ponta-deprata,<br />
agora inútil, como o chifre do unicórnio, mas tendo ela fecundado e<br />
ele não. Posto o que será a vez das cores sensíveis, para que o cartão apareça<br />
enfim na sua glória de vermelhos e azuis de chumbo, onde o pêlo dos animais<br />
e a pele humana declaram uma evidente fraternidade, e onde os verdes<br />
se degradam em inumeráveis ecos de azul para que desta maneira se invente<br />
outro jardim. É o tempo de um silêncio para ouvidos humanos, enquanto<br />
sobre o mundo raso dos cartões as figuras se ajustam devagar, e as tintas,<br />
secando, se contraem murmurantes de inaudíveis crepitações.<br />
Descem, por necessários, os rebanhos da montanha. O tempo ainda que<br />
muito se esperou, acaba por sempre chegar, e neste dia se hão-de desprender<br />
do corpo das ovelhas os focos espessos e crespos da lã, caindo ao redor<br />
como neve ou branda penugem de ave, enquanto a tesoura morde e estala,<br />
rente à pele rósea que estremece. Todo o chão se cobriu de lã, e quando às<br />
braçadas a levantam, e depois amontoam, seria silêncio se não ouvíssemos<br />
os animais balindo e o insistente rangido da tesoura. A terra é um murmúrio<br />
sem fim, e o vento, que de rajada passa, traz consigo, de longe, ou talvez<br />
não tanto, somente do outro lado das árvores, um balançar de flores de<br />
linho, leves flores que porventura o debuxador representou no cartão para<br />
que nada houvesse de ficar por dizer. Vão casar-se estas fibras e estes pêlos,<br />
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