LITERATURA BRASILEIRA E LITERATURA AFRO-BRASILEIRA
LITERATURA BRASILEIRA E LITERATURA AFRO-BRASILEIRA
LITERATURA BRASILEIRA E LITERATURA AFRO-BRASILEIRA
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Segundo a Lei n. 10.639/03, todas as escolas brasileiras da educação básica,<br />
privadas ou públicas, precisam incorporar em suas práticas a diversidade étnica de<br />
seu país. Porém, muito antes da implementação da lei, encontrávamos registros de<br />
ações individuais ou coletivas, realizadas pelos movimentos sociais. Cientes que<br />
nossas práticas precisam superar o âmbito da denúncia, a intenção deste Módulo de<br />
literatura afro-brasileira é efetivar ações que modifiquem o cenário de exclusão e<br />
inferiorização da comunidade negra. Nossas ações precisam envolver todos os<br />
atores da escola (secretarias de educação, diretores(as), professores(as),<br />
alunos(as), funcionários(as) e a comunidade) e requerem também uma pesquisa de<br />
qualidade e sua inclusão no projeto pedagógico da escola.<br />
Nesta unidade, discutiremos sobre o papel da literatura na construção da nação<br />
brasileira e refletiremos sobre as representações dos afro-brasileiros e africanos na<br />
literatura.<br />
<br />
<br />
<strong>LITERATURA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong><br />
E <strong>LITERATURA</strong> <strong>AFRO</strong>-<strong>BRASILEIRA</strong><br />
Tópico 1 - Literatura Brasileira e Literatura Afro-brasileira<br />
São objetivos desta unidade:<br />
• Analisar como a Literatura Brasileira representa os africanos e seus<br />
descendentes;<br />
• Refletir sobre as representações estereotipadas no tocante à população<br />
negra.<br />
Vamos começar a refletir sobre literatura negra?<br />
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Tópico 1 – Literatura brasileira e literatura afro-brasileira<br />
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A literatura possui papel preponderante na constituição de um<br />
discurso de homogeneização nacional, constituindo-se como um<br />
dos imaginários de um território nacional, desenhando perfis,<br />
transmitindo idéias e valores que irão compor discursos oficiais e<br />
extra-oficiais de uma nação específica.<br />
No intuito de delimitar o patrimônio artístico-cultural de cada país,<br />
pelo menos desde fins do século XV, nações européias elegem<br />
obras literárias consideradas clássicas dos seus idiomas oficiais.<br />
Posteriormente, as novas nações americanas, nascidas sob o<br />
jugo da colonização européia, seguiram o mesmo caminho,<br />
canonizando obras literárias, que acabaram por se transformar<br />
em representantes dos traços característicos de cada nação. Na<br />
verdade, traços específicos, imaginados como verdadeiros e<br />
autênticos dentro de cada projeto de nação. Essa imaginação<br />
nacional, no caso da produção literária brasileira, implica<br />
sobretudo representações de diferentes grupos étnico-raciais.<br />
Em relação a países da América Latina, que ingressaram no<br />
cenário da modernidade ocidental a partir do projeto europeu de<br />
colonização, o jugo de determinados grupos étnico-raciais tornase<br />
um processo intimamente ligado a uma subalternidade que se<br />
estende desde o período de dominação européia direta. Dessa<br />
forma, grupos tomados como a degenerescência do projeto<br />
europeu de civilização, sejam descendentes de africanos<br />
escravizados ou indígenas e índio-descendentes, são rebaixados<br />
à condição de subalternos, tanto em termos físicos quanto nos<br />
níveis social, cultural, intelectual ou político.<br />
<br />
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Tal processo de subalternização perpassa por diversas<br />
instituições sociais que constituem um Estado-nação, dentre elas<br />
uma que nos interessa mais de perto: a escola. No artigo The<br />
Nation Form: History and Ideology [A forma nação: história e<br />
ideologia], Étienne Balibar 1 contextualiza a estreita correlação<br />
histórica entre formação nacional e desenvolvimento da escola<br />
enquanto instituição popular, ou seja, não restrita à educação e<br />
cultura das elites. Nesse processo, a escola se torna a instituição<br />
principal na produção de etnicidade baseada em uma comunidade<br />
lingüística comum, sendo decisiva não só na oficialização da<br />
língua nacional, como também na transformação do idioma<br />
materno 2 em realidade afetiva e identitária para cada indivíduo.<br />
Dessa forma, a ambígua realidade idiomática, a um só tempo<br />
individual e coletiva, será um dos meios pelos quais a identidade<br />
nacional se constituirá, utilizando um código comum, por sob as<br />
diferenças lingüísticas de classe, geração, grupos profissionais,<br />
grupos étnicos, entre outras.<br />
Embora uma comunidade de língua não seja suficiente para,<br />
sozinha, produzir etnicidade, o encaminhamento teórico de<br />
Balibar coloca em questão algo que interessa de perto às<br />
reflexões deste módulo, levando-nos a olhar criticamente um<br />
ensino de literatura que tem excluído as textualidades negras,<br />
sejam elas afro-brasileiras ou africanas, além de questionar o<br />
nosso papel como professor de língua materna, no caso<br />
brasileiro, do professor de língua portuguesa ou de qualquer outra<br />
disciplina, como agente do processo de legitimação de<br />
determinadas narrativas nacionais.<br />
Estudos sobre historiografia literária têm demonstrado que o<br />
processo de eleição dos clássicos literários se relaciona ao ensino<br />
formal da literatura, é importante questionar em que medida os<br />
professores de língua materna no Brasil têm reproduzido uma<br />
perspectiva limitadora de nossa nação ao ensinarem<br />
acriticamente uma excludente história da literatura brasileira, em<br />
<br />
11
circulação tanto nos manuais didáticos mais usados quanto nas<br />
salas de aula.<br />
No Brasil do século XIX, o indianismo romântico pode ser visto<br />
como a primeira tentativa intelectual sistematizada de, no plano<br />
metafórico da literatura, representar o que se entendia por nossa<br />
especificidade nacional, construída pelo apagamento do papel de<br />
grupos étnico-raciais não ocidentais. Dessa maneira, excluindo a<br />
mão-de-obra africana escravizada dessa representação e<br />
construindo literariamente o indígena de maneira europeizada, o<br />
indianismo deu forma, ainda na primeira metade do século XIX, a<br />
uma concepção de Brasil caracterizada por um harmonioso<br />
relacionamento étnico, pois subtraía da tessitura textual-literária<br />
as violências sofridas pelos grupamentos africanos e indígenas no<br />
processo histórico da colonização brasileira. O amparo que a<br />
literatura indianista recebeu do público letrado da época traduz<br />
plenamente a função ideológica dessa interpretação das relações<br />
étnico-raciais no Brasil.<br />
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A importância estratégica da<br />
supervalorização do indígena na<br />
literatura brasileira do século XIX<br />
revela o viés excludente da tradição<br />
literária brasileira, cujo movimento<br />
canonizado como principal 3 <br />
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se<br />
comprometeu a criar uma idéia de nação que ignorava os nossos<br />
problemas sociais e acabava por velar nossas desigualdades<br />
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sociais e étnicas, através do tom exótico ao representar o nativo 4 ,<br />
concebido como o antepassado mítico dos brasileiros.<br />
A face conservadora do indianismo romântico pode ser<br />
apreendida quando se percebe que a visão européia restringiu a<br />
representação do índio, definindo-a segundo parâmetros da<br />
imaginação do ocidente.<br />
Assim, de modo semelhante ao mecanismo da (re)invenção dos<br />
selvagens pelos cronistas europeus do século XVI, reafirma-se,<br />
com o indianismo, a visão exógena, comprometida com a<br />
perspectiva européia de mundo. Além disso, ignora a presença de<br />
africanos nessa imaginação de nação brasileira. Perpetua-se,<br />
portanto, o racismo, já que, no plano da imaginação literária,<br />
naturalizam-se relações sociais desiguais, injustas e baseadas,<br />
inclusive, no extermínio físico, cultural e imaginário de grupos<br />
étnico-raciais subalternizados. A partir do que foi demonstrado,<br />
pode-se perceber que a passagem da literatura colonial para a<br />
pós-colonial, no Brasil, não significou mudança radical de<br />
enfoque, pois a medida e o olhar continuaram ainda a ser<br />
europeus.<br />
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Acreditando na existência de diferenças ontológicas entre as<br />
etnias, capazes de determinarem as características físicas e<br />
psicológicas dos seres humanos — cuja divisão hierárquica<br />
tomava como parâmetro a etnia branco-européia — estudiosos<br />
brasileiros responsabilizavam, por um lado, a união de diferentes<br />
<br />
13
grupos étnico-raciais pelo atraso do país − caso, por exemplo, do<br />
médico legista baiano Nina Rodrigues, cujas idéias concebiam a<br />
mestiçagem como degradação; todavia, por outro lado,<br />
representavam-na como a marca essencial da nossa brasilidade −<br />
caso da singular interpretação do Brasil feita pelo historiador<br />
literário Sílvio Romero 5 , que acreditou na possibilidade de a<br />
mistura étnica ser positiva para o Brasil.<br />
O antropólogo Kabengele Munanga, no livro Rediscutindo a<br />
mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade<br />
negra, argumenta que a mistura étnico-racial só era considerada<br />
positiva, para Silvio Romero, porque resultaria na<br />
homogeneização da sociedade brasileira a partir do<br />
desaparecimento dos segmentos étnico-raciais negros e<br />
indígenas, que se diluiriam na predominância biológica e cultural<br />
branca.<br />
Na visão do intelectual de fins do século XIX, a seleção natural<br />
faria prevalecer na mestiçagem, após algumas gerações, o tipo<br />
racial mais numeroso, no caso do Brasil, segundo ele, a raça<br />
branca. O arcabouço do pensamento de Romero leva então a<br />
uma visão otimista, segundo os parâmetros das elites letradas da<br />
época, pois interpreta a cultura brasileira mestiça como em vias<br />
de embranquecimento. O fundamento de tal ideologia parece,<br />
portanto, óbvio: a inferioridade e o conseqüente apagamento dos<br />
grupos étnico-raciais não-brancos.<br />
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Nesse sentido, a quase total ausência, nas salas de aula, da<br />
produção literária em que vozes negras articulem sentidos sobre<br />
sua própria condição social pode ser vista como a perpetuação<br />
dessa representação de Brasil. O que se observa na produção<br />
editorial dirigida à escola é a obliteração da problemática racial<br />
nos poucos escritores negros que têm suas literaturas analisadas,<br />
além da minimização dos papéis das representações<br />
estereotipadas ou animalizadas dos negros em obras literárias<br />
que fazem referência a teorias raciais ou discutem as<br />
especificidades das relações entre os diferentes grupos étnicoraciais<br />
no Brasil, caso de parte da produção literária de Machado<br />
de Assis, Cruz e Souza, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Mário<br />
de Andrade, Jorge Amado, entre tantos outros.<br />
Trabalhar a historicidade do texto literário tem significado,<br />
portanto, na Escola Básica brasileira, tratá-lo em uma linha de<br />
tempo linear-cronológica, desde o século XVI até o século XX,<br />
reproduzindo a organização tradicional dos estudos em estilos de<br />
época, seus autores e obras mais representativos. Organizado<br />
dessa forma, nosso ensino reduz tanto o multiperspectivismo<br />
próprio do texto literário quanto a concepção de história literária,<br />
ao compreender a literatura como uma naturalizada sucessão de<br />
estilos, períodos ou movimentos literários.<br />
O reducionismo desse tipo de concepção se torna ainda mais<br />
complexo, porque, sob tal quadro cronológico, surgindo como um<br />
fundamento da escolha da maioria dos autores e obras<br />
canonizados, encontra-se um projeto de nação limitador, marcado<br />
pela amenização de tensões sociais que possam levar a lembrar<br />
a violência sofrida por grupos étnico-raciais sujeitados, dizimados<br />
ou silenciados no decorrer de nossa história.<br />
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Dentro do contexto aqui apresentado, a literatura brasileira em<br />
seu termo abrangente – todas as formas literárias produzidas no<br />
Brasil – não tem representado, em equidade, todos os grupos<br />
étnicos que compõem o país, nem os conflitos nem a<br />
complexidade cultural de cada um deles. E, principalmente, não<br />
dá conta dos escritores negros e de suas produções, mantendoos<br />
fora dos cânones e das salas de aulas.<br />
Levando em consideração as questões até aqui apresentadas, os<br />
estudos literários voltados para textualidades negras ou afrobrasileiras<br />
suprimidas de nossa tradição literária lidam com, pelo<br />
menos, duas perspectivas metodológicas: por um lado, uma<br />
análise das representações negativas ou estereotipadas do negro<br />
na literatura brasileira; por outro, uma preocupação por inserir a<br />
produção literária afro-brasileira, que contempla a opressão<br />
cotidiana das populações negras no Brasil, implicando, além de<br />
matrizes culturais africanas, contradições sociais por elas<br />
vivenciadas, em decorrência sobretudo do racismo.<br />
Uma observação do romance de Mário de Andrade Macunaíma<br />
um herói sem nenhum caráter, por exemplo, pode demonstrar o<br />
quanto uma obra canonizada como uma das mais importantes do<br />
Modernismo brasileiro, tradicionalmente conhecida como<br />
representante de um nacionalismo crítico em oposição ao<br />
nacionalismo ufanista dos escritores românticos, é construída,<br />
todavia, a partir da representação negativa do negro e do<br />
indígena.<br />
O herói civilizador sem nenhum caráter nasce preto retinto em<br />
tribo indígena; adulto, toma banho em uma cova de água<br />
encantada, embranquecendo. Entretanto, os irmãos Jiguê e<br />
Maanape, ao se lavarem na cova encantada, não tiveram o<br />
mesmo destino, ficando o primeiro cor de bronze e o último preto,<br />
somente com as palmas dos pés e das mãos vermelhas, devido à<br />
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16
sujeira e à quantidade ínfima de água na cova. O fragmento que<br />
narra a transformação física dos irmãos é bem significativo de<br />
como as relações étnico-raciais são tratadas na narrativa:<br />
Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do<br />
pezão do Sumé. Porém a água já estava suja da negrura do<br />
herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando<br />
água para todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze<br />
novo. Macunaíma teve dó e consolou:<br />
_ Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foise<br />
e antes fanhoso do que sem nariz.<br />
Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara a água<br />
encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e<br />
Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos.<br />
Por isso ficou negro bem filho da tribo Tapanhumas. Só que as<br />
palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se<br />
limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou:<br />
_ Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais sofreu<br />
nosso tio Judas! (Macunaíma, p. 37)<br />
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Trabalhada como um milagre, a<br />
metamorfose física do herói e de<br />
seus dois irmãos é uma construção<br />
ficcional de um dos traços que tem<br />
tradicionalmente caracterizado o<br />
brasileiro, mestiço por excelência.<br />
Dessa forma, mesmo com tonalidades de pele diferentes são —<br />
tanto os personagens do romance quanto os próprios brasileiros<br />
— representados como irmãos. A valorização de uma mestiçagem<br />
harmoniosa, caracterizada pela ausência aparente de tensão<br />
entre os diferentes grupos étnicos, está explícita nesse episódio.<br />
Todavia, as falas do herói demonstram o desejo latente de<br />
embranquecimento, na medida em que concebe o “pretume”<br />
como um defeito ou um intenso sofrimento, respectivamente,<br />
construindo de forma explícita uma representação pejorativa do<br />
brasileiro negro.<br />
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Além do discurso nacionalista baseado na união harmoniosa de<br />
distintos grupos étnico-raciais, a construção dos personagens<br />
baseada em estereótipos também é uma das marcas do romance<br />
de Mário de Andrade. O capítulo “Macumba” pode ser lido,<br />
inclusive, como um fragmento que congrega, ao máximo,<br />
representações estereotipadas e negativas de culturas de<br />
matrizes africanas. De acordo com o enredo do romance, o herói,<br />
na busca do amuleto que se perdeu e de destruir o seu principal<br />
inimigo, usa uma série de estratégias para recuperá-lo, dentre<br />
elas a ida a um ritual de candomblé.<br />
Talvez com o intuito de trabalhar o sincretismo religioso brasileiro,<br />
intimamente relacionado à ideologia da mestiçagem, a qual<br />
