ENTRE CHEGADAS E PARTIDAS: DINÂMICAS DAS ROMARIAS ...

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CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 36 universitária. Aquela era uma marca identitária para mim, por quê? Ao conhecer melhor a história da cidade e os ajustes entre locais e migrantes que foram realizadas ao longo do tempo, descobri que “romeiro”, em muitos momentos, tinha sido o termo utilizado para localizar os “forasteiros”, aqueles não nascidos na cidade, e, se pelos autóctones era um termo utilizado de forma pejorativa, para os adventícios ser romeiro era motivo de orgulho, com um subtexto que trazia várias mensagens. Ser romeiro e morar em Juazeiro era tanto sinal de devoção obediente de quem acolhe um chamado do divino, como sinal de merecimento, quando Deus manobra destinos melhores para seus filhos, que são acolhidos na Terra do Padre Cícero. Antes de ingressar no universo acadêmico, Juazeiro era para mim o mundo quase inteiro, sua população arteira representava aquele ideal profundo de coragem, perseverança e luta que eu queria seguir. Desejava profundamente vencer (não sei bem qual batalha), e, com uma convicção aparentemente inata, acreditava no trabalho como uma força em movimento que quando insistentemente acionada me levaria a conquistar tudo que eu quisesse e na oração como a forma-força, capaz de fazer-me contatar a energia extra que viesse a precisar no decorrer da luta. Só bem mais tarde, compreendi que oração e trabalho funcionam como valores centrais no contexto cotidiano-religioso de Juazeiro, são preceitos de Padre Cícero e marcas constitutivas da formação social da cidade, direcionando a ação coletiva, delineando um ethos, uma visão de mundo que estabelece formas de ser e viver. Os anos passaram e em 1994 discutia-se as romarias em Juazeiro do Norte e sua inserção em estratégias de desenvolvimento para o Ceará. O interesse estava voltado para a identificação de nichos de mercado economicamente sustentáveis e o turismo configurou-se, na época, como prioridade governamental, ao apresentar-se como atividade estruturadora para o Estado, por seu efeito multiplicador na economia e por sua capacidade de gerar emprego e renda. Aquele era o momento efervescente de criação da campanha do produto “Ceará, terra da luz”, cujas ações fomentadoras com ênfase na descentralização e reordenamento do espaço

CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 37 distribuíam-se temporalmente em 25 anos. Naquele momento, Juazeiro do Norte e região eram vistos como produto turístico, como destino vocacionado para o turismo religioso e cultural, principalmente por conta de seus atrativos relacionados ao culto ao Padre Cícero, à tradição folclórica e festas religiosas e populares. Influenciada por essa idéia, debrucei-me na percepção da cidade do ponto de vista turístico, fundamentada principalmente dentro de um sistema de roteiros segmentados, no qual Juazeiro estava relacionado como “Roteiro da Fé”, e tendo como principal produto a romaria (CEARÁ, [1994]). A idéia era integrar as ações das diversas secretarias municipais e destas com a Secretaria de Turismo do Estado do Ceará, no sentido de fomentar o desenvolvimento urbano por meio de ações para o incremento da infra-estrutura local, de serviços, do patrimônio material e imaterial, tendo em vista os “consumidores” do roteiro da fé. Nessa visão, importava investigar os componentes do sistema turístico: mercado, produto (dividido em vários subsistemas), oferta e demanda. Foi um desvio interessante do meu foco, pois as questões que me interessavam diziam respeito aos aspectos relacionados aos significados atribuídos às romarias. Enveredar pela lógica turística deu-me os primeiros elementos para pensar as tensões, disputas simbólicas e apropriações de sentidos nesse universo. Na graduação, foi a partir de um incômodo insistente em relação a determinados expedientes dirigidos aos romeiros, por parte de alguns indivíduos de minha vizinhança - como a venda de água de torneira para ingestão 21 - que me lancei em campo para estudar as romarias... Perguntava-me “O que demandam os romeiros?”, “O que a cidade tem a oferecer?”, perguntas apropriadas para um estudo econômico, envolvendo relações de mercado numa lógica que compreendia a romaria como evento do turismo religioso, mas inadequadas para entender a lógica das tensões existentes entre grupos distintos que interagem durante as romarias e que permanecia no horizonte de minhas inquietações. 21 A água distribuída pela Companhia de Água e Esgotos do Ceará é inadequada para o consumo humano quando apanhada da torneira e usada sem tratamento doméstico.

CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 37<br />

distribuíam-se temporalmente em 25 anos. Naquele momento, Juazeiro do Norte e<br />

região eram vistos como produto turístico, como destino vocacionado para o turismo<br />

religioso e cultural, principalmente por conta de seus atrativos relacionados ao culto<br />

ao Padre Cícero, à tradição folclórica e festas religiosas e populares.<br />

Influenciada por essa idéia, debrucei-me na percepção da cidade do ponto<br />

de vista turístico, fundamentada principalmente dentro de um sistema de roteiros<br />

segmentados, no qual Juazeiro estava relacionado como “Roteiro da Fé”, e tendo<br />

como principal produto a romaria (CEARÁ, [1994]). A idéia era integrar as ações das<br />

diversas secretarias municipais e destas com a Secretaria de Turismo do Estado do<br />

Ceará, no sentido de fomentar o desenvolvimento urbano por meio de ações para o<br />

incremento da infra-estrutura local, de serviços, do patrimônio material e imaterial,<br />

tendo em vista os “consumidores” do roteiro da fé.<br />

Nessa visão, importava investigar os componentes do sistema turístico:<br />

mercado, produto (dividido em vários subsistemas), oferta e demanda. Foi um desvio<br />

interessante do meu foco, pois as questões que me interessavam diziam respeito<br />

aos aspectos relacionados aos significados atribuídos às romarias. Enveredar pela<br />

lógica turística deu-me os primeiros elementos para pensar as tensões, disputas<br />

simbólicas e apropriações de sentidos nesse universo.<br />

Na graduação, foi a partir de um incômodo insistente em relação a<br />

determinados expedientes dirigidos aos romeiros, por parte de alguns indivíduos de<br />

minha vizinhança - como a venda de água de torneira para ingestão 21 - que me<br />

lancei em campo para estudar as romarias... Perguntava-me “O que demandam os<br />

romeiros?”, “O que a cidade tem a oferecer?”, perguntas apropriadas para um<br />

estudo econômico, envolvendo relações de mercado numa lógica que compreendia<br />

a romaria como evento do turismo religioso, mas inadequadas para entender a<br />

lógica das tensões existentes entre grupos distintos que interagem durante as<br />

romarias e que permanecia no horizonte de minhas inquietações.<br />

21 A água distribuída pela Companhia de Água e Esgotos do Ceará é inadequada para o consumo<br />

humano quando apanhada da torneira e usada sem tratamento doméstico.

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