ENTRE CHEGADAS E PARTIDAS: DINÂMICAS DAS ROMARIAS ...

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CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 110 de uma comunidade emergente, que garantiu a ordem e a disciplina necessárias para o crescimento econômico do município. Ao abraçar o lugar de protetor das gentes simples do sertão, e ter esse lugar reforçado pela aceitação de um sem número de afilhados ao longo de sua vida e depois 89 , Padre Cícero vira Padrinho Cícero 90 . De acordo com Oliveira (1985), a base da dominação pessoal, no contexto de relações forjados no mundo colonial senhorial do Brasil, está no homem livre e pobre destituído das condições de sobreviver por seus próprios meios. Essas relações entre senhor e trabalhadores rurais são reproduzidas na relação entre o fiel e seu santo de devoção no âmbito do catolicismo popular. Tomando por fundamento um encargo mútuo, revestido moralmente pela instituição do compadrio, é estabelecida uma relação de proteção/subordinação entre afilhados e padrinhos, entre desvalidos e protetores, que se repete na relação entre devotos e santos. Meu Padrinho... é um jeito da gente dizer que ele [o Padre Cícero] é o pai do povo. Se Juazeiro é o que é, é por conta dele que abençoou e disse que aqui era a Terra da Mãe de Deus. [...] Os mais velho é que conta os exemplo e sabe que aqui num era nada, nada. Foi ele que botando seus pezinhos nessa terra fazia tudo acontecer. E tem mais, ele sabia de tudo, tudo que ia se passar e escrevia tudo no livro pra deixar pra nós se preparar. [...] Quando ele morreu, deram fim [ao livro]. Mas o povo que tinha visto e conhecia ele foi contanto, foi contando e por todo canto o povo quer ele de padrinho, que ele não é padrinho só, que ainda é pouco para tudo que ele é (BENTO, 69, 2005). Diante das repercussões da chamada questão religiosa que levou o Padre a ser suspenso de suas ordens até o final de sua vida, impedindo-o de celebrar, as 89 Muitas pessoas, ao batizarem seus filhos, escolhem até hoje por padrinhos santos de devoção e acolhem padrinhos representantes do santo durante a cerimônia. Os dois são importantes para o afilhado porque cabe ao santo cuidar do encaminhamento espiritual do afilhado, enquanto os representantes ficam envolvidos no acompanhamento terreno do protegido durante a vida. Embora as relações de caráter senhorial tenham se minimizado, ainda é comum que famílias pobres escolham padrinhos ricos no sentido de criar situações de status diferenciado pela proximidade com políticos, fazendeiros, médicos e indivíduos de classes mais favorecidas. Nesse contexto, é levado em consideração também o fato de que há uma obrigação moral dos padrinhos em manter e encaminhar os afilhados na ausência dos pais. 90 Houve também a noção de chamá-lo de padrinho como uma forma de tratamento que representava um ato de consideração de seus contemporâneos para com ele.

CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 111 relações de compadrio provavelmente foram também a forma que seus seguidores e aqueles que acreditavam num ato de injustiça da Igreja encontraram para garantir a permanência de Cícero entre o seu povo, no lugar de destaque que assim o creditavam. A opção de Pe. Cícero pelos pobres, desde sua chegada a Joaseiro, demarcada potencialmente pelo sonho que teve com Jesus, representa o primeiro passo no estabelecimento de sua aliança com os menos favorecidos. As condições de aproximação sempre foram diferenciadas, seja pelo lugar social que o Padre possuía como sacerdote, seja por sua autoridade moral, fundamentada na austeridade de suas convicções e no carisma de sua liderança. A crença no seu poder, a partir do episódio da hóstia, foi o segundo passo que o colocou flagrantemente numa posição de dominação em relação aos seus seguidores. A força dessa aliança foi testada no episódio da guerra, quando os moradores de Juazeiro defenderam a cidade sob a liderança religiosa de Padre Cícero e a estratégia de combate de Floro Bartolomeu 91 , num dos episódios mais marcantes na história do Ceará e do Nordeste: a sedição de Joaseiro 92 . Sua liderança social e política, seu olhar social dedicado à pobreza, sua disponibilidade em ajudar quem procurava auxílio, associados à eficácia de seu socorro e sua habilidade de lidar com pessoas e grupos promovendo paz social entre as classes, o conduziram ao lugar de padrinho daquela gente simples. Padrinho porque mais que um padre, agia com pai, como um patriarca, atraindo multidões de romeiros, migrantes, fracos e desvalidos, que seguiam para Joaseiro em busca de seu conselho e proteção. Padrinho, mestre, conselheiro, curandeiro, suas virtudes acumuladas tornaram-no mito e, acima do humano, os poderes que a ele atribuíam, cada vez mais difundidos nas narrações do lugar como 91 Médico baiano, adventício, que se tornou aliado do Padre Cícero e contribuiu para o desenvolvimento do município através de sua participação na política como deputado federal. 92 Conflito provocado pela interferência do governo federal na política estadual no Ceará, com o objetivo de retirar do poder forças oposicionistas. Ver CAMURÇA, Marcelo Ayres. Marretas, molambudos e rabelistas: a revolta de 1914 em Juazeiro. São Paulo: Maltese, 1994.

CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte 111<br />

relações de compadrio provavelmente foram também a forma que seus seguidores e<br />

aqueles que acreditavam num ato de injustiça da Igreja encontraram para garantir a<br />

permanência de Cícero entre o seu povo, no lugar de destaque que assim o<br />

creditavam.<br />

A opção de Pe. Cícero pelos pobres, desde sua chegada a Joaseiro,<br />

demarcada potencialmente pelo sonho que teve com Jesus, representa o primeiro<br />

passo no estabelecimento de sua aliança com os menos favorecidos. As condições<br />

de aproximação sempre foram diferenciadas, seja pelo lugar social que o Padre<br />

possuía como sacerdote, seja por sua autoridade moral, fundamentada na<br />

austeridade de suas convicções e no carisma de sua liderança. A crença no seu<br />

poder, a partir do episódio da hóstia, foi o segundo passo que o colocou<br />

flagrantemente numa posição de dominação em relação aos seus seguidores. A<br />

força dessa aliança foi testada no episódio da guerra, quando os moradores de<br />

Juazeiro defenderam a cidade sob a liderança religiosa de Padre Cícero e a<br />

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política, seu olhar social dedicado à pobreza, sua disponibilidade em ajudar quem<br />

procurava auxílio, associados à eficácia de seu socorro e sua habilidade de lidar<br />

com pessoas e grupos promovendo paz social entre as classes, o conduziram ao<br />

lugar de padrinho daquela gente simples.<br />

Padrinho porque mais que um padre, agia com pai, como um patriarca,<br />

atraindo multidões de romeiros, migrantes, fracos e desvalidos, que seguiam para<br />

Joaseiro em busca de seu conselho e proteção. Padrinho, mestre, conselheiro,<br />

curandeiro, suas virtudes acumuladas tornaram-no mito e, acima do humano, os<br />

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91 Médico baiano, adventício, que se tornou aliado do Padre Cícero e contribuiu para o<br />

desenvolvimento do município através de sua participação na política como deputado federal.<br />

92 Conflito provocado pela interferência do governo federal na política estadual no Ceará, com o<br />

objetivo de retirar do poder forças oposicionistas. Ver CAMURÇA, Marcelo Ayres. Marretas,<br />

molambudos e rabelistas: a revolta de 1914 em Juazeiro. São Paulo: Maltese, 1994.

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