concebe a cultura como una, todavia composta por diversidades<br />
étnicas que se somam harmonicamente, Mário cria ficcionalmente<br />
um terreiro de candomblé que representa um verdadeiro inferno<br />
na terra, mundo da animalidade e dos baixos instintos. Situada no<br />
Rio de Janeiro, a casa da Tia Ciata é o lugar onde acontece a<br />
orgia ritualística dedicada a Exu-Diabo 6 .<br />
De acordo com o estudioso de cultos africanos Pierre Verger 7 ,<br />
Exu, intermediário entre os homens e os deuses, é um orixá de<br />
múltiplos e contraditórios aspectos, revelando-se o mais humano<br />
entre eles, nem completamente mau, nem completamente bom.<br />
Como dono da encruzilhada, Exu revela um lado favorável e um<br />
lado caótico, incorporando em si a ambigüidade, as múltiplas<br />
identidades. Entretanto, devido ao viés astucioso e sensual com<br />
que é caracterizado na cosmogonia africana, missionários<br />
católicos europeus fizeram dele símbolo de tudo o que é maldade,<br />
comparando-o ao Diabo.<br />
O capítulo “Macumba” deixa de lado a ambivalência da divindade,<br />
construindo-a apenas como Diabo; por isso, Exu, no episódio, só<br />
concede os pedidos pernósticos de seus fiéis e se porta como um<br />
pai espiritual do “herói sem nenhum caráter”, que se vinga de<br />
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Venceslau Pietro Pietra, através dos poderes demoníacos desse<br />
orixá. A reza final dedicada a Exu, construída como paródia à<br />
prece “Padre Nosso”, reduz o culto afro-brasileiro a uma<br />
caricatura infernal do ritual católico:<br />
- Padre Exu achado nosso que vós estais no trezeno inferno da<br />
esquerda de baixo, nóis te quereremo muito, nóis tudo!<br />
- Quereremos! quereremos!<br />
- ... O pai nosso Exu de cada dia nos dai hoje, seja feita vossa<br />
vontade assim também no terreiro da sanzala que pertence pro<br />
nosso padre Exu, por todo o sempre que assim seja, amém!...<br />
Glória pra pátria jeje de Exu!<br />
- Glória pro fio de Exu!<br />
Macunaíma agradeceu. A tia acabou:<br />
- Chico-t era um príncipe jeje que virou nosso padre Exu dos<br />
século seculoro pra sempre que assim seja, amém.<br />
- Pra sempre que assim seja, amém! (Macunaíma, p. 63-64)<br />
O humor zombeteiro presente no capítulo “Macumba” é, portanto,<br />
a forma extremada de uma série de representações<br />
estereotipadas que perpassam pelo romance. Perceber<br />
representações negativas do negro na literatura é condição<br />
indispensável para compreender que há representações literárias<br />
positivas tanto dos afro-descendentes quanto das culturas e<br />
conhecimentos por eles produzidos. A literatura contemporânea<br />
que se auto-nomeia afro-brasileira produz uma perspectiva<br />
radicalmente oposta às visões correntes dos afro-descendentes<br />
na literatura que mais comumente tem circulado nas salas de aula<br />
do país.<br />
Acadêmicos brasileiros cuja produção tem se voltado para<br />
textualidades negras demonstram a ampliação identitária que o<br />
texto afro-brasileiro proporciona à sociedade, na medida em que<br />
joga com a possibilidade de deslizar produtivamente entre a<br />
tradição ocidental européia e tradições africanas aqui<br />
retrabalhadas.<br />
Dentro de tal processo de deslizamento identitário, a mudança de<br />
referenciais do texto afro-brasileiro desnaturaliza um leitor<br />
fabulado como único no Brasil: branco e, quase sempre,<br />
<br />
19
masculino 8 . O escritor negro precisa lidar, portanto, com no<br />
mínimo duas contradições: não só ser exceção em seu meio<br />
social como escrever para leitores formados segundo parâmetros<br />
da tradição literária ocidental. O escritor e crítico literário Cuti<br />
esmiúça o drama vivido pelo autor negro que reivindica essa<br />
condição social, ao escrever para leitores negros, mestiços e<br />
brancos:<br />
A relação leitor/texto/autor, na literatura brasileira, implica quase<br />
sempre a invisibilidade do leitor negro. É, como no contexto social<br />
o foi por muito<br />
tempo, desconsiderado enquanto cidadão. A experiência do leitor<br />
negro ante o grande espectro da literatura nacional é a mesma de<br />
quem tivesse ouvindo uma conversa entre brancos, atrás da porta,<br />
do lado de fora. E só encontra uma saída: abstrair-se de sua<br />
concrecute e admitir, em si, o branco, enquanto autor, personagem<br />
principal e destinatário do discurso. Não se constitui como “leitor<br />
ideal” para os escritores brancos nem mesmo para os mestiços ou<br />
negros, inclusive a maioria dos modernos. Até que o escritor,<br />
sendo negro que escreve sem renegar sua experiência subjetivoracial,<br />
eleja-o em seu ato de criação. Nasce o interlocutor negro<br />
do texto emitido pelo “eu” negro, num diálogo que põe na<br />
estranheza, na condição de ausente, o leitor “branco”. [grifos do<br />
autor] 9<br />
Essa liberação da criação literária, sob a perspectiva étnico-racial<br />
do negro no Brasil, abre espaço não só para o intercâmbio com<br />
outras tradições culturais não legitimadas no ambiente escolar<br />
como também para uma discussão mais aprofundada dos lugares<br />
de privilégio reservados aos brancos brasileiros enquanto<br />
categoria social. Um ensino de literatura que promova o<br />
desbloqueio de vozes literárias tradicionalmente silenciadas<br />
possibilita ao educando estar no lugar, literalmente na pele do<br />
outro, apreendendo-lhe a dimensão humana.<br />
Dando continuidade às questões até aqui abordadas, na próxima<br />
Unidade, discutiremos a produção literária afro-brasileira, do<br />
século XIX até a contemporaneidade.<br />
<br />
20
Leituras sugeridas<br />
Concluímos a Unidade 1. Na próxima Unidade,<br />
discutiremos em pormenores a literatura denominada<br />
afro-brasileira e suas diferenças em relação à literatura<br />
canônica.<br />
FONSECA, Maria Nazareth. “Poesia Afro-brasileira: vertentes e feições”. In:<br />
http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm (artigos).<br />
SILVA, Luiz. “O leitor e o texto afro-brasileiro”. In: http://www.cuti.com.br/ensaios3.htm<br />
Para saber mais<br />
CAMARGO, Oswaldo. O negro escrito: apontamentos sobre a presença do negro na<br />
Literatura Brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1987.<br />
FONSECA, Maria Nazareth. “Poesia Afro-brasileira: vertentes e feições”. In:<br />
http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm (artigos).<br />
SOUZA, Florentina. “Literatura Afro-brasileira: algumas reflexões”. In:<br />
http://www.palmares.gov.br/_temp/sites/000/2/download/revista2/revista2-i64.pdf<br />
OLIVEIRA, Sílvio. “Séculos de Arte e Literatura Negra”. In: LIMA, Maria Nazaré e SOUZA,<br />
Florentina (Org.). Literatura Afro-brasileira. Salvador: CEAO / Brasília: Fundação Cultural<br />
Palmares, 2006. (p. 39 – 76).<br />
BARRETO, Lima. Os melhores contos. São Paulo: Martin Claret, 2003.<br />
BERND, Zilá. Introdução à Literatura Negra. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988.<br />
______. Literatura e identidade nacional. 2ª. Ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. p.<br />
103-123.<br />
DUARTE, Eduardo de A. “Literatura e Afro-descendência”. In:<br />
http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm (tópico artigos).<br />
FREITAS, Celi. “Lima Barreto: um intelectual negro na avenida central”. In:<br />
http://www2.uerj.br/~intellectus/textos/Celi.pdf.<br />
JESUS, Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Livraria<br />
Francisco Alves, 1960.<br />
<br />
21
LIMA, Maria Nazaré e SOUZA, Florentina (Org.). Literatura Afro-brasileira. Salvador: CEAO,<br />
Brasília: Fundação Palmares, 2006.<br />
MARGARIDO, Alfredo. Estudo sobre literatura das nações africanas de língua portuguesa.<br />
Lisboa: a regra do jogo, 1980.<br />
SANTOS, Jean Carlos Ferreira. “Saber, beleza e arte em Carolina Maria de Jesus”. In:<br />
http://www.palmares.gov.br/sites/000/2/download/revista2/revista2-i96.pdf<br />
Material de apoio<br />
Convite ao livro Clara dos Anjos – Lima Barreto<br />
http://www.youtube.com/watch?v=hBQyvJaMbOI<br />
Canção para Solano Trindade<br />
http://www.youtube.com/watch?v=L8YmtGkX5LE&feature=related<br />
Filmes<br />
“Cruz e Sousa – poeta do desterro” de Sylvio Back<br />
Documentário “Carolina” de Jeferson De, 2003.<br />
“Macunaíma” de Joaquim Pedro de Andrade, 1969.<br />
“Alma no olho” de Zózimo Bulbul, 1973.<br />
Enquanto isso, na sala de aula...<br />
A necessidade de uma revisão da<br />
historiografia literária se faz urgente<br />
e sistemática, no tocante às<br />
representações simbólicas da<br />
população negra, especialmente, no<br />
contexto da sala de aula. Pensamos<br />
algumas estratégias de práticas<br />
pedagógicas e convidamos os<br />
professores e professoras a<br />
<br />
experimentarem outras; aos<br />
<br />
professores(as) que já realizam<br />
ações na perspectiva da lei 10.639/03, que socializem suas experiências, pesquisas e/ou<br />
produzam materiais didáticos que contemplem a dimensão étnicorracial na escola.<br />
Uma das estratégias sugeridas é contrapor as representações da literatura brasileira<br />
canônica com outros modos de representação - a exemplo a produção literária afrobrasileira,<br />
evidenciando as versões que contemplem a diversidade étnicorracial e cultural<br />
brasileira. Os professores de língua portuguesa, por vezes, enfrentam o desafio de<br />
<br />
22
trabalhar obras específicas (cumprindo o projeto pedagógico da escola) no qual os negros<br />
não aparecem, ou, quando são inseridos nas narrativas, é em posição de subalternidade. O<br />
importante, nesse caso, é ter professores atentos e capacitados para desconstruir essas<br />
representações para que, no processo, possam aproveitar para problematizar junto a<br />
seus(suas) alunos(as) as mais diversas situações encontradas.<br />
Na perspectiva das discussões desta Unidade, propomos um trabalho com o livro “Vítimas<br />
Algozes” (1869), de Joaquim Manoel de Macedo, no qual o escravo Simeão é assim<br />
descrito:<br />
Simeão, o crioulo mimoso, perdido, malcriado pelas afetuosas condescendências e<br />
fraquezas dos senhores em casa, pervertido pelos deboches da venda e pelo<br />
veneno do crápula, ingrato pela condição de escravo, sem educação e sem habito<br />
de trabalho, contando com a liberdade e não conseguindo era um perverso<br />
armando loucamente contra os seus senhores pelas mãos de seus senhores<br />
(MACEDO, 2005, p.49)<br />
Apesar da existência de personagens negros, estes não eram vistos<br />
como brasileiros pela maioria das narrativas do século XIX. Alguns<br />
autores da época ignoraram completamente a presença da<br />
população de origem africana de suas narrativas. Ou representavam<br />
de forma estereotipada, como no trecho do romance “Vítimas<br />
Algozes”, no qual pudemos ver a descrição do escravo perverso,<br />
traidor e pervertido. Infelizmente, muitos estigmas foram construídos<br />
e são reiterados em obras literárias até os dias atuais.<br />
Para um debate em classe, destacamos a escritora maranhense, Maria Firmina Reis, com<br />
romance “Úrsula” (1859),<br />
Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a<br />
teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça<br />
ao seu semelhante!... aquele que também era livre no seu país... aquele que é seu<br />
irmão?!<br />
E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma;<br />
porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração,<br />
permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por<br />
isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe<br />
ofereceu à vista.<br />
A leitura proposta por Firmina sobre a escravidão e os escravos é completamente diferente<br />
do olhar de Macedo. Sob a perspectiva feminina, os escravos eram virtuosos, possuindo<br />
sentimentos de generosidade mesmo em meio à violência e aos maus tratos.<br />
Os trechos de Macedo e Firmina aqui expostos evidenciam os diferentes modos de<br />
interpretação para o mesmo evento: escravidão. A importância de Firmina não está só nos<br />
<br />
23
modos como os escravos são descritos, acrescenta-se o fato de ser a primeira escritora<br />
mulher e mulata.<br />
Com base nos recortes, propor discussões em classe, pesquisa sobre o século XIX, a<br />
escravidão; pensar como as novelas de época, filmes, materiais publicitários representam os<br />
escravos na atualidade. Será que a representação de Macedo ficou lá, no século XIX, ou<br />
ainda é possível encontrarmos sua reprodução atualmente? Outra possibilidade é a<br />
realização de oficina de produção textual, em que o(a) aluno(a) é estimulado(a) a escrever<br />
sobre o período escravocrata. No momento reservado à leitura oral dos textos, observar e<br />
registrar os diferentes tipos de narração, como foram descritos os corpos e as ações da<br />
população negra.<br />
Na educação infanto-juvenil, recontar histórias é sempre bem<br />
aceito e estimula a criatividade. Como sugestão, recriar a história<br />
de Tia Nastácia, personagem de Monteiro Lobato que, quando<br />
não é ofendida e humilhada pela boneca-falante Emília, é<br />
destituída de qualquer ligação com sua origem africana para ser<br />
evocada e apresentada como princesa. A seguir, o trecho do livro<br />
Reinações de Narizinho:<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha,<br />
coitada, por ser preta.<br />
— Que não seja boba e venha — disse Narizinho<br />
— eu dou uma explicação ao respeitável público...<br />
— Respeitável público! tenho a honra de apresentar<br />
(...) a Princesa Anastácia. Não reparem<br />
ser preta. É preta só por fora, e não de nascença.<br />
Foi uma fada que um dia a pretejou,<br />
condenando-a a ficar assim até que encontre<br />
um certo anel na barriga de um certo peixe.<br />
Então, o encanto quebrar-se-á e ela virará<br />
uma linda princesa loura. (LOBATO, 1931, p. 206)<br />
Sugerir que os(as) alunos(as), a partir de uma provocação (“Nastácia a heroína negra”, “As<br />
aventuras de Nastácia em África”, ou outro qualquer), criem uma nova história, que pode ser<br />
uma produção coletiva, sob a condução e orientação do(a) professor(a), atentando para as<br />
falas da narrativa de modo que “Tia” Nastácia saia do contexto de submissão dos textos de<br />
Monteiro Lobato, que não precise negar sua identidade. Enfim, não mais ser tolerada via a<br />
condição de um dia aparecer uma fada madrinha que a transforme numa princesa loura.<br />
Para os menores, selecionar histórias infantis que contemplem a diversidade étnica<br />
brasileira, além dos materiais didáticos como: livros, cartazes, bonecos, entre outros.<br />
A cada Unidade são disponibilizados, no tópico “Textos literários”, alguns poemas e contos<br />
que podem ajudar a viabilizar práticas afirmativas na educação. Os poemas selecionados<br />
<br />
24
questionam a não participação dos negros nas narrativas nacionais, seus textos também<br />
expõem à participação do negro na construção do país, entre outros, como: o papel da<br />
literatura afro-brasileira, a abordagem da mídia na representação da população negra, a<br />
desconstrução de alguns estereótipos.<br />
O meta-poema “Outras notícias” de Éle Semog, (ver Unidade I, em Textos Literários), além<br />
de falar sobre o seu fazer poético, crítica o não envolvimento de alguns poetas nos<br />
problemas sociais, os escritores que apresentam uma excessiva preocupação formal. Nessa<br />
linha, encontramos o poema “A um poeta”, de Olavo Bilac - preocupação formal e<br />
necessidade de isolamento para chegar à perfeição artística; já no texto “Emparedado”, de<br />
Cruz e Sousa, o isolamento tem outra perspectiva, vamos descobrir? (consta no texto de<br />
Silvio Oliveira – módulo).<br />
Na perspectiva da literatura comparada, o poema “Ser universal” de Oubi Inaê Kibuko e a<br />
música epígrafe do compositor Chico César, possibilitam um trabalho que dialogue literatura<br />
e música. Quanto ao conteúdo, temos: a relação entre África, Brasil e Minas Gerais, a<br />
discussão do que é ser negro no Brasil. Professores de Geografia, alerta! Milton Santos é<br />
uma excelente sugestão para guiar essas discussões.<br />
Para fomentar debates na escola sobre os modos de construção de personagens negros na<br />
mídia, sugerimos o poema “Efeito Colaterais”, de Jamu Minka. O mito da democracia racial,<br />
mídia e racismo e o objetivo da poesia negra são alguns dos temas a serem trabalhados. É<br />
importante que os(as) estudantes possam evidenciar na prática essas versões, perceber o<br />
cerceamento desses espaços, conseguir flagrar a não equivalência quanto aos lugares<br />
sociais em que os personagens se constituem e são representados nas diferentes etnias.<br />
Outro texto sugerido é a crônica “Maio”, de Lima Barreto, publicada em 04 de Maio de 1911.<br />
Nela, percebemos a forma irônica com que o assunto da libertação dos negros escravizados<br />
no Brasil adquire contornos de crítica. Além da leitura crítica da crônica, podemos mencionar<br />
o nome de figuras significativas no processo da abolição no Brasil como José do Patrocínio,<br />
André Rebouças, Luiz Gama, Francisco de Paula Brito e outros. Todos negros na linha de<br />
frente da intelectualidade escravista. Os intelectuais negros no Brasil, a exemplo de Lima<br />
