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Livro - O Recreador Mineiro - ICHS/UFOP

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Luciano de Oliveira Fernandes<br />

O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> (1845-1848): liberalismo e romance-<br />

folhetim na imprensa mineira do século XIX<br />

Ouro Preto<br />

Editora da Universidade Federal de Ouro Preto<br />

2009


F363r Fernandes, Luciano de Oliveira.<br />

O recreador mineiro (1848-1848) : liberalismo e romance-folhetim na<br />

imprensa mineira do século XIX/ Luciano de Oliveira Fernandes. -<br />

Ouro Preto : <strong>UFOP</strong>, 2009.<br />

136 p.<br />

ISBN: 978-85-288-0066-1<br />

1. Literatura brasileira. 2. Historiografia. 3. Imprensa. I. Universidade<br />

Federal de Ouro Preto. II. Título<br />

CDU: 821.134.3(81)<br />

2


À Laura.<br />

3


Agradeço a todos os membros do Centro de Estudos<br />

Literários Luso-brasileiros do Instituto de Ciências Humanas<br />

e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto. Em<br />

especial, ao Professor PhD Leopoldo Comitti.<br />

Agradeço também ao Professor Phd Marcus Vinicius de<br />

Freitas (FALE/UFMG) pela orientação durante o curso de<br />

mestrado e a escrita deste texto.<br />

4


“Quanto mais expressiva da realidade concreta do povo que a<br />

produz, mais significativa culturalmente é uma linguagem,<br />

seja no domínio da arte, da religião, da ciência, da política, da<br />

moral. Em outras palavras, a expressão de uma cultura se<br />

torna significativa na medida em que permite à sociedade que<br />

a produziu o seu reconhecimento, a percepção de sua<br />

realidade através dos símbolos que procuram exprimi-la.”<br />

(Sônia Maria Viegas Andrade,<br />

Idéias Filosóficas e Políticas em Minas Gerais no Século XIX )<br />

5


O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> (1845-1848): liberalismo e romance-folhetim na<br />

imprensa mineira do século XIX.<br />

Sumário<br />

Resumo ......................................................................................................................................... 7<br />

Introdução .................................................................................................................................... 8<br />

1 – Panorama Histórico ............................................................................................................ 14<br />

1.1 – Apontamentos sobre a Província de Minas Gerais no período anterior à<br />

Independência .............................................................................................................. 14<br />

1.2 – A imprensa mineira como delineadora de identidade política ........................................ 26<br />

2 – Polifonia Romântica em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> ................................................................. 46<br />

2.1 – Romantismo, liberalismo e letramento em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> .................................. 46<br />

2.2 – Romantismo, historicismo e estrangeirismo em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. ....................... 75<br />

3 – O Romance-Folhetim e o Discurso Liberal em o <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> ............................. 92<br />

3.1 – De onde vem o romance-folhetim ? ................................................................................ 92<br />

3.2 – A Especulação e o casamento burguês ........................................................................... 96<br />

3.3 – Adultério, crime e pecado: a valorização da família na sociedade burguesa e a<br />

função pedagógica do romance-folhetim ................................................................... 103<br />

3.4 – A renúncia aos direitos em Muito Tarde: romance de provação com traços<br />

históricos .................................................................................................................... 110<br />

3.5 – Aspectos góticos do romance-folhetim em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> ............................... 120<br />

4- Considerações finais............................................................................................................ 126<br />

5 – Bibliografia ........................................................................................................................ 130<br />

6


Resumo<br />

Discutindo as articulações entre experiência vivida, ficção e organização social<br />

através do estabelecimento de relações entre história, memória cultural e literatura, este<br />

estudo visa a analisar a relação entre a imprensa mineira e a facção política liberal em<br />

Minas Gerais após a Independência, bem como os efeitos dessa relação na temática dos<br />

artigos e dos folhetins publicados no periódico ouropretano O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

(1845-1848). Constatando que esse periódico se caracterizou como um suporte para a<br />

enunciação de um discurso polifônico, indicar-se-á o uso da Literatura (através do<br />

jornalismo) como instrumento do processo de renovação política, ideológica e cultural<br />

em Minas Gerais no período compreendido entre 1845 e 1848.<br />

7


Introdução<br />

“Os R R., posto que na sua folha litteraria transmittão alguns artigos<br />

sem declarar a fonte de sua extracção, sustentão a ingenuidade de não<br />

roubar a anterior, ou phostuma gloria de pennas illustres. (...) cada um<br />

dos factos ali consignados não tem de certo por fonte peculiar, ou<br />

comum o cerebro do escriptor; talvêz comprehenda a sua obra tantas<br />

linhas quantos os autores precedentes, ou contemporaneos donde as<br />

extrahio; (...) O R. <strong>Mineiro</strong> não é o catalogo, ou o atlas dos<br />

escriptores, cuja nomenclatura impreterivelmente deve apparecer<br />

nesse genero de producções; é pelo contrario o mensageiro do recreio,<br />

instruindo: e que mais conseguirá elle rubricando algumas paginas<br />

com a inscripção das fontes, em que se enriquecêra, que igualmente o<br />

não consiga sem taes rubricas? E é ponto bem singular, e genuino, que<br />

aquelles, que affirmão conhecer essas fontes, e que as designão por<br />

seus proprios nomes, sejão os mesmos que censurão o <strong>Recreador</strong> de as<br />

não declarar! Se vós as conheceis, para que solicitais declarações? Se<br />

julgais inutil a reproducção d’artigos, que tendes lido em diversas<br />

obras, apezar de que se não achem ao alcance de muitos outros, para<br />

que fim exigìs contra vossos principios uma declaração do que vos é<br />

inutil por vos ser sabido?”<br />

(os redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>,<br />

Escholio aos 6 volumes do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>.)<br />

Devo aqui confessar ao leitor que me fiz muitas perguntas após ler o fragmento<br />

acima. Questões de várias ordens que motivaram e impulsionaram a realização deste<br />

estudo. Ao entrar em contato com o material que se constituiu como o corpus desta<br />

pesquisa, a ausência de fontes e referências nos textos publicados por um jornal<br />

8


ouropretano do século XIX causou certo desconforto. Afinal, sempre procura-se<br />

compreender os textos a partir de um ponto de enunciação inserido em um contexto<br />

discursivo; e em relação a uma série de outros documentos/monumentos 1 . Assim como<br />

a falta de referência aos autores da maioria dos textos publicados ao longo dos três anos<br />

da edição do periódico, deparar-se com as letras R.R. nos textos editoriais também<br />

causa certa dúvida. Afinal, quem são os “R.R”, ou “Redatores do <strong>Recreador</strong>”? 2 Para<br />

que finalidade “transmitem” o discurso alheio? Declaram não ter a intenção de se<br />

apropriar daquilo que transmitem; nem a de fazer do periódico um “atlas de escritores”.<br />

Mas qual é então a intencionalidade dos R.R. ? E como essa intencionalidade se articula<br />

com o poder e as forças sociais? Percebe-se no fragmento acima que as idéias de<br />

instrução e recreio perpassam a ideologia do jornal. São os objetivos dos redatores. E<br />

para tal, os R.R. não julgam serem úteis as rubricas, mas as idéias, o discurso contido<br />

naqueles textos. Mas que idéias? Que textos? Instruir para que finalidade? Quem? Mas<br />

em que situação ocorre essa transmissão do discurso de outrem ?<br />

Desculpe-me o leitor pela enxurrada de questões. Mas as questões se fazem<br />

necessárias como resposta àquilo que me foi argüido pelos R.R. As idéias contidas nos<br />

artigos do periódico se associam claramente à doutrina liberal; e podem ser<br />

reconhecidas enquanto tal, embora não sejam indicadas as fontes. Mas a pergunta tanto<br />

me inquietara: “Se vós as conheceis, para que solicitais declarações?”<br />

Para facilitar meu trabalho. Eis a resposta que daria a eles se pudesse voltar aos<br />

anos de 1845-8 para solicitar informações que seriam inseridas na bibliografia deste<br />

estudo. Mas sendo isso humanamente impossível, como lidar com um aspecto, ou<br />

1 LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ª ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.<br />

2 Nas edições aparece apenas o nome do editor: Bernardo Xavier Pinto de Souza.<br />

9


melhor, com a falta de um aspecto tão relevante para a realização das análises e<br />

constatação das hipóteses de um trabalho de pesquisa na área de Literatura Brasileira ?<br />

Pois bem, tempos depois a pergunta feita pelos redatores parecia ser a sua<br />

própria resposta. Assim como os epigramas e as charadas publicados nas diversas<br />

edições do jornal. A “empresa literária”, expressão pela qual costumavam os R.R.<br />

designar o <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, constituía-se então como um suporte para a transmissão<br />

de um discurso polifônico - este, por sua vez, articular-se-ia com outros, numa<br />

perspectiva dialógica. Assim, a resposta ganhava forma de possibilidade de estudo. As<br />

questões acima pontuadas passaram mais a instigar do que a perturbar. Ganharam um<br />

novo aspecto e novas respostas se faziam possíveis.<br />

Desse modo, a abordagem dada ao objeto deste estudo passa pela análise da<br />

relação dialógica do periódico com o contexto no qual o discurso de outrem era<br />

transmitido em função da difusão da doutrina liberal e da ilustração; bem como pela<br />

análise dos objetivos, da intencionalidade daquele periódico enquanto expressão de um<br />

ponto de vista discursivo.<br />

Contudo, devo aqui informar que alguns textos publicados em O <strong>Recreador</strong><br />

<strong>Mineiro</strong> possuem a “referência de sua extracção”. Chamou-nos particular atenção a<br />

publicação de fragmentos da obra do naturalista Auguste de Saint-Hilaire traduzidos<br />

para a língua portuguesa pelos R.R. Foi o estrangeiro que mais teve textos publicados<br />

no periódico e a opinião dos R.R. acerca da obra de Saint-Hilaire revela grande<br />

identificação com as idéias do viajante naturalista. O que nos fez também percorrer a<br />

obra de Saint-Hilaire e tomá-la como uma das referências historiográficas que balizam<br />

este estudo, uma vez que os R.R. aproximam seu ponto de vista e o do viajante:<br />

(...) os trabalhos descriptivos do sabio viajante, de quem temos a<br />

honra d`extractar preciosos quadros que tão accuradamente revelão os<br />

10


differentes aspectos da obra da natureza, e do homem nesta província<br />

(...) possuem caracteres inherentes d`exactidão, veracidade, e<br />

interesse. (...) factos, que podessem, debaixo de outras relações,<br />

apresentar huma idéa justa de tão interessante paiz. (...)e a<br />

interpretação dos signaes, que o representão, (...) contrahe de certo<br />

huma divida, que a necessidade da illustração geral tem direito a<br />

reclamar. Entretanto continuaremos a offerecer aos nossos assignantes<br />

os trabalhos das nossas versões sobre as referidas viagens; aspirando a<br />

que de alguma maneira se amortize aquella divida, cuja existencia<br />

conserva huma lacuna, que desejariamos ver preechida.” 3<br />

Percebe-se no fragmento acima que os Redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

aproximam-se do ponto de vista de Saint-Hilaire. Observemos que os R.R. procuram<br />

amortizar uma dívida para com a obra do ilustre viajante. Uma dívida “que a<br />

necessidade de illustração geral tem o direito de reclamar”. Aqui nos deparamos com<br />

mais um objetivo dos R.R: a ilustração. E para tal, as descrições e os comentários do<br />

sábio e ilustrado viajante naturalista francês teriam grande utilidade.<br />

Num contexto romântico, liberal, de turbulências políticas e sociais, a imprensa<br />

periódica se articula com as forças sociais servindo-lhes de instrumento e material<br />

dentro do jogo discursivo pela conquista do poder e da opinião pública. O jornalista, o<br />

escritor, o intelectual e o político se fundem num novo espaço que se abre para os<br />

homens das letras na sociedade liberal e moderna do século XIX. Pensando assim na<br />

relação entre o contexto narrativo e a transmissão do discurso de outrem, a análise que<br />

nos propomos a realizar deve ser pautada não apenas pelos registros lingüísticos<br />

encontrados no objeto abordado, uma vez que<br />

“O erro fundamental dos pesquisadores que já se debruçaram sobre as<br />

formas de transmissão do discurso de outrem, é tê-lo sistematicamente<br />

3 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo II. nº 15, 01/08/1845. p.225<br />

11


divorciado do contexto narrativo. (...) o objeto verdadeiro da pesquisa<br />

deve ser justamente a interação dinâmica dessas duas dimensões, o<br />

discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-lo. Na verdade,<br />

eles só têm uma existência real, só se formam e vivem através dessa<br />

inter-relação e não de maneira isolada. O discurso citado e o contexto<br />

de transmissão são somente os termos de uma inter-relação dinâmica.<br />

Essa dinâmica, por sua vez, reflete a dinâmica da inter-relação social<br />

dos indivíduos na comunicação ideológica verbal.” 4<br />

Observando então a relação entre o discurso citado e seu contexto de<br />

transmissão - termos da inter-relação social dos indivíduos na comunicação ideológica<br />

verbal -, nos aventuraremos a transmitir, como uma primeira resposta à questão<br />

proposta pelos redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, o discurso de Bakhtin, quando este nos<br />

declara que: “na verdade, dentro de uma situação em que todos os julgamentos sociais<br />

de valor são divididos em alternativas nítidas e distintas, não há lugar para uma atitude<br />

positiva e atenta a todos os componentes individualizantes da enunciação de outrem.” 5<br />

Assim, tomaremos neste estudo os redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> como locutores,<br />

como transmissores de um discurso polifônico no contexto do surgimento do<br />

romantismo na imprensa mineira.<br />

E, para não incorrermos no erro acima apontado por Bakhtin (e visando a uma<br />

melhor compreensão das condições da comunicação verbal estabelecida entre os<br />

enunciadores, os locutores - redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> - e o público),<br />

procuraremos no primeiro capítulo traçar um panorama histórico das condições sociais e<br />

econômicas da província de Minas Gerais; bem como da relação entre a imprensa<br />

mineira e a facção política liberal em Minas após a Independência. Para tal, definiremos<br />

4 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem.Tradução de Michel Lahaud e Iara Frateschi<br />

Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995. p.148.<br />

5 Idem. p.149<br />

12


um corpus que se constituirá de periódicos que interagiram, anteriormente ao <strong>Recreador</strong><br />

<strong>Mineiro</strong>, com o pensamento político e filosófico de Minas Gerais.<br />

Ao longo do segundo capítulo, pontuaremos a influência das forças sociais<br />

organizadas sobre o modo de apreensão do discurso de outrem, observando as formas<br />

pelas quais foram registradas as impressões do discurso de outrem e da personalidade<br />

dos locutores. Uma vez que estes declararam que “Os R R. acreditão com fé explicita,<br />

que uma parte dos leitores lê na lettra do escriptor, a outra parte lê no seu espírito.” 6<br />

Para tal, procurar-se-á relacionar aspectos sócio-culturais envolvidos no processo de<br />

construção do discurso nacionalista brasileiro e de instauração do Romantismo na<br />

Literatura Brasileira com a facção política liberal em Minas após a Independência, a<br />

imprensa mineira e os progressos referentes ao campo da educação; indicando o uso da<br />

Literatura (através do jornalismo) como instrumento do processo de renovação política,<br />

ideológica e cultural em Minas Gerais no período compreendido entre 1845 e 1848.<br />

E discutindo as articulações entre experiência vivida, ficção e organização social<br />

através do estabelecimento de relações entre história, memória cultural e literatura,<br />

procuraremos no terceiro capítulo analisar a relação existente entre os romances-<br />

folhetins publicados no <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> e “o gráo maior ou menor de liberdade de<br />

que gosa o paiz; pois que o escriptor, tomando sempre medidas para descarregar sem<br />

prejuiso os golpes de que esta armado, pelo claro escuro que deixa nos quadros, e pela<br />

escolha das tintas, denunciado fica o gráo de civilisação e liberdade do paiz, e a que<br />

prêas ligavão o autor .” 7<br />

6 Schollio aos 6 volumes do recreador mineiro<br />

7 O Romance. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I, nº1. pág 19.<br />

13


1 – Panorama Histórico<br />

1.1 – Apontamentos sobre a Província de Minas Gerais no período anterior à<br />

Independência<br />

Levando em consideração o fato de que os Redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

aproximam-se do ponto de vista de Auguste de Saint-Hilaire com a finalidade de<br />

amortizar uma dívida que a “necessidade de illustração geral tem o direito de reclamar”,<br />

procuraremos nesta seção oferecer um panorama das condições das sociedade mineira<br />

no período em que Saint-Hilaire percorreu a província. Para tal, utilizaremos<br />

informações existentes na obra Viagem pelas províncias do Rio de Jeneiro e Minas<br />

Gerais 8 . A escolha da referida obra se deu pelo fato de que a maioria dos fragmentos<br />

publicados em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> são parte constituinte dos relatos efetuados durante<br />

tal viagem. Portanto, não se procura aqui reduzir a bibliografia a uma única obra por<br />

concordar plenamente com os escritos de Saint-Hilaire; procura-se, por outro lado,<br />

rastrear os elementos que serviram de fonte primária para os redatores do recreador<br />

<strong>Mineiro</strong>.<br />

Segundo Hilaire, a estrutura social da Província de Minas Gerais era, desde o<br />

século XVIII, urbana. As vilas e cidades constituíam verdadeiros centros culturais, com<br />

objetivos políticos e econômicos comuns. Durante o século da Ilustração, o XVIII,<br />

novas idéias penetraram nos segmentos mais representativos da sociedade brasileira. A<br />

Igreja, que deteve sempre a tarefa cultural e educativa, a partir de 1740, com o Papa<br />

Bento XIV, recomendava aos bispos brasileiros a fundação de seminários em suas<br />

8 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais; tradução de<br />

Vivaldi Moreira. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1975.<br />

14


espectivas dioceses. 9 Saint-Hilaire atribuiu ao Seminário de Mariana 10 a boa educação<br />

dos poucos homens polidos e com certa instrução na Província de Minas. Até o<br />

momento da Inconfidência o Seminário de Mariana haveria funcionado regularmente,<br />

entrando, então, em decadência e funcionando precariamente até 1806, quando foi<br />

desativado. Nessa época funcionavam em Mariana cursos públicos e gratuitos de Latim,<br />

Retórica e Filosofia, que eram orientados pelo compêndio de Antonio Genovesi. Saint-<br />

Hilaire ressalta, ainda, o desinteresse do clero em educar a população, ao se referir a<br />

esse seminário na ocasião em que estava desativado:<br />

“Era o momento de as autoridades eclesiásticas e civís se reunirem<br />

para vir em socorro de um estabelecimento tão útil à província (...) e<br />

vencer as pequenas intrigas que, no Brasil mais que em qualquer outra<br />

parte, se opõem às iniciativas úteis. Achou-se mais cômodo fechar o<br />

seminário e deixá-lo cair.” 11<br />

9 Conforme o Cônego Raimundo Trindade (in: TRINDADE, Raimundo. Arquidiocese de Mariana –<br />

Subsídios para sua História. 2ª edição.Belo Horizonte: Imprensa Oficial. 1955.), a Bula Papal “Candor<br />

Lucis Aeternae”, dirigida ao bispo de Mariana D. Frei Manoel da Cruz aos 15 de Dezembro de 1745,<br />

recomendava particular empenho de dotar a Arquidiocese de Mariana de um seminário, como o exigia o<br />

Concílio de Trento. Aos 20 de Dezembro de 1750 é expedida a provisão de fundação do seminário sob a<br />

invocação de Nossa Senhora da Boa Morte“(...) para nelle ensinar Grammatica, Philozophia e<br />

Theologia Moral, pos não há nesse bispado estudos públicos...”(in: TRINDADE, Raimundo. Breve<br />

Notícia dos Seminários de Mariana.. Mariana. Editado pela Arquidiocese de Mariana. 1951.p.08.). O<br />

Seminário, primeiro estabelecimento de ensino de Minas Gerais, foi entregue ao Pe.José Nogueira, da<br />

Cia de Jesus. D. Frei Manoel da Cruz falece no início de 1764 e a diocese permaneceu vaga por sete<br />

anos, até a nomeação de outro bispo. No ano de 1764 Antonio Rodrigues Dantas matriculou-se no curso<br />

de Filosofia e, após quatro anos, tornou-se reitor do seminário. Em Fevereiro de 1772 o Pe. Luis Vieira<br />

da Silva é nomeado professor de Filosofia orientando os estudos, a princípio, dentro das novas reformas<br />

promulgadas por Verney e, posteriormente, através do Compêndio do Genuense, segundo o modelo<br />

Ilustrado. Nomeado por D. Maria I e confirmado pelo Papa Pio VI, aos 20 de novembro de 1777 D. Frei<br />

Domingos da Encarnação Pontével, antigo professor de Teologia e Filosofia em Portugal, assume o<br />

Bispado de Mariana. Morre em Julho de 1797. Confirmado por PioVI em 1797, D. Frei Cipriano de São<br />

José sucede Pontével e cria em seu palácio um curso de Teologia Moral.<br />

10 Seminário Menor Nossa Senhora da Boa Morte, fundado em 1752. Mantido pelos recursos de<br />

mineradores que desejavam instruir seus filhos sem ter que enviá-los à Europa. Com o declínio do ciclo<br />

do ouro esses mineradores não mais dispunham de recursos para manter o estabelecimento em<br />

funcionamento, sendo este então desativado. Prédio onde hoje funciona o <strong>ICHS</strong>/<strong>UFOP</strong>.<br />

11 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais; tradução de<br />

Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1975.<br />

P.80.<br />

15


Com relação ao que o autor chama iniciativas úteis estão, dentre outras coisas, a<br />

instrução, o conhecimento, o cuidado com a saúde e a ocupação da mente humana com<br />

prazeres instrutivos. Tais elementos eram, segundo o autor, ignorados pela maior parte<br />

da sociedade brasileira. Considera ele que tal ignorância é fruto da influência do clero,<br />

que, através da doutrina dogmática católica, cria fiéis hipócritas e pouco preocupados<br />

com sua própria condição:<br />

“Constroem-se templos sem necessidade, fazem-se despesas loucas<br />

para celebrar os padroeiros em festividades quase pagãs, e como já o<br />

fiz notar alhures, não se pensa em fundar estabelecimentos de<br />

caridade, hospitais, escolas gratuitas, etc;etc. (...) a causa é a vaidade.<br />

As irmandades rivalizam entre si e procuram distinguir-se por<br />

esbanjamentos inúteis.” 12<br />

Ao fazer referência a Vila Rica, Saint-Hilaire demonstra que o efeito de tal<br />

ignorância torna-se perceptível no âmbito do convívio social. Relata que nessa Vila não<br />

havia então um único passeio público, nenhum café (estabelecimento comercial que se<br />

distingue da ‘venda’) decente, nenhum gabinete literário e nenhum centro de reunião.<br />

Acrescenta ainda que seus habitantes, por serem muito pouco sociáveis e por não<br />

poderem realizar nessa vila reuniões mundanas, têm como únicas distrações o jogo, os<br />

prazeres grosseiros e as pequenas intrigas. 13<br />

Descreve as habitações evidenciando o isolamento conferido às mulheres, que<br />

ocupavam os quartos dos fundos, não transitando pela casa e não tendo contato com as<br />

visitas. Ressalta ser esse comportamento comum na colônia, onde as mulheres têm<br />

12 Idem. p.84.<br />

13 “Dom Manuel de Castro e Portugal, Governador da Província, procurava, todavia usar de sua influência<br />

para reunir em sua casa uma sociedade luzida composta de homens e senhoras; mas essas reuniões<br />

tinham lugar em circunstâncias extraordinárias.” Ibidem.p.74.<br />

16


quase nenhum convívio com o meio social. O autor faz referência também ao fato de as<br />

casas não terem cômodos onde as pessoas possam se reunir ou se entregar aos “encantos<br />

da leitura e do estudo”.<br />

Essa ignorância com relação a tais encantos demonstrada pelos brasileiros é<br />

também notada por Saint-Hilaire nas cerimônias religiosas, nas quais os fiéis,<br />

usualmente, não discutiam o Evangelho ou liam a Bíblia; nem sequer a carregavam.<br />

Ouviam apenas a leitura do evangelho e o sermão feitos pelo sacerdote e, mesmo<br />

durante esse momento da cerimônia, punham-se a conversar, ignorando completamente<br />

o que era dito. O autor observou que quase todos os mineiros usavam, então, um rosário<br />

ao pescoço, mas muito poucos existiam a que tenha visto rezar. Ainda com relação à<br />

condição das mulheres na sociedade mineira, observa que quando essas se dirigiam às<br />

cerimônias religiosas, caminhavam em seguida umas às outras o mais lentamente<br />

possível, formando uma espécie de procissão. Não diziam nada, não voltavam a cabeça<br />

nem à esquerda nem à direita, olhando de soslaio para os que passavam e respondendo<br />

apenas com um ligeiro movimento de cabeça à saudação que se lhes era feita por algum<br />

conhecido. Ao chegarem à igreja, essas mulheres, sem distinção de classe, colocavam-<br />

se agachadas ou ajoelhadas ao meio da nave do templo, normalmente separadas dos<br />

homens (que ocupavam as laterais) por uma balaustrada de madeira 14 .<br />

Todavia, mesmo que as descrições obedeçam a um caráter comparativo, este se<br />

torna positivo pelo fato de guiar-se objetivamente pela cientificidade. Assim, mesmo em<br />

14 Devemos aqui observar que discordamos do ponto de vista de Saint-Hilaire acerca do papel social das<br />

mulheres em Minas Gerais durante o período colonial. Desde a década de 70 do século XX a<br />

historiografia vem mostrando que, longe de serem submissas e viverem no recato do lar, as mulheres<br />

muitas vezes foram chefes de fogo, desenvolveram atividades na economia informal e resistiram com<br />

certa bravura à dominação masculina. Tais aspectos foram observados por: Iraci del Nero da Costa. A<br />

estrutura familial em Vila Rica no alvorecer do século XIX. Revista do IEB, São Paulo, (19): 18-35 e<br />

Donald Ramos. Marriage and tha family in Colonial Vila Rica. Hispanic American Historical Review,<br />

55(2): 200-225, 1975.<br />

17


observações nas quais o autor evidencia certos problemas, ele procura assinalar<br />

possibilidades positivas:<br />

“no estado atual das coisas, devemos, para ser justos, fazer concessões<br />

aos partidários da escravidão. O negro que aqui cai nas mãos de um<br />

senhor bom e sinceramente cristão é, devemos confessá-lo, mais feliz<br />

que a maioria dos camponeses de certas províncias da França,...” 15<br />

Com essa declaração, Saint-Hilaire evidencia, ainda, seu ponto de vista sobre a<br />

escravidão. Seus ideais abolicionistas se demonstram moderados uando o cientista diz<br />

“fazer concessões aos partidários da escravidão.” No mesmo fragmento, nota-se a<br />

restrição quanto à condição do senhor, que deveria ser bom e “sinceramente” cristão.<br />

Levando em consideração o fato de o autor ser francês, vemos aí indícios de crítica aos<br />

cristãos católicos da península. O que pode ser observado com maior clareza no capítulo<br />

VIII 16 , no qual o naturalista francês se refere às condições da religião e do clero na<br />

Província de Minas Gerais. Nesse capítulo, o autor deixa explícito seu julgamento<br />

quanto à assimilação da religião cristã feita pelos povos ibéricos:<br />

“Sabe-se que Portugal é um dos países da Europa em que a ignorância<br />

e a superstição mais alteraram a pureza do cristianismo. Os homens<br />

que povoam o Brasil não traziam, pois, de sua pátria, senão uma idéia<br />

obscura e incompleta da religião cristã (...)” 17<br />

Aponta os abusos cometidos pelo clero contra a população, ressaltando que tais<br />

abusos partiam do clero, não da religião propriamente dita. Segundo o autor, passara-se<br />

a olhar com indiferença os deveres mais essenciais. As faltas contra os bons costumes<br />

15 Ibidem. p.54.<br />

16 Idem ibidem.pp.81-6.<br />

17 Ibidem ibidem. P.85<br />

18


mal eram consideradas faltas. A religião continuava sem moral, e dela se conservavam<br />

apenas as práticas exteriores. Chegava-se mesmo a observar estas últimas com bastante<br />

desleixo, mais por hábito que por convicção, perdurando delas, muitas vezes, “apenas<br />

um ligeiro verniz”.<br />

Com relação a esse uso meramente habitual dos costumes religiosos, por<br />

algumas vezes o autor observou que, após as refeições, os comensais se levantavam,<br />

juntavam as mãos, rendiam graças, faziam o sinal da cruz e se saudavam<br />

reciprocamente. Costume, segundo Saint-Hilaire, louvável; porém, o autor se<br />

surpreende ao ver que o escravo, que apenas servira a mesa, juntava-se aos convivas e<br />

agradecia a Deus por um repasto em que não tomara parte. Quando visitou o Padre<br />

Manuel Rodrigues da Costa, proprietário de Registro Velho, este, ao rezar as preces da<br />

tarde em meio a uma trintena de pessoas (a maioria de negros e negras), punha-se a<br />

recitar, em louvor a Cristo, ladainhas que indicavam o número exato de bofetadas e<br />

chicotadas que Jesus recebera, das gotas de sangue que correram de suas chagas e até<br />

das lágrimas que derramara pelos pecados dos homens. Saint-Hilaire observou com<br />

certa curiosidade que, “a cada artigo das litanias , a capela vibrava com o ruído das<br />

bofetadas que se aplicavam os presentes, e todos respondiam ‘Louvado seja Deus’.”<br />

O cronista, ao descrever de forma genérica os serventuários da justiça e o clero<br />

do Brasil, caracteriza este último pela prática do tráfico de coisas sagradas e espirituais.<br />

Descreve os abusos do clero e as taxas cobradas pela Igreja Católica para que o<br />

sacerdote ministre as cerimônias, tocando num ponto que remete à Reforma Luterana,<br />

que teve como um de seus pontos básicos a oposição à venda das indulgências: “(...) se<br />

no Brasil, a venalidade caracteriza os serventuários da justiça, a simonia não é menos<br />

freqüente entre os eclesiásticos da Província de Minas Gerais.” 18<br />

19


Saint-Hilaire caracteriza os hábitos e o espírito do Brasil como, em geral, uma<br />

espécie de renúncia aos bens materiais (um desprendimento dos valores econômicos ou<br />

incapacidade de assimilá-los) que pode ser verificado no provérbio “O pai taberneiro; o<br />

filho cavalheiro; o neto mendicante” 19 e de certa desvalorização que os próprios<br />

brasileiros dão a suas coisas quando as comparam freqüentemente com as estrangeiras 20 ,<br />

assumindo seu caráter provinciano e se colocando em posição inferior com relação aos<br />

países europeus. Auguste notou que, apesar de serem os mineiros orgulhosos de sua<br />

Pátria, havia entre eles muito pouco espírito público, não ouvindo o autor quase nunca<br />

dos habitantes da província, senão com desprezo, referência à única indústria que<br />

possuíam: a fábrica de louças de Vila Rica. Exageravam nos defeitos de seus produtos e,<br />

se comparavam sua louça com a da Inglaterra, era para fazer sentir quanto era superior a<br />

que compravam aos estrangeiros.<br />

A província de Minas Gerais era então dividida em cinco comarcas: ao sul, as de<br />

“Rio das Mortes” e “Vila Rica”; ao leste, a do “Serro Frio”; ao centro, a de “Sabará”; e<br />

a oeste, a de “Paracatu”. Nenhuma outra província do Brasil estava sujeita a impostos<br />

tão elevados quanto os que se pagavam no registro de Matias Barbosa (entrada da<br />

Comarca de Vila Rica). Segundo Saint-Hilaire essa parte do Brasil passava por ser a<br />

mais rica e era sobre ela que o jugo do regime colonial deveria pesar mais. Desse modo,<br />

não se contentaram em sujeitar seus produtos a impostos, o que seria justo; exigiu-se de<br />

seus habitantes contribuições a que outras províncias não estavam obrigadas. Os<br />

mineradores faziam grande uso de ferro, mas, “embora caminhassem sobre montanhas<br />

que são quase completamente constituídas dele”, eram, até 1808, obrigados a usar<br />

18 Ibidem Ibidem .p.83.<br />

19 Ibidem Ibidem. p.40.<br />

20 Ibidem ibidem. p.74.<br />

20


exclusivamente ferramentas de procedência portuguesa. E como a forma de medida para<br />

as taxas sobre mercadorias em Matias Barbosa era única e exclusivamente calculada a<br />

partir do peso da mercadoria, o ferro foi, por motivo de seu peso e pequeno valor, uma<br />

das mercadorias que a eles saíam mais custosas.<br />

A grande quantidade de ouro que se encontrou na Comarca de Vila Rica foi a<br />

única causa do seu desenvolvimento econômico, urbano e cultural no século XVIII.<br />

Seria, inclusive, impossível escolher posição menos favorável, pois essa comarca,<br />

estava afastada dos portos, dotada de muitas extensões estéreis de terra, poucos rios<br />

navegáveis, e as mercadorias lá chegavam apenas em animais de carga. Portanto, à<br />

medida que o metal foi se tornando raro ou de mais difícil extração, os habitantes da<br />

comarca de Vila Rica foram, pouco a pouco, tentar fortuna em outros lugares.<br />

De acordo com os relatos de Auguste, contava-se em Vila Rica, no ano de 1816,<br />

cerca de duas mil casas, em sua maioria antigas e em mau estado. Sua população, que já<br />

havia chegado a vinte mil almas, estava reduzida a oito mil, “e esta Vila estaria ainda<br />

mais deserta se não fosse a capital da província, a sede da administração e a residência<br />

de um regimento” 21 . Havia nas proximidades de Vila Rica apenas uma manufatura de<br />

pólvora pertencente ao governo e uma fábrica de louça que se estabelecera há poucos<br />

anos.<br />

A cidade de Mariana, com uma população de 5.130 indivíduos e cujo número de<br />

casas se elevava a 500, possuía ao seu redor não mais de quatro lavras em exploração.<br />

