ENTRE CHEGADAS E PARTIDAS: DINÂMICAS DAS ROMARIAS ...

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CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 134 mesmo chegou um afilhado dizendo: “madrinha, quero ir para a romaria do Juazeiro, mas só vou se madrinha for”, aí vem minha neta e fica aperreando pra vim sabendo que a mãe dela só vem se eu vier também. [...] Eu fico com pena de não vim porque aquela coisa de antigamente ta mudando, os mais antigo tão morrendo e os novos só querem saber de farra. Então eu venho e outros também com a missão da romaria como deve ser e aí a gente vai passando como é e como não é pra quem vem com a gente. Porque o mundo não ensina nada pro lado santo, ensina é pro outro lado. [...] Eu não digo isso assim ignorando, porque cada um é que sabe de si, mas quando você vem para fazer a romaria certa, os outros começam a entender que brinca quem quer e isso não é errado. Só não pode esquecer que o outro lado é que pesa na conformidade de Deus. De acordo com Pais (1994) as peregrinações fazem emergir dois pólos, um sensorial e outro ideológico ou normativo. Eles não são separados, misturam-se a norma e a sensação, a idéia de como a experiência deve ser combina-se com a vida como ela é. Culto e folclore, religião e festa, juntos quebram a rotina e sublimam o desejo. Esses elementos não são desconhecidos para Dona Teodora, que ao colocar-se numa posição de apontar a necessidade de equilíbrio entre os dois pólos, assume um lugar na defesa da continuidade das práticas como romaria e, embora não elabore sua compreensão em uma explicação, ela sabe que a dissociação desses elementos dissipa a substância da experiência romeira. Ao final da tarde os romeiros começam a chegar de volta a casa. Há uma clara distinção entre o cansaço dos mais velhos e a euforia dos mais novos. Percebo que alguns compraram apenas redes e lençóis rústicos. Depois de banharem-se, redes começaram a ser armadas em todos os compartimentos da casa. Parte dos membros dos grupos ficou por ali mesmo, na garagem, conversando, contando experiências do primeiro dia e planejando o que faria no dia seguinte. Outra parte sentou-se na calçada e ali, também, o conteúdo das conversas era o mesmo, embora estivessem também interessados em ver o movimento na rua de pessoas transitando entre caminhões e ônibus estacionados. Passou a chamar a minha atenção o entra e sai dos membros de um grupo específico de jovens, que se preparavam para sair pela cidade. As moças enfeitavam-se com bijuterias e maquiagem, passavam perfume e se provocavam a respeito da aparência. O destino era bem próximo: iam para um bar de calçada no quarteirão seguinte que estendia

CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 135 suas mesas pelo passeio público e onde os freqüentadores bebiam, ao som de um cd de Amado Batista. Depois de algum tempo, fui ter com eles, a pretexto de que queria tomar uma cerveja, e começamos a conversar. A turma falava da sorte de um dos rapazes, que estava num beco próximo se agarrando com uma menina, a quem tinha conhecido naquela tarde e, logo depois, começaram a mangar de dois velhos que ficavam parados noutro bar próximo, só bebendo e olhando as mulheres que passavam. Havia ali certa alegria pelo momento e a idéia de romaria se desenhava claramente como passeio e tempo do não cotidiano, assim como a noção de estar em volta de muita gente diferente conferia um valor específico ao contexto de romaria. A noite também foi o momento em que percebi a dimensão das disputas ocorridas entre os moradores pela conquista de hóspedes. Havia uma rixa estabelecida e uma série de conversas cheias de acusações e agressões dissimuladas entre meus vizinhos. Quando as luzes da casa começaram a ser apagadas, por volta das nove horas da noite, muita gente já dormia pelo chão, na garagem, na sala de jantar e na cozinha. Como havia muitas pessoas ainda por chegar e quem estava dormindo queria que alguém se responsabilizasse pela porta de entrada, entreguei a chave a um dos instalados na garagem e me desloquei para o meu quarto. Embora muito cansada, eu estava ansiosa para escrever no meu caderno de campo as experiências do dia. Adormeci sem perceber e acordei com batidas na porta do quarto. Era um dos senhores que queria seus pertences. Ele estava pateticamente bêbado, frustrado e sentou-se no chão. Depois de ele fazer algumas insinuações sobre o meu marido não se preocupar de eu dormir ali sozinha, em meio aquelas pessoas desconhecidas, resolveu desabafar sua frustração comigo: não conseguira uma parceira sexual naquela noite. Morando num sítio no interior da Paraíba, depois de mais de quarenta anos de casamento, o lado sexual da relação com sua mulher estava morto e vir em romaria era uma oportunidade de ter relações sexuais, sem

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mesmo chegou um afilhado dizendo: “madrinha, quero ir para a romaria do<br />

Juazeiro, mas só vou se madrinha for”, aí vem minha neta e fica aperreando<br />

pra vim sabendo que a mãe dela só vem se eu vier também. [...] Eu fico<br />

com pena de não vim porque aquela coisa de antigamente ta mudando, os<br />

mais antigo tão morrendo e os novos só querem saber de farra. Então eu<br />

venho e outros também com a missão da romaria como deve ser e aí a<br />

gente vai passando como é e como não é pra quem vem com a gente.<br />

Porque o mundo não ensina nada pro lado santo, ensina é pro outro lado.<br />

[...] Eu não digo isso assim ignorando, porque cada um é que sabe de si,<br />

mas quando você vem para fazer a romaria certa, os outros começam a<br />

entender que brinca quem quer e isso não é errado. Só não pode esquecer<br />

que o outro lado é que pesa na conformidade de Deus.<br />

De acordo com Pais (1994) as peregrinações fazem emergir dois pólos, um<br />

sensorial e outro ideológico ou normativo. Eles não são separados, misturam-se a<br />

norma e a sensação, a idéia de como a experiência deve ser combina-se com a vida<br />

como ela é. Culto e folclore, religião e festa, juntos quebram a rotina e sublimam o<br />

desejo. Esses elementos não são desconhecidos para Dona Teodora, que ao<br />

colocar-se numa posição de apontar a necessidade de equilíbrio entre os dois pólos,<br />

assume um lugar na defesa da continuidade das práticas como romaria e, embora<br />

não elabore sua compreensão em uma explicação, ela sabe que a dissociação<br />

desses elementos dissipa a substância da experiência romeira.<br />

Ao final da tarde os romeiros começam a chegar de volta a casa. Há uma<br />

clara distinção entre o cansaço dos mais velhos e a euforia dos mais novos. Percebo<br />

que alguns compraram apenas redes e lençóis rústicos. Depois de banharem-se,<br />

redes começaram a ser armadas em todos os compartimentos da casa. Parte dos<br />

membros dos grupos ficou por ali mesmo, na garagem, conversando, contando<br />

experiências do primeiro dia e planejando o que faria no dia seguinte. Outra parte<br />

sentou-se na calçada e ali, também, o conteúdo das conversas era o mesmo,<br />

embora estivessem também interessados em ver o movimento na rua de pessoas<br />

transitando entre caminhões e ônibus estacionados. Passou a chamar a minha<br />

atenção o entra e sai dos membros de um grupo específico de jovens, que se<br />

preparavam para sair pela cidade. As moças enfeitavam-se com bijuterias e<br />

maquiagem, passavam perfume e se provocavam a respeito da aparência. O destino<br />

era bem próximo: iam para um bar de calçada no quarteirão seguinte que estendia

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