Barreto, sempre esboçaram preocupações que extrapolaram o texto literário. A militância,<br />
sempre fez parte da vida do escritor como homem de cultura e intelectualmente engajado.<br />
Estimule seus(suas) alunos(as) a conhecer nossos intelectuais negros e negras!<br />
O desafio foi lançado, Professoras(es)!<br />
Usem a criatividade e o conhecimento específico de suas áreas e proponham outras<br />
leituras... Bom trabalho !!!!<br />
<br />
25
26
Os(as) escritores(as) negros(as) apresentam desejos e denominam suas produções<br />
de diferentes modos. Nesta unidade, conheceremos algumas delas a partir da<br />
interpretação dos próprios autores(as). O destaque é para a produção literária das<br />
mulheres negras.<br />
Tópico 1 – Produção literária afro-brasileira<br />
Tópico 2 – Auto-representação da mulher negra<br />
Objetivos:<br />
<br />
<strong>LITERATURA</strong> <strong>AFRO</strong>-<strong>BRASILEIRA</strong><br />
• Discutir a leitura dos autores/as da literatura afro-brasileira sobre suas<br />
produções;<br />
• Estudar a produção literária feita pelas escritoras negras;<br />
<br />
27
Tópico 1 – Produção literária afro-brasileira<br />
Escrever é dar movimento<br />
à dança-canto<br />
Que meu corpo não executa.<br />
A poesia é a senha que invento<br />
Para poder acessar o Mundo.<br />
(Conceição Evaristo)<br />
Retomando as palavras de Conceição Evaristo, poetisa negra,<br />
essa escrita-corpo - mistura de canto e dança, com poder de<br />
“acessar o Mundo” - é a literatura, que se auto-declara produção<br />
textual afro-brasileira e/ou negra. Para o poeta negro Elio Ferreira,<br />
escrever<br />
É uma maneira de falar para o mundo, contar a história dos meus<br />
antepassados negros e a minha própria história, influindo e<br />
participando na transformação da sociedade através da denúncia<br />
contra as violências racial e social. O que me levou a escrever foi<br />
uma necessidade interior de falar de mim e da condição humana.<br />
A sensação e a crença de escrever é uma forma de perpetuar a<br />
nós mesmos e as pessoas que estimamos; as pessoas simples,<br />
sobretudo negras, da nossa convivência. 1<br />
Com o intuito de reverter imagens negativas e estereótipos que os<br />
termos “afro” e “negro” assumiram ao longo de nossa história, a<br />
escrita negra e/ou afro-brasileira visa apresentar uma leitura<br />
crítica dos preconceitos disseminados na sociedade, além de<br />
apontar possibilidades de o escritor/ escritora negro/a consciente<br />
de seu papel lutar contra um modelo de identidade nacional<br />
baseado na idéia de democracia racial.<br />
A literatura afro-brasileira está, portanto, mergulhada na<br />
experiência de vida da população negra, não só como estratégia<br />
artística de denúncia da exclusão do afro-descendente, mas<br />
também como meio de liberação de tradições africanas<br />
silenciadas em nossa cultura. Conforme Cuti,<br />
O texto escrito começa a trazer a marca de uma<br />
experiência de vida distinta do estabelecido. A emoção<br />
– inimiga dos pretensos intelectuais negros – entra em<br />
campo, arrastando dores antigas e desatando silêncios<br />
enferrujados. É a poesia feita pelo negro brasileiro<br />
consciente. 2<br />
<br />
28
Para o afro-descendente, escrever reivindicando direitos de<br />
cidadão e ocupando novos lugares sociais, não limitados aos<br />
espaços destinados aos escravizados, passa a ter visibilidade<br />
durante o século XIX, com uma imprensa negra de viés<br />
abolicionista, cujo nome principal foi José do Patrocínio, escritor<br />
e jornalista que atuou intensamente na campanha pela abolição<br />
da escravatura. Todavia, em diferentes partes do país, escritores<br />
atuaram como defensores da abolição do trabalho escravo<br />
também através da imprensa escrita, caso de Maria Firmina dos<br />
Reis (Maranhão), Antonio Rebouças (Rio de Janeiro), Luiz<br />
Gama (São Paulo), entre outros.<br />
Desde então, escritores e intelectuais afro-brasileiros dão<br />
continuidade à tradição de fundar grupos, jornais, revistas e<br />
coletâneas de textos literários, como, por exemplo, durante o<br />
século XX, o Jornal Quilombo, os Cadernos de Cultura da<br />
Associação Cultural do Negro, a Revista Tição, o Jornal do<br />
Movimento Negro Unificado, o grupo Gens, os Cadernos<br />
Negros, a antologia Quilombo de Palavras, para citar alguns dos<br />
mais significativos.<br />
No decorrer do século XX, podemos fazer referência a autores<br />
que produzem literatura com a intenção óbvia de trabalhar com<br />
vozes rasuradas de nossa tradição cultural hegemônica, tais<br />
como Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Ruth<br />
Guimarães, Joel Rufino dos Santos, Geni Guimarães,<br />
Conceição Evaristo, Jônatas Conceição da Silva, Cuti, Adão<br />
Ventura, entre outros e outras que produzem textos sobre<br />
tradições histórico-culturais de origem africana no Brasil ou sobre<br />
o cotidiano do afro-brasileiro. É nesse falar de si e das próprias<br />
tradições culturais que escritores afro-brasileiros rasuram a<br />
pretensa universalidade e ocidentalidade da arte literária.<br />
Embora o uso dos termos literatura negra, literatura afro-brasileira<br />
ou literatura afro-descendente não seja consenso entre críticos<br />
<br />
29
literários e escritores, importa perceber o quanto textualidades<br />
negras no Brasil têm representado positivamente populações<br />
negras, tirando do silêncio, através da escrita, tradições africanas<br />
suprimidas e experiências sociais relacionadas ao cotidiano dos<br />
afro-descendentes.<br />
Antecedentes da literatura negra<br />
O escritor Oswaldo de Camargo, no livro O negro escrito, levanta<br />
o primeiro registro de um negro letrado no Brasil. Fato importante,<br />
tendo em vista as condições adversas dos africanos e afrodescendentes<br />
na época. Tratava-se de Henrique Dias, que<br />
escreveu uma carta ao rei de Portugal, reclamando maus tratos,<br />
em 1650. Há também registros em nossa história colonial de<br />
textos que informavam sobre atos de resistência ao sistema<br />
escravista e de textos de irmandades religiosas e de sociedades<br />
negras, demonstrando a existência de negros alfabetizados e o<br />
uso da escrita como resistência a um meio opressor.<br />
Todavia, o primeiro a fazer esparsas referências à condição do<br />
negro em sua produção poética foi Domingos Caldas Barbosa, no<br />
século XVIII. Fortemente aclamado pelo público, levou seus<br />
lundus (música de origem africana) e modinhas para Portugal. Em<br />
“Retratos de Lucinda”, o eu lírico canta a beleza suprema de uma<br />
mulher trigueira, de pele escura, construindo uma inversão de<br />
valores dentro dos padrões europeus do Arcadismo no Brasil:<br />
Não tens nas faces<br />
Jasmins de rosa,<br />
Cor mais graciosa<br />
Nas faces tens.<br />
Todas t’a invejam,<br />
E há quem ser queira,<br />
Assim trigueira<br />
Como tu és.<br />
(Viola de Lereno, p. 10, v. 2)<br />
<br />
30
Luiz Gonzaga Pinto da Gama, no século<br />
XIX, foi um abolicionista que utilizou a<br />
intelectualidade para a libertação de<br />
negros escravizados, como rábula<br />
(advogado sem diploma), jornalista em<br />
escritor. Em 1959, publicou Primeiras<br />
Luiz Gama<br />
Trovas Burlescas de Getulino, através das<br />
quais satirizou a aristocracia da época. No<br />
período em que se construía literariamente uma brasilidade<br />
representada sobretudo pelo indianismo de caráter ufanista, Luiz<br />
Gama, com lirismo e sátira, escreveu, a partir da perspectiva de<br />
um negro, impressões de um Brasil autoritário, como se pode ver<br />
no fragmento do poema abaixo:<br />
No álbum do meu amigo J.A. da Silva Sobral<br />
Se tu queres, meu amigo,<br />
No teu álb’um pensamento<br />
Ornado de frases finas,<br />
Ditadas pelo talento;<br />
Não contes comigo,<br />
Que sou pobretão:<br />
Em coisas mimosas<br />
Sou mesmo um ratão<br />
(...)<br />
Ouvindo o conselho<br />
Da minha razão,<br />
Calei o impulso<br />
Do meu coração.<br />
Se o muito que sinto<br />
Não posso dizer,<br />
Do pouco que sei<br />
Não quero escrever.<br />
Não quero que digam<br />
Que fui atrevido;<br />
E que na ciência<br />
Sou intrometido.<br />
Desculpa, meu amigo,<br />
Eu nada te posso dar;<br />
Na terra que rege o branco<br />
Nos privam té de pensar!...<br />
<br />
31
No mesmo ano das Trovas de Gama, foi<br />
editado o romance de compromisso<br />
abolicionista Úrsula, escrito pela<br />
maranhense Maria Firmina dos Reis.<br />
Dois anos após a edição de O Guarani de<br />
José de Alencar, obra emblemática do<br />
Maria Firmina dos Reis<br />
indianismo romântico, a escrita literária<br />
de uma mulher negra e nordestina põe no centro as dores dos<br />
negros escravizados, além disso posiciona-se a favor de um<br />
Brasil sem preconceitos, cujas diferenças de classe, raça e<br />
gênero não signifiquem desigualdade no plano social.<br />
Apesar de protagonizado pelos jovens brancos Úrsula e<br />
Tancredo, o enredo se desenrola de tal forma que os<br />
personagens submetidos à escravidão são dignificados,<br />
sobretudo Túlio, que ajuda o jovem advogado Tancredo, e a preta<br />
Susana, através da qual a maior parte dos discursos contrários à<br />
escravização de africanos são enunciados. No fragmento a<br />
seguir, Susana, aconselhando Túlio, faz um discurso dolorido<br />
sobre a realidade dela:<br />
A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento<br />
depois exclamou:<br />
— Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são<br />
inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não<br />
posso deixar de render a tudo que me foi caro! Liberdade!<br />
Liberdade... ah! Eu gozei na minha mocidade! — continuou<br />
Susana com amargura — (...) Mais tarde deram-me em<br />
matrimônio a um homem, que amei com a luz dos meus<br />
olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida,<br />
em que me revia, em que tinha depositado todo o amor da<br />
minha lama: — um filha que era a minha vida, as minhas<br />
ambições, a minha suprema ventura, veio selar a nossa<br />
santa união. E esse país de minhas afeições, e esse esposo<br />
querido, essa filha tão extremamente amada! Oh! Túlio!<br />
Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo! Até a<br />
própria liberdade!<br />
Dois outros importantes escritores, em termos de produção<br />
literária que lida com representações positivas do negro no Brasil,<br />
<br />
32
são conhecidos por um público mais amplo, pois constam na<br />
maioria dos livros didáticos em circulação no país: Cruz e Sousa<br />
e Lima Barreto. Todavia, eles são, geralmente, apresentados de<br />
forma superficial ou inadequada ao estudante.<br />
A obra de Cruz e Sousa, nesse sentido, é a<br />
que mais tem sido deturpada em manuais<br />
de ensino de literatura, fazendo com que a<br />
visão corrente sobre o escritor seja a de<br />
quem representou em sua produção<br />
Cruz e Sousa<br />
poética um latente desejo de<br />
(1861-1898) embranquecer, devido a uma pretensa<br />
preocupação obsessiva pela cor branca no vocabulário por ele<br />
usado. Entretanto, tem sido sistematicamente ignorada a<br />
produção literária em que um eu negro se coloca bravamente<br />
contra a violência que o racismo cravava na sociedade brasileira<br />
da época em que Sousa viveu e produziu. Nascido em<br />
Florianópolis, foi poeta, escritor e advogado preocupado com a<br />
situação do escravizado e com a discriminação sofrida pelos<br />
descendentes de africanos.<br />
Poemas como Escravocratas, Na senzala, Grito de Guerra, a<br />
prosa poética Emparedado, entre outros textos, demonstram a<br />
participação de Sousa no processo social de seu tempo. As<br />
paredes que cerram um sujeito poético aos limites<br />
autoritariamente demarcados por uma sociedade racista são uma<br />
hiperbólica imagem que traduz as contradições e a dor com que<br />
um escritor negro, de fins do século XIX, tinha que lidar:<br />
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da<br />
vasta edificação do mundo, porque atrás de ti e adiante<br />
de ti não sei quantas gerações foram acumulando, pedra<br />
sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora<br />
o verdadeiro emparedado de uma raça. Se caminhares<br />
para a direita baterás e esbarrarás, ansioso, aflito, numa<br />
parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e<br />
Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra<br />
parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a<br />
primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se<br />
caminhares para a frente, ainda nova parede, feita<br />
<br />
33
de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito,<br />
broncamente se elevará ao alto! Se caminhares,<br />
enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede,<br />
fechando tudo, fechando tudo - horrível - parede de<br />
Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio<br />
espasmo de terror absoluto...<br />
E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às<br />
pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras...<br />
Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes<br />
Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais<br />
pedras! E as estranhas paredes hão de subir<br />
longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir,<br />
mudas, silenciosas, até as Estrelas, deixando-te<br />
para sempre perdidamente alucinado e emparedado<br />
dentro do teu Sonho..." (Cruz e Sousa Obra<br />
Completas, p. 664)<br />
A devastadora ironia da poesia Caveira, do mesmo autor,<br />
publicada em Faróis (1900), é também sublime ao trabalhar com<br />
uma inversão existencial e política dos papéis do branco e do<br />
negro na sociedade brasileira do final do século XIX. Através de<br />
uma imagem hedionda, a morte acaba, neste interessante poema,<br />
por humanizar a todos, sem distinção:<br />
I<br />
Olhos que foram olhos, dois buracos<br />
Agora, fundos, no ondular da poeira...<br />
Nem negros, nem azuis e nem opacos.<br />
Caveira!<br />
II<br />
Nariz de linhas, correções audazes,<br />
De expressão aquilina e feiticeira,<br />
Onde os olfatos virginais, falazes?!<br />
Caveira! Caveira!!<br />
III<br />
Boca de dentes límpidos e finos,<br />
De curva leve, original, ligeira,<br />
Que é feito dos teus risos cristalinos?!<br />
Caveira! Caveira!! Caveira!!!<br />
(Cruz e Sousa Obras Completas, p. 119)<br />
<br />
34
Lima Barreto, por sua vez, é apresentado<br />
aos estudantes da Escola Básica quase<br />
exclusivamente através do romance<br />
nacionalista Triste fim de Policarpo<br />
Quaresma, deixando de lado toda a<br />
produção literária em que encenou<br />
condições sociais do afro-descendente do<br />
início do século XX, através de<br />
personagens que denunciam a aspereza do<br />
preconceito racial e social. Nesse sentido, a temática aparece em<br />
romances como Clara dos Anjos, Recordações do escrivão Isaías<br />
Caminha, entre outros contos e crônicas. O protagonista de<br />
Recordações, no trecho a seguir, demonstra como escritores de<br />
origem negra motivaram seus interesses intelectuais e artísticos:<br />
E o monstruoso redator desandou dizendo asneiras. Eu<br />
estava ali de colarinho sujo, esfomeado, mas tive ímpeto<br />
de discutir e de quebrar a cara dos idiotas que o ouviam.<br />
Entre eles, havia alguns a quem cabia bem a carapuça,<br />
mas que se calaram cobardemente. Queria perguntar-lhe<br />
se aqueles seus artigos acacianos, cheirando ainda<br />
muito à brochura francesa de dois mil e quinhentos se<br />
podiam por a par dos trabalhos de Tito Lívio, do Tobias<br />
Barreto; eu queria perguntar-lhe se sua genialidade no<br />
artiguete seria capaz de aparecer se tivesse nascido nas<br />
condições desfavoráveis do Caldas Barbosa, do José<br />
Maurício, do Silva Alvarenga e outros!<br />
A intenção aqui é traçar um panorama da produção literária que,<br />
no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, já fazia<br />
referência à condição social subalterna do escravizado (no<br />
período pré-abolição), ou do afro-descendente (no período pósabolição).<br />
No entanto, cabe a você, professor, conhecer a fundo<br />
outros escritores que também produziram literariamente em torno<br />
da mesma questão, tais como Silva Alvarenga, Gonçalves<br />
Crespo, Machado de Assis, etc.. O conhecimento desses nomes<br />
e textos esquecidos é condição central para compreender que a<br />
resistência literária ao racismo, através de tratamento direto ou<br />
<br />
35
indireto, foi fundamental em nossa história social e literária.<br />
Dentre esses(as) primeiros(as) escritores(as), destaca-se o nome<br />
da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, que rompeu não<br />
só com a barreira racial, mas também com a barreira de gênero.<br />
Como mulher e negra, conseguiu ter acesso à escrita em pleno<br />
século XIX. Além disso, apresentar-se como intelectual, escritora<br />
de romances e poesias coloca-a num lugar de exceção. Esse<br />
espaço será também ocupado pela escrita de outras mulheres na<br />
contemporaneidade. A próxima seção será destinada a refletir um<br />
pouco sobre a escrita literária de mulheres negras no cenário<br />
brasileiro contemporâneo.<br />
<br />
36