Os gêneros que se consumiam na cidade vinham de grande distância e o comércio<br />

limitava-se ao consumo interno, existindo poucas lojas. Segundo Saint-Hilaire, essa<br />

cidade só não havia ainda caído em completa decadência pelo fato de ser, não só a sede<br />

de uma circunscrição judiciária, como, ainda, uma diocese.<br />

21 Ibidem Ibidem. p.70<br />

21


Catas Altas, Inficcionado e grande número de outras povoações dos distritos<br />

auríferos de Minas Gerais que (segundo o próprio Auguste de Saint-Hilaire, foram<br />

edificadas com muito mais esmero do que a maioria das que se vêem na França, e<br />

mesmo na Alemanha) foram outrora ricas e prósperas, mas não apresentavam então<br />

“como toda sua zona circunjacente, senão o espetáculo do abandono e da decadência”.<br />

Desse modo, as vilas e arraiais mineiros que possuíam uma estrutura econômica<br />

e comercial mais desenvolvida encontravam-se na Comarca do Rio das Mortes. Desde a<br />

chegada do Rei D. João VI ao Rio de Janeiro, Juiz de Fora, que anteriormente<br />

compreendia apenas um pequeno número de casas situadas à margem do caminho,<br />

recebera um considerável acréscimo populacional:<br />

“Mais de quatrocentos homens livres com mais outros tantos escravos<br />

aí vieram estabelecer-se de diferentes partes da Província das Minas,<br />

atraídos pela fertilidade das terras, pelas vantagens que oferece a<br />

vizinhança da capital, e a de não pagar nenhuma taxa, morando além<br />

do registro de Matias Barbosa.” 22<br />

O antigo Arraial da Igreja Nova (que não passava de uma povoação)<br />

impressionara o Visconde de Barbacena por sua posição vantajosa. E este, na condição<br />

de Governador da Província, fez erigir tal povoação em vila por um decreto no ano de<br />

1791, concedeu-lhe vantagens, deu-lhe seu nome e atraiu para lá habitantes. Assim,<br />

segundo Saint-Hilaire, por volta de 1816 encontravam-se na Vila de Barbacena cerca de<br />

duzentas casas em ótimo estado de conservação e uma população de duas mil almas – e<br />

avaliava-se toda a paróquia em nove ou dez mil almas em um raio de aproximadamente<br />

dez léguas. Saint-Hilaire julgava que Barbacena não apresentaria mais que “uma<br />

reunião de míseras choupanas” e ficou agradavelmente surpreso ao encontrar “uma<br />

22 Ibidem Ibidem p.50.<br />

22


pequena cidade” que poderia “rivalizar com todas as da França de igual população”.<br />

Havia nessa vila, segundo o autor, várias lojas muito bem sortidas, muitas vendas,<br />

algumas hospedarias e muitos artífices.<br />

Percebe-se que há um deslocamento do eixo econômico e cultural da província,<br />

que ocorreu da Comarca de Vila Rica para a Comarca do Rio das Mortes. Econômico<br />

pela exaustão do ouro, pela fuga aos altos impostos cobrados nos registros que davam<br />

acesso aos distritos auríferos; e cultural pela proximidade da Comarca do Rio das<br />

Mortes com o Rio de Janeiro – então centro cultural do Brasil – e pela estagnação do<br />

pensamento ocasionada nos primeiros anos do século XIX pela repressão à<br />

Inconfidência Mineira, principalmente nos distritos auríferos.<br />

Contudo, várias iniciativas governamentais atingiram a província de Minas<br />

Gerais a partir da presença da Corte no Brasil. As restrições coloniais foram amenizadas<br />

com a Carta Régia de janeiro de 1808 e com o alvará de 01 de Abril de 1808, que<br />

anulavam a proibição de 1785 relativa à existência de manufaturas na colônia. Tal<br />

abertura proporcionou a primeira iniciativa siderúrgica mineira: a Fábrica Patriótica,<br />

montada pelo Barão de Eschwege (naturalista alemão) em Congonhas do Campo. Foi<br />

também inaugurada a primeira fábrica de tecidos de Vila Rica. Ainda nesse mesmo<br />

período o governo tomou medidas como a liberação da profissão de ourives e a<br />

legislação que proibia a penhora de minas por dívidas, as quais tocaram diretamente a<br />

Província de Minas Gerais. Conforme o Dicionário de Artistas e Artífices de Minas<br />

Gerais nos séculos XVIII e XIX 23 , aos 18 de Maio de 1818 Manuel da Costa Ataíde<br />

requereu à Sua Majestade Real a criação, na cidade de Mariana, de “huma aula de<br />

Desenho e Architectura Civil e Militar e da Pintura”, tendo sido dado ao mesmo, aos 29<br />

de Abril de 1818, um atestado de “Professor das Artes de Architectura e Pintura” . Aos<br />

23 Dicionário de Artistas e Artífices de Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX<br />

23


23 de Janeiro de 1821, reabre o Seminário de Mariana, no período em que Frei José da<br />

Santíssima Trindade assume a diocese, nomeando, entre outros, os seguintes<br />

professores: Frei Manuel do Espírito Santo, professor de Moral; Frei Antonio da<br />

Conceição, Professor de Filosofia e Teologia Dogmática.<br />

Nota-se, após a chegada da Coroa Portuguesa no Rio de Janeiro e a abertura dos<br />

portos, o fim da proibição aos veículos de comunicação e a criação de institutos que<br />

visavam resgatar, construir e documentar a história do país. Pela necessidade de criação<br />

na colônia de pontos de apoio para o funcionamento das instituições, D.João VI<br />

promove, segundo Antonio Cândido, a nossa “Época das Luzes”; a qual acarretou<br />

conseqüências importantes para o desenvolvimento da cultura intelectual, artística e da<br />

literatura, em particular. Nessa mesma época, D.João VI traz para o Brasil a Missão<br />

Francesa, com o intuito de implementar o ensino das artes e ofícios no país e de<br />

documentar, por meios pictóricos, as imagens do Brasil.<br />

Até 1808, a Coroa controla com rigor a entrada de estrangeiros no Brasil. O<br />

mundo pouco conhece desta colônia. Porém, a mudança da Corte e a abertura dos portos<br />

invertem a situação, passando a Coroa a incentivar a presença de estrangeiros. Além de<br />

diplomatas, comerciantes e artesãos, vários foram os estrangeiros que viajaram pelo<br />

Brasil escrevendo relatos que se constituíram como os primeiros estudos sistemáticos<br />

acerca da flora, da geologia, dos costumes, das artes e, conseqüentemente, do estado em<br />

que se encontravam a sociedade e o pensamento dos indivíduos que viviam no Brasil;<br />

local que, no imaginário europeu, seria uma terra de mistérios e maravilhas. 24 Tais<br />

24 Os alemães Freireyss (zoólogo) e Sellow (botânico), atraídos por von Langsdorff (barão germânico,<br />

médico, Cônsul da Rússia no Rio de Janeiro desde 1813 e colecionador de objetos históricos e naturais)<br />

e, viajando por Minas Gerais entre 1813 e 1814, formaram a primeira expedição científica pelo Brasil.<br />

Freyreiss morre em 1825 na colônia Leopoldina, que fundara com outros alemães no sul da Bahia.<br />

Sellow envia vasto material ao museu de Berlim. M. von Neuwied, príncipe renano, percorre em 1815,<br />

com Freyreiss e Sellow, o litoral ao norte da Província do Rio de Janeiro e o sertão baiano. Estuda<br />

povos indígenas: Camacãs, Puris, Pataxós e, sobretudo, os temidos Botocudos (Aimorés), das ainda<br />

24


viajantes estrangeiros, segundo Antonio Candido 25 , deixaram sua colaboração para a<br />

formação do Pré-Romantismo na Literatura Brasileira. 26<br />

Com a chegada da côrte termina a hegemonia intelectual dos conventos e<br />

organiza-se o pensamento livre. A censura diminui, apesar da existência da fiscalização<br />

das publicações e da criação da Intendência de Polícia. A vinda da corte amplia o fluxo<br />

do comércio livreiro e, com relação à posição do escritor, as associações político-<br />

culturais “(...) serviram de público às produções intelectuais; contribuíram para laicizar<br />

indevassadas matas entre a províncias de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo. Os ingleses W.<br />

Swainson e C. Waterton estudam, entre 1816 e 1817, o interior de Pernambuco e têm problemas com a<br />

revolução de 1817. A inglesa Mary Graham deixa trabalhos de botânica e descreve o impacto da<br />

Revolução de 1820 em Pernambuco. A arquiduquesa Maria Leopoldina (1796-1826), traz um cortejo de<br />

naturalistas bávaros e austríacos. John E. Pohl estuda plantas, minérios e índios do centro-oeste. J.<br />

Natterer envia ao Museu de Viena, ente 1817 e 1835, milhares de exemplares de aves, mamíferos,<br />

anfíbios e peixes, peças etnográficas de diversas tribos e vocabúlários de outras tantas línguas faladas<br />

pelas tribos indígenas brasileiras. Contudo, quase todo o material enviado por Natterer se perde em<br />

1848 durante o incêndio do museu. Spix e Martius, os mais célebres estudiosos bávaros que por aqui<br />

passaram nessa época, realizam uma expedição de dez mil quilômetros pela Amazônia e por todo o<br />

sertão mineiro, baiano e nordestino. A Missão Artística Francesa vem ao Rio de Janeiro em 1816 para<br />

lecionar na Escola Real de Artes e Ofícios, chefiada por Lebreton. Inicia-se, então, uma fase de maior<br />

influência européia na arquitetura e nas artes plásticas brasileiras. Debret, parisiense vindo com a<br />

Missão Francesa, passa quinze anos ensinando pintura e viajando pelo Brasil e, mais tarde, entre 1834 e<br />

1839, torna-se retratista da Corte. Por sua vez, o pintor alemão J.M.Rugendas, após se afastar de uma<br />

expedição organizada pelo Barão de Langsdorff, percorre províncias das regiões central e costeira do<br />

Brasil, retratando a sociedade e os tipos humanos da época.<br />

25 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6ª edição. Belo<br />

Horizonte: Editora Itatiaia, 1981. Vol. I.<br />

26 Tomando maior vulto o Pré-Romantismo Franco-Brasileiro, que floresceu, aproximadamente, entre<br />

1820 e 1830 pelas atitudes e escritos de franceses encantados com o Brasil, como por exemplo, os<br />

Taunay, Corbière, Monglave, Denis, Gavet e Boucher, que forneceram sugestões para a exploração<br />

literária dos temas locais. Os Idílios Brasileiros, escritos em Latim por Theodore Taunay, com tradução<br />

francesa paralela de seu irmão Félix Emile (1830), são um conjunto de poemas, integrados ao<br />

convencionalismo clássico, que cantam de maneira palaciana D. Pedro I e o jovem Império, a missão de<br />

José Bonifácio, as vantagens da vida agreste e o encanto da natureza. Sua colaboração é possível como<br />

sugestão aos jovens brasileiros da importância poética da Independência como tema. As Elégies<br />

Brésiliennes (1823), de Edouard Cordière, assumem esse mesmo tom de classicismo indeciso, podendo<br />

ser considerado – ainda segundo Candido – como o primeiro livro pré-romântico a tratar o aborígene<br />

brasileiro por ângulos, mais tarde, muito desenvolvidos no Indianismo: a idealização do selvagem<br />

nobre, independente, preferidor da morte à escravidão; a tristeza ante a destruição de sua cultura; a<br />

impotência na defesa contra o colonizador, entre outros aspectos. No livro Cenas da Natureza nos<br />

Trópicos, de Ferdinand Denis, ocorre a explosão da natureza como fonte de novas emoções e o desejo<br />

de abordar temas brasileiros. Paralelamente, entre 1820 e 1822, Eugene Monglave traduzia para o<br />

Francês Marília de Dirceu e o Caramuru. Jakaré-Ouassou ou Les Toupinambas, de Daniel Gavet e<br />

Phillippe Boucher, foi, como conseqüência imediata, o primeiro romance indianista extenso e<br />

autônomo. Desse modo, podemos crer que a tradução de obras brasileiras para outras línguas<br />

desempenhou um grande papel para tornar o Brasil conhecido por outros países, despertando, nestes<br />

últimos, a curiosidade e o interesse pelo nosso país. Tal interesse também foi desencadeado pela<br />

produção de diversas obras de cunho científico dotadas de uma postura naturalista e ilustrada.<br />

25


as atividades do espírito; formularam os problemas do país, tentando analisá-los à luz<br />

das referências teóricas da Ilustração.” 27<br />

Cândido considera ainda que: “A vontade consciente de ter uma literatura<br />

nacional e o empenho em defini-la decorrem em boa parte do sentimento de confiança<br />

adquirido pelos intelectuais brasileiros na fase joanina”. 28 Completando o quadro de<br />

divulgação do saber, ocorre a fundação de bibliotecas públicas e a abertura de livrarias<br />

(devemos observar que os donos destas últimas eram, muitas vezes, de nacionalidade<br />

estrangeira). A fundação de cursos técnicos superiores permitia a formação completa no<br />

próprio país, fora da carreira eclesiástica. É instaurada a Imprensa Régia, movimento<br />

que se ampliou posteriormente por tipografias privadas.<br />

Faz-se necessário, contudo, pontuar que tal ampliação ocorreu com o advento da<br />

Independência. Assim, no próximo subcapítulo procuraremos analisar a relação entre a<br />

imprensa mineira e a facção política liberal em Minas Gerais no período posterior à<br />

Independência, com o intuito de verificar como os meios de comunicação impressos<br />

interagiram na complexidade do contexto sócio-político da província na primeira<br />

metade do século XIX.<br />

1.2 – A Imprensa Mineira como delineadora de Identidade Política<br />

A imprensa periódica nasceu no Brasil há quase duzentos anos e, se levarmos<br />

em consideração a presença que tais expressões tiveram à época na sociedade, os<br />

estudos já existentes sobre sua história, apesar de significativos, são ainda limitados. No<br />

livro intitulado Palavra, Imagem e Poder: o surgimento da imprensa no Brasil do<br />

27 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6ª edição. Belo<br />

Horizonte: Editora Itatiaia, 1981. Vol. I. p.233-4.<br />

26


século XIX 29 , Marco Morel considera que a perspectiva historiográfica tradicional<br />

(positivista ou historicista) considerava a imprensa como fonte privilegiada na medida<br />

em que era considerada como narradora de “fatos” e “verdades” e, embora pioneira na<br />

utilização da imprensa na historiografia, tornou-se limitada. Posteriormente, a<br />

renovação dos estudos históricos e a ênfase numa abordagem socioeconômica, fizeram<br />

com que a imprensa se vinculasse às discussões sobre ideologia e “superestrutura”,<br />

considerando-a, portanto, como um “reflexo” superficial de idéias subordinadas a uma<br />

infra-estrutura socioeconômica. A partir dessa perspectiva, a imprensa era entendida<br />

apenas como um mero “veículo” de idéias e forças sociais. Mas com a renovação das<br />

abordagens políticas e culturais, foi redimensionada a importância da imprensa, “que<br />

passou a ser considerada como fonte documental (na medida em que enuncia discursos<br />

e expressões de protagonistas) e também agente histórico que intervém nos processos e<br />

episódios, em vez de servir-lhes como um mero ‘reflexo’.” 30 . Tal concepção implica<br />

verificar como os meios de comunicação impressos interagem na complexidade de um<br />

contexto. Desse modo, Morel considera que “o surgimento da imprensa no Brasil<br />

acompanha e se vincula a transformações nos espaços públicos, à modernização política<br />

e cultural de instituições, ao processo de independência e de construção do Estado<br />

Nacional. (...) Imprensa e nação brasileiras são praticamente simultâneas. A palavra<br />

impressa circulava e ajudava a delinear identidades culturais e políticas.” 31<br />

28 Idem. p. 230.<br />

29 MOREL, Marco. Palavra, Imagem e Poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de<br />

Janeiro: DP&A, 2003.<br />

30 Idem. pág. 09<br />

31 Ibidem. pág. 07<br />

27


Ainda observando o vínculo entre nação, imprensa e identidade nacional,<br />

Antônio Candido 32 considera que a Independência foi o objeto máximo e a principal<br />

expressão do movimento ilustrado no Brasil. Imprensa, periódicos, escolas superiores,<br />

debate intelectual, obras públicas e o contato livre com o mundo. O intelectual, antes<br />

considerado como artista, passa a ser considerado como pensador e mentor da<br />

sociedade, voltado para a aplicação prática das idéias. Foi um momento de<br />

transformações nas estruturas social, econômica e política do Brasil.<br />

Desse modo, segundo Nelson Werneck Sodré, as informações sobre as<br />

condições políticas da época são indispensáveis para a compreensão do<br />

desenvolvimento da imprensa periódica no Brasil durante a turbulenta fase em que se<br />

processa a Independência. Levando em consideração o fato de que os acontecimentos<br />

históricos não devem ser encarados como instantâneos e estáticos, Sodré observa que a<br />

idéia de independência não ocorreu ao mesmo tempo a todos que participavam das lutas<br />

políticas. Assim, depois de consumada, o problema essencial passou a ser então o da<br />

estrutura do Estado. Sodré considera que há um problema de poder que sucede à cesura<br />

da unidade que se forjara para conseguir a separação de Portugal. Direita e esquerda<br />

separam-se nitidamente. Assim como se haviam unido na repulsa ao regime de<br />

monopólio de comércio, permaneciam ainda unidas quanto ao papel do então aclamado<br />

imperador, o Príncipe D. Pedro I; porém, divergiam quanto à constituinte:<br />

“a direita colocava o governante acima da Assembléia, que era o<br />

poder popular; a esquerda colocava a Assembléia acima do<br />

governante. Para aqueles ao executivo caberia moldar as instituições,<br />

no essencial; para estes, caberia à constituinte traçar os rumos. Havia,<br />

no fundo, o temor de que a Assembléia, refletindo velhas tendências,<br />

32 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6ª Edição. Belo<br />

Horizonte: Editora Itatiaia, 1981. Vol. I. p. 230.<br />

28


jamais extintas, se inclinasse mesmo a decisões extremadas: a adoção<br />

da República, por exemplo.” 33<br />

Temendo uma tomada de poder pela assembléia (o poder popular), a direita<br />

rapidamente toma medidas para o cerceamento da liberdade de imprensa, levando-a à<br />

quase anulação. Sodré menciona então a perseguição à imprensa nesse momento de<br />

estruturação do Estado e a tentativa, por parte da monarquia, de evitar alterações,<br />

mantendo a estrutura colonial, robustecendo o poder do executivo e detendo as<br />

possibilidades de reforma. Assim, “a violência de linguagem, própria da época, não era<br />

peculiar à imprensa de oposição. Isto sem considerar – o que é lícito – que a linguagem<br />

áulica é uma violência feita à liberdade e ao pensamento.” 34<br />

Tal fato é abordado por Isabel Lustosa na obra Insultos Impressos, na qual a<br />

autora procura demonstrar como a imprensa foi um laboratório para embrionárias e<br />

imprevisíveis formas de competição política. Lustosa considera que, da partida do Rei<br />

(abril de 1821) até o fechamento da Assembléia (novembro de 1823), a imprensa<br />

abrigou um debate de características democráticas, porém sem regras definidas. “cada<br />

um escrevia e assinava o que bem entendia.” 35 Segundo a autora, esses dois anos se<br />

constituíram como um momento extremamente vibrante, que proporcionou espaço para<br />

“um processo de liberalização política sem precedentes na nossa história.” 36 Entretanto,<br />

Lustosa considera que:<br />

“ Três circunstâncias daquele momento histórico fizeram com que o<br />

debate alcançasse níveis de violência que incluíam o insulto, o<br />

palavrão, os ataques pessoais, as descrições deturpadas de aspectos<br />

33<br />

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. [atualizada] Rio de Janeiro: Mauad,<br />

1999. p. 60<br />

34<br />

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. [atualizada] Rio de Janeiro: Mauad,<br />

1999. p. 46-7.<br />

35 LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823) São<br />

Paulo: Companhia das Letras. 2000. p. 16<br />

29


morais ou físicos e até a agressão corporal, enunciada ou levada à<br />

prática: a situação de instabilidade e indefinição política que o país<br />

vivia, sem lei e sem rei, inclusive sem regras relativas aos limites da<br />

liberdade de imprensa (...); a democratização do prelo, trazendo para a<br />

forma impressa elementos da oralidade no que tinha de mais popular e<br />

coloquial; a emergência de quadros da elite brasileira sem hábitos de<br />

vida pública que, a partir de sua inserção no debate político,<br />

trouxeram para o espaço público, por meio da palavra impressa,<br />

atitudes da vida privada.” 37<br />

Assim indicadas as circunstâncias do momento histórico que teve lugar durante<br />

os anos de 1822 e 1823 (bem como o radicalismo desregrado e violento dos articulistas<br />

sociais) percebemos a situação de instabilidade e indefinição política pela qual passava<br />

o país. Ainda observando tal instabilidade, nota-se a tentativa e a luta das forças sociais<br />

para institucionalizarem-se no poder. Nelson Werneck Sodré considera então que no<br />

processo em que ocorre a separação entre a colônia e a metrópole confundem-se dois<br />

problemas: o da Independência e o da liberdade. Tal mistura denuncia a complexidade<br />

dessa fase política, explica enganos individuais, justifica mudanças de posição nas<br />

figuras de destaque e, portanto, é perceptível também nos debates da imprensa<br />

periódica.<br />

Os debates políticos através da imprensa só chegaram a Minas Gerais no ano de<br />

1823. Assim, surgem na província periódicos que, preocupados com os rumos da jovem<br />

nação, procuram interagir com o público na complexidade do contexto político,<br />

econômico e social brasileiro. O que pode ser observado em Minas Gerais, no ano de<br />

1823, com a publicação do 1º jornal mineiro, O Compilador <strong>Mineiro</strong>, que<br />

36 Idem.<br />

37 Ibidem.<br />

30


“Obedece ao nuto constitucionalista que agita os espíritos<br />

preocupados com o destino da pátria. As primeiras linhas são para<br />

assegurar ao povo que os deputados à Assembléia Constituinte do<br />

Império vão desempenhando suas funções de acordo com os desejos e<br />

as esperanças desse mesmo povo. Insere, a seguir, o projeto da<br />

Constituição Brasileira em discussão na Assembléia.” 38<br />

Sua publicação ocorreu até 1824, ano em que surge A Abelha do Itaculumi, que<br />

circulou até 1825. Aos 18 de julho deste mesmo ano surge O Universal, que tinha como<br />

principal objetivo, segundo seu redator, “a ilustração pública, e não suscitar ódio entre<br />

os cidadãos...” 39<br />

Esse periódico de forte tendência liberal interagiu, de 1825 a 1842, com o<br />

pensamento filosófico, político e o ambiente cultural mineiros. Noticiou, por exemplo, o<br />

aparecimento do jornal O Astro em São João Del Rei, aos 20 de Dezembro de 1827, sob<br />

a redação de Baptista Caetano D’Almeida (o mesmo que fornecera os dados utilizados<br />

por Cunha Matos em sua análise da evolução dos estabelecimentos de ensino em Minas)<br />

como “Periódico verdadeiramente liberal, e que faz honra ao seu author...”. 40 A esse<br />

mesmo redator refere-se novamente O Universal aos 17 de outubro de 1827, atribuindo<br />

a ele a fundação de uma biblioteca e de um gabinete de leitura em São João del Rei.<br />

Esse estabelecimento possuía, por essa data, segundo O Universal, “1.000 volumes e<br />

todos os jornais do Rio de Janeiro”.<br />

Assim, como meio difusor das idéias das facções políticas mineiras, existiam no<br />

ano de 1829, O Universal (tendência liberal) e O Telegrapho (ministerial ou<br />

38 O Compilador <strong>Mineiro</strong>. Ouro Preto, 13 de outubro de 1823<br />

Estado de Minas de 08 de Março de 1996, em artigo sob o título A Velha Imprensa Mineira. ( Ainda<br />

sobre o mesmo assunto: Artigo no suplemento Minas Gerais, de 20 de Dezembro de 1975; e Oliveira,<br />

Tarquínio Barbosa de. O Primeiro Impresso em Minas Gerais. Ouro Preto, Casa dos Contos, 1975.)<br />

39 Segundo José Carlos Rodrigues “Muito Provavelmente o mentor intelectual de O Universal seria<br />

Bernardo Pereira de Vasconcelos, deputado e governador da província, posteriormente.”<br />

31


conservador) em Ouro Preto; O Astro Minas (liberal) e O Amigo da Verdade<br />

(ministerial) em São João del Rei; e O Echo do Serro (liberal) no Tejuco (hoje,<br />

Diamantina).<br />

No início da década de 30 outro periódico surge e é noticiado com satisfação<br />

pelo O Universal : O Novo Argos, redigido pelo Reverendo Antonio José Ribeiro<br />

Bhering. 41 Nessa mesma década sugem ainda O Pregoeiro Constitucional, em Pouso<br />

Alegre; O Diamantino, no Tejuco; O Constitucional <strong>Mineiro</strong>, O Monarquista e O<br />

Papagaio, em São João de Rei; e, no Serro, Sentinela do Serro e O Liberal do Serro.<br />

Observa-se que os debates políticos e filosóficos publicados em outros jornais,<br />

principalmente os do Rio de Janeiro (como A Aurora Fluminense e o Parlamentar),<br />

repercutem na imprensa mineira 42 . Assim, os periódicos mineiros de cunho liberal<br />

constantemente transcreveram artigos de outros jornais liberais. No fragmento que<br />

segue, transcrito do jornal Aurora Fluminense e publicado pelo Universal aos<br />

14/03/1828, é atribuída aos jornais políticos a condição de melhoria do espírito público<br />

através da veiculação das informações acerca da situação política do Brasil no período<br />

posterior à Independência. De acordo com tal artigo,<br />

“(...) transmitem o resultado das profundas meditações dos Publicistas<br />

que nunca se tornariam vulgares, se escritos em curto alento, de<br />

módico preço, e que por assim dizermos chegam a todos, não<br />

tomassem a si esta tarefa. A outra vantagem dos periódicos, é estarem<br />

sempre a par dos acontecimentos, e instruírem todos os dias os<br />

Cidadãos das malversações praticadas pelos agentes do Poder,<br />

desferindo pequenos, mas repetidos golpes à árvore do Despotismo<br />

40 O Universal de 26 de Novembro de 1827. (Apud RODRIGUES)<br />

41 O Universal de 19 de Outubro de 1831. (Apud RODRIGUES)<br />

42 RODRIGUES, José Carlos. Idéias Filosóficas e Políticas em Minas Gerais no século XIX. Belo<br />

Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo,1986.<br />

32


(...) Quando em 1821 os primeiros raios de Liberdade nascente<br />

feriram os nossos olhos, um entusiasmo geral se apoderou de todas as<br />

classes da Nação descontentes com o antigo Governo e dos erros, que<br />

haviam precipitado a Pátria a um abismo de males, mas este<br />

entusiasmo, que não tinha por guia nem a reflexão nem o<br />

conhecimento do objeto, que anelavam era inteiramente fictício, e foi<br />

de pouca duração. O que nessa época se desejava era uma mudança:<br />

compreendia-se o horror da posição, em que nos achávamos<br />

colocados, mas não se formava idéia das instituições, que se<br />

preconizavam como salvadoras da causa pública. Cada um neste<br />

primeiro momento de efervescência viu nelas o que o apetecia; o<br />

Negociante a proteção dada ao comércio exclusivo; o Empregado, o<br />

aumento dos seus tênues ordenados, o homem ardente e amigo do<br />

bem, a punição contra os opressores do Povo, e a reforma instantânea<br />

de todos os abusos; o malvado a sua impunidade, e todos enfim o<br />

século dourado; abundância, tranqüilidade, e riquezas sem fadiga.<br />

(...)<br />

Foi nessa crise que os Jornalistas foram verdadeiramente úteis ao<br />

Brasil, patenteando ao Povo as tramas, com que intentavam escravisá-<br />

lo e prendê-lo e desenvolvendo os princípios do sistema<br />

Representativo, que acintemente se procurava sepultar no<br />

esquecimento. Pouco a pouco os sucessos foram formando a<br />

experiência e as centelhas de Liberdade, que se não tinham apagado,<br />

foram tornando ganhar força, soprado pelo hálito bem fazejo dos<br />

escritos Liberais. E se compararmos a esse respeito o estado atual do<br />

Brasil (ao menos nas províncias do sul) com aquele que se achava nos<br />

anos de 1824 e 1825 quando os apaixonados da leitura periódica<br />

apenas encontravam por pastos as indignas Correspondências e<br />

Variedades do Diário Fluminense, em que os Direitos Humanos e o<br />

nome Brasileiro eram simultaneamente calcados aos pés e<br />

escarnecidos, nós damos graças ao Supremo Autor da Sociedade por<br />

ter feito brilhar em nossa Pátria dias mais esperançosos e felizes.<br />

(...) apoiada nas doutrinas puras dos mais consumados Publicistas (...)<br />

Os Direitos do Povo, as Garantias da Ordem Social começam a ser<br />

apreciadas praticamente por aqueles mesmos, que antes em menos<br />

contas (...) A liberdade enfim engrossa todos os dias o número de seus<br />

33


adoradores; pois lhe basta ser conhecida tal qual, para ser amada por<br />

todos os homens (...)” 43<br />

Observa-se nesse artigo a crítica constante ao despotismo e a defesa dos<br />

postulados liberais. Além disso, é enfatizada a importância e utilidade da imprensa<br />

periódica para a informação e instrução da população acerca das atividades dos<br />

governantes, instaurando a imprensa como um meio difusor e questionador dos atos<br />

políticos, bem como um veículo de conscientização do povo.<br />

Ainda em conformidade com os postulados liberais de que estava impregnada a<br />

consciência política mineira, O Universal publica, aos 30/04/1827, o artigo intitulado<br />

Discurso sobre a Liberdade. Tal artigo evidencia que os postulados liberais adotados<br />

pela política mineira e veiculados através da imprensa obedeciam à fundamentação<br />

baseada na formulação do liberalismo clássico, que surge como uma reivindicação da<br />

liberdade de consciência. Para chegarmos a tal ponto da análise e explicitação de tais<br />

postulados no referido artigo, prosseguiremos anteriormente a uma pequena delineação<br />

da doutrina liberal.<br />

No século XIX, o pensamento liberal teve enorme força tanto na Europa quanto<br />

na América, repercutindo na economia, na política e na organização do cotidiano dos<br />

países desses continentes, construindo, assim, mentalidades e modos de vida<br />

particulares. O liberalismo começou a tomar corpo em fins do século XVII, quando o<br />

pensador inglês John Locke formulou as primeiras idéias acerca dessa linha de<br />

pensamento. Para Locke, apesar dos homens serem naturalmente livres, não é possível<br />

garantir que seus direitos sejam automaticamente respeitados. Por isso, para assegurar a<br />

43 O Universal, 19/03/1828. (Apud RODRIGUES)<br />

34


liberdade e a propriedade de cada um, é necessário que exista o Estado, o qual deve<br />

oferecer aos homens proteção e segurança.<br />

No século XVIII, o desenvolvimento do pensamento iluminista passa a ser<br />

ingrediente fundamental para o desenvolvimento do pensamento liberal. Surgem, então,<br />

as críticas ao controle excessivo do Estado sobre a economia (nos moldes<br />

mercantilistas) e ao Estado Absolutista que, baseado no pensamento religioso, ia contra<br />

a liberdade dos homens; ao mesmo tempo, surgem argumentações a favor da<br />

instauração de regimes constitucionais. Desse modo, as leis coletivas só deveriam<br />

existir com o objetivo de garantir a liberdade individual; quando não cumpre esse papel,<br />

o governo deixa de exercer suas funções e se torna usurpador.<br />

Embora os princípios dessa corrente de pensamento remontem ao século XVII, a<br />

expressão “liberalismo” só se tornou conhecida no século XIX. Acreditava-se, com base<br />

no pensamento de Locke, que a “liberdade” é um dos direitos naturais do homem. O<br />

indivíduo é livre por natureza, e tudo deve ser feito para preservar sua liberdade, seus<br />

direitos individuais. Locke defendia também o direito de propriedade, tanto da própria<br />

vida quanto dos bens que cada indivíduo conseguiria adquirir por meio do esforço e do<br />

exercício da liberdade.<br />

Segundo José Carlos Rodrigues, no livro Idéias Filosóficas e Políticas em Minas<br />

Gerais no Século XIX:<br />

“Em Locke, principalmente no Segundo Tratado sobre o Governo, se<br />

delineiam os fundamentos do Liberalismo Político-Jurídico (...). Com<br />

Kant e Rousseau, teremos os princípios do Liberalismo Ético e,<br />

finalmente, o Liberalismo Econômico expresso nas obras dos<br />

fisiocratas e na obra clássica A Riqueza das Nações de Adam Smith.<br />

O Liberalismo Político-Jurídico que será abraçado pela consciência<br />

política mineira se desenvolve a partir da formulação teórica sobre a<br />

35


liberdade (...) garantida pela ordem constitucional. São As Instituições<br />

que garantem a liberdade. O Liberal respeita as instituições e a ordem<br />

social como mantenedoras das liberdades e das garantias individuais<br />

do cidadão.” 44<br />

Pode-se então compreender que há contrastes entre a liberdade natural e a<br />

liberdade civil. Assim as noções de consenso e “pacto social” podem ser observadas no<br />

fragmento que segue, uma vez que na sociedade “o homem renuncia à sua liberdade<br />

natural e se reveste de laços sociais, concordando com os outros” 45 . Portanto, no<br />

