19.04.2013 Views

POÉTICA DOS CINCO SENTIDOS - Livraria Martins Fontes

POÉTICA DOS CINCO SENTIDOS - Livraria Martins Fontes

POÉTICA DOS CINCO SENTIDOS - Livraria Martins Fontes

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

poética dos cinco sentidos<br />

o r g. Gilda Santos e Horácio Costa<br />

Maria Velho da Costa<br />

José Saramago<br />

Augusto Abelaira<br />

Nuno Bragança<br />

Ana Hatherly<br />

Isabel da Nóbrega<br />

r e v i s i t a d a<br />

Jorge Fernandes da Silveira<br />

Horácio Costa<br />

Vilma Arêas<br />

Luis Maffei<br />

Gilda Santos<br />

Cleonice Berardinelli


a v i s t a<br />

Maria Velho da Costa<br />

Love, the world suddenly turns,<br />

turns colour.<br />

Letter in November.<br />

s y lv i a p l at h<br />

r e c o n h e c e r-te-ia, se t e visse? Que lembro? Falam de ti e há sinais, manuscritos,<br />

contos na boca. Foram tantas as celebrações atendidas vãmente.<br />

Quantos vestidos me vestiram as mãos que me afagaram na infância. Onde<br />

o meu bafo no primeiro espelho, ou os vapores, a nossa humana névoa ao<br />

nascer donde tudo emerge. Também nasceste. Em que corpo nasceste?<br />

Mas o meu era pequeno, eu tinha grandes visões das mais domésticas coisas,<br />

susto. Bruxas aladas como morcegos rufavam de noite contra as janelas<br />

altas. Era um som que eu via. Os focos de luz deixados a acompanhar-me<br />

desenhavam sobre as paredes os lombos de animais móveis lentamente, ou<br />

trémulos. Os meus punhos abandonados de um dedo branco que eu já podia<br />

cingir afastavam-se para muito longe de mim e eram gorros de gnomos<br />

malignos que escalavam sem rumor as faldas da cama. Os soalhos gemiam,<br />

havia derrame das águas como passos sobre as lajes além, as vozes dentro, o<br />

vento. Desmesurados os olhos então viam. Ninguém vinha. Era feliz, então?<br />

Era feliz.<br />

Pela manhã as manhãs eram dum branco azul, chovia ainda, eu me lembrava<br />

que haviam passado pela vidraça os teus cascos de oiro, que era o<br />

teu corno doce que sondava os estofos e os adejava na noite, que era o teu<br />

vagir pianíssimo que lufava sobre as velas, a tua garupa nevada e tremente<br />

que enfunava as lombas das sombras. Animal matutino, estavas tu do outro<br />

lado do medo? Era por essas cerdas de asa que se abriam festivos os olhos e<br />

se abriam aos corpos bons os braços pequenos? Assim era.<br />

Esqueci-me muito.<br />

17


O meu corpo mudou e com ele a separação exacta das trevas e da luz. Eu<br />

podia andar e não foi mais por indícios desses que padeci ou me gozei das<br />

coisas. Alguns dias acordava-se de manhã e o ar era ainda como um focinho<br />

húmido, rosado, desvanecido logo. As copas das árvores assentavam no ar<br />

com uma grande certeza e parecia então que estava invertida a fixação das<br />

coisas – brotadas do ar, as árvores iam até ao chão buscar-nos de baixo da<br />

terra e eu via essas raízes como tentáculos benévolos, a cor sanguínea de<br />

grandes veias que haviam de ter por debaixo do solo. Eu amava os animais<br />

muito jovens e olhava-os nos olhos. Breve eles me tocavam com a língua<br />

como se falassem e eu aprendia que isso era ainda olhar. Dispunha então<br />

tecidos ao redor do meu corpo. Ia-me bem o azul e eu girava diante dos<br />

espelhos ou dos olhos onde era eu que me via. Não havia outros olhos.<br />

Estava no mundo nesse tempo uma grande paragem luminosa, como se eu<br />

morasse no alto de um cristal e tudo fosse coberto das reverberações desse<br />

posto – era o esplendor da maciez das coisas – o meu próprio corpo via o<br />

que se sabia. Via-se. Era isso uma cegueira?<br />

Paravam então as noites destituídas de sombras, eu não tinha sombra, vogando<br />

na espessura morna que as estrelas fendiam sem dar luz. Eu banhava-me<br />

absorta no desejo dos outros e pendiam sobre a minha cintura ou<br />

a flexibilidade dos meus pulsos ornados olhares que eram o meu mesmo<br />

olhar-me. Não era feliz.<br />

Eu queria o meu lugar enorme, experimentava o meu corpo e as almas<br />

como rosto único das terras e dos mares. Quem me amava como eu, que<br />

total tropel prosseguia? Inscritas no tear que me ocupava as mãos as hastes<br />