Tópico 2 – Auto-representação da mulher negra<br />
(...)<br />
A noite não adormecerá<br />
Jamais nos olhos das fêmeas<br />
Pois o nosso sangue-mulher<br />
Do nosso líquido lembradiço<br />
Em cada gota que jorra<br />
Um fio invisível e tônico<br />
Pacientemente cose a rede<br />
De nossa milenar resistência.<br />
(A noite não adormece nos olhos das mulheres,<br />
Conceição Evaristo)<br />
Como diz o poema de Conceição Evaristo, em homenagem à<br />
memória de Beatriz Nascimento 1 , “a noite não adormece nos<br />
olhos das mulheres”! É pensando nessa rede milenar de<br />
resistência que as representações do sujeito-mulher-negra não<br />
poderiam ficar de fora das produções afro-brasileiras<br />
contemporâneas.<br />
A escrita da mulher negra é de grande importância devido<br />
sobretudo aos séculos de silenciamento a que as mulheres<br />
negras foram submetidas; elas têm se apoderado do espaço<br />
privilegiado da literatura e apresentado outras formas de<br />
representação, dando legitimidade, principalmente, ao papel<br />
histórico delas e de tradições negras na cultura nacional.<br />
<br />
37
Quantas vezes não ouvimos tais frases em nossas vidas ou até<br />
as repetimos sem pensar? Crescemos vendo os espaços<br />
discriminados e também discriminando os que são ocupados<br />
pelas mulheres e pelos homens. Na literatura não ocorre de<br />
maneira diferente: as representações dos papéis das mulheres na<br />
sociedade brasileira constituem um acervo simbólico que acaba<br />
por reforçar estereótipos e demarcar os possíveis lugares sociais<br />
a serem ocupados por elas. Infelizmente, algumas dessas<br />
representações condicionam as mulheres negras a espaços ainda<br />
menos privilegiados que os reservados às mulheres não-negras –<br />
espaços já tão limitados, diga-se de passagem! Segundo Sueli<br />
Carneiro,<br />
As denúncias sobre essa dimensão da problemática<br />
da mulher na sociedade brasileira, que é o silêncio<br />
sobre outras formas de opressão que não somente o<br />
sexismo vêm exigindo a re-elaboração do discurso e<br />
práticas políticas do feminismo. E o elemento<br />
determinante nessa alteração de perspectiva é o<br />
emergente movimento de mulheres negras sobre o<br />
ideário e a prática política feminista no Brasil 2 .<br />
Na literatura, desde o século XIX, podemos citar as escritoras<br />
Maria Firmina dos Reis e Francisca Júlia da Silva que furam o<br />
cerco do patriarcado e, através da palavra, apresentam uma<br />
versão da história em que as mulheres se auto-representam como<br />
sujeitos. É essa presença resistente de escritoras negras – tais<br />
como Rosa Egipcíaca, Teresa Margarida da Silva, Antonieta<br />
de Barros, Maria Carolina de Jesus, Conceição Evaristo,<br />
Miriam Alves, Alzira Rufino, Esmeralda Ribeiro, Geni Mariano<br />
Guimarães, Sônia Fátima, dentre outras – que vem publicando<br />
de forma organizada e representando na sua escrita a perspectiva<br />
“mulher” e “negra” –, o foco desse tópico no módulo de Literatura<br />
Afro-brasileira.<br />
A literatura produzida por mulheres negras, no ambiente da sala<br />
de aula, contribui para a redução da desigualdade de gênero e o<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
38
enfrentamento do preconceito e da discriminação étnico-racial,<br />
visando uma educação equânime. Esses textos literários podem<br />
ajudar a eliminar e/ou problematizar os conteúdos sexistas e<br />
discriminatórios que rondam as representações simbólicas e o<br />
imaginário brasileiro, sejam nos livros didáticos, na mídia, nas<br />
músicas, entre tantos outros.<br />
Algumas temáticas trabalhadas pelas escritoras:<br />
• Tradições de mulheres em rede, através das gerações<br />
A voz de minha mãe ecoou<br />
Criança<br />
Nos porões do navio.<br />
Ecoou lamentos<br />
De uma infância perdida.<br />
A voz de minha avó<br />
Ecoou obediência<br />
Aos brancos-donos de tudo.<br />
A voz de minha mãe<br />
ecoou baixinho revolta<br />
no fundo das cozinhas laheias<br />
debaixo das trouxas<br />
roupagens sujas dos brancos<br />
pelo caminho empoeirado<br />
rumo à favela.<br />
A minha voz ainda<br />
ecoa versos perplexos<br />
com rimas de sangue<br />
e<br />
fome.<br />
A voz da minha filha<br />
recolhe todas as nossas vozes<br />
recolhe em si<br />
as vozes mudas caladas<br />
engasgadas nas gargantas.<br />
A voz da minha filha<br />
recolhe em si<br />
a fala e o ato.<br />
O ontem — o hoje — o agora.<br />
VOZES-MULHERES<br />
(Conceição Evaristo)<br />
Na voz de minha filha<br />
Se fará ouvir a ressonância<br />
O eco da vida-liberdade.<br />
<br />
39
• Definição do que é ser negra<br />
Ser negra<br />
Na integridade<br />
Calma e morna dos dias<br />
Ser negra<br />
De carapinhas,<br />
De dorso brilhante<br />
De pés soltos nos caminhos<br />
Ser negra<br />
De Negras mãos<br />
De negras mamas,<br />
De negra alma.<br />
Ser negra,<br />
Nos traços,<br />
Nos passos,<br />
Na sensibilidade negra.<br />
Ser negra,<br />
Do verso e reverso,<br />
De choro e riso,<br />
De verdades e mentiras,<br />
Como todos os seres que habitam a terra.<br />
Negra<br />
Puro afro sangue negro<br />
Saindo aos jorros,<br />
Por todos os poros.<br />
(Geni Mariano Guimarães)<br />
Integridade<br />
<br />
40
• Corpo da mulher negra em ação, como sujeito<br />
<br />
41
Leituras sugeridas<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
EVARISTO, Conceição. “Da representação à auto-representação da mulher negra na<br />
literatura brasileira. In: Revista Palmares - Cultura Afro-brasileira. Ano 1, n. 1, ago. 2005.<br />
p. 52-57.<br />
FERREIRA, Luzilá Gonçalves Ferreira. “Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista<br />
brasileira”.<br />
In:http://www.cesargiusti.bluehosting.com.br/Especiais/MFReis/critica.htm#luzila<br />
MAYA-MAYA, Estevão. “Análise e reflexões críticas sobre a produção literária afrobrasileira<br />
nos anos 70”. In: Criação Crioula: Nu elefante branco. São Paulo: Secretaria de<br />
Estado da Cultura, 1987. p. 107- 111.<br />
Para saber mais<br />
BRITTO. Carla dos Santos. “Antologia de escritoras afro-brasileiras: afirmação de<br />
identidade nas escrituras de Miriam Alves”. Disponível em:<br />
<br />
Cadernos Negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 1979-2005.<br />
Cadernos Negros: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 1978-2006.<br />
CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: Imprensa oficial do Estado S.A<br />
IMESP, 1987.<br />
______. A razão da Chama. São Paulo: GRD, 1986.<br />
______. O estranho. São Paulo: Roswitha Kempt Editores, 1984.<br />
CONCEIÇÃO, Jônatas da Silva. Outras Miragens. São Paulo: Confraria do Livro, 1989.<br />
COSTA, Madu. Meninas negras. (coleção Griot Mirim, vol. 3). Belo Horizonte: Mazza<br />
<br />
42
edições, 2006.<br />
CUNHA JUNIOR, Henrique. Tear africano: contos afrodescendentes. São Paulo: Selo<br />
Negro, 2004.<br />
CUTI. Sanga. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002.<br />
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza edições, 2003.<br />
JESUS, Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Livraria<br />
Francisco Alves, 1960.<br />
LOPES, Nei. Vinte contos e uns trocados. Rio de Janeiro: Record, 2006.<br />
LUCINDA, Elisa. Euteamo e suas estréias. 2ªed. Rio de Janeiro: Record, 2000.<br />
MAYA-MAYA, Estevão. “Análise e reflexões críticas sobre a produção literária afrobrasileira<br />
nos anos 70”. In: Criação Crioula: Nu elefante branco. São Paulo: Secretaria de<br />
estado da cultura, 1987.<br />
ONAWALE, Landê. O vento. Salvador: ed. Do autor, 2003.<br />
PADILHA, Laura Cavalcante. “Nas dobras dos panos – feminino e textualidade em duas<br />
narrativas fundacionais angolanas”. In: Novos pactos, outras ficções. Porto Alegre:<br />
Edipucrs, 2002.<br />
PALMEIRA, Francineide S. “Representações de gênero e afrodescendência<br />
na obra de Conceição Evaristo”. In: http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14440.pdf<br />
RIBEIRO, Esmeralda. Malungos e milongas. São Paulo: Quilombhoje, 2003. (conto).<br />
______. “A Relação Afetiva entre o Homem e a Mulher na Poesia dos Cadernos Negros”.<br />
In: http://www.quilombhoje.com.br/ensaio/esmeralda/relacao_afetiva.htm<br />
SILVA, Jônatas C. da. Miragem de Engenho. Salvador: IRDEB, 1984. (poemas).<br />
SOUZA, Florentina da Silva. “Intelectual negro e mediações culturais: Solano Trindade”.<br />
In: Revista SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 226-239, 2º. sem. 2004.<br />
http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm (índice de autores)<br />
TRINDADE, Solano. Poemas antológicos. São Paulo: Nova Alexandria, 2008.<br />
_______________. Canto Negro. São Paulo: Pallas, 2006.<br />
VENTURA, Adão. Litanias de cão. Belo Horizonte: edição do autor, 2002.<br />
Material de apoio<br />
Filmes:<br />
Documentário “Solano Trindade: 100 anos” de Alessandro Guedes e Helder Vieira, 2008.<br />
“As filhas do vento” de Joel Zito Araújo, 2005.<br />
“A cor púrpura” de Steven Spielberg, 1985.<br />
“Makota Valdina: um jeito negro de ser e viver” de Ana Verena Carvalho, Joiciléia<br />
Rodrigues Ribeiro e Paulo Rogério Nunes, 2005.<br />
“Atabaque Nzinga” de Octavio Bezerra, 2008.<br />
<br />
43
Enquanto isso, na sala de aula...<br />
O uso de textos literários é de fundamental importância para desenvolver as habilidades<br />
dos(as) alunos(as), por possibilitar múltiplas perspectivas e níveis de apreensão do texto.<br />
O(A) leitor(a) compartilha do jogo da imaginação para captar o sentido das coisas e os<br />
sentimentos ali contidos permitindo, assim, “o desenvolvimento de todas as virtualidades<br />
da linguagem e, portanto, permite-nos analisar os mecanismos empregados pelo autor<br />
para produzir beleza, recriar mecanismos, desentranhar os símbolos que estruturam a<br />
mensagem, brincar com a musicalidade das palavras liberadas de sua função<br />
designativa, etc.” (KAUFMAN & RODRIGUEZ, 1995)<br />
Nesta Unidade, a seleção de “textos literários” baseou-se nos artigos e entrevistas<br />
dos(as) escritores afro-brasileiros(as). Alguns poemas, como “Vento Forte”, de Lepê<br />
Correia, “Ancestral”, de Landê Onawale, “Cumplicidade” e “Quase hai kai”, de Graça<br />
Graúna, “Diário de uma favelada”, de Ademiro Alves, abordam a importância da<br />
ancestralidade, além de contribuir para a constituição de uma historiografia afrobrasileira,<br />
trazendo para o bojo das discussões contemporâneas a influência de<br />
autores(as) que há muito tempo escreviam textos literários sobre a história e cultura afrobrasileiras.<br />
Em “Acerto de cotas”, do poeta baiano Landê Onawale, além da riqueza de imagens<br />
poéticas e do ritmo, destaco o polêmico tema a ser abordado: as políticas de cotas.<br />
Muitos são os recursos complementares, artigos de jornais, revistas, e demais debates<br />
realizados sobre o assunto. Interessante propor - após o trabalho com o poema e leitura<br />
de demais fontes, a construção de um júri, no qual os educandos(as) possam argumentar<br />
sobre o tema e defender suas teses. Passeiam pelo poema ainda discussões sobre: a<br />
história do negro no Brasil, o contexto de pobreza e abandono em que vive a maioria da<br />
população negra e os modos como os negros foram e são representados pela mídia.<br />
O conto “Desenganos” de Márcio Barbosa é uma alternativa para incluir as disciplinas de<br />
Matemática e Geografia no trânsito pela literatura. A situação-problema relatada no<br />
conto, independente de todo trabalho de análise textual que pode - e deve - ser realizada,<br />
motiva a realização de uma “pesquisa de campo” nos principais Shoppings Centers da<br />
cidade quanto ao número de funcionários negros e negras contratados; ou a realização<br />
de uma entrevista na própria escola entre alunos(as) e professores/as sobre terem ou<br />
não enfrentado situações de racismo; ou ainda, o número de pessoas negras em cargos<br />
de poder. Enfim, uma série de possibilidades de pesquisa, que, com base em seus<br />
<br />
44
esultados, podem depois virar fontes estatísticas e fomentar o desenvolvimento de<br />
conteúdos da matemática. Detalhe, se o trabalho acontece em acordo e consonância<br />
com diferentes disciplinas, enriquece ainda mais os resultados.<br />
A literatura produzida por mulheres negras recebeu um espaço especial, por se tratar de<br />
produções tão significativas e ricas de poesia. A apresentação em power-point facilita o<br />
trabalho do(a) professor(a) na exposição e disposição dos poemas e informações básicas<br />
das referidas autoras. Essa literatura surge em oposição à literatura canônica, que<br />
durante muito tempo reservou às mulheres negras perfis bastante questionáveis.<br />
Vejamos alguns exemplos clássicos: Gregório de Matos (1636-1695) é o primeiro escritor<br />
da literatura brasileira a propor uma hierarquização étnica na qual à mulher branca cabe<br />
o papel de mãe e esposa e à mulher negra apenas o papel de amante.<br />
Em “O Cortiço” (1890), de Aloísio de Azevedo, a personagem Rita Baiana é assim<br />
descrita:<br />
E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e<br />
plantas aromáticas. Irriquieta, saracoteando, o atrevido e rijo quadril baiano,<br />
respondia para a direita e para a esquerda, pondo a mostra um fio de dentes<br />
claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce<br />
fascinador.<br />
Acudiu quase todo o cortiço para recebê-la. Choveram abraços e as chufas<br />
do bom acolhimento(...)<br />
Ele tinha “paixão” pela a Rita, e ela, apesar de volúvel como toda a mestiça,<br />
não podia esquecê-lo por uma só vez (...)<br />
(AZEVEDO, 1975, p.45-57)<br />
O apelo ao corpo e a vulgarização da mulher negra, não fica apenas nessa obra, a<br />
personagem principal do livro “Gabriela Cravo e Canela” (1958) do escritor Jorge Amado,<br />
mantém esses estereótipos, acrescentando o apelo a mistura das raças e a democracia<br />
racial do país. A lista é grande de representações negativas sobre o corpo, o caráter e<br />
identidade da mulher negra. Quando menos esperamos, encontramos as marcas desses<br />
imaginários no nosso dia-a-dia e comportamentos sociais, seja nas letras de música<br />
popular, no cinema, na mídia.<br />
O estudo dos textos literários produzidos pelas escritoras negras proporcionam ouvir e<br />
sentir através de seus versos e narrativas a força de seu descontentamento quanto a<br />
essas representações negativas, deixando evidente o desejo por mudança. É preciso<br />
que nossos(as) alunos(as) se apropriem desses debates e possam reconhecer como<br />
construções culturais as características socialmente atribuídas a homens e mulheres, a<br />
<br />
45
negros e não-negros, tomando um posicionamento contra a discriminação de raça e<br />
gênero.<br />
Quanto ao trabalho em classe, a partir do texto ou obra selecionada, o aluno deve ser<br />
estimulado a levantar questionamentos e verificar os comportamentos dos personagens,<br />
em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais: “Em língua portuguesa, nos<br />
textos literários, podem-se perceber as perspectivas de gênero por meio da análise das<br />
personagens e descrição de suas características”. No ensino da língua portuguesa,<br />
também podemos observar que nas regras do idioma as questões de gênero não estão<br />
muito bem colocadas, como podemos encontrar nas gramáticas e livros didáticos.<br />
Veremos, a seguir, a discussão proposta por José de Nicola, no livro “Língua literatura e<br />
redação” (1990),<br />
É interessante notar como o patriarcalismo de uma sociedade se<br />
manifesta nos mais variados setores da atividade humana. Por exemplo,<br />
na gramática. Francisco da Silva Borba, em seu livro “Introdução aos<br />
estudos lingüísticos, ao analisar o gênero dos substantivos, a certa<br />
altura afirma: ‘Nas línguas românicas a oposição masculino/feminino<br />
oscila entre critério de sexo e contraste superior/inferior (em português o<br />
aumentativo em “-ão” é masculino: carta/cartão; porta/portão) (NICOLA,<br />
1990, p. 29-39)<br />
Na “Nova gramática do Português Contemporâneo” de Celso Cunha e Lindley Cintra,<br />
encontramos a seguinte citação: “Há dois gêneros no português: o masculino e o<br />
feminino. O masculino é o termo não marcado; o feminino é o termo marcado” (CUNHA &<br />
CINTRA, p. 182). Diante desses registros, constatamos que a língua portuguesa entende<br />
que o feminino, como gênero marcado, está relacionado à categoria dos diminutivos, ao<br />
passo que o masculino é apontado como gênero não marcado e ligado ao aumentativo.<br />
Também no contexto lingüístico as mulheres se encontra numa posição desprivilegiada<br />
em relação aos homens.<br />
Outra atividade a ser realizada em classe é uma pesquisa de consulta em dicionários no<br />
tocante às questões étnicas. Como as palavras: “branco” , “negro”, “negrume”, “denegrir”<br />
são apresentadas?<br />
Conforme Leda Martins,<br />
O signo “negro” está intimamente identificado com um valor<br />
depreciativo, nas mais diversas situações da fala brasileira, definindo<br />
uma posição social ou adjetivando um grupo racial e uma cultura. “Um<br />
<br />
46
dia negro”, a “ovelha negra da família”, por exemplo, são expressões<br />
que explicitam uma analogia entre o que é negro e o que é considerado<br />