Discurso sobre a Liberdade, os redatores do Universal consideram que:<br />

“A Liberdade é nociva, logo que não é subordinada às leis da justiça,<br />

da razão e da sociedade. O uso que dela se faz é injusto, logo que ele<br />

transpõe os limites que estas leis lhe prescreveram; é ilícito quando<br />

não se encerra nos limites assentados pelo fato social. De fato, a<br />

sociedade tendo por objeto o bem e a conservação de todos os seus<br />

membros, adquire legítimos direitos sobre cada um daqueles que<br />

desfrutam as vantagens que ela lhe ministra: em virtude destas<br />

vantagens pode ela justamente restringir a liberdade de seus membros<br />

ou regular o seu exercício: se cada um deles fizesse dela um uso<br />

ilimitado e contrário à sua natureza de ente social, faria infelizes os<br />

seus consócios e não tardaria muito em fazer-se infeliz a si mesmo. A<br />

natureza de um ente sociável lhe impõe portanto a obrigação de não<br />

procurar a sua felicidade, se não por meios que não prejudiquem o seu<br />

próximo.<br />

(...)<br />

Assim, a liberdade é a faculdade que tem um homem de fazer para seu<br />

próprio bem tudo o que permite a natureza do homem em sociedade.<br />

Esta definição servirá de distinguir a verdadeira liberdade daquela<br />

total e quimérica independência que nunca foi a partilha do homem.<br />

44 RODRIGUES, José Carlos. Idéias Filosóficas e Políticas em Minas Gerais no Século XIX. Belo<br />

Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1986. pág. 70-1.<br />

45 Idem.<br />

36


Quando a liberdade nos faz cometer ações opostas à natureza do<br />

homem e da razão e contrárias por conseguinte ao fim da sociedade,<br />

não é mais que um delírio que os nossos consócios não podem tolerar,<br />

antes as devem, por interesse de todos, as reprimir e castigar. Mas por<br />

outro lado, quando a lei nos impede de fazer o que a natureza, a razão,<br />

e o bem da sociedade exigem de nós ou nos permitem, é injusta,<br />

tirânica e excede o seu poder tendo em vista que toda lei civil só pode<br />

aplicar as leis da natureza, ou interpreta-las de modo mais conforme<br />

ao bem da sociedade.” 46<br />

No terceiro parágrafo do artigo, o redator do Universal se refere a um princípio<br />

enunciado por Montesquieu no terceiro capítulo do livro XI do Espírito das Leis 47 .<br />

Segundo Montesquieu a lei é liberadora e, quando fundada na razão, é legítima,<br />

garantido assim as liberdades políticas do cidadão. Ainda em conformidade com os<br />

postulados de Montesquieu, o redator do artigo se refere ao fato de que no estado de<br />

independência não há liberdade (o que também pode ser observado no segundo<br />

parágrafo acima citado):<br />

46 O Universal, 30/04/1827. (Apud RODRIGUES)<br />

“(...) O célebre autor do Espírito das Leis diz que, ser livre não é fazer<br />

o que se quer, mas o que se deve querer. Segundo este princípio<br />

incontestável nenhum homem sobre a terra pode pretender a total<br />

independência. Quaisquer que fossem as instituições e convenções<br />

humanas nunca elas puderam consentir que membro algum de uma<br />

sociedade gozasse de absoluta independência.<br />

(...) apesar do amor que todos os homens tem à liberdade, apesar da<br />

autenticidade dos títulos que comprovam os seus direitos, a terra está<br />

coberta de desgraçados povos, a quem altivos Senhores roubam o bem<br />

mais grato a todos os corações. Este problema pareceria indissolúvel,<br />

se a história não mostrasse que em todos os séculos foi a violência que<br />

estabeleceu a maior parte dos governos; depois a força e os artifícios<br />

47 MONTESQUIEU, Barão de la Brède e de. Do Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os<br />

Pensadores), 1ª ed., 1973.<br />

37


os mantiveram; o costume a indolência; o terror e a ignorância,<br />

debilitando as molas reais do coração humano, perverteram os homens<br />

e os envileceram em seus próprios olhos (...) O interesse dos<br />

depositários do poder, quase sempre separado do interesse da nação<br />

faz deles ordinariamente os mais cruéis inimigos da liberdade. O<br />

déspota acostumado a olhar os seus súditos como um rebanho de<br />

escravos, de que ele pode dispor à sua vontade, tem para si que as<br />

ações, até os pensamentos destes, devem ser constantemente<br />

subordinados à sua suprema vontade. Tais são os poderosos<br />

obstáculos que se opõe à liberdade dos povos.(...)” 48<br />

Segundo José Carlos Rodrigues 49 , a “elite mineira, recolhida no seu nativismo<br />

libertário, guardava antipatias profundas em relação à política portuguesa e passa a ver<br />

na pessoa do Imperador a tentativa de fazê-la renascer.” 50 O primeiro reinado esteve em<br />

crise desde que a confiança e o apoio depositados em D. Pedro I por Minas no início do<br />

processo de Independência foram colocados em questão: “entende-se que D. Pedro<br />

permanece em sua indefinição, gerando profundas desconfianças.” 51 Assim, no ano de<br />

1831, um panfleto 52 impresso na tipografia do Universal revela o caráter liberal do<br />

discurso desse periódico. Referia-se aos acontecimentos que evolveram o país quando<br />

da abdicação de Pedro I, aos sete de abril desse ano, e aos motins que ameaçaram a<br />

regência e a legitimação de Pedro II como “O Jovem Imperador Constitucional”. O<br />

panfleto demonstra a consciência dos articuladores com relação à instabilidade política<br />

da nação brasileira com a linguagem incitativa própria deste tipo de texto, contém três<br />

textos destinados aos mineiros (e aos brasileiros em geral).<br />

48 O Universal, 30/04/1827. (Apud RODRIGUES)<br />

49 RODRIGUES, José Carlos. Idéias Filosóficas e Políticas Em Minas Gerais noSéculo XIX.<br />

50 Idem. P. 95<br />

51 Ididem<br />

52 MELO E SOUZA, Manoel Ignácio de, et.all. <strong>Mineiro</strong>s ( Panfleto político).Ouro Preto: Tipografia do<br />

Universal, 1831. (Arquivo particular de Maria Alice Almeida Galo)<br />

38


O primeiro deles, escrito no Rio de Janeiro aos 15 de Julho de 1831 é assinado<br />

por José Martinianno d’Alencar, pai de José de Alencar e então presidente da<br />

Assembléia Geral. Relatam que então se encontravam no Paço Imperial, onde também<br />

se achavam “o Innocente Menino Imperador e suas Augustas Irmãs, sustentados pelo<br />

amor, e honra dos Brasileiros”. Declaram aos brasileiros que os Deputados da<br />

Assembléia Geral, solícitos em salvar a Pátria e confiantes nos sentimentos nacionais da<br />

população, estavam então constituídos em sessão permanente até de todo restabelecer-se<br />

a tranqüilidade pública e cessarem as desconfianças que atingiam o povo. O mesmo<br />

texto apela, como condição de salvação da pátria, para a confiança dos cidadãos<br />

brasileiros e dos soldados na Assembléia: “Confiai, Cidadãos, na Assembléia Geral,<br />

reuní-vos em torno d’ella: e vós Brasileiros Soldados, abraçai-vos com os bons patriotas<br />

amigos da lei; sustentai a Constituição, que a Soberania da Nação Sanccionou, e a Pátria<br />

será salva.” 53 Esse primeiro texto termina com as saudações: “Viva a Nação Brasileira.<br />

– Viva a Constituição Jurada. – Viva o nosso Jovem Imperador. – Viva o Povo<br />

Fluminense.” 54<br />

O segundo texto existente no panfleto foi escrito no Palácio do Governo do Rio<br />

de Janeiro aos 15 de julho de 1831, faz referência aos acontecimentos do dia 07 de abril<br />

deste mesmo ano e dirigia-se aos Soldados. Glorificava aqueles que estavam dispostos a<br />

defender os ideais da Pátria e retratava aqueles que pudessem se opor a tais ideais,<br />

salientando que estes últimos, se continuassem obstinados em seus erros, não poderiam<br />

mais pertencer à Nação Brasileira, pois “não é Brasileiro, quem não respeita o Governo<br />

do Brasil”. Esse fragmento do panfleto fôra assinado pelos senhores Francisco de Lima<br />

e Silva; José da Costa Carvalho; João Braulio Moniz; e Manoel José de Souza França.<br />

53 Idem.<br />

54 Ibidem.<br />

39


O terceiro texto impresso no panfleto foi escrito no Palácio do Governo de<br />

Minas Gerais aos 25 de julho de 1831 e assinado pelo então Presidente da Província,<br />

Manoel Ignacio de Melo e Souza. Esse fragmento do panfleto demonstra a importância<br />

da Província de Minas Gerais no contexto político nacional do período em questão e<br />

evidencia o compromisso da Província para com os ideais liberais então vigentes:<br />

“É pois tempo, <strong>Mineiro</strong>s, de desempenhar-mos a nossa palavra dada.<br />

Se aos honrados Fluminenses coube a glória de regenerarem nossa<br />

Nação no Memorável Dia 7 d’Abril, partilhemos a honra de cooperar-<br />

mos com elles para sufocar o monstro da anarchia, que pretende<br />

marchar a mais ditosa das Revoluções Políticas, e não será a primeira<br />

vez que os <strong>Mineiro</strong>s Corrão a afugentar das Praias do Rio de Janeiro<br />

os inimigos do Brasil. (....) Felizmente não nos falta dinheiro: temos<br />

munições, somos <strong>Mineiro</strong>s, e podemos contar com a maioria dos<br />

Brasileiros mais poderosos. Corramos pis às armas para acudir ao<br />

reclamo da Pátria ameaçada (...).” 55<br />

Segundo Nelson Werneck Sodré, a historiografia oficial transmite a impressão<br />

de que a Regência foi um período caótico. Contudo, há uma ordem nesse aparente caos.<br />

Há forças que se defrontam e lutam; e cujo surgimento é claramente associado a sólidos<br />

motivos. Considerando o período da Regência como aquele compreendido entre a<br />

Independência e a Maioridade, Sodré assinala a abdicação como o evento que divide o<br />

período em duas fases. Caracteriza a primeira fase (da Independência ao Sete de Abril)<br />

dividindo-a em dois momentos: um momento inicialmente conservador, que põe em<br />

risco a própria Independência; e um momento liberal, que leva à abdicação de Pedro I.<br />

Na segunda fase da Regência ocorre um momento liberal a que se segue um momento<br />

conservador. Sodré considera então a justaposição dos dois momentos liberais (o último<br />

da primeira fase e o primeiro da segunda fase) como a continuidade do avanço liberal,<br />

40


cujo ápice é o Sete de Abril; uma vez que as forças conservadoras retomariam seu<br />

avanço ao alcançarem a vitória da Maioridade. Evento este que encerra o período de<br />

Regência e inaugura uma longa fase do Segundo Império “em que a historiografia<br />

oficial vê sempre a ordem, a democracia, o desenvolvimento, quando, na verdade, foi a<br />

mais apagada, a mais estreita, a mais atrasada de nossa história desde a autonomia.” 56<br />

Portando, Sodré considera então que a grande época, ao contrário do que diz a<br />

historiografia oficial, é aquela de ascensão liberal, na qual os valores nacionais se<br />

afirmaram, que proporcionou a existência de uma imprensa peculiar. É nessa época que<br />

os brasileiros da corrente liberal, que conjuga Independência com Liberdade, levantam-<br />

se contra o perigo corrido pela Independência na primeira fase da regência (Sete de<br />

Setembro a Sete de Abril). “Daí o surto nativista, o ódio ao português, a crítica<br />

implacável, a oposição virulenta.” 57<br />

Nesse sentido, José Murilo de Carvalho considera que as reivindicações<br />

localistas retornaram com força plena após a abdicação de Pedro I, em 1831. “Mais do<br />

que em 1822, era agora o momento para escolher os caminhos da nação.” 58 José Murilo<br />

considera ainda que um grande indicativo das dificuldades em estabelecer um sistema<br />

nacional de dominação com base na solução monárquica encontra-se nas rebeliões<br />

regenciais. Divide as rebeliões do período em dois grandes grupos considerando que a<br />

primeira onda de revoltas 59 ocorreu de 1831 a 1835 e traduziu a inquietação da<br />

55 Idem Ibidem.<br />

56 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. [atualizada] Rio de Janeiro: Mauad,<br />

1999. p. 84-6.<br />

57 Idem. p. 85<br />

58 CARVALHO. José Murilo. Pontos e Bordados: escritos de história política. Belo Horizonte: Editora<br />

UFMG, 1998. p.164<br />

59 Seis rebeliões na Corte (Rio de Janeiro, 1831-2); Setembrizada e Novembrada (Recife, 1831); Abrilada<br />

(Pernambuco, 1832); Pinto Madeira (Ceará, 1831-2); Cabanos (Pernambuco/Alagoas, 1832-5); Crise<br />

Federalista (Salvador, 1832-3); Sedição de Ouro Preto (1833, Ouro Preto); Carneirada (Recife, 1834-<br />

5); Revolta dos Malês (Salvador, 1835).<br />

41


população urbana nas principais capitais. Os levantes “tinham caráter<br />

predominantemente popular e nativista” 60 . A população urbana, aliada à tropa de<br />

primeira linha, protestava contra: o alto custo de vida; a desvalorização da moeda – o<br />

que causava o encarecimento das importações; e a invasão de moedas falsas. A segunda<br />

onda 61 , de 1835 a 1848, teve caráter diverso da primeira. Segundo José Murilo de<br />

Carvalho, “descentralizado o poder através do Ato Adicional (1834), o conflito também<br />

se descentralizou e se deslocou para o interior (...) e revelou perigos muito mais graves<br />

tanto para a ordem pública como para a própria sobrevivência do país” 62 . Em 1840 foi<br />

reinterpretado o Ato Adicional de 1834; e em 1841 ocorreu a reforma do Código de<br />

Processo Criminal (1832). Com a Maioridade, em 1840, voltou também a funcionar<br />

plenamente o Poder Moderador e foi restabelecido o Conselho de Estado, extinto pelo<br />

Ato Adicional. José Murilo de Carvalho considera ainda que, em 1842, os liberais se<br />

revoltam contra essas leis. O que se torna compreensível ao passo que essas medidas<br />

“representam um retrocesso (...) e conferiram ao governo central e às elites nacionais<br />

um poder que jamais havia tido” 63 .<br />

Durante a segunda onda de revoltas apontada por Carvalho, ocorre a publicação<br />

da obra Corografia Histórica da Província de Minas Gerais (1837), da autoria de<br />

Raimundo José da Cunha Matos 64 . Este salienta que a educação doméstica apresentou<br />

melhorias com o crescimento populacional “e com o desenvolvimento dos talentos com<br />

que a natureza favoreceu os mineiros, tanto para as ciências quanto para as artes<br />

60 CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras. p. 13.<br />

61 Cabanagem (Pará, 1835-40); Farroupilha (R.G. do Sul, 1835-45); Sabinada (Salvador, 1837-38);<br />

Balaiada (Maranhão, 1838-41); Revolução Liberal (São Paulo/Rio de Janeiro, 1842); Revolução<br />

Liberal (Minas Gerais, 1842); Praieira (Pernambuco, 1848-49).<br />

62 CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras. p. 14.<br />

63 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos.7ª ed. São Paulo: UNESP,<br />

1999. p. 155.<br />

64 Cunha Matos será posteriormente referido pelos redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> na edição deste<br />

periódico datada de 01 de junho de 1845.<br />

42


liberais.” 65 Os homens abandonaram a ociosidade a que os sujeitava o antigo governo,<br />

passando a tomar interesse pelos negócios políticos da sua pátria; e o grande número de<br />

periódicos que eram impressos em Minas Gerais influenciava a juventude mineira a se<br />

instruir e a ser útil aos seus concidadãos. 66 Assim, “o papel das cidades mineiras se faria<br />

sentir nos acontecimentos de 1842 como a confirmação de independência e de<br />

consciência política. (...)” 67 A Revolução de 1842 representa o amadurecimento da<br />

consciência mineira 68 e mostraria a inviabilidade do radicalismo político. A partir de<br />

então seria favorecida a difusão de idéias moderadas e conciliatórias. José Feliciano<br />

Pinto Coelho, chefe dos revoltosos mineiros de 1842, “não parecia muito animado a<br />

deixar-se conduzir pelo radicalismo (...) O movimento de 42 terá mostrado aos<br />

65 MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia Histórica da Província de Minas Gerais (1837). Belo<br />

Horizonte: Ed. Itatiaia. São Paulo: Ed. da USP, 1981. p.89.<br />

66 De acordo com documentos organizados em 1826 e fornecidos pelo Sr. Baptista Caetano de Almeida<br />

(então membro do Corpo Legislativo da Província de Minas Gerais), Cunha Matos avalia o progresso<br />

dos estabelecimentos literários (de ensino) da província e dá a conhecer os que houveram desde 1772 -<br />

quando foram criadas novas aulas pelo fato de se haver começado a receber, desde janeiro desse ano, o<br />

subsídio literário determinado pela Carta Régia de 17 de Outubro de 1773, que teve por base a lei de 06<br />

e o alvará de 10 de Novembro do ano antecedente. Essas novas aulas foram: as de “Primeiras Letras”<br />

em Vila Rica, Mariana, Sabará e São João del-Rei; as de “Gramatica Latina” em Mariana, Vila Rica e<br />

São João del-Rei; e uma de Retórica em Mariana. No ano de 1826 existiam 1.358 alunos nas aulas<br />

públicas da província: 1.107 alunos de Primeiras Letras; 233 de Latim; 09 de Filosofia; 03 de Anatomia<br />

e 06 de Desenho. Nesse mesmo ano existiam nos dois seminários e em aulas particulares: 2.940 alunos<br />

de Primeiras Letras; 68 de Latim; e 07 de Filosofia. Quanto ao Ensino Público em Minas Gerais, Cunha<br />

Matos diz existirem por conta da Fazenda Nacional no ano de 1831: 01 cadeira de Filosofia Racional;<br />

01 de Anatomia; 46 de Primeiras Letras; e 46 de Língua Latina. Os professores de Filosofia e Anatomia<br />

ensinavam em Ouro Preto. Os professores de Latim em Mariana, Ouro Preto, São João del-Rei, Sabará,<br />

Vila do Príncipe, Campanha da Princesa, São José, Pintanguí, Caeté, Baependí, Paracatu, Bom Sucesso<br />

de Minas Novas, Guarapiranga, Conceição do Mato Dentro, São Gonçalo do Rio Preto, Queluz,<br />

Barbacena, Tamanduá, Jacuí, Congonhas do Campo, Santa Bárbara, São Miguel, Curral del-rei,<br />

Sumidouro, Pomba, Catas altas de Mato Dentro, Rio Vermelho, Brejo do Salgado, Inficionado, Tábua<br />

de Mato Dentro, Itaverava, Itabira do Campo, Antonio Dias Abaixo, Tejuco, São José da Barra Longa,<br />

Barra do Bacalhau, Santa Quitéria, São Domingos, Oliveira e Campo Belo. Os que lecionavam<br />

Primeiras Letras, em Ouro Preto, Mariana, Sabará, Campanha, Pitangui, Santa Luzia, Forquim, São<br />

Romão, São João Batista do Presídio e Ponte Nova. Para a educação das meninas haviam duas mestras<br />

de Primeiras Letras em São João del-Rei e Baependí. Havia ainda, pelo sistema mútuo de ensino, no<br />

Seminário de Nossa Senhora Mãe dos Homens da Serra do Caraça, dirigido pelos padres da<br />

Congregação da Missão, professores de Primeiras Letras, Música, Latim, Francês, Filosofia, Geografia,<br />

Matemática e Retórica. A Fazenda Nacional subministrava 100$000rs anuais a esta casa religiosa. Em<br />

1839 foi fundada, em Ouro Preto, a primeira Escola de Farmácia do Brasil.<br />

67 RODRIGUES, José Carlos. Idéias Filosóficas e Plíticas em Minas Gerais no Século XIX .p. 95<br />

68 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Ensaios sobre o ciclo do Ouro. Belo Horizonte: Imprensa<br />

Universitária, UFMG, 1978.<br />

43


emanescentes do radicalismo o caminho da maturidade em vista da inviabilidade de um<br />

projeto radical” 69 . Desse modo, como uma prova elucidativa do novo momento que se<br />

inaugura na política brasileira, surge em Ouro Preto (1849/1851) o jornal O<br />

Conciliador, periódico dotado de preciosos objetivos conciliatórios. “Seu objetivo teria<br />

sido preparar o ambiente para uma conciliação política e combater os remanescentes<br />

radicais que teimavam em impor o republicanismo, representado pelos jornais O<br />

Itamontino e O Apóstolo” 70 .<br />

Embora Emília Viotti da Costa considere que, durante os anos de “1831 a 1848,<br />

a retórica liberal radical continuou a ser usada pelos líderes revolucionários para<br />

justificar a rebelião” 71 , José Carlos Rodrigues aponta para o fato de que:<br />

“O longo percurso feito pelos teóricos e políticos mineiros, no terreno<br />

das idéias filosóficas, políticas e no plano estético, proporcionará<br />

elementos suficientes para afirmarmos que a maturidade da<br />

consciência mineira se inicia já no final da primeira metade do século<br />

XIX, quando reconquista a unidade e apresenta-se com projeto<br />

definido. É justamente a projeção da unidade da consciência que irá<br />

possibilitar o desenvolvimento da temática da conciliação, idéia<br />

vitoriosa a partir da segunda metade do século XIX” 72 .<br />

Após este pequeno panorama dos primórdios da imprensa mineira, tornam-se<br />

mais evidentes as relações existentes entre a política e a imprensa. Verifica-se que os<br />

meios de comunicação impressos interagiram na complexidade do contexto sócio-<br />

político de Minas Gerais na primeira metade do século XIX. O Papel da política mineira<br />

na formação da própria consciência de nacionalidade, identificada com os ideais liberais<br />

69 RODRIGUES, José Carlos. Idéias Filosóficas e Políticas em Minas Gerais no Século XIX .p. 96<br />

70 Idem. pp. 98-9<br />

71 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos.7ª ed. São Paulo: UNESP,<br />

1999. p.156 A autora considera que a “cooperação entre partidos, conhecida como a Conciliação,<br />

começou em 1852 e durou cerca de dez anos”(p.158)<br />

72 RODRIGUES, José Carlos. Idéias Filosóficas e Plíticas em Minas Gerais no Século XIX .p. 97<br />

44


fortemente impregnados na consciência mineira, permitiu à imprensa periódica o debate<br />

político e a emergência das variantes do liberalismo, em especial o radicalismo político.<br />

Mas percebe-se também que o o radicalismo começa a declinar em Minas Gerais após a<br />

revolução de 1842; e que, a partir de 1849, a imprensa mineira começa a expressar o<br />

discurso de uma tendência conciliatória na política nacional.<br />

Até 1850 ainda foram editados em Vila Rica a Gazeta de Minas; O Correio de<br />

Minas; O Compilador; O Legalista; O Atheneu Popular; O Publicador <strong>Mineiro</strong>; O<br />

Itacolomi; O Echo de Minas; O Conciliador; Apóstolo; O Itamontino; O Povo; e O<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Na Cidade de Mariana, O Homem Social; O Revisador; e O<br />

Romano.<br />

No capítulo seguinte pontuaremos e analisaremos a relação entre O <strong>Recreador</strong><br />

<strong>Mineiro</strong> (1845-8) e a transmissão do pensamento liberal em Minas Gerais durante o<br />

período que precede as manifestações conciliatórias. Para tal, definiremos um corpus<br />

que se constituirá de artigos editoriais, visando a perceber a intenção, por parte dos<br />

redatores, de imbuir o público leitor de um modo ilustrado, liberal e burguês de<br />

pensamento. Observar-se-á também como os redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> atribuíam<br />

à literatura a função ancilar de letramento, como instrumento para a execução da<br />

manutenção social proposta pelo periódico.<br />

45


2 – Polifonia Romântica em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

“polifonia (...) 3 MÚS efeito que resulta do conjunto harmônico de<br />

instrumentos ou vozes que soam simultaneamente (...) ETIM gr. ‘som<br />

de muitas vozes ou instrumentos; variedade de linguagem’ (...)”<br />

(Dicionário Houaiss da língua portuguesa)<br />

2.1 – Romantismo, Liberalismo e Letramento em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

Durante a primeira metade do século XIX a circulação de periódicos em Minas<br />

Gerais ocorria predominantemente pela publicação de jornais. Cerca de 49,2% destes<br />

periódicos foram produzidos em Ouro Preto 73 – o que se deve ao fato de ter sido esta<br />

cidade a capital e o centro administrativo da província na maior parte desse século. Tais<br />

periódicos, em sua maioria, eram de cunho político-doutrinário. Segundo Maria<br />

Francelina Drummond, apenas por volta de 1840 “surgem os periódicos (...) que<br />

começaram a refletir a diferenciação entre o discurso político e literário” 74 (não<br />

concordamos com o termo refletir, preferindo entender a ação através do verbo<br />

expressar). O primeiro deles, de acordo com a autora, é o Athenêo Popular, editado a<br />

partir de 1843 pelo Padre Antonio de Souza Braga e redigido por Bernardo Xavier Pinto<br />

de Souza, posteriormente fundador do periódico O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Apenas a partir<br />

de 1845, através desse periódico, a Literatura passa a ser o foco da abordagem.<br />

73 REIS, Liana Maria. Escravos e Abolicionismo na Imprensa Mineira (1850/1888), p.228.<br />

74 DRUMMOND, Maria Francelina S. Ibrahim. O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> ( 1845-8 ): rastros do leitor e da<br />

leitura na primeira revista literária de Minas Gerais. Dissertação de mestrado em Teoria Literária –<br />

Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, 1995. p. 21.<br />

46


Durante o período romântico efervescem ainda as Luzes e a crença no poder<br />

exemplar e didático da razão natural, fazendo com que o discurso histórico sofra<br />

mudanças revolucionárias, deixando de ser descritivo para se tornar interpretativo e<br />

formativo. Integra-se ao estudo do desenvolvimento dos povos, de sua cultura erudita e<br />

popular, de seu espírito coletivo e nacional, de suas instituições. “O direito, a moral, a<br />

arte, assim coma a ciência e a filosofia, devem ser explicados a partir de um princípio<br />

único, a razão”. 75 Segundo Bornheim, o direito é, em seu desdobramento histórico, “o<br />

instrumento com que se forja a liberdade”. Desse modo, o progresso das instituições<br />

jurídicas se caracterizaria como o progresso da própria liberdade através da história. E<br />

de acordo com Reynold, o “Romantismo é um movimento muito mais vasto que uma<br />

simples revolução literária.(...) há um romantismo político, social, religioso. Encontra-se<br />

o Romantismo até nas ciências e até na vida econômica. Encontra-se na metafísica,<br />

assim como na psicologia. O Romantismo vai da arte à História.” 76 · Percebemos com<br />

isso a variedade de linguagens e instrumentos envolvidos no projeto romântico,<br />

podendo considerá-lo, sob este aspecto, polifônico.<br />

Enquanto periódico que inaugura a abordagem literária na imprensa mineira, O<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> pode ser considerado polifônico não apenas por estar integrado a um<br />

projeto romântico com fortes bases liberais, mas também pelo fato de que a transmissão<br />

do discurso de outrem sem a identificação das respectivas fontes ou sem a remissão ao<br />

sujeitos que enunciaram tais idéias caracteriza o periódico como um suporte para a<br />

transmissão de um discurso polifônico, dotado de uma multiplicidade de vozes que<br />

soam simultaneamente.<br />

75 BORNHEIM, Gerd. Filosofia do Romantismo. In: O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva,<br />

1978. GUINSBURG, J.(Org) p. 79.<br />

47


E para um melhor e mais claro delineamento do conceito de polifonia adotado<br />

como referencial teórico neste estudo, nos desviaremos um pouco da análise do objeto<br />

para nos atermos à delimitação do aspecto polifônico que procuraremos observar em O<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Procederemos então a uma breve exposição de alguns elementos<br />

concernentes à análise do discurso.<br />

Primeiramente devemos aqui aludir a Oswald Ducrot, em seu Esboço de uma<br />

Teoria Polifônica da Enunciação 77 , no que diz respeito ao fato de que cada enunciado<br />

pode possuir uma multiplicidade de vozes que o precedem e que soam simultaneamente<br />

em um novo enunciado. Observemos, ainda segundo Ducrot, a distinção entre locutor<br />

(ser discursivo) e sujeito falante (ser empírico) para que possamos então atribuir aos<br />

76 REYNOLD, Gonzague de. L’Europe Tragique. 2ª Ed., Paris: Spes, 1935, p. 115. Apud ELIA, Sílvio.<br />

Romantismo e Lingüística. In: In: O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. GUINSBURG,<br />

J.(Org)<br />

77 DUCROT, Oswald. Esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação. In: O Dizer e o Dito. Revisão<br />

técnica da tradução: Eduardo Guimarães. Campinas, SP: Pontes, 1987. P.161 – 218.<br />

Em seu Esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação, Oswald Ducrot contesta e substitui o postulado da<br />

lingüística moderna de que cada enunciado possui um, e somente um autor: a unicidade do sujeito falante. Ducrot<br />

define a disciplina na qual se situam suas pesquisas chamando-a de Pragmática Semântica, ou Pragmática<br />

Lingüística. Termo este que designa, as investigações que dizem respeito à ação humana realizada pela linguagem,<br />

indicando suas condições e seu alcance. Seu objeto é dar conta do que, segundo o enunciado, é feito pela fala.<br />

Segundo Ducrot, o enunciado se distingue rigorosamente da frase por poder ser tomado pelo lingüista como<br />

observável, considerado como uma manifestação particular. Em correlação com a oposição da frase e do<br />

enunciado, Ducrot introduz a diferença entre significação e sentido, falando da significação de uma frase para<br />

caracterizá-la semanticamente, e reservando o termo sentido para a caracterização semântica do enunciado. A<br />

concepção de sentido consiste em considerá-lo como uma descrição da enunciação. E uma vez que o autor<br />

considera que o enunciado pode ser compreendido como fragmento de discurso, considera também o discurso<br />

como um fenômeno observável, constituído de uma seqüência linear de enunciados. Ainda deve ser distinguida da<br />

frase e do enunciado a enunciação. Termo ao qual Ducrot atribui três acepções, das quais toma a terceira como<br />

referência para seus estudos: 1) designar a atividade psico-fisiológica implicada pela produção do enunciado; 2)<br />

pode ser o produto da atividade do sujeito falante – o enunciado; e 3) o acontecimento constituído pelo<br />

aparecimento de um enunciado. A essa “aparição momentânea”, Ducrot chama enunciação, sem fazer intervir em<br />

sua caracterização a noção de ato. Portanto, para Ducrot o sentido de um enunciado é a descrição de sua<br />

enunciação, que consiste (além dos aspectos argumentativos, ilocutórios e relativos às causas da fala) em indicações<br />

que o enunciado apresenta, no seu próprio sentido, sobre o (os) autor (es) eventual (is) da enunciação. Ducrot<br />

defende que é necessário distinguir, entre esses sujeitos, pelo menos dois tipos de personagens: os enunciadores e<br />

os locutores. O enunciador é aquele que é considerado como se expressando através da enunciação, sem que para<br />

tanto sejam a ele atribuídas palavras precisas; se ele fala é somente no sentido em que a enunciação é vista como<br />

expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não no sentido material do termo, suas palavras.<br />

Ducrot fala em locutores (no plural) não para cobrir os casos em que o enunciado é referido a uma voz coletiva (por<br />

exemplo quando um artigo tem dois autores, que se designam coletivamente por ‘nós’); o que motiva o plural é a<br />

existência, para certos enunciados, de uma pluralidade de responsáveis. O Locutor (ser discursivo) distingue-se do<br />

sujeito falante (ser empírico).<br />

48


edatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> a condição de locutores, de transmissores de um<br />

discurso polifônico.<br />

Faz-se aqui também necessária a referência à obra Marxismo e Filosofia da<br />

Linguagem, na qual Mikhail Bakhtin considera que a língua é, como para Saussure, um<br />

fato social, cuja existência se funda na necessidade da comunicação; estando assim a<br />

fala “indissoluvelmente ligada às condições da comunicação e às estruturas sociais”. 78<br />

No capítulo O ‘discurso de outrem’, buscando ainda demonstrar a natureza social e não<br />

individual das variações estilísticas, Bakhtin considera que a maneira de integrar ‘o<br />

discurso de outrem’ no contexto narrativo reflete (nos termos do autor) as tendências<br />

sociais da interação verbal numa época e num grupo social dado. Faz–se conveniente,<br />

então, levar em conta que há diferenças essenciais entre a recepção ativa da enunciação<br />

de outrem e sua transmissão no interior de um contexto, uma vez que toda transmissão,<br />

particularmente sob forma escrita, tem seu fim específico e leva em conta uma terceira<br />

pessoa: a quem estão sendo transmitas as enunciações citadas. Segundo Bakhtin:<br />

“Essa orientação para uma terceira pessoa é de primordial<br />

importância: ela reforça a influência das forças sociais organizadas<br />

sobre o modo de apreensão do discurso.<br />

(...) Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo,<br />

privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras<br />

interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o ‘fundo<br />

78 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem.Tradução de Michel Lahaud e Iara Frateschi Vieira. São<br />

Paulo: Hucitec, 1995. pp.14; 16- 8; 95-6; 112; 121; 126-7<br />

Segundo Bakhtin, toda enunciação, por fazer parte de um processo de comunicação ininterrupto, é um elemento do<br />

diálogo – englobando as produções escritas. Desse modo, a enunciação é de natureza social, portanto ideológica;<br />

não existindo fora de um contexto social – já que cada locutor tem um ‘horizonte social’ e há sempre um<br />

interlocutor, ao menos potencial. Observando a enunciação como realidade da língua e como estrutura sócioideológica,<br />

a palavra veicula de maneira privilegiada a ideologia e é um ‘indicador’ das mudanças. Bakhtin define a<br />

língua como expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao mesmo<br />

tempo, de instrumento e de material. Desse modo, no capítulo Língua, fala e enunciação, Bakhtin considera que a<br />

palavra está sempre carregada de um conteúdo ou sentido ideológico ou vivencial, e que reagimos somente àquelas<br />

que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. A língua, portanto, no seu uso prático, é<br />

inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida; e a enunciação é o produto da interação de dois<br />

indivíduos socialmente organizados. Portanto, o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é<br />

interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo. Assim Bakhtin define a enunciação<br />

como realidade da linguagem e como estrutura sócio-ideológica. A estrutura da enunciação é uma estrutura<br />

puramente social.<br />

49


perceptivo’, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí<br />

que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior. A<br />

palavra vai à palavra. É no quadro do discurso interior que se efetua<br />

apreensão da enunciação de outrem, sua compreensão e sua<br />

apreciação, isto é a orientação ativa do falante.” 79<br />

Desse modo, Bakhtin considera que as condições da comunicação verbal, suas<br />

formas e seus métodos de diferenciação são determinados pelas condições sociais e<br />

econômicas da época. Alem disso, as formas pelas quais a língua registra as impressões<br />

do discurso de outrem e da personalidade do locutor, os tipos de comunicação sócio-<br />

ideológica em transformação no curso da história manifestam-se com um relevo<br />

especial. 80 Vejamos, finalmente, como a polifonia romântica se manifestou em o<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>; e como este periódico se caracterizou como um suporte para a<br />

enunciação de um discurso polifônico.<br />

Publicados quinzenalmente entre 1 o de janeiro de 1845 e 15 de junho de 1848<br />

pela “Tipographia Imparcial de Bernardo Xavier Pinto de Souza”, os 84 números do<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> foram divididos em sete tomos por Bernardo Xavier, responsável<br />

pela fundação, direção e edição desse periódico. Em consonância com a vastidão de<br />

campos intelectuais abarcados pela proposta romântica, pelo método, segundo os<br />

redatores “scientifico”, das divisões e subdivisões que organizam os seis “índices<br />

clássicos” dos tomos do <strong>Recreador</strong>, depreende-se quais eram as propriedades da matéria<br />

e doutrina desse “Periodico Litterario”, no qual foram publicados “tractados de<br />

agricultura, e industria, scintillando dictames de economia classica, riqueza, e<br />

prosperidade provincial.” Cada tomo do <strong>Recreador</strong> foi dividido em três seções.<br />