floridas revelavam-se a minha própria suspensão, a malignidade dum<br />

olhar embevecido com os seres e intocado da restrição ou temporalidade<br />

das almas, do humano ver. Eu nada preferia. Não podia ser vista. Como um<br />

hímen translúcido, o desenho do meu nome e os contornos da memória do<br />

meu corpo fechavam-se sobre aqueles em quem mais me amava, sem que<br />

eu nada pudesse fazer ou desejasse já. Essas cápsulas ascendiam então sem<br />

mim até cimos de construções urbanas, muito rígidas dos travejamentos, e<br />

eu via-os de longe guardarem-se após do trato com todos os outros seres,<br />

impelidos à cegueira, à ocultação dos globos que luzem nas palmas de mãos<br />

laceradas sobre o meu único corpo fechado. Ao lado de mim mesma os desejos<br />

soçobravam ao meu desejo além.<br />

18


Mas eu não podia abdicar da maneira como vogava no contentamento,<br />

certas estações. Tinha uma grande sabedoria da passagem dos animais e<br />

dos sons, a pelagem da lebre e o irisado das conchas, vieiras, à fixidez da<br />

heráldica, o campo ornado – a natureza era bela e boa pela promissão dum<br />

outro olhar e todos os espelhos me eram lugar do legado dos amantes poderosos,<br />

inclinados ao desamor dos homens e à propagação dos bens. A<br />

cada chegada havia porém o susto, o estremecimento dessas trevas recuadas<br />

onde havia então sinais da felicidade matinal, o luminoso lastro das tuas<br />

patas cantantes sobre o vidro. Não havia demónios ou heróis que pudessem<br />

infringir-me deliciosamente as fronteiras desse céu próprio, a pura cor rósea<br />

do dentro das pálpebras em repouso, o sonho.<br />

Com o tempo, porém, no chão sob as árvores caíam os suculentos despojos<br />

das copas, alguns corpos julgados imutáveis, as bagas espessas, pássaros<br />

hirtos. A flacidez crescente do tegumento dos seres, a crispação dos felinos<br />

num movimento parado agora sobre escudos apeados, frontais pétreos de<br />

grandes casas. Aprendendo as lágrimas, o desaparecimento regular dos seres<br />

ou amantes, mortos dizia-me da cegueira e da brevidade do meu próprio<br />

tempo. Que prazer aguardava?<br />

Refiz então o traçado dos meus passos, a caligrafia inscrita no derrube das<br />

pequenas ervas, líquenes do chão de verão, o esmagamento inadvertido de<br />

insectos benignos, os sinais da abstracção da dança leve. Eram muito regulares,<br />

afinal. Alguns haviam empedernido, a inscrição era muito duradoira<br />

e eu podia seguir no sentido inverso esses marcos deixados pela minha ausência,<br />

essa lavração em corpos onde, qual criança perdida, havia prevenido<br />

a hora dos regressos. Desolada, porém, pela sobreposição de tantos rastos,<br />

a duração da deriva, sentei-me. Procurei o recolhimento, mas o espaço em<br />

volta estava cheio de rumores e de intensíssima luz. A vegetação era delicada,<br />

de pequenos pomos, pétalas, animais imponderáveis, suspensos. Era<br />

chegado o tempo de dar sinal da tua avidez branca? Do teu desejo de solilóquio<br />

com a minha recuada pureza, o negrume do branco que freme?<br />

Tudo estava feito, e mirificamente adornada como uma pequena ilha aérea,<br />

olhei-me no espelho. Aí estavas sobre o teu fundo de negros, o perfil da<br />

noite. Serenos os teus cascos imponderáveis neste regaço palpam apenas o<br />

veludo, o real encoberto. Ternamente poiso sobre o dorso muito frio a mão<br />

19


que nada pode mais que adornar a melancólica infinitude das tuas crinas<br />

de cristal. Te contemplas enfim onde eu me fixo na graça suspendida dos<br />

retratos póstumos, a votação à beleza. Acaso não haverá maior harmonia ou<br />

superada dor. Mas vida?<br />

Entre as acérrimas hastes do poder e do desejo eu figuro pois, triangulação<br />

que não pedi. Flutuarei com esta ilha para dentro da memória de outros<br />

olhos, iluminura ou tecelagem rumo à pura cor, ao esplendor do negro, o<br />

castro sem adornos, pupila sacra do vero amor que cega nos espelhos face<br />

à face no outro, o olhar táctil, a vera pele do rosto, interna à comovida entranha.<br />