ruim ou desagradável. “lugar de negro é na cozinha”, “negro quando não<br />
suja na entrada, suja na saída”, “trabalho de negro” são ditos ou<br />
expressões populares que têm o negro como objeto. Identificando um<br />
sujeito enunciado na própria margem do discurso, essa linguagem<br />
destaca-o como um outro não apenas diferente, mas indesejável, ou<br />
desejável em lugares previamente determinados” (MARTINS, 1995, p.<br />
36)<br />
O resultado da pesquisa e a constatação de Lêda Martins são desanimadores, porém, o<br />
domínio dessas informações e o bom uso delas podem ser significativos para que os(as)<br />
alunos(as) percebam as armadilhas do racismo e possam se defender dessas<br />
construções sociais. Esse trabalho de pesquisa, aliado aos poemas afro-brasileiros,<br />
passa pela tentativa de criar novas palavras. Mesmo as já existentes, com sentidos<br />
pejorativos, passam a ganhar outros sentidos, além da possibilidade de discutir e<br />
problematizar o perfil de nação traçado pela língua e produção canônica.<br />
Nas turmas de alunos(as) que ainda se encontram na infância e pré-adolescência, a<br />
seleção das obras é um fato que precisa ser enfatizado, não apenas em seus conteúdos,<br />
mas as ilustrações e abordagem precisam ser bem observadas. A ausência desses<br />
sujeitos no imaginário simbólico dos(as) alunos(as) dificulta bastante a construção de<br />
cidadãos atentos e sensíveis às diferentes diferenças ou que se engaje na luta pelo fim<br />
do machismo, discriminação e racismo. Algumas obras serão sugeridas na 3ª Unidade<br />
deste módulo, atendendo o perfil do público infanto-juvenil. Além dos textos literários,<br />
podemos ainda fazer uso de histórias em quadrinhos, filmes e jogos que abordam a<br />
história do negro no Brasil.<br />
Agora, acrescente muita criatividade e crie uma aula bem interessante!!!<br />
<br />
47
48
TRADIÇÕES ORAIS NEGRAS E ESCRITA<br />
LITERÁRIA<br />
Sabemos que os mitos, lendas, contos populares africanos constituem a memória<br />
dos afro-brasileiros que, em diáspora, guardaram, re-significaram e reorganizaram<br />
esses registros e foram constituindo o acervo simbólico das<br />
tradições culturais da população negra. Nesta Unidade, voltaremos nossas<br />
atenções para o uso e apropriações das riquezas de conteúdos, significados e<br />
valores contidos na tradição oral no âmbito das atividades em sala de aula.<br />
Outro foco desta Unidade é a literatura infanto-juvenil afro-brasileira e os modos<br />
de participação e representação dos personagens negros dirigidas ao publico<br />
infantil.<br />
Tópico 1 – Tradições orais<br />
Tópico 2 – Literatura afro-brasileira infanto-juvenil<br />
Objetivos:<br />
• Refletir sobre a importância da tradição oral na constituição do acervo<br />
simbólico das tradições culturais da população negra.<br />
• Subsidiar professores quanto o ensino da literatura afro-brasileira infantojuvenil.<br />
<br />
49
Tópico 1 – Tradições orais<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Conforme as questões trabalhadas nas unidades anteriores,<br />
pode-se inferir que um dos traços característicos da produção<br />
literária afro-brasileira é ser porta-voz de uma coletividade. O<br />
escritor se debruça sobre os desejos, dores, projetos e<br />
tradições de um grupo étnico-racial que tem sido<br />
historicamente silenciado, retrabalhando-os no jogo do texto<br />
literário. Dentro desse processo, a oralidade é elemento<br />
fundamental para o reencontro com tradições históricas<br />
suprimidas.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Nas culturas orais, o conhecimento adquirido por várias<br />
gerações ao longo dos tempos é guardado na memória. A<br />
importância da tradição oral africana, na transmissão de<br />
valores simbólicos, liga-se ao fortalecimento das relações entre<br />
os integrantes de um grupo ou comunidade e à criação de uma<br />
rede de transmissão de conhecimentos que consolida a cultura<br />
do grupo.<br />
No contexto africano tradicional, é destacável o valor do ancião<br />
na garantia da socialização dessas memórias/palavras. É ele o<br />
<br />
50
esponsável pela manutenção do laço social da<br />
comunidade. Segundo A. Hampaté Ba, “A tradição oral é a<br />
grande escola da vida”.<br />
A força da palavra contém a vibração e a circulação do axé<br />
(força da natureza, energia, poder de realização pela força<br />
sobrenatural). Vale lembrar, aqui, a chamada pedagogia negra,<br />
iniciativa das comunidades de terreiro, na qual as crianças são<br />
iniciadas e passam a conhecer as histórias de seus orixás,<br />
através das narrativas orais transmitidas pelos mais velhos.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
A palavra contada, todavia, não é simplesmente fala. Ela<br />
carrega significados, através do gestual, do ritmo, da<br />
entonação, da expressão facial, etc.. O seu valor estético está<br />
na conjugação harmoniosa desses elementos. Em<br />
grupamentos humanos onde a palavra falada possui força vital<br />
para os comportamentos, para as atividades diárias e para os<br />
vôos do imaginário, a voz participa da significância do texto,<br />
porque este só se realiza em performance, processo em que a<br />
mensagem é produzida e transmitida simultaneamente em um<br />
contexto onde dialogam intérprete, ouvintes e circunstâncias.<br />
Dessa forma, todos os traços característicos de formas<br />
expressionais orais são decorrentes da aludida situação de<br />
performance, maneira pela qual elas são propagadas corpo a<br />
corpo.<br />
Como essa prática de produção e recepção textual está<br />
estruturada a partir do diálogo em presença entre os<br />
envolvidos, nas culturais orais, conhecer implica passar pela<br />
<br />
51
vivência, diferentemente do conhecimento solitário mediado pela escrita.<br />
Por isso, em sociedades africanas tradicionais, o texto oral não<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
somente diz, mas, principalmente, coloca o vivido em<br />
movimento, possuindo a capacidade dinâmica de construir ou<br />
desconstruir mundos. Segundo J. Vansina, intelectual africano,<br />
“...a oralidade é uma atitude diante da realidade e não ausência<br />
de uma habilidade”.<br />
Dentro desse contexto de oralidade, portanto, a voz, gestos,<br />
contos e cantos têm reencenado memórias negras e feito do<br />
processo de recepção um ato coletivo. Como bem enfatiza a<br />
professora Florentina da Silva Souza, a dinâmica da oralidade<br />
tem sido<br />
Um exercício de sabedoria e de memória que se mostrou de<br />
extrema produtividade na transmissão e preservação de<br />
contos, procedimentos rituais, cantos e tradições que só<br />
sobreviveram até a presente data justamente porque os<br />
ancestrais acreditaram na memória e na oralidade como<br />
instrumentos privilegiados na correia de transmissão de<br />
conhecimentos e saberes. No campo das tradições<br />
religiosas do candomblé, da umbanda, das congadas, podese<br />
observar uma série de exemplos de releituras de gestos,<br />
movimentos, códigos secretos e rituais que foram/são<br />
memorizados, reinterpretados e transmitidos pela “escola da<br />
oralidade” em exercícios constantes de memória e de<br />
sabedoria.<br />
Busca-se aqui, portanto, destacar as possibilidades de se<br />
trabalhar na escola com as narrativas orais, fazendo dessa<br />
“atitude” um instrumento pedagógico, já que vivemos cercados<br />
por elas no nosso dia-a-dia pelos provérbios, orikis (canto de<br />
louvor, gênero da literatura oral africana que louva divindades<br />
ou pessoas dignas de serem lembradas), pregões (das feiras<br />
livres e ambulantes), emboladas, repentes, ladainhas da<br />
capoeira, cantigas de roda, raps (hip hop), contos orais, entre<br />
outras produções artístico-culturais.<br />
<br />
52
Na literatura afro-brasileira, a reencenação da oralidade<br />
na escrita pode acontecer através de vários caminhos. No<br />
plano das tradições religiosas, Abdias do Nascimento, Mestre<br />
Didi, Solano Trindade, entre outros e outras, reanimam mitos,<br />
evocam forças de diferentes orixás, além de representarem<br />
outros elementos de religiões brasileiras de matrizes africanas<br />
em seus textos. Solano, no poema Olorum Ekê constrói um<br />
maravilhoso grito de resistência à discriminação racial:<br />
Olorum Ekê<br />
Olorum Ekê<br />
Eu sou poeta do povo<br />
Olorum Ekê<br />
A minha bandeira<br />
É de cor de sangue<br />
Olorum Ekê<br />
Olorum Ekê<br />
Da cor da revolução<br />
Olorum Ekê<br />
Meu avós foram escravos<br />
Olorum Ekê<br />
Olorum Ekê<br />
Eu ainda escravo sou<br />
Olorum Ekê<br />
Olorum Ekê<br />
Os meus filhos não serão<br />
Olorum Ekê<br />
Olorum Ekê<br />
O contexto de oralidade também está presente em inúmeras<br />
canções de protesto, criadas para blocos afros, com a intenção<br />
direta de combater a opressão vivenciada pelos negros<br />
brasileiros. Suka, em Ilê de Luz, através de enunciados que<br />
circulam oralmente, critica a construção de estereótipos<br />
negativos, discutindo o processo de exclusão a que é<br />
submetido o afrodescendente. A partir de uma inusitada<br />
conjugação de cores, a letra fala em brilho, intensa luz na<br />
<br />
53
escuridão da pele dos componentes do Ilê, tornando mais<br />
vigoroso o discurso crítico:<br />
Me diz que sou ridículo,<br />
Nos teus olhos sou mal visto,<br />
Diz até tenho má índole<br />
Mas no fundo tu me achas bonito<br />
Lindo! Ilê Aiyê...!<br />
Negro sempre é vilão!<br />
Até meu bem, provar que não<br />
É racismo meu? Não<br />
Todo mundo é negro de verdade<br />
É tão escuro que percebo a menor claridade<br />
E se eu tiver barreiras?<br />
Pulo, não me iludo não,<br />
"Com essa" de classe do mundo,<br />
Sou um filho do mundo,<br />
Um ser vivo de luz<br />
Ilê de luz<br />
A cultura hip hop (na tradução, balanço de cintura) também<br />
nasceu em contexto de oralidade das ruas de bairros pobres de<br />
Nova York, com grande concentração de negros e, como lá é<br />
chamado, de latinos. Na década de 80, a cultura hip hop<br />
chegou a bairros proletários da cidade de São Paulo,<br />
espalhando-se, desde então, para várias regiões marcadas<br />
pela pobreza e concentração de população negra.<br />
Em 2003, o grupo maranhense<br />
Clã Nordestino lançou o álbum<br />
A peste negra: o vírus da<br />
informação, trabalhando em<br />
todas as letras a idéia de<br />
quilombologia. Na letra Coração<br />
feito de África, o termo é explicado poeticamente como misto<br />
de orgulho negro com a atitude política preconizada pelo grupo,<br />
constituindo-se em uma forma discursiva de construção<br />
identitária étnico-racial. Segundo a referida letra, a “ideologia<br />
quilombola ferve da sul até o nordeste”, ou seja, estende-se da<br />
<br />
54
zona sul de São Paulo, uma das mais fortes regiões da cultura<br />
hip-hop, a todo o Brasil.<br />
A música central do álbum é aberta com referência a Zumbi:<br />
“Zumbi Rei!!!! Vixe! Zumbi dos Palmares, Quilombo dos<br />
Palmares, quebrem as algemas, queimem os emblemas.<br />
Avante! Revolução! O guerreiro de antes!”. Há a exposição do<br />
sofrimento dos negros e pobres ao lado da colocação da<br />
necessidade de uma união a partir de referenciais étnicoraciais<br />
africanos: “Guerreiros, avante, a guerra é constante/ No<br />
solo, no berço da África, no coração do guerreiro de antes”.<br />
Essa África é representada como origem, “berço”, mas não se<br />
restringe a ser uma África mítica, una, passada e impalpável,<br />
constituindo-se como todos os espaços da diáspora africana<br />
onde há afro-descendentes em condição social subalterna.<br />
Para tanto, é feita a mixagem do Hino da Liberdade Africana,<br />
segundo palavras da letra: “o mais célebre dos hinos”, pois faz<br />
relembrar a luta de africanos pela libertação colonial.<br />
A relação entre essa África mítica criada como ancestral e a<br />
atualidade de pobreza dos afro-descendentes da ampla<br />
diáspora encontra-se visível no seguinte trecho:<br />
Antigamente quilombos, hoje periferia/ O esquadrão<br />
zumbizando as origens africanias/ Somos filhos de uma<br />
guerra sagrada, qualquer periferia, qualquer quebrada é<br />
um pedaço da África/.../ Quiloas, bantos, monjolos,<br />
cabinda, mina, angola, Brasil, Cuba Ruanda, Haiti,<br />
Jamaica e Etiópia/.../ Tirei do Cartola, leniniei as<br />
poesias, saquei um Garrincha e da mão de Luiz fiz a<br />
melodia, a fusão, a toada de uma raça libertária. Sou<br />
Haile Salassie, sou Múmia Abu-Jamal.../sou James<br />
Brown, Berimbrown, Lino Brown, sou da favela. Sou<br />
Kingston, sou do Capão, sou Marrous, sou Sucupira,.../<br />
Sou um da sul/ Nos antigos mistérios da Quilombologia/<br />
Toda quebrada é quebrada na grande periafricania<br />
<br />
55
A ligação entre todas as quebradas da diáspora se dá não só<br />
através da miséria e de péssimas condições de sobrevivência,<br />
mas também por ícones negros da música e da esfera de luta<br />
política contra a discriminação racial. O enunciado construído<br />
em torno de um poderoso neologismo,“ Toda quebrada é<br />
quebrada na grande periafricania”, grava uma idéia de<br />
diáspora negra, contraditoriamente unida e dispersa desde a<br />
época do périplo europeu em torno do continente africano.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Caso do pioneiro<br />
Teatro Experimental<br />
do Negro (1944-1957),<br />
companhia teatral<br />
idealizada, fundada e<br />
dirigida por Abdias do<br />
Nascimento, possuía<br />
como principais<br />
objetivos a valorização<br />
<br />
<br />
do negro no teatro e a<br />
criação de uma nova dramaturgia. O projeto do Teatro<br />
Experimental do Negro - TEN, englobou o trabalho pela<br />
cidadania do ator, por meio da conscientização e também da<br />
alfabetização do elenco, recrutado entre operários,<br />
empregadas domésticas, favelados sem profissão definida e<br />
modestos funcionários públicos.<br />
A companhia iniciou suas atividades em 1944, colaborando<br />
com o Teatro do Estudante do Brasil - TEB, na encenação da<br />
<br />
56
peça Palmares, de Stella Leonardos. Quando decide<br />
empreender um espetáculo próprio constata que não há, na<br />
dramaturgia brasileira, textos que sirvam aos seus objetivos.<br />
Abdias do Nascimento descobre em O Imperador Jones, de<br />
Eugene O'Neill, o retrato mais aproximado da situação do<br />
negro após a abolição da escravatura. O espetáculo, dirigido<br />
por Abdias do Nascimento, estréia em maio de 1945 no<br />
Theatro Municipal do Rio de Janeiro e obtém boa<br />
receptividade, com elogios ao protagonista, Aguinaldo<br />
Camargo.<br />
Com montagens teatrais até fins da década de 50, o Teatro<br />
Experimental do Negro nunca atingiu o prestígio que pretendia<br />
em seu tempo. Mas, em termos de história do teatro, significou<br />
uma iniciativa pioneira, que mobilizou a produção de novos<br />
textos, propiciou o surgimento de novos atores e grupos e<br />
semeou uma discussão que permaneceria em aberto: a<br />
questão da ausência do negro na dramaturgia e nos palcos e,<br />
posteriormente, nas telenovelas de um país de maioria negra.<br />
Contemporaneamente, grupos de performance teatral negra<br />
buscam ainda furar o cerco da exclusão. Destacam-se o Grupo<br />
de Teatro do Olodum (Salvador – década de 90) e Cia dos<br />
Comuns (Rio de Janeiro - 2001), que, através de textos que<br />
conjugam o cotidiano com memórias africanas ancestrais, têm<br />
produzido belos e críticos espetáculos.<br />
Elenco de Bakulo, encenado em 2005 pela Cia dos Comuns<br />
<br />
57
Esses são alguns exemplos de como a oralidade e a escrita<br />
podem se encontrar, recriando formas de resistir ao racismo. O<br />
trabalho pedagógico com as culturas orais também permite um<br />
diálogo com muitos escritores africanos de língua portuguesa,<br />
que produzem textos reencenando contextos orais na escrita,<br />
como estratégia de resistência aos valores europeus do<br />
colonialismo. Esse é o caso de Pepetela (Angola), Manuel Rui<br />
(Angola), Mia Couto (Moçambique), Paulina Chiziane<br />
(Moçambique), entre tantos outros e outras.<br />
Experimente também ouvir seus alunos(as), permitindo que<br />
eles contem suas histórias na sala de aula. Enfim, o desafio<br />
está lançado, professor(a)! Experimente fazer da oralidade de<br />
origem africana instrumento de promoção da igualdade étnico-<br />
racial dentro da sala de aula.<br />
<br />
58
Tópico 2 – Literatura afro-brasileira infanto-juvenil<br />
(...)<br />
Eu era criança<br />
Papai me contava<br />
Histórias de Trancoso<br />
Que entravam,<br />
Por uma perna de pinto<br />
E saíam por uma perna de pato<br />
...<br />
E papai<br />
Viver me fazia,<br />
Com rei e rainha,<br />
E bichos que falavam,<br />
Fadas e monstros,<br />
Princesas encantadas,<br />
“Comadre onça morreu,<br />
Disse a cabra ao macaco”<br />
Eu achava bonito<br />
Eu achava engraçado...<br />
(Abençam papai, que bicho é esse? Solano Trindade)<br />
O poema de Solano Trindade traz à cena lembranças da<br />
infância, as viagens pelo mundo da imaginação, levando-nos a<br />
refletir sobre como a criança, no processo de se constituir<br />
sujeito leitor, introjeta valores, crenças e padrões em relação a<br />
si mesmo e à sociedade onde interage. No universo literário<br />