79 Idem. pp.146-7<br />

80 Ibidem p.154.<br />

50


Na primeira delas, intitulada “Memória”, é abordada a “História” através de<br />

textos indexados por assuntos como: “Descrição Physica e Política”, “Trigonometria”,<br />

“Topographia”, “Hydrographia”, “Estatística”, "Chronologia”, “Chronica Judiciaria”,<br />

“Historia Moderna”, “Moral pela Historia”, “Usos dos Povos”, “Biographia”,<br />

“Etymologia Historica”, “Medicina Terapeutica”, “Influxo Moral”, “Agricultura”,<br />

“Belas-Artes”, “Economia Domestica”, “Folhetins”, “Fabula”, “Historiographia” e<br />

“Anedoctas”.<br />

Na segunda seção, intitulada “Razão”, é abordada a “Philosophia” através de<br />

textos indexados pelos assuntos: “Moral”, “Critica”, “Maximas”, “Meditações”,<br />

“Pedagogica”, “Physica”, “Philologia”, “Etymologia Grammatical” e “Decifração”.<br />

Por sua vez, a terceira seção, dedicada à “Imaginação”, contém cantigas e poesia<br />

nos gêneros épico e lírico, com temática variada, abordando assuntos que giram em<br />

torno de aspectos culturais, religiosos e sociais de Minas e do mundo.<br />

Em consonância com as formas Ilustradas, O <strong>Recreador</strong> procurou fundir o<br />

cidadão, o intelectual e o político através de um critério de identidade e dignidade pela<br />

participação nos grandes problemas sociais. Abordando aspectos da vida cotidiana e<br />

privada através de matérias de cunho científico, histórico, filosófico e literário,<br />

propunha resgatar e manter a tradição literária mineira sob o prisma da ilustração e do<br />

uso da razão.<br />

Os ideais da Ilustração impeliram as energias para os gêneros públicos,<br />

suscitando oradores e jornalistas. É condizente ressaltar que tais gêneros foram de<br />

extrema importância para a formação de um público médio consumidor de literatura.<br />

Foi como orador e jornalista que o intelectual definiu então, em grande parte, a sua<br />

posição. Tais homens tinham forte crença na virtude quase máxima do saber,<br />

considerando a instrução como principal alavanca de transformação do ser humano. O<br />

51


engajamento com motivos da Ilustração (como a universalidade da cultura; identidade<br />

fundamental do espírito humano no tempo e no espaço; valor humano da cultura<br />

clássica e a função ancilar da Literatura como divulgadora da ciência e da técnica – as<br />

Artes – e como atividade recreativa) pode ser percebido através de vários artigos<br />

existentes ao longo da publicação do <strong>Recreador</strong>.<br />

Preconiza-se a literatura em torno de problemas sociais, inclusive os do<br />

proletariado. Percebe-se ainda que a literatura procura, através de gêneros como o<br />

Jornalismo, formar uma consciência social. Assim, no artigo Philosophia da vida social,<br />

ou arte de agradar no mundo 81 , os redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> discutem questões<br />

concernentes à sociabilidade dos indivíduos através da transmissão de fundamentos<br />

éticos do liberalismo. Notaremos, a seguir, como tais fundamentos foram também<br />

transmitidos pelos redatores em outros artigos.<br />

No primeiro número do <strong>Recreador</strong>, datado de 1º de janeiro de 1845, a<br />

apresentação dos Redactores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> ao Público 82 procura dar a entender<br />

o estado em que se encontrava a sociedade mineira no momento em que ocorria o<br />

processo de separação entre a vida privada e a vida pública. Segundo os redatores,<br />

naquele “estado da humana sociedade”, duas grandes divisões se apresentavam: uma<br />

determinada pela vida pública, outra, pela vida privada. Esta relação simultânea,<br />

submetendo o homem à intensidade de gravosos deveres, transportava-o a momentos de<br />

depressão e de fadiga, imprimindo-lhe um enojo mental e físico que, por determinado<br />

número de instantes, o condenava à inércia social. Questionavam qual caminho natural<br />

se oferecia, então, na presença das fadigas, ao trilho do indivíduo público, ou do<br />

indivíduo privado, considerando que ninguém se subtrairia a reconhecer “que a<br />

81 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo II. págs. 377-9<br />

52


passagem para os allivios d’alma, ou a transferencia para o prazer dos sentidos é esse<br />

vehiculo grato, e jucundo da serenidade da vida.”<br />

Luminosamente convencidos de suas premissas, os redatores pretendiam fazer<br />

do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> o antídoto contra esse estado de aparente inércia e prostração, e<br />

contra o enojo mental e psíquico. Desse modo balizam a relação do periódico no que diz<br />

respeito à divisão entre a vida pública e a vida privada, julgando, portanto, serem<br />

eficazes seus “votos aos meios recreativos do espírito, quaes aos pomos dulcíssimos<br />

das Artes, da Literatura, e da Phylosophya”, e inaugurando como timbre de sua empresa<br />

“o enlace do delito com os oráculos da sciência”.<br />

De acordo com a lista de assinantes publicada na edição de 01 de janeiro de<br />

1846, a revista contava, no segundo ano de sua publicação, com 723 assinantes, entre<br />

homens e mulheres de várias localidades, inclusive Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito<br />

Santo, Lisboa e Paris, sem se considerarem os leitores avulsos. Ainda no primeiro<br />

número, o artigo Contextura de hum Periódico Litterário Popular 83 , publicado na<br />

subseção Pedagogica da seção Razão, demonstra a consciência e a convicção dos<br />

redatores de “O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>” com relação à atividade por eles desenvolvida e<br />

com relação à educação da população e à formação de um público consumidor.<br />

Considerando a palavra “popular” como algo coletivo – que exprime uma<br />

reunião de homens dotados de diferentes caracteres intelectuais – e as “letras” como o<br />

alimento do espírito, os redatores declaram que cumpria, pois, conhecer quanto o<br />

espírito de um povo poderia comportar de alimento intelectual. Desse modo, a<br />

“differença de inteligência” (nos termos dos redatores) faz com que os redatores<br />

determinem três classes à totalidade dos leitores:<br />

82 O RECREADOR MINEIRO. Ouro Preto: Typographia Imparcial de Bernardo Xavier Pinto de Souza,<br />

1845-1848. Tomos I. p.01.<br />

53


“ 1a A dos que procurão unicamente as luzes da instrucção<br />

considerada em si só; esta classe é pouco numerosa. 2a A dos que<br />

amão a instrucção recreando-se; esta classe é mais numerosa. 3a A dos<br />

que buscão na leitura o tedio, que os domina, e que só se agradão de<br />

materias frivolas; esta classe é com effeito de morbida compleição, e<br />

de difficil restabelecimento. Com tudo, ella não é digna de desamparo;<br />

e talvez, que adquirindo o habito da leitura, possa ganhar o amor dos<br />

conhecimentos solidos, permutando o superficial.” 84<br />

Nas linhas que se seguem à citação acima, declaram que, um periódico de<br />

instrução popular não conseguiria alcançar sua meta se acaso não abarcasse tais classes<br />

de leitores, pois, a terceira classe não comportaria os alimentos da primeira, nem os da<br />

segunda; esta, não só rejeita a tenuidade de que se satisfaz a terceira, como também não<br />

lhe seria possível assimilar ainda os sólidos conhecimentos que nutrem a primeira, a<br />

qual procuraria somente receber a substância na proporção da sua robustez. Disso,<br />

concluem que todo periódico destinado à instrução pública sentiria a perda de seus<br />

esforços se, por ventura, abandonasse a graduada escala da inteligência para percorrer<br />

somente a linha de um nível privativo.<br />

Assim, traçadas as três escalas intelectuais do público e o problema de<br />

contextura e organização com que o <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> deveria se manifestar perante os<br />

seus leitores, percebe-se que esse periódico tinha por interesse atingir a um público<br />

diverso, atendendo aqueles que valorizavam as luzes da instrução e funcionando como<br />

formador de mentalidade entre aqueles que não encontravam no hábito da leitura o<br />

prazer de se instruírem, intencionando fazer com que estes últimos pudessem um dia<br />

atingir o nível de “inteligência” daqueles primeiros. Por conseguinte, os redatores do<br />

83 Idem. N º1, TomoI. p.02.<br />

84 Ibidem.<br />

54


<strong>Recreador</strong> convencem-se da necessidade de seus passos não só pelos domínios da<br />

literatura e das ciências, mas, também, “pelas regiões do jocoseiro, e da hilaridade”.<br />

Essa preocupação com a instrução popular enquanto alimento do espírito pode<br />

ser melhor observada no artigo Instrução Popular 85 , publicado no segundo número de O<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, datado de 15 de janeiro de 1845. Nesse artigo, os redatores do<br />

<strong>Recreador</strong> observam que uma explicação muito simples basta para demonstrar a<br />

necessidade e a utilidade da instrução popular: consideram que o homem é ligado a<br />

deveres e obrigações porque é um ser moral; e o é por ser dotado de inteligência. Assim,<br />

os deveres do homem nascem e morrem com a sua inteligência; contudo, o insensato<br />

não tem deveres, nem o bruto.<br />

Segundo os redatores, se o homem perde o uso da razão, os seus deveres cessam<br />

ou ficam suspensos; e só renascem quando este recobra o seu juízo e a sua inteligência.<br />

Assim, “para que o homem conheça, e possa cumprir os seus deveres, requer-se um<br />

certo gráo de cultura em suas faculdades.” De outro modo, “nunca elle poderá bem<br />

governar a sua casa, nem educar convenientemente os seus filhos, nem dar prudentes<br />

regulamentos e conselhos á sua familia, ou prestar aos seus semelhantes os serviços que<br />

delle devem esperar(...)”<br />

Cometeria, pois, de acordo com os redatores, um perigoso erro e um grande<br />

crime quem se opusesse a esta tão necessária e tão fácil cultura. Convinha, pois, antes<br />

aconselhá-la, promovê-la, favorecê-la, trabalhando incessantemente na instrução de<br />

todos os homens, sem exceção alguma, e derramando a luz dos conhecimentos úteis, de<br />

maneira que a sua benéfica influência chegasse a todas as classes da sociedade.<br />

Contudo, fazem os redatores a seguinte ressalva, que indica os limites das liberdades<br />

85 Instrução Popular. In: O RECREADOR MINEIRO. Ouro Preto: Typographia Imparcial de Bernardo<br />

Xavier Pinto de Souza, 1845-1848. Tomo I.. nº02, 15/01/1845. p. 08.<br />

55


que os indivíduos poderiam alcançar, com a finalidade de não confundir “as idéias que<br />

estas palavras exprimem”:<br />

“Quando desejamos, por exemplo, que os homens destinados para o<br />

exercicio da lavoura, para as artes fabris, para os varios misteres da<br />

sociedade, ‘saibão ler’, não queremos que elles se habilitem para ler<br />

muitos livros, para gastar nisto a vida, para virem a ser grandes<br />

letrados: não pretendemos encher o mundo de sabios e eruditos.<br />

Cumpre ter ideias mais justas da instrucção que recebemos, e dos<br />

resultados que della pretendemos obter. O nosso fim é tão somente<br />

que cada individuo tenha os meios de empregar, com maior proveito<br />

seu e da Sociedade, as faculdades que Deos o concedeo; que tenha os<br />

recursos que póde precisar em qualquer situação em que a Providencia<br />

haja de o colocar.” 86<br />

Os meninos pobres que freqüentassem as escolas elementares, diziam os<br />

redatores, tirariam desde logo a grande vantagem de se livrarem da ociosidade, da<br />

distração e “dissipação do espirito”, dos perigos de uma vida vaga e desocupada, da<br />

inclinação ao jogo e aos folguedos daquela idade. Ao mesmo tempo, iriam contraindo o<br />

hábito da aplicação da ordem, da obediência, do amor ao trabalho, da piedade e da<br />

recíproca afeição de uns para com os outros. Além disso, acreditavam os redatores que<br />

a simples instrução de ler, escrever e contar desenvolveria nos meninos as faculdades, e<br />

lhes daria um certo grau de cultura moral. Assim, o hábito da leitura influenciaria<br />

pouco a pouco nos costumes e seria um dos meios de evitar os vícios que acompanham<br />

a ociosidade; os indivíduos teriam mais juízo e mais probidade, valendo,<br />

“conseqüentemente, um pouco mais do que dantes.”<br />

Percebe-se então, nesse artigo, a preocupação de que a instrução funcione como<br />

um fator de melhoria social, e não apenas de erudição. Por isso, os redatores do referido<br />

86 Idem. p. 08.<br />

56


periódico acreditavam que uma determinada sociedade pode assumir um status<br />

valorativo cada vez maior quando exposta à luz dos conhecimentos úteis, desde que<br />

esta luz atinja a todas as camadas sociais. Foram ainda publicados no <strong>Recreador</strong><br />

<strong>Mineiro</strong> artigos relacionados à educação secundária 87 , instrução primária 88 e ensino<br />

primário 89 . E, no que diz respeito ao aprendizado de línguas estrangeiras na cidade de<br />

Ouro Preto, pode-se observar no seguinte fragmento de anúncio que: “O ex-professor<br />

das aulas publica de linguas Ingleza e Franceza continùa a leccionar nesses dous<br />

idiomas; quem quizer utilisar se do seu prestimo , dirija-se á rua do ouvidor , n. 2”. 90<br />

Contudo, devemos aqui esclarecer que a instrução não é vista como um instrumento de<br />

alteração da ordem social, mas apenas de melhoria da ordem vigente.<br />

Com o Romantismo surge ainda um novo ciclo de cultura correspondente à<br />

diminuição das oligarquias reinantes em favor das monarquias constitucionais ou<br />

repúblicas federadas e ao aparecimento do liberalismo em política, moral, arte, etc.<br />

Ocasionando a profissionalização dos escritores em detrimento do mecenantismo,<br />

origina uma nova relação entre o escritor (que produz o objeto) e o público (que paga<br />

para consumir o objeto produzido). Opera-se o domínio amplo das formas burguesas de<br />

viver e pensar. Formas essas que podem ser notadas no periódico através de certas<br />

influências quanto aos hábitos e costumes estrangeiros. Isto pode ser mais facilmente<br />

percebido em artigos como Modo de Bater à Porta em Inglaterra 91 e Economia do<br />

Tempo na Inglaterra 92 . O primeiro deles versa sobre costumes que se referem ao modo<br />

como as batidas à porta constituem, de certa forma, um limite entre o público e privado,<br />

87 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 195.<br />

88 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 355.<br />

89 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 963.<br />

90 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 1072.<br />

91 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 189.<br />

57


procurando, talvez, estabelecer parâmetros para que os leitores assimilassem, através<br />

das noções de propriedade (segundo Locke), as normas de boas maneiras que, no<br />

século XIX, foram formadas no Brasil através de moldes europeus:<br />

“Em Londres, são poucos os portões, e os que ha estão sempre<br />

fechados. O modo de bater designa a qualidade da pessoa que se<br />

apresenta, de sorte que huma pancada de menos considera se tanta<br />

degradação, como huma e mais usurpação e insolencia. Huma pancada<br />

só anuncia o leiteiro (milkman), o carvoeiro, hum domestico, hum<br />

mendigo; e significa; permitte que entre? Duas, indicão o correio da<br />

posta diaria, o portador de um bilhete de boas festas, ou quaisquer<br />

mensageiros: exprime a pressa que traz; que vem para um negocio; e<br />

quer dizer: preciso entrar. Trez pancadas annunciao o dono ou dona da<br />

casa, e as pessoas que de ordinario a frequentão: como dizendo em<br />

tom imperativo: abre. Quatro pancadas fortes indicaõ pessoa de<br />

grande tom, immediata em jerarchia á primeira nobresa, e que anda<br />

de carroagem e significao: quero entrar. As quatro pancaas repetidas<br />

duas vezes annuncião fidalgo ou fidalga, hum Principe Russo, hum<br />

Barão Allemao ou outra qualquer personagem extraordinária; e é<br />

como se disesse: faço-vos muita honra em os visitar.” 93<br />

Assim, os redatores comentam que “estas formas estrondosas de bater, a que os<br />

ingleses chamam trovejar á porta (door thundering)” eram prática usual em Londres.<br />

Demonstram também o julgamento de que tais práticas evidenciavam o grau de polidez<br />

e respeito dentro de uma hierarquia social bem definida, uma vez que um mero engano<br />

poderia, segundo os redatores do <strong>Recreador</strong>, ser seguido muitas vezes de “gravissimos<br />

incomodos. Qualquer criado que deixasse de dar huma pancada que fosse d’aquellas<br />

que pertencem á jerarchia e orgulho de seu amo, seria immediatamente despedido.”<br />

92 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 380.<br />

93 Modo de bater à porta em Inglaterra. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 189.<br />

58


Percebemos então a intenção, a partir da publicação do artigo supra citado, de imbuir o<br />

público leitor de normas de comportamento que evidencia a relação entre o público e o<br />

privado, bem como a relação entre as diversas posições hierárquicas ocupadas pelos<br />

indivíduos dentro da sociedade. Percebe-se ainda que o ato de bater à porta é uma das<br />

normas de boas maneiras que são introduzidas no Brasil quando da diferenciação entre a<br />

vida pública e a vida privada, bem como dos espaços concernentes a tais aspectos da<br />

vida em sociedade. E no que diz respeito às condições hierárquicas, novamente torna-se<br />

evidente o fato de que o periódico tenta coroborar uma melhoria social dentro da ordem<br />

estabelecida.<br />

Relacionando-se também às normas de compoprtamento e à noção de<br />

propriedade, O artigo Economia do Tempo na Inglaterra 94 faz referência à utilidade<br />

que tem o tempo para aqueles que o sabem aproveitar. Nesse artigo está inscrita a<br />

expressão “tempo é dinheiro”, evidenciando as tendências liberais com as quais se<br />

identificam vários trechos existentes no <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>:<br />

94 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p.380.<br />

“Franklin disse com razão e sabedoria : O tempo é dinheiro; ora na<br />

Inglaterra pensa-se com elle: alli, o tempo é hum rendimento, huma<br />

riqueza. O inglez não é avarento do seu dinheiro: mas em<br />

compensação é economico do tempo. Ninguem ha mais exacto do que<br />

elle em se achar nos paradeiros á hora ajustada; para isso consulta o<br />

seu relogio, regula-o pelos dos seus amigos, e chega sempre no<br />

minuto aprazado. A sua lingua monossyllabica parece ter sido<br />

inventada para economizar o tempo. O inglez come as letras, assobia<br />

as palavras, falla pouco; a sua civilidade é laconica em seus<br />

comprimentos. A saudação entre elles não é mais do que hum simples<br />

movimento de cabeça acompanhado de tres ou quatro syllabas. Os<br />

inglezes excluírão do seu estillo epistolar essas formulas banaes, que<br />

terminão todas as nossas cartas: elles não tem a honra nem fazem<br />

firmes protestos da sua consideração mais ou menos distincta, do seu<br />

59


profundo acatamento e respeito para com suas excellencias ou<br />

senhorias, de quem não ficão sendo, nem sào respitosos veneradores,<br />

humildes e reverentes criados. Em hum paiz, onde os minutos são tão<br />

preciosos, é muito natural que se apreciem os instrumentos, que os<br />

medem; dahi vem o fazerem-se os melhores Chronometros na<br />

Inglaterra. Cada operario, cada trabalhador possue hum relogio tão<br />

necessario para elle como os seus melhores utensilios. Os conductores<br />

das postas dos correios tem chronometros, que valem mais de mil<br />

francos, tanto para elles é grave a obrigação de chegar a huma hora<br />

fixa. A menor demora faria esperar os parentes, os amigos, os criados,<br />

exactos em virem ao lugar certo receberem, huns os viajantes, outros<br />

as suas malas. Esta economia de tempo, que nos parecerá talvez<br />

minuciosa, concebe-se necessaria em hum paiz, onde tantas rodas<br />

concorrem separadamente para o movimento geral da machina”. 95<br />

Percebe-se que o tempo é visto como uma propriedade capaz de produzir<br />

riquezas, rendimentos. Faz-se também perceptível o fato de que o capital deve circular<br />

para movimentar a economia, uma vez que o inglês não é avarento do seu dinheiro.<br />

Contudo, notemos que o artigo faz referência à economia de um país como a Inglaterra<br />

através dos costumes nele existentes, relacionando então o tempo com a produção de<br />

riquezas e, por conseguinte, a economia com o uso que se faz do tempo. Além disso, as<br />

normas de boas maneiras aqui se fazem novamente presentes ao se tratar do<br />

cumprimento dos horários estabelecidos para os compromissos. Nota-se então a<br />

referência à tão famosa pontualidade inglesa (ou britânica). Até mesmo a Língua<br />

Inglesa, considerada pelos redatores como monossilábica, é vista como um indício da<br />

economia que se faz do tempo, bem como da precisão e objetividade da comunicação<br />

entre eles. Por fim, observando a preciosidade do tempo para os ingleses e remetendo<br />

aos instrumentos utilizados para sua medida, os redatores do referido artigo evidenciam<br />

95 Economia do tempo na Inglaterra. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p.380.<br />

60


a funcionalidade e a necessidade da melhor utilização do tempo para que todos os<br />

segmentos da sociedade estejam devidamente ajustados e funcionem em sincronia para<br />

viabilizar “o movimento geral da machina.” Assim, também vemos aqui a noção de que<br />

o estado é uma máquina que se movimenta de acordo com o ritmo de suas rodas, de<br />

acordo com os passos sincrônicos e ajustados que a população deve desferir em função<br />

de uma mais e melhor produção de riquezas e rendimentos: tempo é dinheiro. Além<br />

disso, a relação entre tempo e disciplina do trabalho evidencia toda a postura pró-<br />

capitalista do periódico dentro de um contexto histórico de desenvolvimento do<br />

capitalismo. E para mais uma vez evidenciar tal premissa, outro artigo, intitulado O<br />

Valor do Tempo, aborda a relação do homem com o tempo:<br />

“Brougham, o homem mais laborioso d’Inglaterra, nunca sabe da<br />

Camara do Lords se não á meia noite, e ás quatro horas da manhã já<br />

está levantando. O doutor Cotton Marther, que conhecia bem o valor<br />

do tempo, não queria perder nem hum minuto; e para esse fim tinha<br />

gravado em letras muito grandes, por cima de sua porta estas palavras:<br />

Sêde breve. Ursimus, professor da universidade de Heidelberg,<br />

querendo evitar que os vadios, e os falladores o viessem interromper<br />

nas suas horas de trabalho, escreveo á entrada de sua biblioteca:<br />

“Amigo, quem quer que sejas que aqui entres, sê breve no que tiveres<br />

a tratar, ou então retira-se.”<br />

O sabio Scaglier tinha posto a seguinte fraze na porta do seu gabinete:<br />

,,Tempus meum est ager meus ,,( o meu tempo é o meu campo) – A<br />

maxima de Shakspeare era: ,, Reputai o tempo demasiadamente<br />

precioso para naõ passade a falhar em cousas frivolas.<br />

Os amigos, dizia Lord Bacon, são verdadeiros roubadores do tempo.<br />

– Senhor huma palavra; dizia hum dia hum soldado ao Grande<br />

Frederico, apresentando-lhe hum requerimento em que pedia a patente<br />

d alferes. – se disseses duas, respondeo aquelle Principe mando- te<br />

enforcar. Assignai, accrecentou então o soldado.o admirado o<br />

61


monarcha da sua presença d’espirito, houve por bem deferir á sua<br />

pretenção.”<br />

Nesse artigo percebemos que o tempo é também compreendido como um<br />

“campo”, um espaço a ser utilizado e trabalhado para a produção de riquezas financeiras<br />

e intelectuais.<br />

Quanto aos princípios do Liberalismo Econômico, expresso nas obras dos<br />

fisiocratas e na obra clássica A Riqueza das Nações de Adam Smith, podemos aqui citar<br />

o artigo intitulado “Desperdício de Capital e Trabalho”, no qual os redatores consideram<br />

que:<br />

(...) Em quanto os homens não estiverem convencidos que poderão<br />

trabalhar [em todos os sentidos] debaixo da protecção de boas leis<br />

administrativas, applicadas por magistrados rectos, e inflexiveis, de<br />

certo que trabalharão debil, e improficuamente.<br />

(...) Desde o momento em que a industria Européa principiou a<br />

trabalhar com segurança, e que o capital, e o trabalho se applicárão<br />

unidos, senão perfeitamente, ao menos em união, relativo ao grande<br />

fim da producção, trabalhou-se progressivamente com menor despeza,<br />

e desperdicio; continuou-se a trabalhar com mais proveito á proporção<br />

que se ia trabalhando com maior sciencia. (...) Principaes, Estadistas,<br />

Prelados, Philosophos, todos ignoravão o que comduz á permanente<br />

felicidade das nações, e o que causava a ruina dellas. Bastava-lhes<br />

haver o sufficiente para o consumo, não se dignando observar, e muito<br />

menos assistir a direcção da producção.<br />

(...)Desta maneira é que os interesses da agricultura se ligão<br />

essencialmente com os das fabricas, e com os do commercio; que o<br />

commercio livre é igualmente essencial aos reaes e permanentes<br />

interesses da agricultura, e das fabricas; que o capital e o trabalho são<br />

igual, e necessariamente unidos em seus interesses, sejão elles<br />

applicados á agricultura, ás fabricas ou ao commercio; que o<br />

productor, e o consumidor são igualmente unidos nos seus mais<br />

62


essenciaes interesses, a saber, que haja producção bastante, e com o<br />

menor custo possivel.<br />

(...)Quando o genero humano se desabusar da fallaz crença, que a<br />

riqueza de huma nação, de huma classe, ou de hum individuo não se<br />

pode crear se não á custa das outras nações, classes, ou individuos,<br />

presenciar-se-hao os esforços de todos applicar-se em commum,<br />

constantes e em boa harmonia, a produsir, e a gosar; a adquirir<br />

prosperidade, e fortuna permanente.<br />

Hoje em dia talvez não exista paiz algum civilisado em que a falta<br />

desta preciosa união capital e trabalho seja mais sensivelmente<br />

apparente que no Brasil, e por consequencia em nenhum outro ha<br />

maior desperdicio destes inestimaveis elementos de prosperidade. (...)<br />

A que se deve pois attribuir esse atraso? Muitas são as causas, que não<br />

cabe nos limites deste artigo apontar com paticularidade; porem a<br />

principal é innegavelmente a grande falta de boas estradas de<br />

communicação não só entre as diversas provincias, mas até entre os<br />

differentes pontos de cada huma dellas. Os vantajosos effeitos de boas<br />

estradas para promover a riqueza, e a prosperidade das nações não tem<br />

sido até ao presente bem considerados por nós, nem apreciados.<br />

(...) estas faltas poderosamente concorrem a obstar o progresso da<br />

producção, e da accumulação; e por tanto atrazão essencialmente a<br />

prosperidade do paiz.<br />

Scrutator.” 96<br />

Desse modo pode-se perceber que, através da publicação de um artigo dessa<br />

natureza, os redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> procuram colocar em evidência o fato de<br />

que, para que o trabalho de uma nação possa resultar e uma produção profícua, este<br />

deve ser regido e protegido por leis administrativas, cuja aplicação deve também ser<br />

garantida por “magistrados rectos e inflexíveis”. A exemplificação do trabalho<br />

associado ao capital e à ciência na indústria européia para a finalidade de produção de<br />

riquezas evidencia uma referência e o elogio ao sistema econômico adotado por países<br />

96 In: O Redcreador <strong>Mineiro</strong>. Tomo II, p.243-7.<br />

63


de ideologia liberal. Percebe-se então o indício de que tal sistema deveria servir como<br />

um molde pra o sistema econômico brasileiro, o que poderia elevar a produção e o<br />

acúmulo de riquezas com a finalidade de progressivamente engrandecer a nação e<br />

permitir uma melhor condição econômica frete ao mundo moderno. É também<br />

perceptível a referência feita à necessidade de observação dos elementos que deverão<br />

ser articulados para que tal produção seja realmente profícua: agricultura, indústria,<br />

comércio e mercado devem ser articulados e o capital e o trabalho devem ser unidos e<br />

aplicados para a produção das riquezas necessárias à constituição da felicidade e fortuna<br />

permanentes da nação brasileira. Contudo, é ainda colocado em evidência o fato que o<br />

Brasil necessitava de mais união entre o capital e o trabalho para que se evite o<br />

desperdício de inestimáveis elementos de prosperidade. Portanto, a publicação do artigo<br />

Desperdício de Capital e Trabalho chama-nos a atenção para a crítica ao sistema<br />

econômico brasileiro e para a tentativa de adequação da economia da nação aos moldes<br />

liberais vigentes na Europa. No entanto, deve-se aqui observar que ao longo da<br />

publicação de O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> não é mencionada nenhuma opinião, positiva ou<br />

negativa, acerca do sistema escravista brasileiro. Tal omissão por parte dos redatores<br />

deixa mais uma vez entrever o fato de que o periódico não se propunha a alterar a<br />

ordem social. Sonhavam com o capitalismo mas não abriam mão (ou silenciavam sobre)<br />

dos escravos.<br />

Ainda com relação aos aspectos concernentes ao sistema econômico liberal<br />

existente em países europeus, no artigo Economia Política Resumida são enunciados<br />

alguns dos princípios do liberalismo clássico:<br />

“1-O trabalho é uma propriedade.<br />

64


2-O proletario vive dos productos da sua industria, assim como o<br />

proprietario vive das rendas do seu campo.<br />

3-Hum sem outro é hum corpo sem alma.<br />

4-O proletario e o proprietario são os dous sexos do mundo social.<br />

5-Sós, nada podem produzir.<br />

6-A sua uniao faz a sua virtude.<br />

7-Privar o proletario do trabalho e do salario, que delle espera, é<br />

roubá-lo, assim como se rouba ao proprietario seu trigo, ou sua<br />

farinha.<br />

8-Não há rico nem pobre. Há duas condições passageiras da vida.<br />

Hum revez faz hum pobre; hum olhar faz hum rico. O casamento ou a<br />

morte muda todas as condições.<br />

A igualdade nasce da coragem.”<br />

Ora, notemos que as premissas aqui enunciadas são um resumo daquilo que é<br />

pregado pela doutrina liberal. O artigo Economia Política Resumida vem, como seu<br />

próprio título indica, resumir aquilo que se deve tomar como base para o sistema<br />

econômico almejado pelos redatores para o Brasil. Reforça a noção de trabalho como<br />

uma riqueza produzida e, portanto, como uma propriedade do proletário. Aponta mais<br />

uma vez para a necessária união entre o capital e trabalho ao relacionar proprietário e<br />

proletário num sistema mútuo de existência e completude.<br />

Ainda observando algumas das premissas enunciadas no artigo Economia<br />

Política Resumida, note-se que a riqueza e a pobreza são consideradas como condições<br />

passageiras da vida. “Hum revez faz hum pobre; hum olhar faz hum rico. O casamento<br />

ou a morte muda todas as condições.” Os revezes da fortuna são elemento chave na<br />

nova concepção de ascensão ou declínio dentro sociedade liberal. A burguesia ganha<br />

espaço, quando não o toma ou o compra. A fidalguia decresce em status, mais vale o<br />

dinheiro do que o título, uma vez que o primeiro pode ser a condição de aquisição do<br />

segundo. Assim, apontando para aquilo que foi enunciado na oitava premissa do artigo<br />

65


Economia Política Resumida, o artigo intitulado O Homem sem Dinheiro aborda a<br />

relação entre o indivíduo e o capital na sociedade liberal:<br />

“O homem sem dinheiro, é hum corpo sem alma, hum morto<br />

ambulante, hum espectro que mette medo. O seu andar é triste, a sua<br />

conversação fria e pesada. Se quer vizitar alguem nunca o acha em<br />

casa, e se abre a boca para fallar interrompem-no a cada instante, afim<br />

de que não possa terminar hum discurso, que se recêa acabe pedindo<br />

algum dinheiro. Foge-se delle como hum pêso inutil sobre a terra. Se<br />

tem talento, não o póde desenvolver, e se o não tem é olhado como<br />

hum terrivel monstro bipede que estava de máu humor. Os seus<br />

inimigos dizem que não tem prestimo algum, e os mais moderados<br />

sobre este assumpto, começão o seu elogio encolhendo os hombros. A<br />

necessidade o acorda pela manhã, e a miseria o acompanha a noite<br />

para a cama. As mulheres achão que tem má figura; os donos das<br />

casas em que elle está alojado querem que se sustente do ar como o<br />

camaleão; e os alfaiates que se vista como os nossos primeiros pais,<br />

com folhas de figueira. Se quer fazer alguma reflexão, não se lhe<br />

presta attenção, e se espirra, faz-se que se não ouve. Se precisa alguma<br />

alguma cousa de qualquer loja, pede-se-lhe primeiro a sua<br />

importancia, e se tem alguma divida, passa por caloteiro.<br />

(Pensamentos do Conde d`Oxenstiern)”<br />

Desse modo percebe-se a valorização do dinheiro, do crédito e da riqueza para<br />

que seja conferido um determinado status a um indivíduo dentro da sociedade. Nota-se<br />

também que os julgamentos de valor e a marginalização recaem sobre aquele que é ou<br />

se encontra desprovido de condições financeiras, bem como o fato de que a ascensão<br />

social está estreitamente relacionada à ascensão financeira.<br />

Além dos referidos artigos, há outros aspectos que relacionam o periódico com<br />

tendências liberais presentes em Minas Gerais. O que pode ser perfeitamente<br />

compreendido uma vez que, no texto ESCHOLIO AOS 6 VOLUMES DO<br />

RECREADOR MINEIRO, publicado à página 1155 do 7º tomo, os redatores assumem<br />