Isso o ver?<br />

Porém, há-de haver a completude do ciclo. Guardada a desmesurada incompletude<br />

de todo o desejo nesse teu ânimo que a si mesmo contempla, ó<br />

cavalo dos ares, fidelíssimo apenas à visão que te semelha, a donzela oculta<br />

incólume aos caçadores ou amos, a mesma, senhora no teu bafo vê. Alheio,<br />

o animal do poder desvia os olhos e empurra tripartidos os signos crescentes,<br />

lunares, os do nosso contrato necessariamente ainda casto, a paragem.<br />

Cerrando os olhos há, porém, a possível transmutação de toda a cena, e tu,<br />

puro desejo, te alcandoras enfim nos meus joelhos ao lugar próprio, o corpo<br />

erecto do homem incriado.<br />

Exposta porém a tapeçaria dará sinal aos olhos vindouros do misterioso<br />

fulgor de todo o negativo percurso, a fixa razão de ser que sustenta os moradores<br />

tenebrosos na contemplação a um tempo deslumbrada e austera dum<br />

paraíso íntimo, possível.<br />

20


o o u v i d o<br />

José Saramago<br />

o primeiro s o m, aquele de que todos os outros virão a nascer, filhos, discípulos<br />

ou gomos, ou bagos de romã justapostos, ou favos que se respondem<br />

como a luz de uma velha entre espelhos paralelos, o primeiro som, em tão<br />

grande silêncio nascido que poderia ser a primeira de todas as vagas quebrada<br />

sob os nevoeiros e as sombras do mundo recém-criado<br />

o primeiro som é apenas o da corrente de ar que nos foles do órgão se<br />

introduz,<br />

ou talvez não,<br />

o primeiro som será o da respiração necessária para que a donzela aia faça<br />

o tão pouco esforço de levantar o punho do fole, e neste e nos pulmões o ar<br />

circulando com o secreto rumor da seda arrastada na lua, que por longe ser<br />

não ouvimos mas sabemos, e sem que percebendo-se percorre o interior das<br />

narinas húmidas e vivas, e docemente inflando os pulmões e também a escuridão<br />

interior do fole de pele curtida, ainda cheirante ao fartum quente dos<br />

gados nos currais ou no chão solto e macio das grandes sestas sob as árvores,<br />

e quem sabe se distante contendo o tilintar finíssimo das campainhas dos<br />

rebanhos em manhãs também de névoa de um mundo muito mais velho.<br />

Esse, ou este, ou ambos porque mutuamente se requerem, são o primeiro<br />

som. A música ainda não se ouve, esta é a última pausa viva, o segundo final<br />

de consolação dos afogados que no ponto de morrer revivem: todos os sons<br />

estão neste primeiro, e todos são o mesmo silêncio, ou a mesma demonstração<br />

da sua impossibilidade.<br />

Antes, a ponta-de-prata traçou todas as figuras do cartão, criando uma<br />

forma de paisagem rumorosa, e também de gente e animais que um cego<br />

reteria na memória dos sons, não em sinais identificáveis, mas como uma<br />

construção aérea de música concreta, feita de arabescos, de miúdas pausas,<br />

21


de súbitas raspagens, de longas brechas rasgando-se, tal seriam os silvos das<br />

espadas cortando o ar, e sempre a respiração calma ou rápida, consoante na<br />

superfície do cartão a ponta-de-prata traçasse o largo movimento das saias<br />

das donzelas ou afilasse a espiralada defesa do unicórnio. Muito antes da<br />

tapeçaria houve outro primeiro som, este da ponta-de-prata vincando o desenho,<br />

guiada pelos olhos e a mão, dando ao traço o seu efémero gêmeo que<br />

é o som, só existente em cada momento, como o presente movediço entre<br />

um passado que por vivido se cobre de incertezas e um futuro que só simplificadamente<br />

pode ser adivinhado. Fechando nós os olhos, poderíamos<br />

pensar que os traços se exprimem sonoramente ao nascerem, ou que, pelo<br />

contrário, são os sons que deixam como herança e sinal de passagem, antes<br />

de tombarem no silêncio do já acontecido, aquelas mil flores, os animais<br />

minúsculos que parecem espantados de serem, as duas graves raparigas, o<br />

leão e o unicórnio, o órgão frágil que devagar inspira para fazer nascer outro<br />