infanto-juvenil, o pequeno leitor se reconhece ou se estranha<br />
nos modelos de ambientes, emoções e personagens<br />
transmitidos. Por isso, torna-se fundamental buscar<br />
compreender como a criança negra e culturas de matrizes<br />
africanas têm sido representadas na literatura infanto-juvenil<br />
brasileira.<br />
Pesquisas recentes têm demonstrado o viés eurocêntrico da<br />
produção infanto-juvenil brasileira, inclusive na década de 80,<br />
período em que houve uma inserção quantitativamente<br />
relevante de protagonistas negros em obras dirigidas a esse<br />
público. Esse segmento literário, no Brasil, constitui-se como<br />
um espaço privilegiado de produção simbólica e de sentidos.<br />
<br />
59
Apenas nos fins do séc. XIX e início do séc. XX, a literatura<br />
infanto–juvenil surge com fins didáticos, moralizantes e/ou de<br />
catequização de crianças e jovens, tendo como referência a<br />
Europa.<br />
Nessas narrativas, somente foram encontrados personagens<br />
negros no final da década de 20. Esses personagens, porém,<br />
apresentam um perfil de subalternidade, como os presentes<br />
nas narrativas de Monteiro Lobato, por exemplo. Esse tópico<br />
do módulo de Literatura Afro-brasileira atenta, basicamente,<br />
para uma pergunta: como o negro tem sido representado na<br />
produção literária brasileira dirigida a crianças? É preciso que<br />
pais e/ou professores estejam sensíveis à importância de se ter<br />
na infância referências e heróis negros para constituição,<br />
inclusive, da própria identidade infantil.<br />
Quais personagens negros aparecem em<br />
nossa memória da infância? Quantos<br />
invadiram o mundo de fantasia e nos<br />
fizeram sonhar que éramos eles?<br />
Infelizmente, ter a presença de personagens negros numa obra<br />
ou livro didático não resolve a questão da educação pela<br />
igualdade étnico-racial. É indispensável atentarmos ao modo<br />
como eles são representados: observar as ilustrações, os<br />
conteúdos, os personagens e os seus comportamentos, e<br />
outros aspectos apresentados nas narrativas. É fundamental<br />
que essas obras re-escrevam a história e re-signifiquem a<br />
memória dos negros, e demais grupos étnico-raciais do Brasil,<br />
construindo, de fato, uma representação literária da diversidade<br />
que nos constitui enquanto nação.<br />
O objetivo principal de se ter um olhar crítico em relação à<br />
produção literária infanto-juvenil é questionar e desconstruir<br />
<br />
60
Leituras sugeridas<br />
práticas racistas e discriminatórias em nossas salas de aulas,<br />
denunciando abordagens desfavoráveis à construção da<br />
identidade afro-brasileira, recusando livros didáticos que<br />
comprometam um trabalho pedagógico voltado a uma<br />
educação pela diversidade. Para tanto, é necessário redobrar<br />
os cuidados na seleção dos materiais didáticos e culturais<br />
dirigidos à educação infanto-juvenil.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Concluímos a Unidade 3. Na próxima<br />
Unidade conheceremos os Cadernos<br />
Negros e ouitras expressões literárias<br />
negras.<br />
GOUVÊA, Maria Cristina Soares. “Imagem do negro na literatura infantil brasileira:<br />
análise historiográfica”. In: http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n1/a06v31n1.pdf<br />
OLIVEIRA, Anória. “Literatura afro-brasileira infanto-juvenil: enredando inovação em face<br />
à tessitura dos personagens negros”. In:<br />
http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/024/MARIA_OLIVEIRA.pdf<br />
SOUZA, Florentina da Silva. “Memória e performances nas culturas afro-brasileiras”. In:<br />
ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias,<br />
práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 30-39.<br />
VASINA, J. “A tradição oral e as metodologia” In:<br />
http://afrologia.blogspot.com/2008/03/tradio-oral-e-sua-metodologia.html<br />
Para saber mais<br />
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. “Construindo a Auto-estima da Criança Negra”. In:<br />
MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª ed. Brasília: Ministério<br />
da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2008.<br />
BÁ, A Hampaté. “A tradição viva”. In: KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I. 3ª.<br />
<br />
61
Ed. Portugal: Publicações Europa América, 1999. (Ver: História da África).<br />
CIANNI, Solange. Doce princesa negra. Brasília: LGE, 2006.<br />
COSTA, Madu. Kolumba e o tambor Diamba. (coleção Griot Mirim, vol. 1). Belo<br />
Horizonte: Mazza edições, 2006.<br />
GUIMARÃES, Geni. A cor da Ternura. São Paulo: Editora FTD, 1979.<br />
LUIS, Augusto. Lápis de Cor. Coleção Papo sério. Salvador: Ed. FMP: Governo do<br />
Estado da Bahia, 2004.<br />
LUZ, Marco Aurélio de Oliveira. “Novos espaços de comunicação: tradição dos contos na<br />
literatura escrita, no teatro, no cinema e no rádio.” In: Agdá: dinâmica da civilização afrobrasileira.<br />
2ª. Ed. Salvador: EDUFBA, 2000.<br />
LIMA, Fabiana. “É possível afrobetizar a excludente tradição literária brasileira?”. In:<br />
http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/024/FABIANA_LIMA.pdf<br />
_________. O presente de Ossanha. 2ª. Ed. São Paulo: Global, 2006.<br />
LIMA, Heloisa Pires. “Personagens Negros: um breve perfil na literatura infanto-juvenil”.<br />
In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª ed. Brasília:<br />
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e<br />
Diversidade, 2008.<br />
______. Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das letrinhas, 1998.<br />
MACHADO, Ana Maria. Menina bonita laço de fita. 7ª. Ed. São Paulo: Ática, 2005.<br />
OLIVEIRA, Maria Anória de Jesus. “Negros personagens nas narrativas literárias infantojuvenis<br />
brasileiras: 1979-1989”. Salvador: UNEB, 2003. [Dissertação]<br />
ORTHOF, Sylvia. O rei preto de ouro. São Paulo: Global, 2003.<br />
RODRIGUES, Martha. Que cor é a minha cor? (coleção Griot Mirim, vol. 2). Belo<br />
Horizonte: Mazza edições, 2006.<br />
SOUSA, Andréia Lisboa de. “Nas tramas das imagens: um olhar sobre o imaginário da<br />
personagem negra na literatura infantil e juvenil”. São Paulo: USP, 2003. [Dissertação]<br />
TRINDADE, Solano. Tem gente com fome. São Paulo: Nova Alexandria, 2008.<br />
Material de apoio<br />
Filme:<br />
Kiriku e a feiticeira – Michel Ocelot, 1998. www.kirikou-lefilm.com<br />
Kiriku 2 – os animais selvagens – Michel Ocelot e Bénédicte Galup, 2005.<br />
As aventuras de Azur e Asmar – Michel Ocelot, 2005.<br />
Happy Feet, direção George Miller, 2006.<br />
A princesa e o sapo (em produção) Disney, 2009.<br />
Enquanto isso, na sala de aula...<br />
Costumo iniciar minhas aulas sobre a importância da tradição oral africana, com uma<br />
dinâmica que propõe a socialização da história do nome de cada um dos participantes.<br />
<br />
62
Estimulados(as) a contar para o grupo “qual história envolve a escolha do seu nome?”<br />
os(as) envolvidos(as) vão buscar em suas memórias o que ouviram ao longo da vida<br />
sobre essa escolha e, então, expõem para o grupo se gostam ou não deles. Além dessa<br />
etapa, os(as) participantes substituem seus nomes por outra palavra qualquer; todas elas<br />
são registradas num papel e colocadas num recipiente para o sorteio. Assim, à medida<br />
que os participantes retiram a palavra, vão complementando a história iniciada e<br />
construindo uma grande narrativa improvisada na oralidade.<br />
Todo esse ritual é para motivar os envolvidos a atentarem para a importância da<br />
oralidade, a força da palavra falada, dos registros da memória, dos Griots, das<br />
contadoras de histórias, dos orikis, dos mitos e contos orais das religiões de matriz<br />
africana.<br />
A dinâmica sugerida pode ser modificada, substituída ou adaptada a realidade da turma e<br />
as expectativas do professor. A música do compositor da MPB, Gilberto Gil, “Baba<br />
Alapalá” pode contribuir para uma pesquisa, nessa mesma linha, sobre a origem dos<br />
antepassados dos(as) alunos(as). Essa música requer um cuidado especial, já que a<br />
utilização de textos que envolvem as religiosidades (nesse caso, a de matriz africana)<br />
precisa ser conduzida de maneira saudável e respeitosa para com diferenças. Um(a)<br />
professor(a) precisa transitar, sem juízo de valor, pelas várias religiões existentes,<br />
independendo da sua opção pessoal.<br />
O estudo da tradição oral compreende um universo muito rico de possibilidades. Além<br />
dos já citados, podemos lembrar ainda: das manifestações culturais brasileiras como:<br />
congada, samba de roda, maracatus de baque solto e rurais, festas de bumba-meu-boi,<br />
festas de Reis, marujada, carnaval, capoeira, provérbios africanos, repentistas e<br />
emboladores, hip hop, entre tantos outros, constituintes do acervo vivo e simbólico da<br />
memória cultural afro-brasileira.<br />
O(A) professor(a) encontrará na seção “Textos literários” alguns materiais que abordam,<br />
ou que tragam a tona, o tema da tradição oral. O poema “A velhinha do Angu”, de Solano<br />
Trindade, apresenta fragmentos de pregões dos vendedores de Recife. Este poema pode<br />
fomentar um concurso, no qual os(as) estudantes precisam escolher um objeto a ser<br />
vendido e, a partir dessa seleção, construir seu próprio pregão. Será escolhido o pregão<br />
mais criativo ou proposta uma pesquisa de campo com respectivo registro dos pregões<br />
de ambulantes nos ônibus, praias e/ou feiras livres, à escolha do(a) professor(a).<br />
Os contos orais africanos, especialmente os contos de mestre Didi - que tenta manter na<br />
escrita os traços da oralidade - compõem um excelente acervo do universo mítico das<br />
<br />
63
eligiões de matriz africana e cultura afro-brasileira. Eles podem, no ambiente de sala de<br />
aula, ser encenados pelos(as) alunos(as) em formato de peças teatrais e ou<br />
performances.<br />
O conto de mestre Didi, “Obaluwaiyê – o dono da peste” (disponível na seção “Textos<br />
literários”), ao contar a história/mito de Obaluaê, convida a comunidade a repensar suas<br />
práticas e seus julgamentos precipitados. O orixá citado na narrativa apresenta-se em<br />
situação de enfermidade e é desprezado por toda comunidade. Depois de ser abençoado<br />
pelo deus Olorum e receber o dom de cura, retorna à comunidade e salva a todos de<br />
uma epidemia. Pode-se também trabalhar a presença das folhas, no ritual de cura,<br />
descrito no conto de mestre Didi, para motivar um trabalho de pesquisa sobre essas<br />
práticas no cotidiano brasileiro e baiano. Afinal, quem nunca tomou um chazinho feito<br />
pela vovó para melhorar um desconforto alimentar ou para relaxar? Ver como a ciência<br />
vem se apropriando desses conhecimentos em seus estudos; destacar a importância das<br />
religiões de matrizes africanas na preservação dessa memória, assim como na tradição<br />
indígena.<br />
O trecho de música “Sou negro d+ para você”, do rapper Thaíde, representa a linguagem<br />
do hip hop, movimento que, atualmente, é um forte aliado da educação brasileira. De<br />
modo geral, escola, professores(as), alunos(as) e comunidade, quando se envolvem em<br />
projetos com o hip hop e seus elementos, conseguem resultados excelentes,<br />
principalmente, por parte da juventude. A escola passa a ser uma galeria de arte, com<br />
seus muros e paredes grafitadas e limpas – professores(as) de arte tomam conta dessa<br />
parte do projeto. Os(As) professores(as) de música, dança e educação física aliam-se<br />
aos b.boys e b. girls na arte do Break e dos DJs. A prática de escrita das letras de música<br />
favorece um melhor domínio da língua e dos recursos estéticos e literários, já que os(as)<br />
envolvidos(as) se dedicam a melhorar suas composições e rimas. O(A) aluno(a) exercita<br />
a escrita com mais prazer, passa a questionar, debater e argumentar sobre os problemas<br />
sociais, entre eles, as questões étnico-raciais, como a discriminação e o racismo.<br />
Para a educação infantil, propomos um trabalho que envolva<br />
muita criatividade, alegria e cor. Conforme leitura dos textos<br />
sugeridos, constatamos que algumas obras deixam brechas,<br />
nas quais os(as) mediadores(as) devem intervir: seja nas<br />
descrição de personagens negras que, por vezes, ganham<br />
traços animalizados, sejam os desenhos e ilustrações nos quais os personagens negros<br />
(embora, na narrativa, tenham sua identidade preservada), são representados como<br />
monstros e aberrações nas imagens, ou, mesmo, uma armadilha bastante discreta e<br />
<br />
64
ecorrente nos conteúdos dos textos que se pretendem afro-brasileiros ou africanos. Um<br />
bom exemplo podemos encontrar no livro Flor Encarnada (1919) de Tales de Andrade,<br />
coleção Biblioteca Infantil, em que descreve uma princesa africana:<br />
(...) tão inteligente e tão instruída que todas<br />
as pessoas vinham lhe pedir conselhos<br />
Ela sabia qual o remédio a dar aos doentes,<br />
conhecia todas as espécies de plantas. (...)<br />
Um dia Flor Encarnada ao passear encontrou<br />
uma linda moça, sentada junto de um<br />
algodoeiro. Era um jovem branca, de estranha<br />
beleza...<br />
— Quem é você? perguntou Flor Encarnada<br />
cheia de admiração. Eu nunca a vi em nossas<br />
cabanas...<br />
— É verdade, respondeu a moça, sorrindo.<br />
Embora você não me visse, era eu quem<br />
segredava aos seus ouvidos tudo o que<br />
você sabe em relação à floresta. Quem julga<br />
você que lhe tenha ensinado as coisas<br />
que você conhece das plantas e dos animais?<br />
Era eu quem lhe ensinava, menina...<br />
(Andrade, 1919, p. 7-8)<br />
A Flor encantada, apesar de todas as qualidades e a visível valorização de sua cultura<br />
descritas na narrativa, vacila ao atribuir ao personagem branco a bondade de ter passado<br />
para o negro seus conhecimentos e saberes. Essa prática é recorrente em diversas<br />
obras, inclusive em narrativas televisionadas, na qual os negros, ao ascenderem<br />
socialmente, são sempre via bondade e desprendimento dos personagens não-negros.<br />
Interessante criar ambientes agradáveis para a prática de leitura de textos infanto-juvenis<br />
afro-brasileiros, decorando a sala e provocando a curiosidade dos alunos sobre o que vai<br />
ser contado. A inclusão de imagens de negros(as) em situações do cotidiano na<br />
decoração da sala, nos brinquedos, fantoches, etc. contemplando a diversidade étnica<br />
brasileira, pois ajuda no desenvolvimento e na promoção de um melhor rendimento das<br />
crianças negras, que passam a se sentir incluídas no processo educacional.<br />
Nas unidades anteriores, vimos outras possibilidades de atividades e discussões a serem<br />
propostas no ensino infanto-juvenil. Reforçamos a solicitação de inclusão de outras<br />
formas narrativas e de representação para dialogar com essa literatura, assim como a<br />
música, as telenovelas, revistas, propagandas e comerciais, o cinema, a pintura, o teatro,<br />
entre outros, precisam e podem ser incluídos às nossas práticas em sala de aula.<br />
<br />
65
Professores(as), explorem os textos sugeridos, criem outras atividades com<br />
outras referências e, assim, vamos trocando nossas experiências!<br />
<br />
66
CADERNOS NEGROS E OUTRAS<br />
POÉTICAS<br />
A última Unidade do Módulo de Literatura Afro-brasileira chegou e ainda há tanto<br />
a ser lido, dito, sugerido... tantos são os acervos e as referências a serem citadas<br />
sobre o assunto. É com o objetivo de criar mais oportunidades de inovação para a<br />
prática pedagógica antirracista que fechamos esse trabalho com o “Cadernos<br />
Negros e outras poéticas”.<br />
Após trinta e um anos de publicação ininterrupta, a importante antologia afro-<br />
brasileira de literatura, os Cadernos Negros, também serão nosso tema de<br />
estudo. As outras poéticas são as demais publicações, canções, obras de arte e<br />
diferentes linguagens, que podem ser dialogadas com a literatura para o<br />
cumprimento da Lei nº 10.639/03.<br />
Tópico 1 – Cadernos Negros e outras poéticas<br />
Objetivos:<br />
• Estudar as produções mais significativas sobre a literatura afro-brasileira;<br />
• Refletir sobre o papel dos Cadernos Negros no que refere à legitimação da<br />
Literatura Afro-brasileira;<br />
• Dialogar a literatura afro-brasileira com outras expressões artísticas;<br />
<br />
67
Tópico 1 – Cadernos Negros e outras poéticas<br />
A nossa fala desvela, delata, relata, invade quem ouvi-la ou lê-la.<br />
Ela é a própria personificação de negro sendo, re-sendo,<br />
mudando, re-mudando, sentindo, re-sentindo<br />
<br />
Miriam Alves<br />
Em São Paulo, um grupo de escritores afro-brasileiros se<br />
organiza e publica textos voltados para a condição social do<br />
negro no Brasil, com a colaboração financeira de cada um dos<br />
integrantes. Surgiam, assim, os Cadernos Negros em 1978. A<br />
idéia de se fazer uma antologia, para publicação de poemas e<br />
contos negros, surge no CECAN – Centro de Cultura e Arte<br />
Negra, espaço onde jovens se reuniam e participavam de<br />
discussões políticas. A estudante de Letras, no artigo “Uma<br />
história que está apenas começando” contextualiza o momento<br />
histórico em que a juventude negra paulista se voltava para a<br />
criação dos próprios meios de comunicação, como estratégia<br />