66


não apenas a influência da ideologia liberal em seus escritos, mas também o fato de que<br />

estrangeiros residentes 97 na província de Minas Gerais eram colaboradores do periódico:<br />

“Os R R. tem o nobre orgulho de declarar , que entre os artigos<br />

communicados ao <strong>Recreador</strong> apresentão-se peças de poesia, e prosa,<br />

padrões duradouros não só do merito de alguns litteratos de paizes<br />

extrangeiros, residentes nesta Provincia , mas sobre tudo do genio , e<br />

illustração Mineira. Os R R. tem a singular ufania de haver<br />

transmittido á luz publicas tão eminentes producções do<br />

espirito(...)” 98<br />

97 A oito quilômetros de Barão de Cocais, passando por um antigo trecho da Estrada Real no sentido de Caeté,<br />

encontra-se a região onde houvera, nos séculos XVIII e XIX, um vilarejo denominado Gongo Soco. Assim como a<br />

quase totalidade dos distritos mineiros do período colonial, a Vila de Gongo Soco teve suas origens relacionadas à<br />

atividade mineradora. Porém, a exploração do ouro nessa vila teve início quando os outros veios estavam se<br />

esgotando. Desde 1745, quando o ouro foi encontrado por Manuel da Câmara de Bittencourt, ela se afirmou como<br />

uma das mais ricas localidades de Minas e figurou com destaque em livros e narrações de viajantes e estudiosos<br />

estrangeiros do século XIX como W.V.Eschewegue, Saint-Hilaire e John Mawe.<br />

A posse das datas de Gongo Soco passou das mãos do primeiro explorador para as de seu sobrinho, Manuel da<br />

Câmara de Noronha de Bittencout. Posteriormente, para as de João Batista – o Barão de Catas Altas. Este último,<br />

no ano de 1825, vendeu as datas para os ingleses da Imperial Brazilian Mining Association, dando início à<br />

instalação da primeira empresa britânica em Minas Gerais (o que ocorreu com a concessão de vários benefícios<br />

fiscais por parte do governo brasileiro).<br />

Os ingleses que então se instalaram em Gongo Soco eram oriundos da Cornualha (Velha Albion – região<br />

primitivamente habitada pelos Celtas). Logo que chegaram ao vilarejo mineiro o transformaram numa autêntica vila<br />

inglesa: do casario aos instrumentos de trabalho e jeito de viver. Para abrigar os trabalhadores foram construídos<br />

dentro de um modelo urbanístico britânico, ruas e casas, uma ponte, um hospital, uma igreja anglicana para os<br />

ingleses, outra católica para os brasileiros, e até um arco sob o qual passaram D. Pedro I (em 1831) e D. Pedro II<br />

(em 1881). Foi também construído um cemitério cujas lápides sintetizam a vida daqueles que ali foram sepultados,<br />

trazendo dados como local e paróquia de nascimento, idade, nome do cônjuge (no caso das mulheres) e data de<br />

falecimento. Algumas lápides apresentam também versos em Cornish – Inglês arcaico da região da Cornualha.<br />

A Imperial Brazilian Mining permaneceu em Gongo Soco de 1824 a 1856, quando a mina foi vendida ao Sr. Paula<br />

Santos. Porém, já apresentava sinais de decadência desde 1853, data a partir da qual a região começou a cair no<br />

abandono e esquecimento. Ao deixar a vila de Gongo Soco, os ingleses da Imperial Brazilian Mining Association<br />

se fixaram em Passagem de Mariana, onde arremataram do governo brasileiro as datas reunidas pelo Barão de<br />

Eschewege (geólogo alemão erradicado em Minas desde a abertura dos portos, fundador da primeira empresa<br />

siderúrgica mineira, a Fábrica Patriótica, em Ouro Preto). Os ingleses permaneceram em Passagem durante a<br />

segunda metade do século XIX, e também lá influenciaram o modus vivendi através da alteração da infra-estrutura<br />

local e da introdução de novas técnicas de mineração.<br />

Pode talvez ser atribuída ao convívio com esses e a outros ingleses que residiram na província a utilização por parte<br />

dos mineiros da interjeição “Uai” (que exprime surpresa e/ou espanto), a qual possui semelhanças fonéticas e<br />

semânticas com o vocábulo Why utilizado na Língua Inglesa com o mesmo sentido do nosso “por quê?”, ou como<br />

interjeição, assumindo, neste caso, o mesmo sentido do “Uai” mineiro. Notemos que o “Uai” mineiro e o “Why”<br />

britânico (cuja pronúncia se difere da americana por não apresentar aspiração inicial) possuem a mesma<br />

representação fonética; e, notemos ainda, que o “Uai” é a expressão da língua portuguesa falada no Brasil que mais<br />

se relaciona com a identidade mineira. Assim, talvez os trains ingleses que, já no século XIX transportavam o<br />

material extraído das minas de Gongo Soco, aquelas grandes máquinas tão esquisitas aos olhos dos mineiros,<br />

tenham originado a expressão “trem”, comumente utilizada no Brasil – particularmente em Minas Gerais – para<br />

designar qualquer ‘objeto’, ‘coisa’, ‘troço’ ou ‘negócio’.<br />

98 Schollio aos 6 vollumes do Recredor <strong>Mineiro</strong>. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 1155<br />

67


Após a constatação de que os redatores aceitavam a contribuição de estrangeiros<br />

para a publicação do periódico, observemos também que os redatores previram que uma<br />

parte das matérias admitidas na precedente redação trienal encontraria leitores no mais<br />

justo contato com os princípios e elementos das mesmas matérias; porém, aquela<br />

previsão não continha o direito de negar a uma parte dos leitores essa classe de artigos,<br />

cujo assunto residisse segregado do seu alcance. Assim, os redatores assumem que<br />

procuram propagar a doutrina liberal em nome da justiça distributiva:<br />

“Será sempre um dever da boa justiça distributiva, liberalisar aos que<br />

não possuem, como dantes se liberalisára aos que não possuíam; e<br />

com tão perfeita igualdade de títulos, injustiça fôra no <strong>Recreador</strong> a<br />

omissão de artigos quando reclamados pelo direito de os conseguir. A<br />

existente geração, por isso mesmo que illustrada no centro da<br />

sociabilidade, não se opora jamais ao menor contingente da luz<br />

literária preparado para a geração futura; por que esta, não alcançando<br />

a seus precurssores já extinctos, lançará suas vistas aos monumentos<br />

que deles restarem.” 99<br />

Uma vez observada a evidência clara e explícita no tocante à consciência dos<br />

redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> em relação à propagação da doutrina liberal,<br />

verifiquemos então o posicionamento dos redatores enquanto escritores que, na<br />

condição de profissionais liberais, declaravam: “mister-se faz talento , estudo das<br />

paixões humanas, e, se me permitem a expressão, ‘ espirito e commercio com as<br />

letras’”. 100 Ainda com relação ao comércio com as letras, podemos verificar que além<br />

da tipografia, funcionava também uma livraria na sede da redação do <strong>Recreador</strong><br />

<strong>Mineiro</strong>. O que pode ser observado pela existência de diversos anúncios feitos ao longo<br />

do periódico:<br />

99 Idem. p. 1155<br />

“A’ Livraria de Bernardo Xavier Pinto de Souza, estabelacida nesta<br />

cidade, acaba de chegar um grande sortimento de todas as obras já<br />

100 O Romance.In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. n 1, tomo I. pág 19.<br />

68


anunciadas, sobre Legislação _ Historia _ Agricultura _ Industria _<br />

Religião _ Poesia _ Medecina _ Comedias _Romances & Tambem<br />

recebeo grande porção de finissimas estampas, traslados, livros em<br />

branco, e muitos objectos d’escriptorio. As pessoas que ainda não<br />

recebêrão as encommendas de livros que fizerão, podem mandar-as<br />

procurar.” 101<br />

“Vendem-se na livraria de Bernardo Xavier Pinto de Souza,<br />

estabelecida nesta cidade, entre outras muitas obras, ultimamente<br />

publicadas, as seguintes:<br />

APONTAMENTOS para a biografia do Conde das Antas<br />

commandante em chefe das forças sublevadas em Portugal. _ Com o<br />

retrato deste general .<br />

ESQUELETO das faculdades e origem das idèas do espirito humano,<br />

que offerece aos seus discipulos o conego João Antonio dos Santos,<br />

professor de philosophia do seminario episcopal de Marianna.<br />

RESUMO da Poetica da lingua nacional, extrahido de Fonceca,<br />

Soares, Blair, e de outros autores, seguido das observações de<br />

Francisco Pereira de Carvalho, sobre as duas escolas de poesia<br />

classica e romantica.” 102<br />

Além disso, através dos anúncios publicados no periódico, pode-se também<br />

verificar que o direito, em seu desdobramento histórico, é visto pelos redatores como “o<br />

instrumento com que se forja a liberdade” 103 , caracterizando o progresso das instituições<br />

jurídicas como o progresso da própria liberdade através da história:<br />

101 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 1040<br />

102 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 1056<br />

“MANUAL do cidadão brasileiro; obra completa em 10 volumes,<br />

contendo: o primeiro, constituição politica do Brasil; o segundo,<br />

codigo criminal; o terceiro, lei da guarda nacional; o quarto, advogado<br />

do povo; quinto e sexto, codigo do processo criminal; o setimo,<br />

103 BORNHEIM, Gerd. Filosofia do Romantismo. In: O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva,<br />

1978. GUINSBURG, J.(Org) p. 79.<br />

69


104 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 1072<br />

instrucções sobre eleições; o oitavo, regimento das camaras<br />

municipaes; o nono e decimo, roteiro dos orphaõs 16:000 e 20:000<br />

Tambem se vende cada um destes volumes em separado.<br />

PRIMEIRAS linhas sobre o processo orphanologico por José Pereira<br />

de Carvalho, quarta edição, corrigida, melhorada, e argumentada com<br />

a legislação orphanologica do Brasil, por José Maria Frederico de<br />

Sousa Pinto; 4 partes em um volume encadernado” 104<br />

“Additamento ao Regimento interno do Senado. CODIGO dos juizes<br />

de paz ou collecção de todas as leis, decretos, resoluções, provisões,<br />

portarias, officios, &c. que lhes dizem respeito, obra indispensavel aos<br />

juizes de paz, subdelegados, suplentes, inspectores de quarteirão,<br />

fiscaes, escrivães, membros das camaras municipaes, e em geral a<br />

todos os cidadãos brasileiros; 2. edição, corregida e augmentada.<br />

FORMULARIO para uso dos juizes de paz, (e hoje tambem dos<br />

subdelegados) contendo todas as formulas para as decisões, actos e<br />

termos judiciaes, que devem começar perante os ditos juizes,<br />

procedendo a cada hum acto as explicações necessarias.<br />

GUIA dos juizes de orphaõs, dos tutores e curadores, e de todos os<br />

escrivães, contendo a legislação que a todos elles respeita para bem<br />

desempenharem seus officios e attribuições, com acerto, e<br />

legabilidade obrarem o que as leis lhes incumbem; as leis<br />

testamentarias, as relativas ás avalliações, compromissos, e<br />

arbitramentos, os regimentos de salarios e das audiencias, e entre essa<br />

legislsção achando-se alguma inedita, e mui importante; obra<br />

indispensavel aos ditos juizes, escrivães, tutores, curadores,<br />

avaliadores, e aos pais de familia, assim como ás mais classes da<br />

sociedade. Dada a luz pelo conselheiro José Paulo de Figueiroa<br />

Nabuco de Araujo.<br />

GUIA ou novo manual dos collectores ou collectados, obra que<br />

contêm, alêm da colecção de todas as leis, regulamentos, portarias,<br />

etc., publicadas desde a creação dos colectores, os modelos que lhes<br />

são mandados observar nas suas escripturas, e toda a legislação<br />

anterior a que se refere a instituição das collectorias.<br />

70


INSTITUIÇAÕ do jury e seu processo na Europa e na America,<br />

vertido do inglez por José Soares de Azevedo”. 105<br />

Portanto, além de editar o jornal, Bernardo Xavier também comercializava livros<br />

de diversas áreas. Verifica-se, através do comércio com as letras, seu posicionamento<br />

enquanto profissional liberal. Dentre os livros comercializados pelo editor do periódico,<br />

verifica-se que os manuais, guias, códigos, regimentos e outros títulos da área de direito<br />

são recorrentes. O que dá indicações de um mercado para o comércio livreiro, uma vez<br />

que as mudanças políticas pelas quais passava o Brasil naquele momento fazem com<br />

que haja uma maior demanda para a aquisição de um aparato jurídico que pode então<br />

ser considerado como recente; e que o grande número de bacharéis existentes no Brasil<br />

naquele período se configurava também como um público leitor dese tipo de material.<br />

Percebemos então que, no momento romântico, esse discurso se configurou<br />

como ilustrado e liberal, marcando a atitude moderna do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>: laica, civil,<br />

interessada no progresso das luzes e da sociedade. Em consonância com a ilustração e o<br />

liberalismo, novas tendências impulsionaram a literatura e a política, através do<br />

jornalismo, para a formação de um povo mais letrado, racional e voltado para os<br />

interesses da nação. Percebemos, neste ponto, os alicerces do Romantismo Político no<br />

<strong>Recreador</strong>.<br />

Conclui-se, então, que os redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, apoiando-se em<br />

formas Ilustradas, criticam de modo construtivo a sociedade mineira (e brasileira, em<br />

geral) tentando fazer desse periódico o antídoto para os “enojos sociais” e para a<br />

decadência do pensamento. Percebemos, com a tradução do fragmento da obra de Saint-<br />

Hilaire referente às Causas da Decadência de Minas Gerais, que os redatores apontam<br />

105 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. p. 1184<br />

71


para a tentativa de solucionar tais problemas e de adequar a nação brasileira a um molde<br />

não-ibérico, evidenciando o sentimento de lusofobia – uma vez que Saint-Hilaire<br />

denuncia, em algumas partes de seus relatos, que observa a cultura e a organização<br />

social, política, econômica e religiosa da Província de Minas Gerais adotando como<br />

parâmetros preconcebidos seu conhecimento e julgamento acerca dos povos ibéricos 106 .<br />

Nas observações feitas por Saint-Hilaire no referido fragmento, o autor<br />

considera como as quatro principais causas da decadência de Minas Gerais:<br />

1 - O modo errôneo por que os mineradores sempre consideram o fruto de seu<br />

trabalho; tratando o ouro extraído como bem, e não como capital, mostrando que a<br />

política extrativista não traria formas de acúmulo e capital para assegurar a obtenção e a<br />

106 Torna-se então pertinente observar que quase todos os aspectos por ele levantados com relação Minas<br />

Gerais foram posteriormente apontados por Antero de Quental, aos 27 de Maio de 1871, no discurso<br />

sobre as causas da decadência dos povos peninsulares nos séculos XVII, XVIII e XIX. Procuramos<br />

identificar tais aspectos no discurso de Antero, confrontando-os com aqueles abordados por Hilaire com<br />

relação à decadência da Província de Minas Gerais. Tal contraste se faz possível pelo fato de ambos<br />

autores se referirem aos três grandes aspectos da sociedade (o pensamento, a política e o trabalho) e tem<br />

como finalidade verificar o condicionamento dos povos peninsulares e suas colônias à influência<br />

ideológica sobre eles exercida pelos povos capitalistas que, desde a reforma, assumiram valores<br />

diferenciados daqueles que perduraram na península.<br />

Antero de Quental evidencia a decadência expondo as glórias passadas da península em campos como<br />

Filosofia, Arquitetura, Teologia, Literatura, etc. Salienta o pioneirismo nos estudos geográficos e nas<br />

grandes navegações expondo o quanto é delicada a questão da decadência para os peninsulares.<br />

Segundo ele, o período de declínio de Portugal teve início no princípio do século XVII (durante o<br />

governo de Felipe II), tendo como causas principais: a instauração do catolicismo pelo Concílio de<br />

Trento (ocasionando a degradação da vida moral e condenando, sem apelação, o uso da razão); o<br />

estabelecimento do Absolutismo (causando a degradação da vida política e social, arruinando as<br />

liberdades locais e impedindo a elevação natural da classe média); e o desenvolvimento das conquistas<br />

longínquas (pela inércia da economia). Esses fatos, que compreendem os três grandes aspectos da<br />

sociedade (o pensamento, a política e o trabalho), geraram na península modificações que iam no<br />

sentido inverso das ocorridas nas nações então prósperas (as nações protestantes capitalistas): a<br />

liberdade moral, o sugimento da indústria e a elevação natural da classe média.<br />

Assim, os povos peninsulares imergiram em um período obscuro, marcado pelo terror religioso da<br />

inquisição, cujos efeitos do pouco esclarecimento se refletiram na economia, na poesia, na arte, nos<br />

costumes, no empobrecimento pela expulsão dos judeus e mouros (paralisando o comércio e a indústria)<br />

e, sobretudo, no precário desenvolvimento das ciências. Aponta como efeito mais fatal a prostração do<br />

espírito nacional. Antero condena o ócio dos fidalgos (que levava à depravação dos costumes e ruína<br />

das famílias) e a supressão da cultura dos povos colonizados, dominados pelo terror da inquisição<br />

católica e pelas armas do absolutismo sem nenhuma validade no ponto de vista civilizatório. Assinala<br />

como possibilidade de readquirir lugar na “Europa Culta” e de correção dos erros, o rompimento com o<br />

passado (respeitando a memória dos antepassados sem, no entanto, imitá-los.), opondo ao catolicismo o<br />

pensamento livre; à monarquia centralizada a federação republicana, com caráter radicalmente<br />

democrático; à inércia industrial o trabalho livre, a indústria do povo.<br />

72


detenção de meios de produção; tratando, assim, a economia como deficiente pelo fato<br />

de seus mecanismos advirem do sistema português, que priorizava a expansão territorial<br />

e a exploração direta em lugar da acumulação primitiva de capital.<br />

2 - “Por uma ignorância fácil de se compreender, quando se conhecem as<br />

relações do Governo Português com suas colônias” 107 , o autor condena o defeituoso<br />

sistema agrícola adotado na província organizado a partir de técnicas rudimentares<br />

herdadas de Portugal. Comenta ainda que não se poderia esperar algo mais avançado,<br />

uma vez que Portugal nunca demonstrou tanto interesse pela cultura agrícola quanto<br />

outros povos da Europa. Faz freqüentes comentários acerca das grandes extensões<br />

estéreis de terra e chama atenção para o fato de comumente encontrarem-se, em frente<br />

ou atrás das casas, jardins nos quais eram sempre cultivadas bananeiras, serralha e<br />

couve. E, na maioria das vezes, era apenas o que havia. 108<br />

3 - Os créditos a longo prazo concedidos aos arrematadores de bens confiscados,<br />

evidenciando a permanência do sistema de relações , característico dos povos de estirpe<br />

ibérica.<br />

4 - “E as perseguições que atraiu sobre os habitantes mais ilustres da província a<br />

pretensa conspiração conhecida sob o nome de Inconfidência Mineira.” 109<br />

Na nota Aversão às Virtudes Econômicas, dada ao capítulo O Semeador e O<br />

Ladrilhador do livro Raízes do Brasil 110 , Sérgio Buarque de Holanda caracteriza os<br />

traços das populações de estirpe ibérica quanto à economia, mostrando que as<br />

qualidades morais adotadas por essas populações nas relações comerciais baseiam-se na<br />

107 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op.Cit. p.91.<br />

108 Note-se que a couve e a serralha são considerados elementos básicos da culinária “típica” mineira; e a<br />

banana é hoje um símbolo que veicula pelo mundo como elemento tipicamente brasileiro ao lado de<br />

outras frutas “exóticas”.<br />

109 SAINT-HILAIRE, Auguste de.Op.Cit. P.89<br />

110 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.<br />

73


fama e na glória, e não na necessidade de crédito (a qual vem em primeiro lugar para os<br />

povos protestantes). Assim, outros povos percebiam ser de maior conveniência o<br />

estabelecimento de vínculos imediatos com os povos ibéricos do que as relações formais<br />

que constituem norma ordinária nos tratos e contratos. Isso evidencia que a política de<br />

concessão de favores existente no sistema de relações característico dos povos de estirpe<br />

ibérica sobrepõe-se para estes à racionalização dos negócios: “O freguês ou cliente há<br />

de assumir de preferência a condição do amigo”. 111 O que vem a ser um obstáculo para<br />

a racionalização econômica, uma vez que o sistema de relações é contrário à rígida<br />

aplicação de normas de justiça e de quaisquer prescrições legais que visem normatizar<br />

as relações de negócios.<br />

Assim, verificamos que a tentativa de adequação da nação brasileira aos moldes<br />

liberais vigentes no século XIX configurou-se como um rompimento com a tradição<br />

ibérica, com o modus vivendi dessas nações e, principalmente, com a mentalidade<br />

retrógrada e dogmática oriunda da colonização. A necessidade de se estabelecer como<br />

nação desenvolvida e culta fez com que os brasileiros tomassem a França e a Inglaterra<br />

como exemplos, através dos escritos de autores destes países – e a presença de<br />

estrangeiros radicados na região de Minas Gerais fez com que essa influência ocorresse<br />

de maneira direta. Torna-se, contudo, importante ressaltar que houve um interesse<br />

político claramente expresso para que tais rompimentos e mudanças pudessem ocorrer.<br />

Esse interesse, aliado às novas tendências da literatura e ao novo posicionamento do<br />

escritor (profissional, mentor do pensamento, formulador dos problemas do país e<br />

propositor de soluções), estabeleceu o momento propício para a eclosão do ideário<br />

romântico em Minas Gerais.<br />

111 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op.Cit. p.134.<br />

74


Até este ponto, pudemos então verificar a existência de traços do romantismo<br />

político em o <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, bem como a difusão dos discursos ético, político,<br />

jurídico e econômico vinculados ao pensamento liberal. Procuraremos então, na seção<br />

seguinte, pontuar e analisar as relações propostas pelos redatores e pelos assinantes do<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> entre Literatura e a História, com a finalidade de discutir os aspectos<br />

historicistas existentes no discurso romântico e polifônico do referido periódico.<br />

Observaremos, também, como o gênero Romance, que então surgia através de<br />

folhetins (publicados na seção História do periódico), era visto e compreendido pelos<br />

redatores e leitores que tiveram seus textos publicados na seção “crítica” do <strong>Recreador</strong>;<br />

bem como a posição de tais intelectuais frente à visão eurocêntrica do século XIX e à<br />

relação entre alteridade e identidade nacional.<br />

2.2 – Romantismo, Historicismo e Estrangeirismo em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>.<br />

Segundo Guinsburg, “o Romantismo designa (...) uma emergência histórica, um<br />

evento sócio-cultural. (...) mais do que isso, é o fato histórico que assinala, na história<br />

da consciência humana, a relevância da consciência histórica.” 112 Contudo, rompe com<br />

a concepção clássica da História como um produto das “vidas ilustres”. Em<br />

conformidade com os ideais românticos, O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> 113 – primeiro periódico<br />

literário de Minas Gerais – teve grande importância enquanto pioneiro da atividade<br />

jornalística voltada à abordagem literária: foi a primeira manifestação consistente do<br />

ideário Romântico na província, procurando resgatar, construir e documentar a História<br />

de Minas Gerais e da nação.<br />

112 GUINSBURG, J.(Org) Romantismo, Historicismo e História. In O Romantismo. São Paulo: Editora<br />

Perspectiva, 1978. p. 14.<br />

75


Paralelamente à construção romântica da identidade nacional na Literatura<br />

Brasileira há, segundo Luiz Roberto Velloso Cairo 114 , um certo “instinto de<br />

americanidade”, ou seja, “um sentimento de pertença à América”; do qual<br />

comungavam, ainda segundo Cairo, autores como Gonçalves de Magalhães. Este,<br />

assinante e colaborador do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tal instinto, ou sentimento, pode ser<br />

percebido em textos como a Suma Histórica da Emancipação da América 115 ; no artigo<br />

America. Destronisação do Chimboraço 116 ; e na Chronografia Geral da America.<br />

Grandes epochas da América caracterisadas por seus principaes acontecimentos 117 .<br />

Como um desdobramento desse sentimento e forma de busca da cor local, o interesse<br />

pelos povos indígenas brasileiros aparece retratado em fragmentos traduzidos de obras<br />

de naturalistas e pela publicação (na subseção Moral da seção Razão) do Codigo<br />

Conjugal dos Índios 118 , segundo os redatores “não para modêlo, mas para curiosidade”.<br />

Ainda observando a busca da cor local, os redatores publicam o artigo intitulado<br />

Quadro Hidrográfico da Província de Minas Geraes 119 . E para documentar a história da<br />

capital do Império, os redatores oferecem a seu público o artigo Sebastianópolis.Traço<br />

histórico do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> sobre a Capital do Império do Brasil 120 , considerando<br />

que “Sebastianopolis, ou cidade de S. Sebastião, mais conhecida pelo nome de Rio de<br />

113 O RECREADOR MINEIRO. Ouro Preto: Typographia Imparcial de Bernardo Xavier Pinto de Souza: 1845 –<br />

1848. Tomos I – VII<br />

114 CAIRO, Luiz Roberto Velloso. Joaquim Norberto de Souza, Leitor deLiteratura Latino Americana.<br />

In: Falas Diversas: quatro estudos sobre Joaquim Norberto. Maria Eunice Moreira (Org). Porto Alegre:<br />

Centro de Pesquisas Literárias: PUCRS, 2000. P.38.<br />

115 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I. p. 129<br />

116 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I , nº 5, Pag. 68.<br />

117 O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I , N.6, 15 de Março de 1845.<br />

118 O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, 1º de Abril de 1845, nº 07, p.108. Tomo I<br />

119 O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I, 1º de Fevereiro de 1845, N. 03.<br />

120 O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, 1º de Abril de 1845, nº 07, Tomo I.<br />

76


Janeiro, floresce por sua situação natural riquesa, luxo, e commercio como huma das<br />

mais importantes, e opulentas cidades da América”. 121<br />

Segundo Maria Eunice Moreira, “os românticos brasileiros foram pródigos em<br />

citar os poetas árcades e em relembrar suas criações poéticas(...)” 122 , procurando<br />

remontar a esse período da história literária da nação para nele encontrar a origem da<br />

literatura nacional. Assim, a tematização de aspectos particulares da jovem nação<br />

garantirá o critério de originalidade literária, necessário para distinguir a literatura do<br />

Brasil do conjunto artístico da ex-metrópole. Até mesmo Garrett, o português autor de<br />

Parnasu Lusitano 123 , se refere a Cláudio Manuel da Costa, Basílio da Gama, Santa Rita<br />

Durão, Tomáz Antonio Gonzaga e Silva Alvarenga no “Bosquejo” introdutório à<br />

antologia que publica em 1826. Assim, em uma nota ao texto Monumento Geographico,<br />

e Historico que a Provincia de Minas Geraes tributa, e consagra por grata memoria o<br />

–<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> 124 , os redatores declaram que “Os ornatos poeticos, que animão o<br />

nosso artigo, são producções do Illustre Arcade Ultramarino com o nome de Glauceste<br />

Saturnio, o Sr. Doutor Claudio Manoel da Costa, saudoso Cisne <strong>Mineiro</strong>.” 125<br />

Outra característica romântica ligada ao historicismo, e que pode ser verificada<br />

no <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, está relacionada à existência de cronologias como a Chronica<br />

Mineira 126 , que é caracterizada pelos redatores como um compêndio das épochas da<br />

capitania de Minas Geraes, desde o anno de 1694 até o de 1780, dirigido ao Exm.<br />

121 Idem.<br />

122 MOREIRA, Maria Eunice. De Árcades e Românticos: os poetas ineiros eseu colega nacionlista.In:<br />

Falas Diversas: quatro estudos sobre Joaquim Norberto. Maria Eunice Moreira (Org). Porto Alegre:<br />

Centro de Pesquisas Literárias: PUCRS, 2000. P.13.<br />

123 GARRETT, Almeida. Bosquejo da poesia e língua portuguesa. Parnaso Lusitano. Paris: Ailluaud,<br />

1826-1827. O texto integral do Bosquejo encontra-se em: ZILBERMAN, Regina e MOREIRA, Maria<br />

Eunice. O berço do cânone: textos fundadores da literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto,<br />

1998. p.29-73.<br />

124 O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I. nº 01, 01/01/1845.<br />

125 O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I. nº 01, 01/01/1845.<br />

77


Governo Provincial pelo Sr. Comendador Gomes Freire de Andrade, e pelo mesmo<br />

governo remetido ao Exm. Ministro do Império. Outro exemplo é a Chronografia Geral<br />

da America. Grandes epochas da América caracterisadas por seus principaes<br />

acontecimentos 127<br />

Com relação ao resgate, construção e documentação da História e da identidade<br />

do Brasil e de Minas, é imprescindível notar que foram utilizadas traduções de textos de<br />

estrangeiros como referência teórica em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Auguste de Saint-<br />

Hilaire 128 foi o estrangeiro que mais teve publicados nesse periódico fragmentos de suas<br />

obras que se referiam à Província de Minas Gerais. Na edição de 15 de maio de 1845<br />

encontra-se a tradução da Descrição da Vila de Itabira do Mato Dentro; em 01de<br />

agosto de 1845 a Descrição da Vila do Fanado; aos 15 de agosto do mesmo ano é<br />

publicada a Descrição do Arraial do Rio Vermelho; em 01 de setembro Serra e<br />

Ermitário de Caraça; na publicação de 01 de novembro, de 1845 Vila Rica em 1816;<br />

aos 15 de novembro as descrições de Itambé, Inficcionado e Capelinha; aos 15 de<br />

dezembro de 1845 Capão do Cleto e Abelhas; na publicação de 15 de janeiro de 1846 a<br />

Descrição da Vila do Príncipe; e em 01 de fevereiro desse mesmo ano, a de São Miguel<br />

e Almas, ou de Piracicaba. Podemos ainda perceber, à página 225 do 2º tomo do<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, no texto intitulado As Viagens do Mr. Augusto de Saint-Hilaire<br />

pelo Brazil (que antecede a tradução da Descrição da Vila do Fanado), a posição dos<br />

redatores com relação à obra deste viajante naturalista:<br />

126 O <strong>Recreador</strong> M ineiro.Tomo I. nº 08, 15/04/1845.<br />

127 O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I. nº 06, 15/03/1845.<br />

128 Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) veio para o Brasil na companhia do Sr. Duque de Luxemburgo,<br />

embaixador ordinário da França no Brasil, e aqui permaneceu de 1816 a 1822. Percorreu as províncias<br />

do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande<br />

do Sul. Foi um dos autores que mais contribuíram para o conhecimento da flora brasileira. Escreveu,<br />

com a colaboração de Sussieu e Compedessedés, a obra intitulada Flora Brasiliae Meridionalis, que foi<br />

publicada em Paris entre os anos de 1824 e 1833. Todos os seus relatos foram escritos para serem<br />

78


“Os Redactores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> conhecem que as suas<br />

considerações não podião deixar de recahir sobre o longo estado de<br />

adormecimento, que tem existido para com a importante descripção<br />

physico-historia sobre o Brasil pelo illustre viajante naturalista<br />

Augusto de St. Hilaire.<br />

Os trabalhos topographicos approximão de mais perto as feiçõers de<br />

todos os paizes; e o homem, que nutre o amor ao solo natal, consagra-<br />

se por si proprio, ou pela tradição escripta ao estudo dos factos da<br />

natureza, da convenção, e da arte, que lhe revelão as variadas phases<br />

de existencia phisica, e moral decorridas, ou ainda remanecentes no<br />

circulo em que a sua patria se conserva inscripta.<br />

Não é digno por certo dos soffrimentos do abandono tão interessante<br />

assumpto; e ainda que o concurso de muitas causas veda<br />

ordinariamente a empresa de huma exploração pessoal, ao menos<br />

destinaremos a nossa penna á util tarefa de transmittir, bem como o<br />

havemos transmittido nos precedentes ns. de nossa folha, em versão<br />

nacional, os trabalhos descriptivos do sabio viajante, de quem temos a<br />

honra d`extractar preciosos quadros que tão accuradamente revelão os<br />

differentes aspectos da obra da natureza, e do homem nesta provincia.<br />

As relações historicas de st. Hilaire possuem caracteres inherentes<br />

d`exactidão, veracidade, e interesse. O exame dos productos vegetaes<br />

do Brasil era o designio do illustrado naturalista, que nos coadjuva;<br />

comtudo, elle não se subtrahio a esforço algum para recolher tambem<br />

todos aquelles factos, que podessem, debaixo de outras relações,<br />

apresentar huma idéa justa de tão interessante paiz. Mr. St. Hilaire não<br />

se limitou a explorar lugares frequentados; internou se tambem pelas<br />

mais desertas regiões; e estudou as Tribus Indigenas. Protegido pelas<br />

autoridades locaes, e acolhido em todas as povoações com a<br />

hospitalidade mais generosa, poude ver tudo o que existia de mais<br />

notavel, e reunir os mais preciosos esclarecimentos. Escrevia elle<br />

todos os dias hum jornal minucioso de quanto se apresentava ás suas<br />

indagacões; e nelle consignava tudo o que podia contribuir a hum<br />

perfeito delineamento do territorio percorrido. – “A exactidão,<br />

confessa o mesmo naturalista, é levada a tal escrupulo nas minhas<br />

publicados na Europa e foram traduzidos para a Língua Portuguesa pelos redatores do periódico<br />

ouropretano O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, que circulou entre 1845 e 1848.<br />

