ENTRE CHEGADAS E PARTIDAS: DINÂMICAS DAS ROMARIAS ...

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19.04.2013 Views

CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 220 experiências que se somam à viagem e relacionam-se a sociabilidades diversas que se descolam do corpo simbólico tradicional da romaria: são os passeios no shopping, a ida ao cinema, a visita a clubes e balneários, a busca na cidade de programações de lazer em geral Essas experiências dentro da moldura da romaria, por sua repetição, pelas expectativas de satisfação que criam e por efeito de relatos de viagem posteriores, incorporam-se às romarias. Há uma desconexão entre um corpo formal que diz como as coisas devem ser e como elas realmente são praticadas; isso oferece a impressão ilusória entre defensores da manutenção da tradição de que a romaria ao ser apropriada é corrompida, quando de fato a apropriação acontece porque dentro do próprio evento foi aberto um espaço para isso pelos participantes, a partir de suas demandas pessoais que são agregadas à experiência. Nesse sentido, o que se experiencia como romaria em Juazeiro do Norte é diferente de peregrinação e, na medida em que o lugar do romeiro é central, a própria noção de liminaridade referente a esse tipo de fenômeno precisa ser questionada. É fato que há uma ruptura com o cotidiano de origem, no sentido de distanciamento geográfico e emocional das rotinas e preocupações diárias, mas isso não se desdobra num quadro efetivo de liminaridade. De certa forma, há uma continuidade entre a dimensão do estar no espaço sagrado da romaria e estar experienciando seu antes e depois, nessa lógica o vínculo com o cotidiano não é rompido. Para parcela significativa dos romeiros, fazer romaria funciona como uma oportunidade de obter aquilo que lhes falta no cotidiano, como uma complementação: da “realidade” do sagrado a artigos de consumo indisponíveis no seu mundo de origem. Juazeiro é um lugar de abastecimento por excelência, “de um tudo” se encontra ali - é o que dizem romeiros. A possibilidade de reparação, suscitada pelo sagrado, associada a idéia de abastecimento é quase irresistível e lembra-me o conteúdo de uma conversa com um fretante que viaja a Juazeiro há mais de trinta anos. Quando o perguntei por que vir ao Juazeiro e ele me respondeu, como quem diz tudo: “E por que não vir?”.

CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 221 Há também o espaço da memória e da contação de causos, num sentido lato, que são proporcionados pelos encontros entre participantes nas romarias. As narrações grupais são importantes na manutenção de tradições e perpetuadores de sentidos que extrapolam as romarias e remetem a valores e crenças que direcionam formas de ver e viver no mundo. Refiro-me aqui ao espaço de interação criado nas romarias durante os encontros entre grupos diferentes de romeiros, que tanto acontecem durante o dia, como durante a noite: deslocamentos a pé, em grupos, conversas nas refeições e noite a dentro. Nesses contextos, contadores de causos e exemplos orquestram a construção de sentidos e a função afirmadora no grupo. Os mais idosos, principalmente, são carregadores de valores e reconhecidos pela proximidade que, em algum momento de sua história, tiveram com eventos ou outros personagens importantes na manutenção do mito fundador das romarias. Isto lhes confere ascendência no grupo e é esperado que desempenhem esse papel. Conversas, narrações e causos funcionam como reflexo da cultura, uma forma rica de chegar aos sentidos mais importantes, numa construção metafórica da verdade que importa. O testemunho dos mais velhos tem um respaldo ético e moral, tem força de verdade na definição dos comportamentos que devem ser praticados e daqueles que devem ser evitados. A experiência romeira, além de um evento na biografia dos participantes se torna condição de inserção numa rede de relações estruturadoras mais ampla, que alimenta e favorece plausibilidade para sua existência. A romaria, nesse sentido, caracteriza-se por favorecer condição de grupo para os envolvidos que, a partir dessa associação com outros romeiros, fortalecem suas convicções ao mesmo tempo em que atualizam sua experiência de mundo, com a vivência de práticas diferenciadas. Isso coloca a romaria na situação de intervalo recorrente do cotidiano, que proporciona o “estar em grupo”, que é qualitativamente superior em termos de experiência de interação. Essa experiência de interação é pendular. Na recorrência do outro, por meio do encontro em grupo, na imersão na comunidade romeira, o “eu” é acionado e produz um efeito ambivalente: a romaria como experiência grupal tem um efeito

CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 220<br />

experiências que se somam à viagem e relacionam-se a sociabilidades diversas que<br />

se descolam do corpo simbólico tradicional da romaria: são os passeios no<br />

shopping, a ida ao cinema, a visita a clubes e balneários, a busca na cidade de<br />

programações de lazer em geral<br />

Essas experiências dentro da moldura da romaria, por sua repetição, pelas<br />

expectativas de satisfação que criam e por efeito de relatos de viagem posteriores,<br />

incorporam-se às romarias. Há uma desconexão entre um corpo formal que diz<br />

como as coisas devem ser e como elas realmente são praticadas; isso oferece a<br />

impressão ilusória entre defensores da manutenção da tradição de que a romaria ao<br />

ser apropriada é corrompida, quando de fato a apropriação acontece porque dentro<br />

do próprio evento foi aberto um espaço para isso pelos participantes, a partir de<br />

suas demandas pessoais que são agregadas à experiência. Nesse sentido, o que se<br />

experiencia como romaria em Juazeiro do Norte é diferente de peregrinação e, na<br />

medida em que o lugar do romeiro é central, a própria noção de liminaridade<br />

referente a esse tipo de fenômeno precisa ser questionada. É fato que há uma<br />

ruptura com o cotidiano de origem, no sentido de distanciamento geográfico e<br />

emocional das rotinas e preocupações diárias, mas isso não se desdobra num<br />

quadro efetivo de liminaridade. De certa forma, há uma continuidade entre a<br />

dimensão do estar no espaço sagrado da romaria e estar experienciando seu antes<br />

e depois, nessa lógica o vínculo com o cotidiano não é rompido.<br />

Para parcela significativa dos romeiros, fazer romaria funciona como uma<br />

oportunidade de obter aquilo que lhes falta no cotidiano, como uma<br />

complementação: da “realidade” do sagrado a artigos de consumo indisponíveis no<br />

seu mundo de origem. Juazeiro é um lugar de abastecimento por excelência, “de um<br />

tudo” se encontra ali - é o que dizem romeiros. A possibilidade de reparação,<br />

suscitada pelo sagrado, associada a idéia de abastecimento é quase irresistível e<br />

lembra-me o conteúdo de uma conversa com um fretante que viaja a Juazeiro há<br />

mais de trinta anos. Quando o perguntei por que vir ao Juazeiro e ele me respondeu,<br />

como quem diz tudo: “E por que não vir?”.

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