de luta contra o racismo e propagação de imagens positivas do<br />
negro:<br />
Jovens como Jamu Minka se envolviam cada vez mais<br />
com mídias alternativas: “Eu vinha de uma experiência<br />
alternativa, um tablóide muito famoso na época: Versos.<br />
Era um tablóide de esquerda que criticava todas as<br />
ditaduras do Cone Sul. Em seguida fui para o CECAN<br />
para fazer o jornal dessa entidade, o Jornegro”.<br />
(...)<br />
<br />
68
O jovem negro, nesse momento, começava, em<br />
quantidade, a entrar nas universidades, acessando a<br />
produção cultural: cinema, literatura, teatro —<br />
diferentemente de gerações anteriores, que tinham<br />
mais dificuldade de ingressar num curso superior e<br />
acessar os bens culturais pertencentes a esse<br />
universo. Eram jovens negros que estavam se<br />
destacando da realidade já há muito tempo<br />
tradicional: analfabetismo, exclusão, subempregos,<br />
marginalidade.<br />
A série Cadernos Negros tem sido, desde então, publicada<br />
anualmente, alternando poesia e conto, de maneira até hoje<br />
ininterrupta, envolvendo escritores comprometidos com a<br />
escrita literária afro-brasileira de várias partes do país. Em suas<br />
publicações, consagram-se os nomes de Cuti (Luiz Silva),<br />
Oswaldo de Camargo, Miriam Alves, Márcio Barbosa, Jônatas<br />
Conceição, Éle Semog, Landê Onawale, Esmeralda Ribeiro,<br />
Conceição Evaristo, Alzira Rufino e muitos/as outros/as afrobrasileiros/as<br />
que fazem de sua escrita uma “arma” contra o<br />
preconceito e a discriminação.<br />
Essa produção propõe a representação do Brasil pelo viés das<br />
negociações entre as múltiplas etnias que o compõem,<br />
questionando um modelo de sociedade na qual aos grupos<br />
excluídos só tem restado uma única alternativa: assumir<br />
valores e padrões da tradição erudita de viés branco-europeu.<br />
Dentro de tal contexto de resistência cultural, o uso da<br />
expressão ‘literatura negra e/ou afro-brasileira’ justifica-se, para<br />
os escritores, por falar da realidade e identidade do negro,<br />
trazendo as marcas de sua história, memória, vida, diferenças<br />
e, obviamente, trabalho estético com a palavra em cena no<br />
texto literário. Segundo Florentina Souza, professora de<br />
Literatura Brasileira da UFBA e pesquisadora dos Cadernos<br />
Negros:<br />
Os textos dos CN podem ser lidos como<br />
depoimentos criativos de uma geração de escritores<br />
<br />
69
que reivindica um espaço para a voz negra na vida<br />
cultural e literária brasileira. Para tanto, tematizam<br />
vários aspectos da vida cotidiana do afro-brasileiro em<br />
particular, tais como a necessidade de construção de<br />
uma auto-imagem positiva, o resgate das tradições de<br />
origem africana e o combate às manifestações<br />
cotidianas de discriminação e preconceito racial na<br />
escola e trabalho – problemas decorrentes da<br />
sistemática exclusão do negro dos direito de<br />
cidadania... 1<br />
A preocupação dos escritores na construção dos seus textos<br />
passa pela tentativa de criar novos paradigmas para a literatura<br />
brasileira, pois, conforme as reflexões de Cuti, um dos<br />
iniciadores da publicação, a língua portuguesa não foi<br />
estruturada visando à libertação do povo negro.<br />
Os textos dos Cadernos Negros estão comprometidos com a<br />
história do povo negro e incomodam por trazerem à tona o<br />
problema das desigualdades sociais, por discutirem o perfil<br />
excludente de nação traçado pela maior parte da produção<br />
literária canônica. A literatura negra/afro-brasileira, devido a<br />
todas as questões discutidas neste módulo ligadas ao ensino<br />
formal de literatura e a uma concepção de nação limitadora,<br />
vive praticamente na marginalização, tentando lutar também<br />
contra outro problema brasileiro: a falta do hábito de leitura,<br />
sobretudo entre a população negra.<br />
Ao trazer um discurso comprometido com a desidealização do<br />
negro e do branco na sociedade brasileira, os Cadernos<br />
Negros trazem outras imagens de Brasil, como no poema<br />
Menino BR, de Jorge Siqueira:<br />
Dentes de Brasil, orelhas de abril<br />
Olhos d´águas claras, peito juvenil<br />
Cabelo pixaim, dono do amendoim<br />
Menino pro que der, pivete pro que vier<br />
destino que o mundo fez<br />
Nos olhos, ilusão, nos pés, uma canção<br />
nas mãos, uma aflição<br />
(pronta pra uma solução)<br />
<br />
70
Traído no arranha-céu<br />
Culpado da solidão<br />
Lua de zinco, prato de alcatrão!<br />
(CN melhores poemas, p. 84)<br />
Outras antologias têm se mostrado importantes no cenário<br />
literário da contemporaneidade, como Quilombo de Palavras<br />
(2000), Schwarze poesie – Poesia negra (1988), Poesia Negra<br />
Brasileira: Antologia (1992), entre outras publicações coletivas<br />
e individuais que possuem como foco a escrita afro-brasileira.<br />
Na coletânea Terras de palavras (2004), através de textos<br />
ficcionais, memórias fragmentadas exigem um espaço para<br />
que sejam recompostas, caso, por exemplo, do conto A<br />
Bailarina do escritor baiano Landê Onawalê, em que a linda<br />
moça negra tem seu rosto escondido pela tarja do produto<br />
anunciado na TV, transformando-se em símbolo da<br />
invisibilidade da imagem negra nos meios de comunicação de<br />
massa:<br />
Não via a hora da estréia do comercial. Seria no<br />
horário nobre, e o bairro inteiro, aliás, a cidade inteira<br />
se tornaria um buchicho só no dia seguinte. À tarde,<br />
fora buscar o cachê da sua participação e, junto com<br />
as outras dançarinas, assistiu ao filme já editado.<br />
Faltava apenas a inserção da logomarca do produto.<br />
As evoluções por demais ensaiadas no estúdio e na<br />
escola de balé que freqüentavam ficaram perfeitas. Os<br />
passos finais, em slow motion, culminavam com o salto<br />
de todas em direção à câmera. Uma das colegas, a de<br />
perfil mais próprio, mais nórdico, mostra, na palma da<br />
mão, o copinho do iogurte anunciado — o produto<br />
disputando a tela com os sorrisos sadios das moças<br />
por breves 5 segundos de imagem congelada.<br />
Às 19 horas, a janela da sala — e o próprio cômodo —<br />
estava apinhada de gente. Quem possuía TV em casa<br />
ouvia as reclamações de quem não possuía o<br />
aparelho: todos consideravam mais emocionante<br />
assistir ao comercial na casa da artista.<br />
Plim Plim. Os moleques largaram as bolas de gude na réstia de<br />
barro onde brincavam e se enfiaram por entre as pernas dos<br />
adultos. A irmã da bailarina, na varanda, interrompeu o beijo e<br />
<br />
71
adentrou a sala arrastando o namorado pela mão. Os<br />
comerciais que se sucediam, mesmo os mais tolos, nunca<br />
tiveram uma platéia tão e silenciosa.<br />
Começou. As moças dançavam como as cabeças dos<br />
expectadores. “Cadê ela?! Cadê ela?!” “Ali ó. Aquela<br />
de roupa azul.” “Mas são várias! Bem que a TV<br />
poderia ser maior, né?”, observou o vizinho. “No final<br />
fico mais visível”, disse a dançarina aflita. “Psssiu!”,<br />
repreendeu a mãe.<br />
Para todos os 30 segundos foram eternos. Quando o<br />
balé iniciou os movimentos finais, a bailarina inclinouse<br />
instintivamente para a TV. Na tela, ao canto<br />
superior direito, uma tarja branca com o nome do<br />
produto apareceu e foi<br />
escorregando em diagonal. Foi entrando... entrando...<br />
e parou, escondendo ao fundo seu rosto negro tão<br />
bonito.<br />
Em termos de produção individual, têm se destacado escritores<br />
como Cidinha da Silva, Marcelino Freire, Conceição Evaristo,<br />
Edimilson de Almeida Pereira, entre outros nomes. Em Contos<br />
Negreiros (2005), Marcelino Freire apresenta ao público leitor o<br />
conto Trabalhadores do Brasil, constituído de imagens e vozes<br />
justapostas que acabam por criar um discurso que arrebenta<br />
agressivo, clamando por justiça racial e social:<br />
Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na zona da<br />
mata pernambucana Olorô-Quê vende carne de<br />
segunda a segunda ninguém vive aqui com a bunda<br />
preta pra cima tá me ouvindo bem?<br />
Enquanto a gente dança no bico da garrafinha Odé<br />
trabalha de segurança pega ladrão que não respeita<br />
quem ganha o pão que o Tição amassou<br />
honestamente enquanto Obatalá faz serviço pra<br />
muita gente que não levanta um saco de cimento ta<br />
me ouvindo bem?<br />
Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus<br />
naquele transe infernal de trânsito Ossonhe sonha<br />
com um novo amor pra ganhar 1 passe ou 2 na<br />
praça turbulenta do Pelô fazendo sexo oral anal seja<br />
lá com quem for ta me ouvindo bem?<br />
<br />
72
Enquanto Rainha Quelé limpa fossa de banheiro<br />
Sambongo bungo na lama e isso parece que dá grana<br />
porque o povo se junta e aplaude Sambongo na<br />
merda pulando de cima da ponte ta me ouvindo bem?<br />
Hein seu branco safado?<br />
Ninguém aqui é escravo de ninguém.”<br />
Nos centros urbanos brasileiros, grupos de escritores têm<br />
criado alternativas de publicação e de circulação do texto<br />
literário afro-brasileiro, através de editoras em forma de<br />
cooperativa de autores, caso das Edições Toró (São Paulo),<br />
cuja produção e distribuição de livros é feita pelos próprios<br />
escritores e da Cooperifa (São Paulo), que desde 2002<br />
promove saraus literários onde escritores marginalizados do<br />
mercado editorial comercialmente competitivo, ainda<br />
majoritariamente comprometido com representações literárias<br />
europocêntricas, têm espaço para exibir a própria produção e<br />
trocar com outros escritores.<br />
Este módulo teve, portanto, como principal objetivo sugerir e<br />
fomentar a inserção da produção literária afro-brasileira na<br />
escola básica, seja nas aulas de literatura, em outras<br />
disciplinas ou em atividades pedagógicas interdisciplinares,<br />
como uma possibilidade de diversificar os discursos<br />
relacionados à convivência inter-racial no Brasil. Reflexões<br />
teóricas e literárias contemporâneas favorecem, por outro lado,<br />
a ruptura dos muros e limites disciplinares, proporcionando<br />
cruzamentos entre áreas de conhecimento e produções<br />
artísticas distintas.<br />
Esse processo certamente enriquecerá o contato crítico do<br />
aluno com o texto literário e com o mundo social,<br />
proporcionando-lhe uma visão ampla da diversidade étnicoracial<br />
do Brasil e uma compreensão dos limites individuais e<br />
coletivos que o racismo instaura.<br />
<br />
73
Leituras sugeridas<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
PRUDENTE, Celso Luiz. “Cinema Negro: aspecto de uma arte para afirmação ontológica<br />
do negro brasileiro”. In: Revista Palmares: Cultura Afro-brasileira, Ano 1, n.1, agosto,<br />
2005. p. 68-72.<br />
QUILOMBHOJE. “Histórico dos cadernos negros”. In:<br />
http://www.quilombhoje.com.br/cadernosnegros/historicocadernosnegros.htm<br />
SOUZA, Florentina da Silva. “Os Cadernos Negros”. In: Afro-descendência em Cadernos<br />
Negros e jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.p. 95-111.<br />
Teatro experimental do negro. In: www.abdias.com.br/teatro_experimental.html<br />
Para saber mais<br />
ARAÚJO, Joel Zito. “A TV e a negação do Brasil”. In:<br />
www.tvebrasil.com.br/salto/entrevistas/joel_zito_araujo.htm<br />
BERND, Zilá (Org.). Poesia Negra Brasileira: Antologia. Porto Alegre: Instituto Estadual<br />
do Livro, 1992. Disponível em:<br />
<br />
Cadernos Negros: os melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998.<br />
Cadernos Negros: Os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, 1998.<br />
Cadernos Negros, volume 24: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2001.<br />
Cadernos Negros, volume 28: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2005.<br />
Cadernos Negros, volume 29: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2006.<br />
CONCEIÇÃO, Jônatas e BARBOSA, Lindinalva (Org.). Quilombo de Palavras: a literatura<br />
dos afro-descendentes. 2ª. ed. Salvador: CEAO/UFBA, 2000.<br />
SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e jornal do MNU.<br />
Belo Horizonte: Autêntica, 2005.<br />
<br />
74
______. “Quilombo de Palavras” In: CONCEIÇÃO, Jônatas e BARBOSA,<br />
Lindinalva (Org.). Quilombo de Palavras: a literatura dos afro-descendentes. Salvador:<br />
CEAO/UFBA, 2000.<br />
Schwarze poesie – poesia negra. Alemanha: Edition diá, 1988.<br />
Enquanto isso, na sala de aula...<br />
Nas atividades em sala, pode-se pensar, inicialmente, numa pesquisa sobre a história<br />
dos 31 anos de existência dos Cadernos Negros (esses dados são encontrados<br />
facilmente no site do Quilombhoje, em livros e trabalhos de pesquisa disponíveis na<br />
internet e nas bibliotecas). O segundo passo, após a pesquisa, é estimular a confecção<br />
de um caderno de poesia (atividade que envolve as habilidades artísticas). Caso não seja<br />
viável a compra de um caderno para cada aluno, além da realização de um trabalho<br />
processual de oficinas de criação literária, adapta-se a atividade com apenas uma oficina.<br />
De posse dos textos de cada aluno, constrói-se um livro de poesia afro-brasileira da<br />
turma. Nem vamos precisar de Hugo Ferreira, os próprios alunos devem ter ideias ótimas<br />
para nomear essa “publicação”.<br />
Falando em publicação, destaco duas das mais importantes sobre os Cadernos Negros:<br />
o livro “Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU” de Florentina da Silva<br />
Souza - publicado em 2005, resultado de uma longa e qualificada pesquisa que culminou<br />
em sua tese de Doutorado em Letras, e a publicação-homenagem, “Cadernos Negros:<br />
três décadas: ensaios, poemas, contos”, lançado em 2008, organizado por Esmeralda<br />
Ribeiro e Márcio Barbosa (coordenadores do Quilombohje Literatura). Essa brochura tem<br />
por objetivo mostrar um painel panorâmico sobre a série. Os textos foram selecionados<br />
de diferentes edições contendo um conto e um poema de cada autor. Aqui destaco um<br />
trecho da introdução feita pelos organizadores,<br />
“Desta forma, podemos dizer que a cada lançamento de Cadernos Negros<br />
uma sensação de conquista para toda a sociedade se espalha pelo ar, pois o<br />
todo se enriquece com pequenos passos como esses. Seria interessante que<br />
os educadores, tocados por essa sensação, dessem mais atenção aos<br />
<br />
75
Cadernos Negros, trabalhando com eles nas salas de aula para que os alunos<br />
também pudessem ser brindados com textos que falam, muitas vezes, de<br />
realidades muito próximas às deles.” (BARBOSA & RIBEIRO, 2008, p.16)<br />
Oportunizar que os(as) alunos(as) acessem, possam discutir e reelaborar as leituras dos<br />
textos contidos nos Cadernos Negros também foi uma preocupação ao elaborarmos esse<br />
Módulo. Assim, durante todo curso foram utilizados contos e poemas publicados no CN.<br />
Os(as) professores(as) podem, assim, preparar atividades adequadas a cada nível de<br />
ensino, disciplina e objetivo, assim como promover atividades culturais e realizar oficinas<br />
dinâmicas e criativas nas unidades escolares tendo em vista a sensibilização para a<br />
leitura dos Cadernos Negros (CN).<br />
No tópico “Textos literários” desta Unidade, poderão ser encontrados poemas e contos<br />
dos CN, alguns em homenagem à própria série, outros abordam assuntos como estética<br />
afro, o continente e as produções literárias africanas, as conseqüências do racismo (autocensura).<br />
As discussões em torno dessas temáticas ressignificam valores e crenças<br />
acerca das populações afro-brasileiras, reconstituem o imaginário sobre o negro,<br />
promovem a elevação da auto-estima, além de criarem espaços - dentro e fora da escola,<br />
para discussão das diferenças étnicorraciais.<br />
Quanto às “Outras poéticas”, poderia citar uma série de outras publicações<br />
importantíssimas para a consolidação da Literatura Afro-brasileira, tais como “O negro<br />
escrito” e “A razão da chama: antologia de poetas negros brasileiros”, de Oswaldo de<br />
Camargo, “Axé: antologia da poesia negra contemporânea”, organização de Paulo<br />
Colina, “Criação Crioula: nu elefante branco”, organização de Cuti, Mirian Alves e Arnaldo<br />
Xavier, “Reflexões sobre literatura afro-brasileira”, do Conselho de participação e<br />
desenvolvimento da comunidade negras, “Literatura e identidade Nacional”, de Zilá<br />
Bernd, “Quilombo de palavras: a literatura dos afro-descendentes”, organização de<br />
Jonatas Conceição e Lindinalva Barbosa, citando apenas algumas. Porém, o destaque do<br />
subtítulo fica com as possíveis estratégias contemporâneas de apropriação de diferentes<br />
linguagens e recursos – a notar pelos materiais sugeridos no tópico “Textos literários”, ou<br />
seja, oriki, música, endereços eletrônicos de vídeos de músicas, entidades culturais,<br />
cinema negro, museus afros, teatro negro, dança afro e capoeira, etc. para que, em<br />
diálogo com a literatura afro-brasileira, possam contribuir para a efetiva inclusão da<br />
história e cultura afro-brasileira tanto nas práticas educacionais como nos discursos<br />
nacionais.<br />
<br />
76
Nesse ponto, convido os(as) professores(as) a criar suas atividades, aproveitando as<br />