79


elaçOes’que muito menos me desvelei em corrigir o meu estilo, do<br />

que pintar com fidelidade o que havia observado.”<br />

Taes sào os caracteres do Archivo, que possuimos; e a interpretação<br />

dos signaes, que o representão, escondido á língua vulgar, contrahe de<br />

certo huma divida, que a necessidade da illustração geral tem direito a<br />

reclamar. Entretanto continuaremos a offerecer aos nossos assignantes<br />

os trabalhos das nossas versões sobre as referidas viagens; aspirando a<br />

que de alguma maneira se amortize aquella divida, cuja existencia<br />

conserva huma lacuna, que desejariamos ver preechida.” 129<br />

Percebemos que a opinião dos R.R. acerca da obra de Saint-Hilaire revela<br />

grande identificação com as idéias do cientista naturalista. Os R.R. procuram amortizar<br />

uma dívida “que a necessidade de illustração geral tem o direito de reclamar”. Assim,<br />

objetivando ilustração geral, as descrições e os comentários imparciais do sábio e<br />

ilustrado viajante naturalista francês teriam grande utilidade. Contudo, o ponto de vista<br />

de Saint-Hilaire não é tão imparcial. Observemos o fragmento abaixo, que é parte do<br />

prefácio escrito por Auguste de Saint-Hilaire para seu livro Viagem pelas províncias do<br />

Rio de Janeiro e Minas Gerais:<br />

“Permitir-me-ei a poucas reflexões; direi o que tiver visto, procurando<br />

apresentar os fatos sob o seu aspecto real, deixando, na maioria das<br />

vezes, ao leitor, tirar por si as consequências.” 130<br />

Percebe-se nele, de forma ambígua: a tentativa de isenção do autor com relação<br />

aos fatos que relata; e o fato de que o autor orienta a narrativa através do foco<br />

determinado pelo próprio olhar. Portanto, as conseqüências possíveis ao leitor são<br />

previamente filtradas pela ótica do autor. Ótica essa que se dá sob o prisma do<br />

129 In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo II. nº 15, 01/08/1845. p.225<br />

130 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais; tradução<br />

de Vivaldi Moreira. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1975.<br />

P.04.<br />

80


naturalismo, assimilando a predominância do espírito científico sobre a concepção<br />

espiritualista. Prioriza-se, desse modo, o que é natural, acessível ao nosso<br />

conhecimento, tomando como incogitáveis as especulações sobrenaturais. Assim, o<br />

conhecimento se processa pelo uso da razão humana, que deve orientar-se unicamente<br />

pelo espírito científico, positivo, localizado no âmbito dos fatos e embasado nos<br />

métodos de experimentação objetiva, os quais obedecem a normas impessoais e<br />

procuram ser isentos de qualquer interpretação subjetiva. O próprio autor, no primeiro<br />

capítulo do livro aqui em questão, assume a postura naturalista, evidenciando a<br />

cognoscibilidade como forma necessária de aprendizado:<br />

“O gosto pela História Natural faz nascer o de viajar. Após ter<br />

estudado os objetos que o rodeiam , o observador sente a necessidade<br />

de examinar outros, e daí esse desejo ardente, que experimentam<br />

quase todos os naturalistas, de visitar regiões longínquas.” 131<br />

Uma vez que as observações de Saint-Hilaire partem daquilo que o circunda<br />

para aquilo que está distante de sua pátria, a citação acima evidencia, também, o caráter<br />

comparativo existente nos seus relatos. Esse caráter estende-se para além da sua pátria,<br />

enquanto parâmetro de comparação e, por diversas vezes, torna-se explícito. Quando,<br />

por exemplo, para caracterizar o tipo de construção das habitações brasileiras do<br />

período colonial o autor deixa transparecer o que é para ele exótico, a princípio, com<br />

relação às diferenças existentes entre França e Portugal. Assim, nota-se que as<br />

informações são filtradas pela ótica do autor através do seu conhecimento e julgamento<br />

acerca da cultura ibérica e que, para descrever genericamente a planta das habitações<br />

brasileiras, o autor evidencia aspectos culturais oriundos da colonização.<br />

131 Idem. P.17.<br />

81


Pode-se então chegar à conclusão que o olhar europeu ‘sobre’ o Brasil exerceu<br />

influência na formação de estereótipos, de imagens e da consciência acerca da<br />

identidade nacional e na construção da própria imagem e identidade brasileiras. Assim,<br />

observações de Saint-Hilaire podem ter sido incorporadas ao discurso dos redatores do<br />

Recredor <strong>Mineiro</strong> para que estes pudessem então preencher a lacuna que amortizaria<br />

referida dívida, uma vez que os redatores do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, apoiando-se em<br />

formas Ilustradas, criticam de modo construtivo a sociedade mineira (e brasileira, em<br />

geral) tentando fazer desse periódico o antídoto para os “enojos sociais” que foram<br />

apontados por vários estrangeiros que passaram pela província. Dentre os quais Saint-<br />

Hilaire, que declarou:<br />

“O principal dever de quem escreve é dizer a verdade, e, dando-se a<br />

conhecer os abusos, pode-se ter a esperança, repito-o, de que se façam<br />

esforços para os arrancar.<br />

Faltam os elementos para reformas rápidas em regiões de população<br />

tão pouco densa e ignorância ainda tão profunda. (...) quando (...)<br />

alguns entre os brasileiros da geração que agora está se educando<br />

lançarem uma vista por este livro, verão o quanto devem agradecer a<br />

seus pais por terem começado a tirar o país de objeção tão<br />

deplorável.” 132<br />

Posicionamento este que suporta a possibilidade de absorção da ideologia desses<br />

estrangeiros pelos redatores na tentativa de sanar os problemas sociais do país,<br />

promovendo, dessa forma, o ajustamento ideológico deste com as nações então<br />

consideradas desenvolvidas, utilizando-se da literatura como “ferramenta” para efetuar<br />

essa “manutenção social”. Além disso, “é importante levar sempre em conta a posição<br />

que um discurso a ser citado ocupa na hierarquia social de valores. Quanto mais forte<br />

for o sentimento de eminência hierárquica na enunciação de outrem, mais claramente<br />

82


definidas serão as suas fronteiras, e menos acessível será ela à penetração por tendências<br />

exteriores de réplica e comentário.” 133<br />

Tais considerações acerca da tradução da obra de Saint-Hilaire se fazem<br />

possíveis em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, uma vez que, na publicação de 1º de março de 1845,<br />

um artigo intitulado Traduções – Crítica Sobre Este Assumpto, nos permite perceber a<br />

consciência dos redatores com relação à importância da tradução enquanto veículo de<br />

interação entre duas linguagens e, conseqüentemente, entre suas ideologias:<br />

“Bem ponderou a celebre Baronesa de Stael,- que nenhum serviço<br />

mais eminente se podia tributar à Litteratura do que transferir de huma<br />

lingua extrangeira para o proprio idioma os Chefes de Obra do<br />

engenho humano; por que, sendo tão pouco numerosas as producções<br />

de primeira ordem, e o genio hum phenomeno tão raro, cada huma das<br />

nações modernas jamais passaria da indigencia se existisse reduzida á<br />

sua propria riqueza.( ...) ao mesmo tempo que a linguagem vertida, e<br />

escripta é mais proficuo, e proporcionado vehiculo, que transporta<br />

com rapidez a todas as classes os ricos thesouros, que jazião no<br />

idioma alheio. Não vos mortifique o vehiculo da doutrina, interesse-<br />

vos as vantagens de sua essencia; e se tanto vos apraz o progresso das<br />

luzes, como satyrisais tão barbaramente a seus propagadores? Qual<br />

seria o espectaculo do genio, e do talento visitando com seus<br />

productos os homens de todos os paizes sem o interprete de huma<br />

linguagem relativa?” 134<br />

Segundo Antonio Candido, talvez tenha sido Madame Staël, na França, “quem<br />

primeiro formulou e esboçou sistematicamente a verdade que (sic) a literatura é também<br />

132 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op.Cit. p.05.<br />

133 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem.Tradução de Michel Lahaud e Iara Frateschi<br />

Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995. p.153<br />

134 Traduções – Crítica Sobre Este Assumpto . In: O recreador <strong>Mineiro</strong>. 01/03/1845<br />

83


um produto social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre.” 135 Tendo<br />

isso em vista, trataremos a tradução enquanto necessidade de adequação de um texto<br />

estrangeiro (e, conseqüentemente, de um discurso) ao idioma falado no Brasil.<br />

Considerando essa necessidade como revelação da confiança e da consonância com o<br />

que é expresso por tal texto (pela escolha deste como fonte para fins de resgate e<br />

documentação da História de Minas Gerais), podemos crer que sua tradução e<br />

publicação expressam, de acordo com a finalidade com a qual ambas ocorrem, a<br />

apropriação do discurso que nele (no texto) se encerra.<br />

Como revelação do lugar da linguagem na vida do ser humano, podemos<br />

considerar que o discurso, resultante de determinadas condições de produção, está<br />

situado no interior de uma relação de forças que é o processo de produção; que a<br />

linguagem é, então, uma prática social criadora da realidade, constituindo-se, assim, na<br />

materialidade específica da ideologia. A partir dos anos 70 do século XX são<br />

enfatizados os aspectos sociais da linguagem; o falante concreto, historicamente<br />

situado; e as condições de produção do texto: situação, contexto, estrutura social e<br />

relações sociais. No texto Tradução: Encontro entre Linguagens e Ideologias, Maria<br />

Cândida Rocha Bordenave considera esse momento (a partir de 1970) como o de uma<br />

lingüística socialmente constituída, levando à consideração da ideologia. Esta é<br />

conceituada pela autora como o conjunto de idéias, valores e normas que indicam e<br />

prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar, valorizar, sentir e fazer. A<br />

autora considera que, além de se constituir como materialização da ideologia, a<br />

linguagem atua como sua transmissora e perpetuadora, confirmando os sistemas de<br />

crença que legitimam as instituições de poder. Considera, ainda, que tudo que foi dito<br />

135 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6ª edição. Belo<br />

Horizonte: Editora Itatiaia, 1981.<br />

84


da relação linguagem/ ideologia aparece em duplicidade na tradução, apresentando um<br />

complicador a mais: o confronto que se situa na relação tradutor X obra original. Outra<br />

instância desse conflito é aquela em que a ideologia/ cultura de uma comunidade<br />

lingüística diverge parcial ou totalmente da de outra comunidade para a qual a obra é<br />

traduzida.<br />

Assim, considerando o processo de tradução como o confronto entre duas<br />

línguas (sendo as estruturas lingüísticas de cada idioma condicionadas por normas<br />

sociais sujeitas a grandes variações interculturais), podemos crer que o momento<br />

histórico em que são realizadas as traduções publicadas em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

influenciou, tanto na aceitação da ideologia presente nos textos originais, quanto na<br />

absorção dessa ideologia em detrimento daquela anteriormente vigente com o propósito<br />

de construção de uma nova realidade através da materialização da ideologia da língua<br />

de partida na língua de chegada (neste caso, a Língua Portuguesa falada no Brasil):<br />

(...) Os artigos traduzidos (menciona-se sómente os de traducção dos<br />

R R.) apresentão-se como outras tantas peças originaes dos mesmos R<br />

R., debaixo das relações de sua versão. (...) ora invocando as<br />

circumlocuções, ora apropriando-nos de um só termo, mais, ou menos<br />

intenso na accepção, adultera-se o pensamento original (...) Mas<br />

quando sobrevenha ou deixe de sobrevir esta dolorosa alternativa, o<br />

traductor, feliz na copia do seu verdadeiro prototypo, qual o<br />

pensamento que transfere para o patrio idioma, fructo nunca sazonado<br />

sem a luz dos principios, e o laborioso das fadigas, é sempre digno dos<br />

attibutos honrosos da originalidade. 136<br />

Com isso, percebemos que os redatores de O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, além de terem<br />

se valido da tradução de textos de estrangeiros para resgatar e documentar a História de<br />

Minas Gerais, incorporaram ao discurso nacionalista os traços ideológicos desses<br />

136 Schollio aos seis volumes do recreador mineiro. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo VII.<br />

85


estrangeiros que suportariam o sentimento de lusofobia. Portanto, a tradução funcionou,<br />

neste caso, como o veículo dessa incorporação de ideologias: promovendo não só a<br />

divulgação das idéias dos cronistas que por aqui passaram e o conhecimento dos estudos<br />

sistemáticos por eles feitos acerca do Brasil, como também a aceitação de tais idéias,<br />

passando assim os intelectuais brasileiros a apropriar-se delas na constituição do<br />

discurso nacionalista brasileiro.<br />

Contudo, percebe-se que, de certa maneira, os redatores do <strong>Recreador</strong> tinham<br />

consciência da receptividade e da valorização do “estrangeiro”, caracterizadas pela<br />

visão eurocêntrica do mundo nos séculos XVIII e XIX. Este aspecto pode ser observado<br />

com maior clareza no artigo O Estrangeirismo, publicado à página 365 do 2º tomo do<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Devemos destacar o fato de que o referido artigo é de autoria de um<br />

dos assinantes do periódico. O anônimo assinante inicia seu texto comentando que:<br />

“Ordinariamente e em toda parte gostâmos mais do que é estrangeiro,<br />

do que o que é nacional. Ainda que hum juizo solido e amigo das<br />

realidades, nos mostre huma boa cousa que é nossa, lá vem a<br />

imaginação frivola do homem, e por circunstancias que nada influem<br />

essencialmente na cousa , faz-nos achar melhor o que não é nosso!” 137<br />

Comenta que, se, por exemplo, fosse composta na cidade de Ouro Preto uma<br />

moda de viola, enquanto não se soubesse que o autor era ouropretano esta passaria pela<br />

do melhor gosto possível, mas desde que se apontasse com o dedo para seu verdadeiro<br />

autor cessaria todo o prestígio. Logo seria fria, não casaria bem a música com a letra,<br />

seria muito extensa, ou muito breve. Em seguida, o ilustre assinante anônimo aborda a<br />

temática dos romances, declarando que se fosse escrito, por exemplo, um romance cujo<br />

assunto fosse um fato contemporâneo e acontecido na província, ler-se-iam esse<br />

137 O Estrangeirismo. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo II. p.365.<br />

86


omance com ar desdenhoso. Ainda que houvesse seu autor semeado nele “todas as<br />

flores da eloquencia narrativa e crônica, todos os principios phylosophicos recebidos”,<br />

nada valeria. Nada disso seria bastante, pois logo alguém diria:<br />

“que graça tem isto? não vejo aqui lady fulana, miss tal, mistress.... e<br />

mais nomes e tratamentos que nos romances inglezes se encontrão.<br />

(...)Diz outro :__ Aqui falla-se em D. Laura, nada de madamoisell,<br />

como nas novellas francezas, nem em monsieur de tal: nem huma<br />

personagem é um sir, hum cavalheiro; e de mais onde está huma<br />

campina coberta de neve, hum rio gelado e outras cousas? Huma<br />

menina que eu vi ali no arraial... (nome tão trivial), e hum esturdio que<br />

eu vi muitas vezes apanhando bolos na eschola do mestre.... são la<br />

para heróes d’hum romance? O meu patricio autor do romance que<br />

cuide noutra vida.” 138<br />

Portanto, aquilo que não cheirasse a estrangeiro não prestaria. E o resultado<br />

disso, segundo o assinante, seria não querer o poeta honrar com sua pena as belezas do<br />

solo pátrio e narrar os costumes de seu povo; reduzindo a fatos a moral, os prejuízos e<br />

as preocupações deste para “emenda” de seus erros e demais fins de importância aos<br />

quais pode se destinar sua obra. Aqui percebemos as relações existentes entre o gênero<br />

romance e a função pedagógica da literatura. Nota-se também que a predileção dos<br />

leitores por romances ingleses e novelas francesas pode ter balizado a escolha de<br />

temáticas, espaços, personagens e outros elementos da narrativa. Observemos também<br />

que o periódico dispunha de um tradutor inglês chamado John Morgan e que os<br />

redatores aceitavam a colaboração de estrangeiros para a produção do jornal.<br />

138 Idem.<br />

Por fim, declara o assinante que:<br />

“Não é assim que se tem huma litteratura nacional; é sim<br />

acoroçoando, ainda que sem exageração, os esforços de nossos artistas<br />

ou litteratos. Podemos e devemos admirar o que for bom do<br />

87


estrangeiro, para o imitarmos, e nem por isso ficamos compromettidos<br />

a tractar com despreso o que é nosso quando mesmo inferior(...).” 139<br />

Percebemos até então que os redatores e, neste último caso um dos assinantes do<br />

periódico, tinham consciência da supervalorização daquilo que vinha do exterior.<br />

Contudo, primavam pelo reconhecimento do caráter nacional, evidenciando que a<br />

apropriação das idéias estrangeiras seria viável para a restauração e manutenção social<br />

estimada pelo momento histórico que passavam. Este, suportado por um crescente<br />

espírito lusofóbico de distinção e aversão a Portugal. Veremos então, no terceiro<br />

capiítulo deste estudo, como o estrangeirismo e o historicismo se fizeram presentes nos<br />

romances-folhetins publicados em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>.<br />

Ainda no artigo O Estrangeirismo, o assinante faz referência ao fato de que os<br />

romances são registro dos usos e costumes dos povos, o que mostra a necessidade de<br />

registrar por meio da literatura os traços da cultura e da identidade nacional. O caráter<br />

histórico atribuído ao gênero é apontado também pelos redatores do <strong>Recreador</strong> no<br />

artigo O Romance. Observam a relação entre a Literatura e a História como traço<br />

inerente ao gênero folhetinesco. Deve-se também observar que os romances-folhetins<br />

eram publicados na seção “Memória” do periódico sob o tema “História”.<br />

Desse modo, na edição de 15 de junho de 1847, figura um texto intitulado A<br />

Serra da Saudade, que é caracterizado pelos assuntos do índice como “Romance<br />

Histórico”. E no artigo intitulado O Romance, publicado à página 19 do segundo<br />

número do <strong>Recreador</strong>, declaram os redatores que o romance se constitui como fiel<br />

resumo dos hábitos e costumes de uma nação. Comentam que o filósofo imparcial, por<br />

muitas vezes procura a verdade na história e vai encontrá-la no romance, pois:<br />

139 Ibidem.<br />

88


“A história com todos os fumos da antiga aristocracia, apenas demora<br />

suas vistas soberanas sobre altos casos, os reis, suas victorias,<br />

desastres e politica: o romance, menos altivo, democrata moderno,<br />

compraz-se com poucas cousas, abraça a multidão, identifica-se com o<br />

povo, e modes o segue a indole e caracter nacional.” 140<br />

Denunciam o fato de que, por várias vezes, o historiador traça a seu modo os<br />

fatos, ornando-os de outras molduras e dando-lhes outra aparência. Consideram que o<br />

romancista, por sua vez, parecendo entregue de todo à imaginação é mais inclinado à<br />

verdade do que à História, descreve fielmente os costumes da época, apresentando em<br />

seus quadros as virtudes e vícios do seu tempo e povo. O historiógrafo, segundo os<br />

redatores todo ocupado com reis, mortos, incêndios e batalhas, teria apenas tempo de<br />

marcar-nos algumas datas para certos acontecimentos políticos; enquanto que o<br />

romancista, lidando sempre com o súdito, tomaria para si a tarefa de traçar melhor a<br />

fisionomia da nação, aprofundando-se mais em suas querelas, lançando melhor luz<br />

sobre a matéria e mostrando claramente o que se passa no tempo:<br />

“Assim suas pinturas são mais vivas, esmiuçadas e verdadeiras, seus<br />

traços mais animados, e suas producções respirão actividade, força e<br />

vida; este estudo alcança o homem em sua fisiologia, e o garboso no-<br />

lo mostra em acção: aquelle porem enfadonho e monotono, sob<br />

honorifico nome de historia, apresenta-nos sem graça hum esqueleto,<br />

cujos ossos truncados, ligados á vontade, offerecem as saliencias que<br />

o autor quiz, e não as marcas da inserção dos musculos, trajecto de<br />

vasos, e outras que verdadeiras saõ e realmente existem.” 141<br />

Consideravam que o romance era ainda de interesse do filósofo, quando este, em<br />

sua imaginação ardente, borbulhando de idéias de amor do seu país, traça um plano de<br />

140 O Romance. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I. nº 02. p.19.<br />

141 Idem.<br />

89


educação, formula as normas a seguir na lei, coordenando um sistema de felicidade<br />

pública e nacional. Em nota ao artigo O Romance, publicada no artigo Schollio aos 6<br />

vollumes do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, os redatores evidenciam a função pedagógica do<br />

romance:<br />

“(...) nota ampliativa ao citado artigo.<br />

O romance , ou folhetim , foi sempre o fructo do bom gosto, da<br />

polidêz e da erudição dos Gregos, cultores das sciencias e das artes;<br />

mas no seculo 11., o folhetim degenerou de sua pureza com a<br />

barbaridade dessa épocha, e com seus costumes grosseiros;<br />

insensivelmente porêm restaurou, e aperfeiçoou sua primitiva theoria .<br />

As nações cultas modernas tem-se dedicado, e continuão a dedicar-se<br />

a este interessante genero de producção, vinculando-o á nobreza, e<br />

utilidade do assumpto; e empregando-o para inspirar com a<br />

jucundidade o amor dos bons costumes, e incutir a virtude por meio de<br />

quadros simplices, naturaes, e engenhosos dos accidentes da vida<br />

humana. Para se decidir das propriedades energicas desta feliz<br />

producção, ouça-se o doutissimo Cavalheiro de Jaucourt.___O<br />

romance, diz elle, é a ultima instrucção que resta a prescrever-se a um<br />

povo, quando por nimiamente corrupto se torna inaccessivel a outro<br />

qualquer genero de lições moraes ___ . Encerra pois esta classe de<br />

composição tão grandes modelos de constancia, e virtude; tão heroicos<br />

exemplos de ternura, e desinteresse; tão justos, e perfeitos caracteres,<br />

que o seu espirito, reflectidamente comprehendido sem a<br />

phantasmagoria litteral, moralisa o coração humano com o quadro dos<br />

sentimentos, que lhe perscruta, ou com as emoções que lhe excita.” 142<br />

Segundo os redatores, o romance não parecia, naquele momento, estar “mais que<br />

offerecendo sob véo d’aphano e allegorico a pintura dos homens e das cousas”. Porém,<br />

essa pintura era por eles considerada de muita preciosidade para o conhecedor que a<br />

sabe aproveitar: o observador que atentasse com cuidado aos romances dos diversos<br />

142 Scholio aos 6 vollumes do recreador <strong>Mineiro</strong><br />

90


povos e idades, tiraria muitas vantagens para o conhecimento dos costumes, alcançando<br />

o fio que lhe serviria de guia no intrincado labirinto do coração humano. Consideravam<br />

que:<br />

“Outra vantagem tambem vê-se no romance, e é o desenvolvimento<br />

progresivo dos conhecimentos seguidos e aumentados na sua historia;<br />

por isso que cada hum romance, sendo o representante das idéas que<br />

dominão o paiz, e trasendo o cunho do seculo em que foi composto,<br />

descobrira dest’arte qual a marcha que em sua viagem tem feito certas<br />

crenças, quaes os paízes em que forão adoptadas ou repellidas, e<br />

quaes aquelles emfim em que ficarão naturalisadas. Pela alluvião de<br />

fabulas que a cada passo encontramos nos povos, e de que se achão<br />

recheados os romances, convence se facilmente do ascendente que o<br />

maravilhoso tem em todos os tempos exercido sobre os corações<br />

humanos, que, abraçando o falso, endeosando os idolos, parecem (...)<br />

despresar a verdade e a exactidão.<br />

Sempre houve, ha e hade haver, vicios a combater, asneiras de que<br />

zombar, e excessos a reprimir: pelo romance com facilidade se<br />

descobre o gráo maior ou menor de liberdade de que gosa o paiz; pois<br />

que o escriptor, tomando sempre medidas para descarregar sem<br />

prejuiso os golpes de que esta armado, pelo claro escuro que deixa nos<br />

quadros, e pela escolha das tintas, denunciado fica o gráo de<br />

civilisação e liberdade do paiz, e a que prêas ligavão o autor.” 143<br />

Portanto, verificando a existência de um direcionamento tanto sociocultural<br />

quanto literário, no capítulo seguinte procuraremos cuidadosamente observar como o<br />

grau de liberdade e civilização é denunciado nos romances publicados em O <strong>Recreador</strong><br />

<strong>Mineiro</strong>. Verificaremos também as relações estéticas existentes entre os romances<br />

publicados em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> e aqueles publicados em países de ideologia<br />

liberal, como a Inglaterra, a Alemanha e a França.<br />

143 O Romance. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I. nº 02. p.19.<br />

91


3 – O Romance-Folhetim e o Discurso Liberal em o <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

3.1 – De onde vem o romance-folhetim ?<br />

Inventado pelo jornal, e para o jornal, o feuilleton-roman, como era chamado a<br />

princípio, surgiu na década de 30 do século XIX na França. Segundo Marlyse Meyer, o<br />

gênero foi concebido por Émile Girardin que, para democratizar o jornal na época de<br />

consolidação da burguesia (não mais privilegiar apenas os que podiam pagar por caras<br />

assinaturas), aumentando assim o seu público leitor, deveria tornar o produto mais<br />

barato (o que conseguiu com a utilização da publicidade, de origem inglesa) e “arejar-<br />

lhe a matéria, tornando-o mais acessível”. 144<br />

Devemos observar que já havia desde o começo do século o feuilleton, ou<br />

rodapé, de tom e assuntos tradicionalmente mais leves que o resto do jornal e muito<br />

cerceado pela censura. Completado com a rubrica da “variedade”, o folhetim pode ser<br />

dramático, crítico, tornando-se cada vez mais recreativo. Por esse viés penetra a ficção,<br />

na forma de contos e novelas curtas. Utilizando-se do que já ocorria nos periódicos,<br />

Girardin da um passo decisivo quando publica ficção em pedaços, criando “o mágico<br />

chamariz ‘continua no próximo número’ e o feuilleton-roman.” 145 Meyer considera que<br />

para atingir um público mais amplo ao qual se destinava a publicação em série a<br />

estrutura da narrativa era delineada pelas condições de publicação, suscitando uma<br />

forma novelesca específica que acabará por se confundir com o termo folhetim.<br />

144 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 30<br />

145 Idem. p. 31<br />

92


Na obra Folhetim: uma história 146 , Marlyse Meyer faz uma análise histórico-<br />

crítica do desenvolvimento do gênero romance publicado em forma de folhetim,<br />

elaborando, segundo Antônio Cândido, “uma verdadeira anatomia do gênero”. Observa<br />

o desenvolvimento do romance-folhetim na Europa e a circulação e difusão desses<br />

folhetins estrangeiros no Brasil, bem como as relações com a produção nacional.<br />

Também pontua a intertextualidade que obras da literatura brasileira estabelecem com<br />

folhetins estrangeiros, como é o caso do Sinclair das Ilhas, um dos textos, segundo<br />

Cândido, mais difundidos no Brasil oitocentista 147 :<br />

“Exaustivo e sistemático levantamento permitiu a Raimundo de<br />

Magalhães Jr. mostrar que em grande quantidade de contos e<br />

romances de Machado praticamente o único livro lido por seus<br />

personagens é o Saint-Claire das Ilhas. (...) mas não se limita à obra<br />

de Machado a referência ao ‘velho romance’. (...) o Sencler das Ilhas<br />

também foi o primeiro romance que leu o narrador de Grande Sertão<br />

Veredas (...)” 148<br />

Marlyse Meyer divide a produção do romance-folhetim em três épocas: de 1836<br />

a 1850, com Eugéne Sue; de 1851 a 1871, com Ponson du Terrail; e de 1871 até 1914,<br />

com autores como Émile Richebourg e Xavier de Montépin. Chama-nos particular<br />

atenção a primeira, de 1836 a 1850, cujo protagonista é Eugene Sue e cuja narrativa faz<br />

referência a um aspecto importante da obra de Meyer: “a consciência social dos<br />

folhetinistas”. 149 Assim, Marlyse Meyer considera que o início do romance-folhetim<br />

“data da pós-revolução burguesa de julho de 1830, a qual coincide com o estouro do<br />

146 Ibidem.<br />

147 Idem Ibidem. p. 15<br />

148 Ibidem Ibidem. p. 24<br />

149 Ibidem Ibidem. p. 14<br />

93


omantismo, já então na fase chamada romantismo social” 150 . É importante observar que<br />

“Sue fez do romance uma espécie de investigação da sociedade, desenvolvendo um<br />

traço importante do romantismo, que foi a descrição dos meios populares e criminosos,<br />

além de estabelecer a sua ligação com as camadas dominantes (...) suas ligações<br />

criadoras com a análise da sociedade.” 151 Tais ligações se constituem, na obra de<br />

Meyer, como importante elemento para a compressão do desenvolvimento do gênero<br />

folhetinesco e das conexões desse tipo de literatura com o momento histórico e os<br />

problemas sociais. Assim, para o estudo que se propõe, Meyer dosa a referência externa<br />

e a anatomia externa das obras. E no que diz respeito ao estudo do problema das origens<br />

do romance brasileiro “considerando a ausência de tradição contínua e de modelo<br />

português do gênero” 152 , Marlyse assinala para a possibilidade de que a leitura de ficção<br />

estrangeira no Brasil nas vésperas da criação do romance nacional pode ter<br />

desempenhado um eventual papel formador na elaboração de nossa ficção em prosa.<br />

Remete então a um fragmento do texto Como e porque sou romancista, de José de<br />

Alencar:<br />

150 Ibidem Ibidem. p. 64<br />

151 Ibidem Ibidem. pp. 14-5<br />

152 Ibidem Ibidem. p. 26<br />

“Era eu quem lia (...) não somente as cartas e os jornais, como o<br />

volume de uma diminutiva livraria romântica formada ao gosto do<br />

tempo (...). Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances<br />

que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa nova<br />

forma literária que é entre todas a de minha predileção (...) Nosso<br />

repertório romântico era pequeno: acompanhava-se de uma dúzia de<br />

obras, entre as quais primavam a Amanda e Oscar, Saint-Clair das<br />

Ilhas, Celestina e outros que já não me recordo. Esta mesma escassez,<br />

e a necessidade reler uma e muitas vezes o mesmo romance, quiçá<br />

94


contribuiu para mais gravar em meu espírito os moldes dessa estrutura<br />

literária.” 153<br />

Tal como Marlyse Meyer, não poderemos deixar de acatar o testemunho<br />

fundamental de José de Alencar no que diz respeito à questão das leituras estrangeiras<br />

num momento de ausência de modelo português e de busca pela identificação do gênero<br />

com a consciência social daqueles que através dele expressam suas produções e<br />

posições.<br />

Desse modo, verificaremos neste capítulo a existência em o <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

de romances-folhetins que se identifiquem com as características da produção literária<br />

estrangeira no que diz respeito ao gênero, sua estrutura, suas finalidades pedagógicas de<br />

formação de consciência social, e a possível escolha de temas e elementos que<br />

estimulem o consumo dos folhetins publicados no Brasil através do gosto recorrente do<br />

público pelas narrativas ficcionais estrangeiras.<br />

Faz-se aqui necessário observar que é perceptível, ao longo da publicação do<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, a existência de diversos folhetins que apresentam uma temática<br />

variada. Contudo, devido ao fato de este estudo abordar as relações existentes entre o<br />

referido periódico e a difusão (ou transmissão) da doutrina liberal, houve a necessidade<br />

de estabelecimento de um corpus textual que possibilite a verificação de elementos<br />

ligados à difusão dessa doutrina. Foram então selecionados folhetins que evidenciam<br />

noções basilares da sociedade burguesa como o casamento, a especulação, as leis e a<br />

relação conflituosa entre a ciência e a superstição.<br />

153 ALENCAR. José de. Como e porque sou romancista. In: Obra Completa. pp.131-4 (Apud MEYER)<br />

95


3.2 – A Especulação e o Casamento Burguês:<br />

“- Especulaçaõ de ouro! disse o jovem director pegando na mão de<br />

Euphemia! Ella nos trarà clientes, e ganharemos milhões.”<br />

(A. Collin.)<br />

Para Marlyse Meyer, a relação da sociedade com o dinheiro é revista e ampliada<br />

pelos novos padrões burgueses: “negociatas, investimentos e escândalos financeiros”.<br />

Meta dos gananciosos moderados, dos moedeiros falsos, dos grandes bandidos de<br />

fraque e cartola aos rastejantes malfeitores. “Dos caça-dotes às cortesãs etc.” 154 “Um<br />

homem arruinado, ainda que de boa estirpe e boa índole, é barrado nos salões, que não<br />

exitam então em receber antigos galés enriquecidos, que podem até pretender a mão de<br />

uma filha de duque arruinado.” 155 Assim Marlyse Meyer caracteriza a relação do<br />

indivíduo com o dinheiro e as implicações dessas relações no convívio social de<br />

folhetins franceses no capítulo Frívolos livros da obra Folhetim: uma historia. Notemos<br />

aqui a similaridade com que artigos O homem sem dinheiro 156 , no que diz respeito ao<br />

status do indivíduo na sociedade; e A moeda falsa 157 : “Conta hum viajante moderno que<br />

na Ilha de - u-na-march, descoberta pelos Russos, servem as mulheres de moeda. (...)<br />

porem como este paiz as mulheres são assaz enganadoras corre-se muitas vezes o risco<br />

de se receber moeda falsa.” 158 Notemos com esse artigo a sátira que se opera entre<br />

elementos como o dinheiro e o dote, o comércio e o casamento, a idoneidade das<br />

relações de nogócios e o prejuízo.<br />

154 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 262<br />

155 Idem. p. 262<br />

156 já apresentado em capítulo anterior deste estudo.<br />

157 A moeda falsa . In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 1º de janeiro de 1845, nº 1, Tomo 1. p. 15<br />

158 A moeda falsa . In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 1º de janeiro de 1845, nº 1, Tomo 1. p. 15<br />

96


Com sua trama motivada por uma relação de investimento em sociedade, por<br />

uma negociação validada por todos os meios jurídicos, legais que garantam os direitos e<br />

os deveres das partes envolvidas, A Especulação evidencia a existência de aspectos<br />

concernentes aos padrões burgueses que alteram no período romântico as relações da<br />

sociedade com o dinheiro – no que diz respeito ao dote. Além disso, para os grandes de<br />

fraque e cartola “o dinheiro é a única medida de qualquer talento ou reputação” 159 .<br />