primeiro som.<br />

Não precisa o debuxador de manter imobilizados diante de si os modelos<br />

que vai fixar no cartão. Em folhas soltas começou por figurar o cordeiro e a<br />

raposa, a lebre e o coelho, o lobo e o lebreu, e o pato bravo que, livre ainda,<br />

já se retorce e arqueja e grasna e cai porque o falcão vem cortando os ares,<br />

ele sim detido no voo por misericórdia do artista, senhor de não querer<br />

que num céu coberto de flores façam obra de morte as garras e os bicos.<br />

Nenhum mal irá acontecer aqui. Os animais esperam pacientemente a música,<br />

e deles não virá rumor. Mas em corredores sonoros como cisternas<br />

ecoam os passos da dona do solar, ou sua filha, e os pesados tecidos de ouro<br />

arrastam sobre as lajes os veludos lavrados, os mantos franjados de peles. O<br />

rápido vulto apenas ajuda a memória de rostos claros, de testas arqueadas<br />

ainda medievais, de uma gravidade que oculta vestígios certos do demônio,<br />

talvez mostrados nos olhos dilatados do leão e no urro sufocado que lhe<br />

denunciaria o desejo. Ventos contrários se juntam no desenho para que não<br />

sejam deste mundo a bandeira e o estandarte das três luas, no intervalo dos<br />

quais haverá de nascer o primeiro som soprado pelos tubos do órgão.<br />

Porém, recatadas seriam as mãos das damas que de perto ao debuxador se<br />

não mostraram nunca, pois as suas próprias, grosseiras de homem, tomou<br />

por modelo, e assim no desenho vieram a ficar e depois na tapeçaria, por<br />

22


igual causa das mãos do tecelão. A ponta-de-prata desliza no cartão, abrindo<br />

um levíssimo suspiro de sombra no limiar da claridade ofuscante do<br />

unicórnio. Animal macho como o debuxador que vai agora traçar o seu<br />

retrato verdadeiro, o seu de si mesmo retrato, na melancolia dos olhos, na<br />

dobra vencida dos joelhos, enquanto a defesa longa e aguda, o chifre branco,<br />

se ergue para o ar, afastado do objecto do seu desejo. Nos pulsos do<br />

debuxador as veias batem, e entre os segredos do peito, como no interior<br />

duma gruta, ressoa a insistente pergunta e a fugidia resposta do coração. O<br />

chifre branco detém-se no ar e nenhuma donzela gritará nesta hora a sua<br />

ansiada dor de mulher.<br />

Só falta cobrir de flores todo o espaço livre, ir procurá-las aos campos, dispô-las<br />

em molhos sobre a mesa, e copiar cuidadosamente, sem invenção<br />

acrescentada, as folhagens e as pétalas, macias ou ásperas aquelas, dispostas<br />

estas em cachos ou em estrelas, em grinaldas e iluminações. E feito isto, que<br />

demorado foi, sobre a tábua se pousará com um rumor claro a ponta-deprata,<br />

agora inútil, como o chifre do unicórnio, mas tendo ela fecundado e<br />

ele não. Posto o que será a vez das cores sensíveis, para que o cartão apareça<br />

enfim na sua glória de vermelhos e azuis de chumbo, onde o pêlo dos animais<br />

e a pele humana declaram uma evidente fraternidade, e onde os verdes<br />

se degradam em inumeráveis ecos de azul para que desta maneira se invente<br />

outro jardim. É o tempo de um silêncio para ouvidos humanos, enquanto<br />

sobre o mundo raso dos cartões as figuras se ajustam devagar, e as tintas,<br />

secando, se contraem murmurantes de inaudíveis crepitações.<br />

Descem, por necessários, os rebanhos da montanha. O tempo ainda que<br />

muito se esperou, acaba por sempre chegar, e neste dia se hão-de desprender<br />

do corpo das ovelhas os focos espessos e crespos da lã, caindo ao redor<br />

como neve ou branda penugem de ave, enquanto a tesoura morde e estala,<br />

rente à pele rósea que estremece. Todo o chão se cobriu de lã, e quando às<br />

braçadas a levantam, e depois amontoam, seria silêncio se não ouvíssemos<br />

os animais balindo e o insistente rangido da tesoura. A terra é um murmúrio<br />

sem fim, e o vento, que de rajada passa, traz consigo, de longe, ou talvez<br />

não tanto, somente do outro lado das árvores, um balançar de flores de<br />

linho, leves flores que porventura o debuxador representou no cartão para<br />

que nada houvesse de ficar por dizer. Vão casar-se estas fibras e estes pêlos,<br />

23

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!