Assim, uma vez que o casamento passa a ser visto como um negócio e forma de<br />

ascensão social para a sociedade burguesa emergente, vejamos como se organiza o ardil<br />

financeiro do nosso caça-dotes, protagonista de A Especulação:<br />

“Em hum dos sitios mais pittorescos dos arredores de Pariz, possue o<br />

Sr. L..... rico capitalista, huma mui linda casa de campo onde passa os<br />

melhores mezes da bella estação. Ha pouco tempo, parou hum<br />

cabriolet no portão do parque, e delle se apeiou um moço que, pelo<br />

traje casquilho, physionomia ingenua e porte airoso, denotava ser<br />

frequentador da bolsa e de Tortoni. O recem-chegado tocou a<br />

campainha, fez-se annunciar e foi introduzido. O dono da casa estava<br />

acidiosamente estirado sobre hum sofá, de chambre e chinelas, em<br />

huma sala ornada com todo o luxo da capital, porque o Sr. L.., que não<br />

tem mui particular affeição á doce moral do Homem dos campos,gosta<br />

de transportar Pariz para a aldêa, e julga que no campo mais ainda que<br />

na cidade, se carece desses prazeres e desses commodos que,<br />

multiplicando as sensações engrandecem a esphera da existencia.” 160<br />

Aqui percebemos a caracterização das personagens: o investidor e o capitalista.<br />

O primeiro, ornado de todos os dotes burgueses que lhe atribuem seu status; o segundo,<br />

segundo nada afeiçoado à moral do homem dos campos e rodeado, literalmente<br />

159 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 262<br />

160 A Especulação.In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo IV. Nº 37, 01/07/1846. p. 587<br />

97


envolvido pelo luxo e pelo requinte do acúmulo do capital, sendo ainda este,<br />

evidenciando o caráter citadino da classe burguesa e o usufruto dos bens para o<br />

engrandecimento da existência. E percebamos ainda que a trama se passa na França,<br />

mais precisamente nos arredores de Paris. Se a especulação pode ser compreendida<br />

tanto como uma “transação que promete grandes lucros, embora com riscos” 161 quanto<br />

como “conjetura maldosa ou não baseada em fatos concretos” 162 , observemos que nosso<br />

galante investidor pode ser apenas um especulador das relações sociais burguesas, como<br />

também um grande bandido de fraque e cartola, produzindo um ardil que não lhe<br />

custará nenhum tipo de prejuízo. Para chegar ao ardil, o investidor se arma de um<br />

preâmbulo retórico, que procura dar a entender a relação entre segurador e segurado,<br />

tocando em aspectos que nos remetem à relação entre a burguesia emergente e sua<br />

necessidade de capital, fazendo com que muitos vissem o casamento como um seguro,<br />

logo, como um negócio, uma garantia financeira procurada pela sociedade burguesa do<br />

século XIX:<br />

“- Desculpai-me, senhor, (...) se venho perturbar vosso repouso para<br />

occupar-vos de projectos da bolsa e de especulação. Mas o negocio<br />

que desejo communicar-vos he importante, póde ter consequencias tão<br />

moralmente uteis para a sociedade, tão pecuniariamente exorbitantes<br />

para os emprehendedores, que julguei perdoarieis minha impaciencia e<br />

me concederieis alguns momentos de atenção. (...) Quem teria<br />

acreditado que ao sahir de hum seculo de duvida e incertezas como o<br />

seculo passado, entrariamos em hum seculo tão eminentemente<br />

segurador e segurado como o nosso, (...) no seculo decimo nono he<br />

pela segurança que a sociedade se organisa: (...) Todas os passos que<br />

161 Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de janeiro: Objetiva. 2001<br />

162 Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de janeiro: Objetiva. 2001<br />

98


damos na vida podem ser segurados, não excluindo a mesma morte.<br />

(...) O poder do seguro estende-se até alem do campo (...)” 163<br />

Querendo chegar logo à razão da visita do homem da cidade, o capitalista faz<br />

soar sua voz e indaga sobre as intenções daquela conversa. Logo em seguida, o<br />

investidor lança o ardil:<br />

“(...)perguntou o capitalista com hum tom de voz secco e metallico,<br />

como o tinido de huma pilha de moedas de ouro que se lança em hum<br />

sacco. - Parece-me ver que he hum projecto de seguros. Que he que<br />

quereis segurar senhor?<br />

(...)<br />

- Pois que cumpre fallar claro, direi que se trata de segurar as moças<br />

contra aquillo que faz a desgraça de sua existencia: contra o celibato<br />

indefinidamente prolongado. (...) Bem vedes que o desejo de ter hum<br />

marido fará com que todas as moças se segurem e que a empreza<br />

realisará em pouco tempo immensos lucros. (...) Por certo que sim a<br />

companhia (...) terá os seus agentes, os seus correctores, os seus<br />

casamenteiros; porá em execução todos os meios de sedução para<br />

casar as suas seguradas, e por isso rarissimas vezes terá de pagar as<br />

indemnidades. Eis o porque sustento que a especulação he das<br />

melhores. (...) Muitos lucros e nenhumas perdas. he o ultimo termo do<br />

progresso em especulação! Se se segura a morte, não se pode evitar<br />

que o segurado morra: se se segura o incêndio, não se pode impedir<br />

que as coisas se queimem: se se seguraõ os riscos do mar, não se pode<br />

fazer com que o navio chegue ao porto a salvamento. mas segurando<br />

o celibato, nada há de mais facil do que fazer casar as seguradas.<br />

- A companhia deve ter sempre à mão huma colleção de homens<br />

prestadios, letrados, medicos, jornalistas, industriosos. que no seu jogo<br />

lhe servirão de piões para pôr cerco ao coração das seguradas.<br />

- Oh! He essa huma condicção indispensavel para o successo da<br />

empreza; e eu me encarrego desse cuidado.” 164<br />

163 A Especulação.In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo IV. Nº 37, 01/07/1846. p. 587<br />

164 A Especulação.In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo IV. Nº 37, 01/07/1846. p. 587<br />

99


Empolgado pela lucratividade da engenhosa idéia apresentada, o capitalista<br />

demonstra interesse pela proposta e decide fechar o negócio, estabelecendo a sociedade<br />

com o moço da cidade. Vejamos como isso ocorre, como os aspectos legais são<br />

evidenciados na narrativa e como o ardil do investidor começa a ser usado pelo<br />

capitalista:<br />

- Pois bem! eis-me às vossas ordens; desejo que este negocio entre nós<br />

dous: nada de bulha, nada de charlatanismo, nada de acções. Esse<br />

methodo he já sediço. ninguém se serve delle Mysterio, meu amigo,<br />

discripção e actividade.<br />

- Nada recieis. tenho o mesmo interesse que vós tendes....<br />

- Bem trazei-me quanto antes a escriptura da sociedade. Entrarei com<br />

quinhentos mil francos, somente sufficente para dar principio à<br />

empreza. Vós entrareis com a vossa agencia, e os lucros serão<br />

divididos.(...)<br />

O moço sahia de casa do Sr. L... em extremo satisfeito de sua visita;<br />

entrou de hum salto no cabriolet, e voltou a Paris. No dia seguinte<br />

levou ao capitalista a escritura da sociedade, redigida segundo as<br />

bazes comcertadas. Depois de a ter lido e assignado, entregou-a o Sr.<br />

L... ao industrioso, dizendo-lhe:<br />

- Eis vos feito director da companhia (...); desejo-vos as maiores<br />

venturas. Para provar-vos quanto me interesso no successo da nossa<br />

empreza, seguro minha filha; quero que seja ella a primeira que figure<br />

na lista das vossas seguradas. Enchei a apolice.” 165<br />

A garota chama-se Euphemia L., tinha dezenove anos, rosto assaz formoso,<br />

talentos de música, desenho, dança, agricultura, e a fortuna de quinhentos mil francos de<br />

dote. O capitalista mandou que o jovem empreendedor determinasse, ele mesmo, o<br />

premio a ser pago como indenização da apólice e a idade em que deve ser paga. E<br />

dizendo que “- He mais que provavel que mademoiselle Euphemia não nos obrigará a<br />

165 A Especulação.In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo IV. Nº 37, 01/07/1846. p. 587<br />

100


pagar a indemnidade”, o jovem empreendedor saudou o seu novo associado e saio. Ao<br />

atravessar o jardim viu Euphemia e disse o consigo mesmo: “Eis-ahi sem duvida a filha<br />

do Sr. L..., a minha primeira segurada; oh! acabo de concluir o mais brilhante negocio;<br />

debutei admiravelmente.” 166<br />

Nos dias que se seguiram, o capitalista percebeu algumas alterações no<br />

comportamento da filha. E perguntou: “Sentes inclinação por alguém? Tens vontade de<br />

casar-te?... Se he pessoa que nos possa convir, sabes tu muito bem quanto estimarei<br />

unir-te a quem possa fazer tua felicidade.” Euphemia confessa ao pai que ama, e quando<br />

este indagou novamente: “E como se chama esse a quem amas?”; a moça respondeu:<br />

“He isso hum segredo que não posso descobrir, tornou Euphemia. Permetti pois que<br />

occulte o seu nome, até que elle mesmo... . (...) Essa reserva excitou a curiosidade do Sr.<br />

L., e como instava com sua filha para que lhe declarasse o nome de seu amante: - Dai-<br />

me tres dias, respondeu-lhe Euphemia, que eu tudo vos direi.”<br />

No dia seguinte, o empreendedor veio visitar o seu sócio, que comentou o fato<br />

de que a “filha tem já o coracão ferido”. O empreendedor replicou: “Talvez seja isso<br />

hum effeito do seguro.” Nesse momento Euphemia entra na sala e o capitalista<br />

pergunta ao empreendedor: “He minha filha, (...) Que tal achais?”. “Formosissima!...”,<br />

respondia o empreendedor quando de súbito disse Euphemia, olhando para ambos:<br />

“Meu pai, (...) prometti fazer-vos conhecer aquelle que amo; pois bem, ei-lo ahi.” E o<br />

empreendedor, carregado de um discurso legal se dirige ao capitalista: “Segundo os<br />

nossos estatutos, respondeu gravemente o diretor, devo procurar que não expire o prazo<br />

marcado.” Assim, percebemos que o jovem moço da cidade conseguiria completar seu<br />

industrioso plano. Mas seria isso uma mera e incrédula obra do destino, que colocaria<br />

166 A Especulação.In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo IV. Nº 37, 01/07/1846. p. 587<br />

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no coração de Euphemia um amor tão grande em tão curto espaço de tempo? Ou seria o<br />

milagroso efeito do seguro, afinal, era realmente uma especulação certa, sem riscos e<br />

com lucros garantidos para ambas as partes. Convinha crer no investimento, e o<br />

capitalista, concordando com o jovem e fazendo uma pergunta à filha, tenta matar sua<br />

curiosidade diante de tão súbito amor:<br />

“- Tendes razão! Mas, Euphemia, diz-me: onde he que fizeste o<br />

conhecimento deste cavalheiro?<br />

- Vi-o a primeira vez no campo, porêm de passagem; depois veio<br />

todos os dias; ajudava-me a regar as minhas flores; passeavamos<br />

juntos no parque; fazia-me versos, desenhava no meu album emfim,<br />

como me pareceu que as suas visitas eram curtas, julguei que em Paris<br />

poderia vê-lo mais amiudo...” 167<br />

E desvelando o ardil do empreendedor, responde a este o capitalista: “Meu<br />

amigo director, sois hum homem habil”. O jovem, mais uma vez apoiando-se no<br />

contrato da sociedade que mantinha com o capitalista responde: “Eu vos protesto,<br />

senhor, que não fiz mais que o meu dever.”. E o capitalista conclui: “Nem eu me<br />

queixo de vós... Minha filha ama-vos, eu vo-la dou. Já tendes em vosso poder os<br />

quinhentos mil francos de dote.”<br />

Assim, através da análise feita a partir do folhetim publicado em O <strong>Recreador</strong><br />

<strong>Mineiro</strong>, percebemos como a especulação financeira e o casamento burguês estavam<br />

ligados à idéia de negócio, lucro e ascensão social. Isso se torna perceptível ao passo<br />

que A Especulação evidencia a relação da sociedade burguesa com o dinheiro através de<br />

negociatas e investimentos. O folhetim também nos traz um capitalista e um investidor<br />

(caça-dotes) que estabelecem uma relação de investimento em sociedade, uma relação<br />

entre segurador e segurado.<br />

167 A Especulação.In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo IV. Nº 37, 01/07/1846. p. 587<br />

102


3.3 – Adultério, Crime e Pecado: a valorização da família na sociedade burguesa e<br />

a função pedagógica do romance-folhetim<br />

Uma vez que as leis garantem os direitos e deveres de um indivíduo junto à<br />

sociedade, cada indivíduo deve se comportar de acordo com as normas estabelecidas<br />

pelo contrato que rege sua convivência harmônica no centro da sociabilidade. O direito,<br />

como mantenedor da sociedade e das organizações jurídicas, garante a liberdade; os<br />

preceitos morais balizam as normas de conduta. Logo, o adultério é uma infração às leis<br />

e aos preceitos morais; além do que diz respeito à religião: o pecado. Marlyse Meyer<br />

considera, ao tratar dos romances de vítima, que “o adultério é sempre do gênero<br />

feminino. O homem comete suas leviandades, mas adúltera é a mulher. (...) É um crime<br />

que a sociedade não perdoa.” 168 Contudo, todo indivíduo é considerado inocente até que<br />

possa a ele ser atribuída a culpa por um crime. Mas com relação ao pecado, a culpa<br />

atribuída pelos preceitos religiosos vem juntamente com a consciência do ato de<br />

infração; assim o castigo precede a culpa.<br />

Envergonhei-me de mim mesma e tive medo , folhetim publicado em o<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, trata do adultério cometido por uma mulher. O título evidencia a<br />

vergonha, frente aos preceitos morais e religiosos, e o medo da descoberta do crime.<br />

A personagem que comete o adultério, a bela Condessa de C. recusou deixar a<br />

capital e “fazer respirar a sua tenra filhinha o saudável ar da sua quinta da Normandia.”<br />

Procurando persuadir a esposa a acompanhá-los à quinta, o Mr. De C., apresenta então<br />

argumentos de ordens diversas; os quais evidenciam um comportamento burguês<br />

associado à economia: “se ergueu Mr. de C... contra esta singularidade; debalde<br />

168 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 253<br />

103


apresentou toda a displicência e solidão de Paris, a necessidade de economizar alguma<br />

cousa, para que sua casa se apresentasse mais brilhante o inverno, concertos que se<br />

precisarão, rendas que era preciso renovar; tudo foi inútil, e Mr. de C. (...) e sua filhinha<br />

ficarão reduzidos aos ares do seu jardim (...)” A ingenuidade e submissão do marido<br />

fazem com que ele apenas pense que “huma mulher de 25 annos, bella (...), não queria<br />

separar-se dos divertimentos da capital.” Mas este estava sendo enganado pela mulher,<br />

que rompendo com os preceitos legais, sociais e religiosos, achava que “Huma amiga de<br />

sua mulher, M.e de Muley, ainda estava em Paris, e esta circunstancia podia ter<br />

determinado a condessa. O conde enganava-se; era com effeito M.o de Muley que<br />

retinha a Condessa em Paris; mas não era como amiga, era como rival.” M.e de Muley<br />

recebia em sua casa Theobaldo de [Mondae], descrito como um mancebo que a muita<br />

fortuna reúne uma bela posição na sociedade, espírito cultivado, e todas a graças do<br />

corpo; e que parecia querer prender-se a esta Sra. Motivada pela inveja que sentia da<br />

amiga, Condessa de C passa a ter ciúmes de Theobaldo e vê-lo com afeição. “invejou<br />

ella á sua amiga huma semelhante conquista” e as duas rivais brigaram. “Theobaldo<br />

aproveitou-se habilmente d’esta circunstancia; capturou-se da Condessa, e fez valer ante<br />

ella o sacrifício que fazia abandonando M.e de Muley.” Assim, a inveja levou à<br />

discórdia, abrindo caminho para a leviandade de Theobaldo e para o adultério da<br />

Condessa de C.<br />

Uma noite, o hábil e eloqüente mancebo entra no quarto da Condessa de C, que<br />

dissimuladamente se assusta e é facilmente dissuadida pelo rapaz. Quando o marido<br />

bate à porta, ela se assusta, mas ao ouvir o coro de dor da filha: “(...) o amor materno<br />

dissipoa então todo o mais amor e susto; a Condessa apontou com o dedo para hum<br />

gabinete a Theobaldo, que se foi esconder n’elle; e ella correu a abrir a porta a seu<br />

marido.” A menina estava doente e o rosto da condessa, “que acabava de corar de prazer<br />

104


ficou mais branco que o filó de seu lenço”. O desespero do pai – que com “ duas<br />

lagrimas paternaes (...) abraçava sua mulher, beijava sua filha, e exclamava: -Há huma<br />

hora que eu era tão feliz! (...) Sou o homem mais feliz do mundo! moço, rico, amado de<br />

minha mulher, e dentro de alguns annos também de minha filha ! (...) Desgraçado! de<br />

repente (...) Amélia! salvai-a, salvai-a!” – evidencia a exposição dos valores familiares.<br />

Valores que são considerados pela sociedade burguesa como o centro e a base das<br />

relações sociais. Tais valores, associados ao instinto materno, são então suficientes para<br />

dissuadi-la do crime que estava por cometer.<br />

“(...) Porem, por mais violento que fosse o seu amor materno, também<br />

pensava na testemunha acusadora que o mais pequeno movimento ou<br />

ruído podia fazer erguer contra ella. Essa mão do Conde que apertava<br />

a sua, queimava-a. E assim esse homem, que chorava em seu seio, que<br />

havia huma hora se julgava tão feliz, era ferido ao mesmo tempo com<br />

dous golpes mortaes, e só sabia ainda de metade de suas desgraças. E<br />

ella também não era ferida? não ia perder sua filha? E huma mãi não<br />

da por hum filho, sem que a cupem, amante, marido, pais, e mundo<br />

inteiro?” 169<br />

E se tomarmos o comportamento anterior da condessa como uma predisposição<br />

ao adultério, antecedendo o ato carnal mas já envolvido de laços de afeição e desejo por<br />

um homem que não era o seu marido, ela já era, então, uma pecadora. Pecara através de<br />

intenções e pensamentos, também pecara pela cobiça do pretendente da amiga e pela<br />

traição à confiança que era nela depositada pelo marido. Temia a Deus, e devemos aqui<br />

crer que tal temor se relaciona com a idéia de punição, de castigo que precede a culpa<br />

atribuída pelos preceitos religiosos através da consciência do indivíduo frente à<br />

169 Envergonhei-me de mim mesma e tive medo. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I. nº 01, 01/01/1845.<br />

105


consciência da prática do pecado. Na citação que segue perceberemos como a situação<br />

da personagem coloca em evidência os valores (familiares, religiosos, e jurídicos) que<br />

se operam em sua consciência quando da reflexão sobre o crime que estava por cometer.<br />

Sente-se supersticiosamente amedrontada pela culpa, acreditava ser aquela situação o<br />

castigo para a pecadora que já era e a criminosa que estava preste a se tornar:<br />

“-Deus me castiga, dizia ella fechando os olhos, para não vêr a dor de<br />

seu marido, e as angustias de sua filha. Ainda não sou criminosa mas<br />

o castigo precede a culpa. E entre tanto, quantas mulheres vivem<br />

cercadas de linda e tenra família, que não têem hum crime só, mas<br />

cem!<br />

Tinha momentos de medo supersticioso; e cuidando que Deus a punia<br />

em sua filha, queria desviar a morte da pequenina accusando se; a<br />

cada momento resolvia levantar se, atirar se aos pés do Conde, e<br />

salvar sua filha com huma confissão completa, e esperando o castigo.<br />

Depois animava-se mais, e perguntava a si mesma se não daria todo o<br />

amor, affeição e ternura de Theobaldo por hum sorriso de huma<br />

filhinha única.<br />

(...) Que fatalidade a tinha levado a esta intriga que tinha chamado<br />

paixão? Huma rivalidade de mulher, e nada mais. Oh! meu Deus! E<br />

porque não deixava ella a M. de Muley o seu amante? talvez que<br />

então, em vez de chorar, se sorisse junto ao berço..” 170<br />

E sentindo “ainda mais vivamente o perigo de sua posição. Tentou um esforço<br />

para sahir d’elle.” Mais uma vez a condessa usa de dissimulação para tentar se livrar<br />

daquela única testemunha de seu pecado e do crime que delataria com sua descoberta<br />

por parte de qualquer uma das pessoas que ali entrassem. Propõe que a criança seja<br />

transferida para o quarto do marido, mas não obteve êxito.<br />

170 Envergonhei-me de mim mesm e tive medo.In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I. nº 01, 01/01/1845.<br />

106


Chegou então o médico, que examinou a menina e, entregando-a à mãe, disse<br />

que o mal já havia desaparecido. Tratava-se apenas de uma crise nervosa que<br />

suspendera por alguns momentos as funções do estômago. O médico indaga então:<br />

“Porque motivo está aqui esta menina? (...) Sra. Condessa, não tem sido esta menina<br />

creada na Normandia ?”. Em seguida o médico comenta, “olhando para a Condessa com<br />

attenção ... Estais pallida, Sra., vossos olhos estão fechados; decididamente os ares de<br />

Paris não vos servem, não tendes força bastante para passar doze mezes na capital.” Ao<br />

terminar a consulta, o médico começa a falar ao conde “receitando hum remedio<br />

insignificante ... Então, Sr. Conde teremos guerra?” O conde lhe responde “Ah! Doutor,<br />

abalos como os d’esta noite fazem o homem egoista: peço a Deus paz e saude para<br />

minha casa, e deixo o resto aos ministros.” A família estava em primeiro lugar, o<br />

egoísmo a que o conde se refere pode ser então entendido como preservação dessa<br />

unidade essencial à sociedade e à felicidade dos indivíduos que a compõem. Mas para<br />

que tal unidade se mantenha, é imprescindível a confiança que as partes devem<br />

mutuamente estabelecer para zelar pela permanência dos vínculos.A quebra dessa<br />

confiança dissiparia esta permanência, constituindo-se como um crime, um pecado, uma<br />

transgressão consciente às regras que regem os âmbitos moral, religioso, ético e jurídico<br />

dos indivíduos dentro de uma sociedade. O pecado, a condessa cometera por intenção,<br />

por cobiça por traição e desejos luxuriosos; mas o crime não fora consumado, não tinha<br />

ainda a culpa que lhe poderia ser atribuída pela desconfiança do marido, pelo<br />

testemunho de outrem ou mesmo pela evidência de um jovem mancebo escondido no<br />

gabinete. Mas com a chegada de uma carta enviada por M.e de Muley, a Condessa de C<br />

passa a experimentar o medo da delação; e a confiança e ingenuidade do marido fazem<br />

com que a condessa experimente também a vergonha perante a própria consciência<br />

acerca do ato que estava em vias de ser consumado:<br />

107


“Os olhos penetrantes da Condessa tinhão lido o subriscripto da<br />

carta e atirou-se a ella para a agarrar.<br />

-Peroai-me, Sra., a carta é para mim ... com licença , doutor...<br />

-E’ huma carta que trouxerão hontem á noite: a doença da menina fez<br />

me esquecer, disse o creado.<br />

-Minha boa Amelia, disse o Conde, depois de lêr ; para o futuro<br />

escolhe melhor tuas amigas; pega lê; M.e de Muley te insulta! ... a<br />

infame!....<br />

Fez lêr a carta á Condessa, rasgou a, espalhou os pedaços, e lançou se<br />

nos braços d’ella.<br />

-Doutor conheceis os meus dous thesouros, minha filha e minha<br />

mulher ... pois bem: receei muito ainda agora pelos dias de huma, e<br />

calunnião ao da outra!<br />

-socegai, socegai, disse o doutor vendo a sua pallidez; e vamos vêr o<br />

anginho que dorme.<br />

Logo que a Condessa ficou livre e que os creados se deitarão, que Mr.<br />

De C... entrou para o seu quarto , e que a menina adormeccida tomou<br />

as côres da saude, essa mulher que o acaso, ou antes o seu anjo da<br />

guarda, tinha suspendido nos portaes do adulterio, correu ao seu<br />

quarto, e abrindo o gabinete onde Theobaldo estava escondido, de<br />

joelhos diante do mancebo:<br />

-Senhor, lhe disse ella, eu não vos amo; amo a meu marido e a minha<br />

filha... perdoai-me, e em nome do céo sahi .... vossa presença neste<br />

lugar me fez conhecer dous sentimentos que eu ainda não havia<br />

experimentado até hoje: ENVERGONHEI-ME DE MIM MESMA E<br />

TIVE MEDO!” 171<br />

Meyer observa a condição da mulher casada no folhetim popular relacionando<br />

tal condição à definição feita por Balzac em 1830 no “panfleto conjugal” Fisiologia do<br />

casamento, ou Meditações de filosofia eclética sobre a felicidade e a infelicidade<br />

conjugal 172 . Em tom de galhofa, Balzac explica que o livro nasceu de suas observações<br />

171 Envergonhei-me de mim mesm e tive medo.In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. Tomo I. nº 01, 01/01/1845.<br />

172 BALZAC, Honoré de. Fisiologia do casamento, ou Meditações de filosofia eclética sobre a<br />

felicidade e a infelicidade conjugal. In: Oeuvres complètes. Vol. Xi, p. 1030 (Apud MEYER)<br />

108


sobre a sociedade de seu tempo. Diz que ao estudar direito, lera o código de Napoleão e<br />

ficara apavorado com o termo adultério, “na sua imaginação, esta palavra sempre<br />

arrastava atrás de si um cortejo lúgubre, as Lágrimas, a Vergonha , o Ódio, os Crimes<br />

Secretos, Famílias sem Chefe, enfim, a desgraça se personifica diante dele quando lia a<br />

palavra sacramental: ADULTÉRIO.” 173 Mas percebeu posteriormente que as bem-<br />

educadas praias da sociedade burguesa utilizavam-se do adultério para temperar a<br />

severidade das leis conjugais. Faz-se então importante esclarecer que nessa obra de tom<br />

sarcástico, “ao empreeder a crônica de seu tempo, ele vai interrogar a sociedade<br />

burguesa fundada sobre o casamento. No universo ficcional da comédia humana, o<br />

casamento reflete e coloca em causa as leis e os costumes, uma ordem econômica e toda<br />

política, crenças e exigências, um sistema de valores.” 174 O caminho inverso é<br />

percorrido pelo folhetim aqui estudado. Em Envergonhei-me de mim mesma e tive<br />

medo, evidencia-se a função pedagógica do folhetim ao tentar instruir os leitores com<br />

relação ao caráter vexatório e ilegal do adultério, à temeridade frente à culpa, ao crime e<br />

ao castigo; traçando então normas de conduta a serem seguidas dentro de um<br />

comportamento ético frente à sociedade, a Deus e a si mesmo. Além disso, os eventos<br />

que nos são apresentados e a maneira (entenda-se aqui ‘ponto de vista’) como são<br />

enunciados na narrativa evidenciam a extrema valorização da segurança e da<br />

importância da família como elemento nuclear da sociedade burguesa.<br />

173 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 250<br />

174 MICHEL, Arlete. “Introdução” , pp.865-901. In: BALZAC, Honoré de. Oeuvres complètes. Vol. Xi,<br />

p. 1030 (Apud MEYER. P. 250)<br />

109


3.4 – A Renúncia aos Direitos em Muito Tarde: romance de provação com traços<br />

históricos<br />

“A mulher é uma propriedade que se adquire por contrato, ela é<br />

mobiliária, pois a possessão vale pelo título (...)” 175<br />

Meyer observa que Balzac (em 1830, no “panfleto conjugal” Fisiologia do<br />

casamento, ou Meditações de filosofia eclética sobre a felicidade e a infelicidade<br />

conjugal 176 ) administra conselhos aos homens num tom de galhofa para balizar suas<br />

sarcásticas observações sobre a sociedade de seu tempo. A epígrafe acima evidencia<br />

uma dessas observações no que diz respeito ao papel da mulher nessa especulação<br />

financeira que se tornou o casamento para a sociedade burguesa. Meyer 177 considera<br />

que, para Balzac, “o casamento é a fonte primeira da propriedade”. Quando casa, o<br />

homem “compra sua mulher como compraria uma carteira de títulos na bolsa”. A<br />

mulher, por sua vez, “se for elegante e corresponder à expectativa do marido, também é<br />

rentável, pois confirma a ascensão social, é o signo exterior da riqueza.” Assim, “de um<br />

modo geral, as mulheres casam-se por dinheiro, por ambição própria ou por imposição<br />

familiar.”<br />

No folhetim Muito Tarde 178 , publicado em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>, observamos<br />

uma situação peculiar no que diz respeito ao casamento entre uma castelã e um vilão. A<br />

ação principia pela cena do casamento que ocorre na Bretanha entre uma nobre Inglesa,<br />

175 BALZAC, Honoré de. Fisiologia do casamento, ou Meditações de filosofia eclética sobre a<br />

felicidade e a infelicidade conjugal. In: Oeuvres complètes. Vol. Xi, p. 1030 (Apud MEYER, p.250)<br />

176 Idem.<br />

177 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 252<br />

178 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. p.21-7<br />

110


Elisa de Coetvagen, “a mais nobre donzella de toda Bretanha, a mais bella e a mais<br />

admirada de toda a província”, e Thiago, um vilão francês que era filho do rendeiro do<br />

castelo. Em seguida, o narrador explica as circunstâncias para a realização de tão<br />

peculiar enlace:<br />

“Assim os grandes acontecimentos reagem sobre as pequenas cousas:<br />

a França, deslumbrada pelo brilho de uma nova luz, via confundirem<br />

se todas as ordens, cada parcella unir-se para, formar huma massa<br />

compacta, huma só e unica familia. O conde de Coetvagen, alguns<br />

mezes antes da extravagente alliança que acabava de ser contrahida,<br />

tinha visto serem-lhe suas immensas riquezas arrebatadas pela onda<br />

espumante da resolução. O nivel havia passado sobre todas essas<br />

fortunaas, engrossadas a maior parte d’ellas á custa do povo; o ouro<br />

tinha remontado a sua fonte, e, como o havião dito as Sagradas<br />

Escripturas, os ultimos se tinhão tornado os primeiros. O pai de<br />

Thiago, rendeiro do Conde, tinha comprado todos os bens de seu amo;<br />

e, n’essas horas de incommodidade e de inquietação que forçavão a<br />

castigar o innocente, com receio de que escapasse o culpado, tinha<br />

salvado a vida do Conde. O digno servidor não quiz ser meio<br />

generoso; veio offereccer-lhe toda a sua fortuna, e não lhe pediu em<br />

troca senão que casasse sua filha com o mais valente rapaz da<br />

comarca,com seu filho. O Conde não tinha hesitado, tinha preferido a<br />

fortuna ao orgulho do nome, ordenando a Elisa que acceitasse, piedosa<br />

e resignada, o esposo que lhe deparava o ceo: antes da cerimonia,<br />

porêm, elle havia coberto com um crepe negro os retrados de seus<br />

maiores; receára vêl-os alevantar-se ante elle, para lhe exprobarem o<br />

alviltamento de sua raça.” 179<br />

Ora, evidente se torna aqui o avanço da burguesia no que diz respeito ao<br />

acúmulo de capital e aquisição de posses. Percebemos também que o fiel rendeiro,<br />

179 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. p.21-2<br />

111


como bom burguês ascendente, não se destitui de todos os bens adquiridos de seu<br />

senhor ao devolvê-los a ele. Pelo contrário, conserva-os sob o jugo de seu descendente<br />

através dos direitos garantidos a Thiago pelo casamento. E em contrapartida à<br />

decadência financeira do senhor, o rendeiro permite-lhe a condição de viver com a<br />

fortuna em que se encontrara antes de sua decadência em troca do título de nobreza<br />

atribuído ao filho e toda a sua descendência através da união das famílias. A proposta é<br />

aceita pelo senhor, uma vez que é a única possibilidade que este vê em manter-se rico,<br />

ainda que se abstraindo do orgulho e do aviltamento de sua raça. Contudo, Elisa de<br />

Coetvagen não comungava dos mesmos interesses que o pai, uma vez que era sobre ela<br />

que recaíam a penosa tarefa de salvar sua estirpe da falência e, ao mesmo tempo,<br />

manchar seu nome com a vil união.<br />

Após a cerimônia Thiago vai ao quarto de Elisa, que desoladamente chora pelo<br />

triste destino que os interesses de seu pai a impuseram. Declara seu amor, mas percebe<br />

que a diferença social entre eles impossibilitaria a felicidade de um casamento e a<br />

concretização de um amor que já existia platonicamente por parte de Thiago.<br />

Constrangido por tal realidade e pela resignação da esposa que se pronunciava submissa<br />

e subservientemente frente ao padecimento imposto pelo destino, pelo orgulho e pelo<br />

preconceito, Thiago decide partir, renunciando aos direitos de lhe eram instituídos pelo<br />

casamento. Os direitos sobre a mulher, sobre o título e a ascensão social provenientes da<br />

união matrimonial. Abdica de tais direitos em função da relação infeliz que vê pela<br />

frente e, num ato nobre e honroso, procura evitar o padecimento de sua amada pela<br />

infelicidade, pela vergonha e pelo pesar:<br />

“-Perdão, perdão, senhora, estou vos entretendo de cousas que pouco<br />

vos interessão. Vós não levareis em conta o meu amor tão verdadeiro,<br />

tão profundo, mas que não saberia adaptar as fórmas que empregão<br />

112


nas grandes sociedades (...) Não poderieis ser feliz comigo, não he<br />

assim? ... Pois bem! Nada de feito ... Thiago não quizera causar-vos<br />

huma lagrima, hum pezar... partirei.” 180<br />

No trecho acima ainda percebemos a evidência ao fato de que o preconceito e o<br />

orgulho por parte da nobreza impossibilitariam a felicidade de uma castelã e de um<br />

vilão. Logo em seguida, demonstrando sua consciência com relação a tal infelicidade<br />

gerada pela diferença de classes sociais, e já tendo-se resignado à renúncia que fazia aos<br />

direitos adquiridos pelo casamento, Thiago sublima seu amor em função de algo mais<br />

amplo que a felicidade de um homem e de uma mulher: o amor à pátria.<br />

“-Bem vêdes, senhora, para nos guiarmos na vida, nós, os homens do<br />

povo, temos nosso coração e nossa consciencia; isso nos basta. A<br />

minha felicidade he pouca cousa; a vossa; eis tudo quanto quero ... a<br />

França tem necessidade de cada hum de seus filhos; vou servi-la ...<br />

ella não me hade perguntar se sou nobre, para me amar, sou hum de<br />

seus filhos. Vós, senhora, pesai algumas vezes em mim, pensai no<br />

sacrificio que vos faço ... e lastimai-me ... se ouvir-des fallar de<br />

alguma bella acção que eu tiver feito, dizei então comvosco que foi a<br />

vossa lembrança que me engrandeceu, que me deu coragem, e que<br />

depois do meu paiz, seria por vós que eu quizera dar minha vida.<br />

-Senhor, respondeu Elisa, cada vez mais perturbada, e cujo rubor<br />

patenteava talvez mais do que resignação, este sacrifio que me quereis<br />

fazer... eu não o exigia... estes bens que me haveis restituido vos<br />

pertencem ... e o direito que vos dá nossa união...<br />

Meus direitos! ... não os tenho, a menos que me ordeneis que d’elles<br />

me sirva...” 181<br />

180 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. p. 22-3<br />

181 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. p.23<br />

113


Oito anos depois o velho conde de Coetvagen e o pai de Thiago tinham morrido.<br />

A bela Elisa de Coetvagen habitava sozinha seu velho e triste castelo da Bretanha,<br />

aquela silenciosa morada que inspirava profunda tristeza, e que “não devia mais obrigar<br />

felicidade alguma.” 182 O que pode ser observado no comportamento de Elisa, que “já<br />

não é mais a tímida donzella (...) era a dama nobre, grave e austera, menos engraçada,<br />

menos encantadora, porêm mais bella (...); tinha recusado apparecer na nova côrte; (...)<br />

occupava se da politica” 183 e a imagem de Thiago já havia se dissipado de sua memória.<br />

Assim, por influência do senhor de Massal, “hum d’esses homens ousados, affoitos,<br />

grandes agitadores, que sobrevivem a todas as revoluções, que a onda embala e não<br />

póde tragar” 184 , inicia a traçar um plano de interes políticos, uma vez que Thiago havia<br />

se tornado um dos mais valorosos e influentes membros do exército de Napoleão:<br />

“(...) Thiago esta a huma legua de vós, dentro de duas horas póde estar<br />

aqui: querendo vós, elle é nosso. (...) E’ grande sua influencia sobre o<br />

espirito do soldado: viram-o sempre tão ardente, tão valeroso; o<br />

fervor de Bonaparte o eleva ainda: e demais, elle sahiu de suas fileiras<br />

... Assim, senhora, alliciai-o, e a metade do exercito servirá vossos<br />

projectos. Não ha que vacillar. (…)<br />

-Oh! Senhor ...<br />

Havia, n’esta exclamação, todo o espanto que póde causar huma<br />

supposição inaudita, todo o orgulho que se revolta com o unico<br />

pensamento de que huma mulher nobre podesse acceitar o amor de<br />

Thiago. (...)<br />

-Mas se seu caracter he tão nobre como se diz, pensais vós que elle<br />

queira nunca abandonar Bonaparte, que, primeiro consul, imperador,<br />

sempre se lembrou d’elle? que o elevou, que lhe deu seus habitos,<br />

seus postos! ... Thiago não ha de trahir.<br />

182 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.23<br />

183 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.23-4<br />

184 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.24<br />

114


-Oh! meu Deus, senhora, são precisamente aqueles que tudo devem a<br />

Bonaparte que o hão de ferir no coração; está na ordem. (...) Essa<br />

gente, bem vêdes, compra se com hum título; lança-se hum pouco de<br />

incenso á sua louca vaidade, contanto em cobrir-se com o capote de<br />

seu amo.” 185<br />

Para Balzac, o casamento era, entre todos os conhecimentos humanos, o menos<br />

desenvolvido; colocando em causa as leis, os costumes, a ordem econômica, a política,<br />

crenças, exigências, e o sistema de valores.” 186 Percebemos que a opinião de Balzac<br />

sobre o casamento se faz presente no trecho acima citado. Assim, Elisa escreveu a<br />

Thiago e o chamou à sua presença para efetuar tal indecorosa proposta, que consistia na<br />

traição à pátria, aos interesses políticos e à crença num sistema de valores que se<br />

operavam na mente do agora renomado oficial Francês, procurando a condessa<br />

subverter tais valores em função de um interesse individual que lhe era oriundo da<br />

política. Nesse ponto a própria Elisa de Coetvagen se impõe a difícil tarefa de se abster<br />

do orgulho e preconceito aristocráticos (uma vê que já não era mesmo feliz) para<br />

sacrificar-se em prol da Bretanha. Enquanto aguardava a chegada de Thiago, condessa<br />

“(...) recordava se da generosa renuncia que Thiago fizéra de sus<br />

direitos, quando podia tão facilmente vingar se dos desdens que tão<br />

frequetes vezes o havião magoado. Recorada se de suas palavras<br />

simplices, de seu amor profundo e submisso, que nada havia querido<br />

da obedencia, e que se tinha cahido e resignado quando podia obrar<br />

como senhor. Elisa tinha ainda (...) no fundo de sua alma muito<br />

orgulho aristocratico para que ela consentisse em aproximal-o de si<br />

em e tornar se sua companheira.” 187<br />

185 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.24-5<br />

186 MICHEL, Arlete. “Introdução” , pp.865-901. In: BALZAC, Honoré de. Oeuvres complètes. Vol. Xi,<br />

p. 1030 (Apud MEYER. P. 250)<br />

187 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.25<br />

115


Ao chegar ao castelo, Thiago faz-se anunciar e surge perante a condessa:<br />

“-Mandastes que eu viesse senhora, disse Thiago, assentando-se a<br />

alguns passos d’ella, e eu vo-lo agradeço... Sem vossa ordem, nunca<br />

me teria atrevido a vir perturbar a vossa solidão.<br />

-Não era huma ordem, senhor, disse Elisa em meia voz, era huma<br />

rogativa.<br />

-Que importa a palavra? Tornou Thiago, sorrindo-se entretanto eu<br />

preferiria a outra: ordenar é tomar hum direito ... é talvez dar.<br />

(...) -Não terei rasão de queixar-me de vós, senhor? Desde oito dias<br />

achais-vos a huma legua de vosso castello ... e de mim ... e, sob hum<br />

vão pretexto de discrição, não tendes vindo ....<br />

-este castello he vosso, nada d’elle quero pretender; e quanto a vós,<br />

senhora ... nada me dizia que minha visita vos não seria menos<br />

importuna ... nada me dizia que havieis conservado a lembrança de<br />

meu nome, senão pra vos queixardes das circunstancias fataes que vos<br />

havião encadeado a mim ... a vosso pezar.” 188<br />

A condessa inicia então sua dissimulação amorosa com o intuito de persuadir<br />

Thiago a se unir ao exército inglês contra Napoleão e contra a França:<br />

“-Escutai-me, Thiago, disse ella: este amor, esta felicidade ... cumpre<br />

merecel-os ... cumpre que me deis huma prova de vossa dedicação.<br />

-Oh falla, oh falla! Seja o que fôr que me ordesne, estou prompto.<br />

-Thiago, vós amais vosso paiz: assim como eu, vós deveis soffrer de<br />

vil-o debaixo de vinga ferrea de hum usurpador, que fascina o povo<br />

com sua gloria e não faz nada para sua felicidade. He de mister , para<br />

que a França seja feliz e tranquilla, que seus legitimos reis sejão<br />

repostos sobre o throno. Homens dedicados e animosos trabalhão no<br />

silencio para que essa obra sublime. Pois bem ... he mister que<br />

abandoneis o vosso partido para servirdes a vossa sacrosanta causa. A<br />

gratidão do paiz será vossa recompensa, meu amor o premio de vosso<br />

188 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.26<br />

116


sacrifico. Tendes grande influencia no exercito; despertai o zelo que<br />

apenas está adormecido, pronunciai o nome de vossos principes<br />

desterrados: bastará huma palavra para reanimar o amor que se<br />

extinguio: e depois, Thiago, coberto das mercês de nosso rei, do unico<br />

que o paiz deve reconhecer, voltai para junto de mim, vinde pedir ao<br />

amor a felicidade que tiverdes sabido merecer.” 189<br />

Nesse ponto se percebe na narrativa uma situação de provação para Thiago.<br />

Teria ele que optar entre o amor à pátria e o amor a Elisa. Segundo Mikhail Bakhtin 190 ,<br />

o romance de provação “é constituído como uma série de provações das personagens<br />

centrais, de provações de sua fidelidade, de bravura, de coragem,de virtude, de nobreza,<br />

de santidade, etc.” 191 Quanto às personagens, “todas as suas qualidades são dadas desde<br />

o início e ao longo de todo o romance são apenas verificadas e experimentadas.” 192<br />

Assim, no que diz respeito às qualidades de Thiago e aos preconceitos de Elisa, todas as<br />

impressões foram oferecidas logo de início, norteando o leitor na verificação do caráter<br />

da condessa e dos valores e virtudes de Thiago.<br />

De acordo com Bakhtin, o romance de provação surge na antiguidade. Sua<br />

primeira modalidade “é representada pelo romance grego” e “se constrói como<br />

provação da fidelidade amorosa e da pureza dos heróis e heroínas ideais (...) já que a<br />

imagem do homem está profundamente impregnada das categorias e conceitos jurídico-<br />

retóricos de culpabilidade – inocência, julgamento -, absolvição, acusação, crime,<br />

189 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.27<br />

190 BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. (tradução de Paulo Bezerra) 4ª ed. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 2003.<br />

191 BAKHTIN, Mikhail. Tipologia Histórica do Romance: o romance de provação.In: Estética da Criação<br />

Verbal. (tradução de Paulo Bezerra) 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.207<br />

192 BAKHTIN, Mikhail. Tipologia Histórica do Romance: o romance de provação.In: Estética da Criação<br />

Verbal. (tradução de Paulo Bezerra) 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.207<br />

117


virtude, mérito, etc.” 193 A segunda modalidade de romance de provação é representada<br />

pelas hagiografias do início do cristianismo (particularmente dos mártires); a terceira,<br />

pelos romances medievais de cavalaria, os quais, segundo Bakhtin, sofreram uma<br />

“influência considerável de ambas as modalidades de romance antigo.” 194 Com a quarta<br />

modalidade, o romance barroco, o romance de provação chega a seu apogeu. (...) outra<br />

modalidade é a provação dos pavernus napoleônicos.” 195 A palavra parvenu significa<br />

“pessoa que atingiu súbita ou recentemente riqueza e/ou posição social de<br />

proeminência, sem no entanto, ter adquirido os modos convencionais adequados.” 196<br />

Podemos assim caracterizar Thiago, o herói desse romance que mescla características<br />

das modalidades de romance de provação apresentadas por Bakhtin. Observemos, na<br />

citação que segue, como Thiago reage à situação de provação, com quais argumentos<br />

sustenta a virtude e o mérito de sua posição dentro do exército; bem como os conceitos<br />

jurídico-retóricos de culpabilidade, inocência, julgamento, absolvição, acusação, crime<br />

e infâmia:<br />

“-Assim ... vosso amor será o premio de huma vileza ... e a minha<br />

deshonra que quereis! (...) Senhora, quando me desprezaveis, a<br />

França, minha mai, me estendia os braços. Combati por ella, e ella me<br />

encheo de seus beneficios. Soldado de Napoleão, eu vejo a minha<br />

patria feliz debaixo de seus jugo, crescer, elevar-se e dominar a<br />

Europa inteira ... e quereis que eu os atraiçõe a ambos, a França e<br />

Napoleão ! ... e dizeis que haveis de amar o homem que tiver trahido<br />

seus juramentos, seu paiz, que tiver faltado a honra! ... Esse papel é<br />

193 BAKHTIN, Mikhail. Tipologia Histórica do Romance: o romance de provação.In: Estética da Criação<br />

Verbal. (tradução de Paulo Bezerra) 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.208<br />

194 BAKHTIN, Mikhail. Tipologia Histórica do Romance: o romance de provação.In: Estética da Criação<br />

Verbal. (tradução de Paulo Bezerra) 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.209<br />

195 BAKHTIN, Mikhail. Tipologia Histórica do Romance: o romance de provação.In: Estética da Criação<br />

Verbal. (tradução de Paulo Bezerra) 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.212-3<br />

196 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa<br />

118


infame, e eu o repolso! (...) não posso sacrificar-vos o socego do meu<br />

paiz. Depois da França, não ha nada no mundo que me seja mais charo<br />

do que vós. (...) tú não sabes o que me podes e que infamia queres<br />

imprimir sobre minha fronte! O favor de teus reis não me salvaria do<br />

despreso de mim proprio. O povo, esmagado sob seus grilhões,<br />

atentavam para mim e me lançaria sua maldição, e a maldição do povo<br />

mata!” 197<br />

Assim, verificamos as virtudes e qualidades que engrandeceram o vilão Thiago e<br />

fizeram dele um herói. Sua consciência continua impregnada pelo amor à pátria, pela<br />

lealdade a Napoleão. Seu comportamento heróico o engrandece ainda mais, o faz<br />

general. Por fim, morre valente e corajosamente pela França. A traição a Napoleão<br />

ocorreria na batalha de Waterloo, momento decisivo da queda de seu império frente à<br />

Bretanha. Vejamos as considerações feitas no folhetim acerca da referida batalha:<br />

“Alguns annos mais tarde, a revolução, á qual Thiago havia denegado<br />

seu apoio, veio a affeituar-se. Estava-se no fim desse funesto dia que<br />

vio desmoronar-se o imperio: a estrella da França se tinha eclipsado;<br />

nossos estandartes cahiam, despedaçados sob a mão da fatalidade: os<br />

campos de Waterloo estavão ensopados de sangue francez. Quando<br />

toda a esperança foi perdida, quando os fieis amigos do imperador<br />

derão sua sentença no olhar sombrio do grande homem que a tormanta<br />

envergava sem poder quebra-lo, hum de entre elles, trasendo dragonas<br />

de general, arranjou-se em meio das mais densas phalanges inimigas:<br />

buscava a morte. Nascido com nossa gloria, com ella devia morrer.<br />

Hum tiro de obuz veio feri-lo no peito: suas mãos abandonárão as<br />

redeas de seu cavallo, seus olhos se fecharão, seu corpo cahio para<br />

traz; elle só pôde murmurar: ‘Ah! França! ... França...!..., Era<br />

Thiago.” 198<br />

197 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.28<br />

198 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.28-9<br />

119


Após esse momento, a condessa surge nos campos de Waterloo procurando por<br />

Thiago e o encontra ainda com vida. Ele a perdoa, morre recostado em seus seios. Ela,<br />

visitara sua campa todos os dias para “rezar cobril-a com suas lagrimas, até o momento<br />

em que, debilitada pela dôr, se extinguio sobre o tumulo de seu esposo.” 199<br />

Portanto, verificamos que o folhetim Muito Tarde tem características de<br />

romances que eram produzidos na França. Observamos também que o narrador<br />

evidencia claramente a relação entre a sociedade e o casamento; bem como o<br />

preconceito da aristocracia e a ascensão social da burguesia via a instituição do<br />

matrimônio. Ainda com relação ao narrador, podemos a ele atribuir nacionalidade<br />

francesa devido a algumas pistas que seu discurso nos deixa ao longo da narrativa,<br />

como por exemplo a referencia à noite que seguiu à batalha de Waterloo: “Quando a<br />

noite estendeu seu véo sobre os desastres que acabavão de fulminar nossa patria” 200 . E<br />

uma vez que a narrativa faz recorrentes e importantes referências a Napoleão, seu<br />

exército, enfim, a elementos da história moderna, podemos também considerar Muito<br />

Tarde como um folhetim dotado de características do romance histórico.<br />

3.5 – Aspectos Góticos do Romance-Folhetim em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

Segundo Arnold Hauser 201 , “a predileção dos românticos por efeitos<br />

melodramáticos”, presente no pré-romantismo e no Sturm und Drang, contribui para a<br />

absorção das histórias de horror inglesas. “Elementos comuns entre o teatro romântico e<br />

o melodrama são, sobretudo, os conflitos tensos e os choques violentos, a trama sinuosa,<br />

199 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.29<br />

200 Muito Tarde. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. nº 01, Tomo I, 01/01/1845. P.29<br />

120


ousada, sanguinolenta e brutal; (...) os ardis violentos e irresistivelmente brutais, os<br />

assaltos ao público pelo horrível, o fantasmagórico e o demoníaco(...)”. Assim,<br />

observemos em Terror Pânico a caracterização do espaço em que ocorre a ação dessa<br />

narrativa folhetinesca:<br />

“Era em Allemanha: n’uma noite fria e enregelada do frio janeiro (...)<br />

Não ha leitor de folhetins que ignore que é a Allemanha a patria do<br />

mysticismo, do sentimento depurado, da melancolica meditação: essas<br />

prendas allemãas achavão-se no mais subido gráo reunidas nas duas<br />

angelicas filhas do nosso rustico.” 202<br />

Segundo Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “tal como ‘gótico’, romântico designa,<br />

na época do iluminismo, tudo o que é produzido pela imaginação desordenada, aquilo<br />

que é inacreditável” 203 . Desse modo, em Terror Pânico 204 pode ser observado o aspecto<br />

gótico do romance pré-romântico, considerado por Carpeaux como a “mística” estranha,<br />

terrificante e sobrenatural aceita pelo público burguês consumidor de literatura 205 :<br />

“Eis que de repente, Idda, a mais moça das donzellas, estremece e<br />

semi-convulsa: - E’ meia noite, disse, ouvistes? (...) a mais velha das<br />

irmãas, toda tremula no gesto e na voz, como esforçando-se para<br />

dominar os seus terrores: - Ah! meus bons senhores, respondeo-lhes,<br />

foi tão horrisono o toque da meia noite! e nosso Mog latiu de modo<br />

tão doloroso!... Moramos perto do templo da aldêa. Hoje foi nella<br />

depositado, para a manhã ser levado ao cemiterio, o cadaver de hum<br />

dos entes mais per versos que habitavão nesta aldêa. Sem temor de<br />

Deos nem dos homens foi sua vida, sem temor de Deos foi sua morte:<br />

desde que amanheceo presentimentos occultos nos annuncião que não<br />

201 HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2000. p.705.<br />

202 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650<br />

203 SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1973.<br />

p.468.<br />

204 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650<br />

205 CARPEAUX, Otto Maria. Prosa e Ficção do Romantismo. In: O Romantismo. São Paulo: Editora<br />

Perspectiva, 1978. GUINSBURG, J.(Org) p. 161.<br />

121


descançarà seu corpo na paz da sepultura, como não descançarà sua<br />

alma nos braços do Creador: esses presentimentos vão-se realisando; o<br />

som lugubre da meia noite, o latido insolito do nosso cão nos assegura<br />

que não pode o cadaver permanecer no templo, que se ergueo do<br />

feretro, para vir pertubar a paz dos vivos. Ah! senhores, não nos<br />

abandoneis; talvez que vossas orações, unidas á nossas, consigão<br />

arredar daqui semelhante apparição.” 206<br />

E verificando em Terror Pânico a predileção dos românticos por efeitos<br />

melodramáticos apontada por Hauser 207 no pré-romantismo e no Sturm und Drang,<br />

observaremos que a tensão dos conflitos apresentados ao longo da trama se manifesta<br />

em diferentes aspectos. O primeiro diz respeito à tensão existente, com relação ao<br />

sobrenatural, entre o ponto de vista dos estudantes, “acostumados a lidar com bellezas<br />

classicas e românticas”, e o das duas filhas do camponês:<br />

“Os mancebos desatarão a rir, ou porque de facto, fortificados seus<br />

espiritos pela reflexão, não davão credito às historias de almas do<br />

outro mundo, (...) então procurarão tranquillisa-las, uns mostrando<br />

com todo o rigor logico e subtilezas escholasticas, que tomavão por<br />

profunda argumentação, quanto tinhão de absurdos e de infundados<br />

semelhantes receios (...)” 208<br />

O segundo conflito se exprime através da tensão que se estabelece entre Frantz e<br />

o resto do grupo:<br />

“(...) estavão sentados os mancebos, e no meio delles as duas moças<br />

que os encantavão por seu doce fallar, por suas rusticas narrações. só<br />

de todos o mais velho, Frantz, que suppunha que sua longa idade, 25<br />

annos, e sua experiencia do mundo lhe impunhão por dever de bom<br />

206 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649.<br />

207 HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2000. p.705.<br />

208 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650.<br />

122


tom, desprezar o sentimentalismo e o sexo feminino e proclama-lo<br />

todo corrupto e corruptor, não tomava parte na conversação de seus<br />

amigos, e comsigo mesmo condemnava a parvoice de que davão<br />

prova. Inclinada a cabeça entre as mãos, dormitava aborrecido.<br />

(...)Frantz era o unico que não fazia coro com seus amigos, persuadia-<br />

se que devia zombar com os pavores da credulidade, só elle se achou<br />

com alma para perseguir com insolente sarcasmo a singela confiança<br />

das duas meninas, que os receios fazião ainda mais bellas e mais<br />

feiticeiras.” 209<br />

Outro conflito é seguido de choque entre Wilhelm e Frantz, bem como da<br />

proposta de um ardil violento e brutal para a resolução da tensão estabelecida nos<br />

momentos que antecedem ao clímax:<br />

“Indignado por semelhante proceder, Wilhelm, o mais sensivel de<br />

todos, o que mais desvelado se mostrava em tranquillisar a formosa<br />

Idda, Wilhelm para o fazer callar o interrompe: - (...) achas crassa<br />

estupidez em senhoras assustarem-se por almas do outro mundo: pois<br />

bem; aposto eu que não terás animo de ir ao templo, só, á esta hora, e<br />

ás escuras, tú, valentão que és, e de fincar no caixão esta faca que aqui<br />

tens. - Estás-me insultando; Wilhelm, suppões-me algum fedelho que<br />

ainda a pouco largou os coeiros?” 210<br />

Após a resolução dos conflitos anteriores, estabelece-se o conflito entre Frantz e<br />

seu próprio horror: “elles o virão que andava resoluto e apressado a principio, ia, quanto<br />

mais se approxi-mava, mais e mais demorando seus passos, e por fim como que<br />

recuava, que não podia mover os pés, que receiava(...)” 211 E, em seguida, novamente o<br />

conflito entre Frantz e o grupo:<br />

209 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650<br />

210 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650<br />

211 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650<br />

123


“- Frantz, Frantz, clamão os companheiros com grandes risadas, estàs<br />

com medo; não te aventures; confessa-te vencido e volta: perdeste os<br />

20 florins. - Ao ouvir as mofas dos companheiros, Frantz recobra<br />

alento, dà-lhe forças o desejo de evitar o oppobrio, elle dobra o passo,<br />

chega á porta do templo, empurra-a sem hesitar e entra.” 212<br />

Como o templo é o espaço do qual provém as sensações de horror em Terror<br />

Pânico, notemos que Vítor Manuel de Aguiar e Silva se refere à mística estranha,<br />

terrificante e sobrenatural associando-a a um locus horrendus 213 , uma sensibilidade ao<br />

desespero e à angústia, à agitação sombria das visões lúgubres e noturnas. Assim, no<br />

momento seguinte, o clímax, à entrada de Frantz no templo ocorre o assalto ao público<br />

pelo horrível, o fantasmagórico e o demoníaco:<br />

“Dahi a alguns minutos um ai horrisono retumbou nas opacas,<br />

silenciosas trevas da noite. Os mancebos espavoridos prestão de novo<br />

attenção, para ver si se repete o gemido; não, o silencio da noite<br />

continuou medonho, e esse silencio e a demora do amigo ainda mais<br />

os espantão: - Volta, Frantz, exclamão angustiados, volta: - e ninguem<br />

responde a seus clamores: - Volta, dizem, e só os echos repetem -<br />

volta -volta. Emfim, não sabendo o que pensem, nem o que resolvão,<br />

não podendo fluctuar nesse pelago de incertezas: - Vamos ao templo,<br />

dizem, procuremos o nosso amigo. - E accendem archotes, e cheios de<br />

santo horror, encaminhão-se para o templo. Em meio delle avistão<br />

hum caixão, ao pé do caixão hum cadaver: era Frantz.” 214<br />

Assim, observemos que as situações de conflito impulsionam a sinuosa trama de<br />

Terror Pânico em direção a um ousado e inesperado desfecho que evidencia o último<br />

conflito presente na narrativa – o desesperador e angustiante conflito entre o temor de<br />

Frantz e o locus horrendus:<br />

212 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650<br />

213 SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1973.<br />

p.465.<br />

214 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650<br />

124


“Com a precipitação com que se havia decidido a commetter o seu<br />

sacrilegio, para tirar-se quanto antes de tão ardua empreza, Frantz ao<br />

dar a facada, irreflectidamente prendera seu capote ao caixão, e<br />

depois, querendo retirar-se apressado, e achando-se prezo suppoz, que<br />

potencia sobre-natural o segurava, soltou hum ai e caiu morto, triste<br />

victima de sua temeridade.” 215<br />

Percebemos então a crítica ao pensamento desordenado e desprovido de razão<br />

que envolve a crença no sobrenatural, como se tal pensamento, como que suprimindo a<br />

razão, pudesse destituir o pensamento científico e levar à morte. Notemos ainda que a<br />

predileção do público leitor de periódicos no século XIX por temáticas que tangenciem<br />

o gótico pode ter balizado a escolha de folhetins como Terror Pânico e outros como<br />

Lúcifer 216 , Huma alma do outro mundo 217 , O noivo defuncto 218 , O Palácio do Diabo 219<br />

e O Padre Laurencio 220 – nos quais podem ser verificados os aspectos góticos da<br />

narrativa romanesca; tais como os assaltos ao público pelo horrível, o fantasmagórico e<br />

o demoníaco.<br />

215 Terror Pânico. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650<br />

216 Lúcifer. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. TomoII. p.308<br />

217 Huma alma do outro mundo. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. TomoIII. p.424<br />

218 O noivo defuncto. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. TomoV. p.789 e 809<br />

219 O palácio do diabo. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. TomoV. p.833 e 849<br />

220 O Padre Laurêncio. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. TomoI, p.179-185; e Tomo II, p. 202-208<br />

125


4- Considerações finais<br />

No momento romântico, o discurso polifônico do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> se<br />

configurou como ilustrado e liberal, evidenciando o rompimento com a tradição ibérica;<br />

o que ocorre em conformidade com os interesses políticos e com o ideário romântico de<br />

instauração de uma identidade nacional. Conclui-se portanto que O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>,<br />

como meio de comunicação impresso, interagiu na complexidade do contexto das<br />

transformações dos espaços públicos, da modernização política e cultural das<br />

instituições após o processo de independência do Brasil e durante a construção do<br />

Estado Nacional, procurando delinear uma nova identidade cultural e política sob o<br />

prisma da doutrina liberal.<br />

Devemos ainda, nesta conclusão ao presente estudo, indicar os elementos<br />

envolvidos na difusão de uma doutrina. Para tal tomaremos como referencia algumas<br />

considerações feitas por Foucault em A Ordem do Discurso 221 . Foucault observa que há<br />

discursos que “estão na origem de certo número de aos novos de fala que os retomam,<br />

os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, idefinidamente, para além de<br />

sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer.” 222 Assim,<br />

percebamos que a doutrina é um desses tipos de discurso que estão para além de sua<br />

formulação:<br />

“A doutrina (...) tende a difundir-se, e é pela partilha de um só e<br />

mesmo conjunto de discursos que indivíduos, tão numerosos quanto se<br />

queira imaginar, definem sua pertença recíproca. (...) – pertença de<br />

classe, de status social ou raça, de nacionalidade ou de interesse, de<br />

luta, de revolta, de resistência ou de aceitação. (...) a doutrina realiza<br />

221 FOUCAULT. Michel. A Ordem do Discurso. (tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio) 10ª ed.<br />

São Paulo: Edições Loyola, 2004.<br />

222 Idem. p.22<br />

126


uma dupla sujeição: dos indivíduos que falam aos discursos e dos<br />

discursos ao grupo.” 223<br />

Verifiquemos abaixo como os redatores do recreador evidenciaram a consciência<br />

da existência deste tipo de discurso para além de sua formulação:<br />

“Os R R., posto que na sua folha litteraria transmittão alguns artigos<br />

sem declarar a fonte de sua extracção, sustentão a ingenuidade de não<br />

roubar a anterior, ou phostuma gloria de pennas illustres. (...) cada um<br />

dos factos ali consignados não tem de certo por fonte peculiar, ou<br />

comum o cerebro do escriptor; talvêz comprehenda a sua obra tantas<br />

linhas quantos os autores precedentes, ou contemporaneos donde as<br />

extrahio; (...)” 224<br />

Segundo Foucault, surge no século XIX uma “vontade de verdade” que remonta<br />

à Inglaterra dos séculos XVI e XVII. Foucault caracteriza essa “vontade de verdade”<br />

como um sistema de exclusão que se apóia “sobre um suporte institucional.” 225 Para<br />

Foucault, a vontade de verdade “é ao mesmo reforçada e reconduzida por todo um<br />

compacto conjunto de práticas como a pedagogia (...). Mas é também reconduzida (...)<br />

pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído,<br />

repartido e de certo modo atribuído.” 226 Assim, verifiquemos como os redatores do<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> se posicionavam com relação à distribuição do saber em função da<br />

difusão da doutrina liberal :<br />

223 Ibidem. p.42-3<br />

224 Schollio aos6 vollumos do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. In <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

225 FOUCAULT. Michel. A Ordem do Discurso. (tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio) 10ª ed.<br />

São Paulo: Edições Loyola, 2004. p.17<br />

226 Idem.<br />

127


“Será sempre um dever da boa justiça distributiva, liberalisar aos que<br />

não possuem, como dantes se liberalisára aos que não possuíam; e<br />

com tão perfeita igualdade de títulos, injustiça fôra no <strong>Recreador</strong> a<br />

omissão de artigos quando reclamados pelo direito de os<br />

conseguir.(...)” 227<br />

“Não vos mortifique o vehiculo da doutrina, interesse-vos as<br />

vantagens de sua essencia; e se tanto vos apraz o progresso das luzes,<br />

como satyrisais tão barbaramente a seus propagadores?” 228<br />

Ao se referir à “apropriação social dos discursos” 229 , Foucault considera ainda<br />

que todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou modificar a<br />

apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que eles trazem consigo, com a<br />

finalidade de constituir “um grupo doutrinário ao menos difuso” através de “uma<br />

distribuição e uma apropriação do discurso”. Assim, retomemos a epígrafe dada à<br />

introdução a este estudo e verifiquemos a função pedagógica e doutrinária do periódico<br />

caracterizada por seus próprios redatores:<br />

“O R. <strong>Mineiro</strong> (...) é (...) o mensageiro do recreio , instruindo: e que<br />

mais conseguirá elle rubricando algumas paginas com a inscripção das<br />

fontes , em que se enriquecêra , que igualmente o não consiga sem<br />

taes rubricas? E é ponto bem singular, e genuino, que aquelles, que<br />

affirmão conhecer essas fontes, e que as designão por seus proprios<br />

nomes, sejão os mesmos que censurão o <strong>Recreador</strong> de as não declarar!<br />

Se vós as conheceis, para que solicitais declarações? Se julgais inutil a<br />

reproducção d’artigos , que tendes lido em diversas obras , apezar de<br />

que se não achem ao alcance de muitos outros, para que fim exigìs<br />

contra vossos principios uma declaração do que vos é inutil por vos<br />

ser sabido?” 230<br />

227 Schollio aos6 vollumos do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. In <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

228 Tradução – crítica sobre este assumpto. In: O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

229 FOUCAULT. Michel. A Ordem do Discurso. (tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio) 10ª ed.<br />

São Paulo: Edições Loyola, 2004. p.43-4<br />

230 Schollio aos6 vollumos do <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. In <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong><br />

128


Com isso verificamos que a apropriação social dos discursos operou-se para a<br />

difusão da doutrina liberal em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong>. E discutindo as articulações entre<br />

experiência vivida, ficção e organização social, observamos também os aspectos<br />

liberalizantes e românticos existentes em alguns dos folhetins publicados no periódico.<br />

Tal verificação nos remete à “a consciência social dos folhetinistas” 231 da fase chamada<br />

“romantismo social” 232 ; às ligações entre o processo de criação e a “análise da<br />

sociedade” 233 ; e à compreensão do desenvolvimento do gênero folhetinesco e suas<br />

conexões com o momento histórico e os problemas sociais. O romance folhetim tem,<br />

portanto, uma história interna que acompanha e se insere na História das classes<br />

populares. Considerando a “ausência de tradição contínua e de modelo português do<br />

gênero” 234 , concluímos que a leitura de ficção estrangeira no Brasil nas vésperas da<br />

criação do romance nacional desempenhou um papel formador na elaboração e na<br />

valorização de nossa ficção em prosa. Assim, pudemos verificar a existência em o<br />

<strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> de romances-folhetins que se identificam com as características da<br />

produção literária estrangeira no que diz respeito ao gênero, sua estrutura, suas<br />

finalidades pedagógicas de formação de consciência social, bem como a possível<br />

escolha de temas e elementos que estimulem o consumo dos folhetins publicados no<br />

Brasil através do gosto recorrente do público pelas narrativas ficcionais estrangeiras.<br />

Desse modo, a polifonia se fez presente em O <strong>Recreador</strong> <strong>Mineiro</strong> através do<br />

efeito que resulta do conjunto harmônico de instrumentos e linguagens do romantismo;<br />

e através da pluralidade de diversas vozes que soaram simultaneamente para a<br />

transmissão da doutrina liberal através do discurso dos redatores do referido periódico.<br />

231 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 14<br />

232 Idem. p. 64<br />

233 Ibidem. pp. 14-5<br />

234 Idem Ibidem. p. 26<br />

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