sugestões das unidades anteriores. No entanto, é preciso atentar ao cumprimento do<br />
nosso objetivo, que é buscar como resultado das atividades das aulas a ampliação das<br />
discussões quanto à presença e importância da população negra na formação e<br />
constituição do Brasil.<br />
As discussões e poéticas precisam sair das páginas dos livros e ganhar o mundo seja<br />
através da música, da TV, da arte, da dança, entre outros caminhos.<br />
Textos literários<br />
VENTO FORTE - POESIA<br />
Lepê Correia<br />
Hoje me falta o verso<br />
Como falta pão e farinha<br />
Na mesa do meu irmão.<br />
Meu estomago poético ronca<br />
Dá nó a tripa da inspiração<br />
Uns com tanto e outros sem saber<br />
Vou gritar pelo velho Trindade<br />
Quero alguma imaginação pra beber<br />
Algo que aplaque esse misere...<br />
Poético sim... Por que não?<br />
Ele sempre teve<br />
Em cada caracol de sua carapinha<br />
Um verso, uma ilusão espalhada: Pelas barbas, nos cabelos do sovaco...<br />
Até nos arames pubianos<br />
É... até lá tinha versos pendurados<br />
Me acode, Veio!<br />
Agora e na hora de qualquer papel em<br />
E depois, vai ser poeta assim na casa<br />
DIÁRIO DE UMA FAVELADA<br />
Ademiro Alves (Sacolinha)<br />
Maria teve uma doença na perna<br />
Curada com o tempo e com as rezas<br />
Passou a adolescência de casa em<br />
Na labuta de empregada<br />
Carolina já adulta continuava sozinha<br />
Andava aqui e ali<br />
Sempre à procura de emprego<br />
Nunca de migalhas<br />
[como.<br />
[branco<br />
[d’Osanlá.<br />
[casa<br />
<br />
77
De Jesus herdou o nome<br />
E a coragem<br />
Foi jogada na favela<br />
Esperta que era<br />
Tirou proveito dela<br />
Relatando os tropeços<br />
Nasceu então o quarto de despejo<br />
ANCESTRAL<br />
Landê Onawale<br />
Para Lindi e Abdias<br />
Em mim falam vozes ancestrais<br />
Que conversam mais, se calo,<br />
Ou a alma silencia<br />
- ainda que em meio à algaravia.<br />
Carrego por dentro abismos<br />
Onde ecoam os mais leves sussurros,<br />
Canyons mergulhados por pássaros<br />
De guinchos e vôos atemporais...<br />
Assim é que, do meu canto,<br />
Surgem versos de improviso;<br />
No meu grito.<br />
Ecos de quilombos e porões;<br />
Em minhas teses, tramas dos canaviais.<br />
Sei a oração que princípio,<br />
Mas não onde o desejo dos verbos acaba:<br />
São incertos os ventos<br />
Que sopram as velas do meu destino.<br />
CUMPLICIDADE<br />
Graça Graúna<br />
Agora pela hora da minha agonia<br />
louvo Trindade e Jorge de Lima<br />
cantando, catando as duras penas, só.<br />
- De onde vem, Solano, esta agonia?<br />
- Vem de longe, nega, muito longe!<br />
De Afroamérica sonhada.<br />
lá, donde crece la palma<br />
plantada em versos de alma,<br />
del hombre José Martí.<br />
- De onde vem, Solano, esta agonia?<br />
- De muito longe, nega.<br />
Do comecinho das coisas;<br />
de muito longe, minha nega, muito<br />
longe...<br />
<br />
78
QUASE HAI KAI<br />
Graça Graúna<br />
Para Cruz e Souza<br />
À cruz do poeta<br />
Doura trêmulas quimeras:<br />
Sempre-vivas sobre a mesa<br />
ACERTO DE COTAS<br />
Landê Onawale<br />
Depois de nos espremermos<br />
sob as pontes<br />
dividindo pedaços de vão<br />
depois de esquentarmos nossos medos<br />
nos limites de cada prisão<br />
e de disputarmos com todos os bichos<br />
buracos no parmesão<br />
é hora de outras partilhas...<br />
distribuir agasalhos, e não o frio<br />
repartir comida, e não a fome<br />
depois dos lares loteados<br />
pelas botas da violência<br />
e dos empregos cotizados<br />
para servir às aparências<br />
depois dos elencos rateados<br />
nos cabendo a subserviência<br />
é tempo de outros papéis<br />
e - por que não? - de anéis...<br />
SE ELA FAZ EU DESFAÇO<br />
Éle Semog<br />
A treze de maio fica decretado<br />
Luto oficial na comunidade negra<br />
E serão vistos com maus olhos<br />
Aqueles que comemorarem festivamente<br />
Esse treze inútil<br />
E fica o lembrete:<br />
Liberdade se toma<br />
Não se recebe<br />
Se toma<br />
Dignidade se adquire<br />
Não se concede.<br />
<br />
79
DOMÍNIO DAS PEDRAS<br />
Jônatas Conceição<br />
As pedras caíam no silêncio<br />
das bocas que mal diziam.<br />
As peças eram trabalhadas<br />
com esmero, precisão,<br />
para a queda final.<br />
Os parceiros não se olhavam<br />
(o jogo não permitia admiração)<br />
Mal miravam as mãos,<br />
os dedos hesitantes.<br />
No domingo,<br />
o domínio das pedras<br />
era absoluto.<br />
Os homens se revestiam<br />
ao redor da tábua<br />
onde a vida não lhes pregava peças.<br />
IDENTIDADE<br />
José Carlos Limeira<br />
Houve um tempo em que<br />
Constava em sua carteira<br />
o dado cor<br />
na minha: pardaescuracabeloscarapinhados.<br />
Diante do espelho, me pergunto<br />
que faço com estes lábios grossos,<br />
este nariz achatado?<br />
Que faço com esta memória<br />
de tantos grilhões,<br />
destas crenças me lambendo as entranhas?<br />
Será que não é demais não ter o direito<br />
de ser negro ?<br />
Causa espanto?<br />
Pardaescura é o aspecto que vocês deram<br />
à nossa historia.<br />
Morra de susto!<br />
Sou, vou sempre ser: NEGRO!<br />
ENE, É,ERRE,Ó.<br />
Aqui, Ó!<br />
DESENGANOS<br />
Márcio Barbosa<br />
Benedito da Silva, ao entrar num shopping para resolver um assunto importante, parou<br />
numa loja de artigos femininos. Escolheu algumas roupas, ia pagar quando o homem do<br />
<br />
80
outro lado do balcão perguntou:<br />
- O cheque é seu?<br />
"É da minha avó", quis dizer. Sempre perguntavam aquilo.<br />
- É - respondeu.<br />
- E o telefone do seu emprego?<br />
Enquanto o homem pegava o cheque e ia telefonar, Benedito olhou para as roupas em<br />
cima do balcão. Caríssimas. E se simplesmente saísse com elas? Não...Ele podia<br />
pagar... E a Preta merecia. Um ano de namoro. - Ninguém o conhece lá - o homem disse,<br />
quando voltou.<br />
- Como?<br />
- Ninguém jamais ouviu falar do senhor.<br />
- Tá certo, então, amigo. Vou comprar em outra loja.<br />
- O senhor aguarde um pouco.<br />
- Aguardar o quê?<br />
O homem, cínico, olhou para a porta, por onde entravam dois seguranças usando ternos<br />
impecáveis. Um deles, o mais baixo, de bigodes, estendeu um queixo acusador e<br />
ordenou:<br />
- O senhor queira nos acompanhar.<br />
- Isto é um erro muito grande - disse Benedito, espantado.<br />
- Por favor, não complique as coisas.<br />
Levaram-no - perplexo e emudecido - rapidamente para uma sala nos subterrâneos.<br />
Benedito, sentado numa das duas cadeiras, imaginava se não fora um equívoco ter<br />
decidido por aquele shopping. O segurança bigodudo, por detrás de uma mesa, balançou<br />
o cheque.<br />
- Temos um problema aqui - falou. É melhor o senhor dizer de quem é isto.<br />
Benedito achou aquilo uma humilhação, um absurdo.<br />
- Vocês não vêem - disse, sem poder conter a exaltação - que é tudo um engano?<br />
Merda...<br />
- Veja como fala.<br />
- Falo do jeito que eu quiser - Benedito gritou.<br />
O bigodudo cerrou os punhos e inflou o peito. Parecia feito de aço. O outro homem, o<br />
careca, que estivera em pé, quieto, interferiu:<br />
- Calma, bigode, vamos devagar. - Virou-se para Benedito - Pode ser que seja um<br />
engano, mas tem um pessoal lá em cima que não vai pensar assim. Por isso, não seja<br />
arrogante.<br />
- Então, eu vou lhes dizer uma coisa...<br />
<br />
81
- Diga de quem é o cheque - ordenou o bigodudo.<br />
- Da tua avó.<br />
- Preto filho da mãe.<br />
Aquilo foi mais forte que um soco.<br />
- Porra, bigode! - O careca contraíra os músculos do pescoço e seu nariz quase<br />
encostava na cabeça do outro.<br />
- Então, é isso - Benedito conseguiu murmurar.<br />
O careca acendeu um cigarro e falou numa voz macia:<br />
- O meu companheiro se exaltou. Não é isso o que ele pensa, não é, bigode?<br />
O outro encostara a cadeira na parede e não falou nada.<br />
- Olha bem pra mim - o careca ordenou. - Eu sou negro também...<br />
- Porra nenhuma - era o bigode que cuspia no chão.<br />
- Sou mulato. E nunca tive problemas por aqui. Mas o senhor vai compreender... A<br />
supervisão lá em cima está nos cobrando. Vem um chefe novo aí e eles querem mostrar<br />
serviço...<br />
- Meto um processo em cima dos dois...<br />
O bigodudo cuspiu no chão outra vez.<br />
- Você não tem onde cair morto. Quem sabe a gente não seja promovido se te der uma<br />
lição? É isso aí, neguinho, promovidos...<br />
- Cala a boca. - o careca inflamou-se. Depois colocou a mão no ombro de Benedito. - Só<br />
irão deixá-lo sair se provar sua inocência. Compreenda, o novo chefe...<br />
Benedito levantou-se, sentia na boca o gosto de algo azedo. Encarou o bigodudo. Seu<br />
rosto iluminou-se.<br />
- Eu não sei do que vocês estão me acusando.<br />
Na verdade, sabia. No fundo, acusavam-no por estar ali - um local que supostamente não<br />
era para ele - , por consumir em lojas que não eram para ele, por ser atendido por<br />
pessoas que não eram iguais a ele.<br />
- Parei naquela loja por acaso. Dei o telefone do meu antigo emprego - argumentou. -<br />
Talvez tenha errado algum número.<br />
- Antigo? Quer dizer que o malandro não trabalha?<br />
- Vim aqui para isso. Assinar a ficha do meu novo emprego.<br />
Os dois homens se olharam, surpresos.<br />
- Aqui, no shopping?<br />
-Era o que eu tentava dizer. Vou trabalhar na segurança. Dizem que está violenta.<br />
Chamaram-me há uma semana... para ocupar a chefia...<br />
<br />
82
O careca deixou cair o cigarro. O bigodudo pensou que a promoção não viria. E Benedito<br />
lembrou-se da Preta. Sentiu ternura e, pensando que algumas coisas por ali seriam<br />
mudadas, respirou aliviado.<br />
GAROTO DE PLÁSTICO<br />
Cristiane Sobral<br />
Tem gente que vem ao mundo a passeio, outros, a serviço. E ele vivia assim, à paisana.<br />
Era um indivíduo descartável e nunca fizera o menor esforço. Malhar, só na academia,<br />
para garantir o êxito dos amassos noturnos no seu ponto de encontro predileto, as<br />
boates, onde costumava caçar seu objeto preferido: mulher. Mulher loira, claro.<br />
Seu jeito era meio distraído durante o dia porque gastava toda a energia à noite, nos<br />
agitos. Sua expressão era meio aérea e seu sorriso, completamente sintético. Marcava<br />
presença na classe jovem que freqüentava pelo seu nada original nick name: "boy". Aliás,<br />
ele considerava-se um dos melhores frutos da era da informática: o gato virtual. Nada de<br />
contatos verdadeiros. Não tinha mesmo muitos neurônios disponíveis para desenvolver<br />
sua inteligência emocional. Seu melhor trunfo era a memória, medida em gigabytes e<br />
equipada com um eficiente kit multímidia. Um gato de plástico motorizado. Tinha um<br />
carro do ano com um equipamento de som de última geração. Presente do pai.<br />
Fazia cursinho de inglês, presente da madrinha. "How are you? Fine, thanks". "Cool".<br />
Estudava Ciências da Computação numa faculdade privada paga por meio de um rateio<br />
feito entre os irmãos mais velhos sem o menor desajuste financeiro. Um garoto de<br />
plástico com roupas de marca. Presentes de uma gatinha "shopping-maníaca", que<br />
sonhava com o seu amor eterno. "Morena", a menina, até estudiosa. Mas muito pé no<br />
chão. O "boy" não agüentava. Papo cabeça. Politicamente correto. Música gospel. Só<br />
mesmo apertando o "delete". Que alívio. Preferia suas batatinhas loiras fritas e<br />
hambúrgueres de carne, muita carne. Boy. Fazia palavras cruzadas nível moleza e era<br />
adepto do discman. Principalmente nas viagens. Uma viagem inesquecível? o primeiro<br />
passeio com seu novo e moderno tênis da onda. Pisando em terra firme com seus pés de<br />
plástico tamanho 42. Seu maior sonho era um mundo com meias descartáveis. Vida para<br />
as meias de algodão do tipo "one way". Liberdade perfumada para dentro dos dedos. Se<br />
alguém quiser lavar meias que lave. Que cara de plástico!<br />
Outro dia, na sua aula de inglês reclamou com o "teacher" que não tinha tempo para<br />
fazer o dever de casa, o "home-work", porque estava freqüentando a academia<br />
regularmente, já que o importante, em sua opinião, era poder ficar sempre orgulhoso de<br />
<br />
83
não ter nenhuma dobrinha no abdome sob as suas camisetinhas tipo "mamãe olha como<br />
estou forte"..."Mother", sou um garoto de plástico bem forte!<br />
E assim seguia nosso ilustre personagem, em sua existência perfeitamente descartável,<br />
de shopping em shopping, de boate em boate, até que um dia, ficou totalmente derretido<br />
por uma garota! Isso não fazia parte do seu roteiro de vida, baseado em técnicas yuppies<br />
e neurolinguísticas...não, não fazia. Pois aconteceu. Só o amor constrói. Ou destrói. Sob<br />
a sua cara-máscara de plástico totalmente derretida, havia um complexo de inferioridade<br />
estrutural, que o fez ficar trancado em casa durante quatro longas semanas, período<br />
suficiente para deixar crescer seus cabelos raspados à máquina zero a cada sete dias.<br />
Seus cabelos eram negros, sua pele cor de azeviche, aquela vida de plástico era um<br />
verdadeiro mito, mito de uma democracia racial. Junto com seus cabelos, cresceram<br />
algumas idéias...e em noites de insônia sua mente formulara algumas perguntas: quem<br />
sou eu? para onde vou? Meu nome é Maurício? Por que me chamam de Mauricinho?<br />
O garoto ficou atordoado e decidiu investigar sua certidão de nascimento. Leu: Nome:<br />
Augusto de Oliveira. Cor : Parda. Junto com a certidão de nascimento havia um álbum de<br />
fotografias com uma foto de casamento de seus pais. Um casal negríssimo, sem dúvida.<br />
Filho de peixe... Augusto. Ficou frente ao espelho do banheiro um longo tempo. Seus<br />
olhos refletiam uma expressão bastante dura. Cara de pau. Sem máscara ele até que<br />
não era tão estranho. Parecia gente. Parecia com tanta gente. Com toda a população do<br />
Brasil, esse país que também usa uma máscara de plástico para disfarçar a cara de pau<br />
que lhe permite vez em quando esquecer que está aqui a maior população negra fora da<br />
África.<br />
PRINCESA SAWANA<br />
José Augusto Bertoncini Ribeiro<br />
Há muito e muito tempo atrás, num antigo reino africano havia uma princesa de nome<br />
Shawana. Ela tinha longos cabelos crespos e belos olhos claros.<br />
Seu pai, o rei, acreditava que já estava na hora da princesa se casar. Mas ele sabia que<br />
o futuro príncipe deveria ser corajoso e inteligente, e por isso convocou todos os homens<br />
do reino e lhes propôs um desafio.<br />
- Aquele que desejar se casar com a minha filha deve lhe trazer um presente; A princesa<br />
Shawana irá então escolher a pessoa que trouxer o presente que mais lhe agradou!<br />
Havia no reino um corajoso guerreiro de nome Mosi, que sempre havia observado a<br />
princesa de longe e sempre desejou conhecê-la. Ele havia se apaixonado ternamente por<br />
<br />
84
ela, e queria aproveitar o desafio proposto pelo rei para conquistá-la.<br />
Muitos moços levaram jóias e outros belos presentes para a princesa. Vendo isso, o<br />
jovem Mosi procurou o sábio feiticeiro da tribo. O sábio feiticeiro disse que as jóias e<br />
todos os outros presentes nada representavam, e que o melhor presente que poderia<br />
entregar à princesa estava no seu coração.<br />
O jovem Mosi muito pensou nas palavras do feiticeiro. Ele foi então ao encontro do rei e<br />
da princesa, e de mãos vazias, agachou, pegou uma pedra e olhando, profundamente,<br />
nos olhos de Shawana, colocou a pedra delicadamente em suas mãos, e disse:<br />
- Coragem é o que não me falta; assim como as pedras, que duram eternamente e<br />
sempre se renovam, assim é o meu amor por você!<br />
Ela se apaixonou, e eles tiveram um belíssimo casamento.<br />
PRETO DE OURO PRETO<br />
Sylvia Orthof<br />
Lembro e esqueço<br />
e assim começo<br />
a história de um rei...<br />
Invento o que não sei?<br />
Era uma vez um lugar<br />
onde os bichos passeavam:<br />
girafas e elefantes<br />
havia aos montes!<br />
Ali tudo era lindo<br />
nas cores muito vermelhas,<br />
verdes azuis, amarelas,<br />
ai que belas aquarelas<br />
feitas de sol e luar!<br />
Venha espiar!<br />
Africano continente,<br />
gente negra e valente,<br />
gente que dança e canta<br />
no sorriso do contente.<br />
Vamos em frente?<br />
Ali morava um rei<br />
todo negro e enfeitado.<br />
Sua pele era um negrume<br />
da noite do estrelado.<br />
Era preto de lindeza,<br />
era sábio em realeza,<br />
com certeza.<br />
<br />
85
Seu povo o admirava,<br />
e ele admirava o povo.<br />
Tal rei eu louvo!<br />
(...)<br />
Chico Rei fez seu reinado<br />
ali em Minas Gerais.<br />
Era um reino pequenito...<br />
tão bonito!<br />
Era um reinado de livres,<br />
escravidão... nunca mais?<br />
Viva Francisco, o Chico<br />
rei de minas, do tesouro,<br />
das liberdades totais!<br />
Quanta dança e folia,<br />
Baticum e alegria!<br />
Quantos anjos e noitadas,<br />
Belezuras muito puras...<br />
E escuras! (...)<br />
A VELHINHA DO ANGU<br />
Solano Trindade<br />
“Pinta pinta pintadinho<br />
Zorra me zorra<br />
Que já está fôrra<br />
Sola sapato,<br />
Rei rainha,<br />
De baixo da cama<br />
Da camarinha”<br />
Como parece essa lua<br />
Com aquele outro luar<br />
Que quando pequeno vi<br />
A lua estava amarela<br />
Rodeada de estrelas<br />
Prá minha infância a sorrir...<br />
“Cru cru cru<br />
A velhinha do angu”.<br />
Como sublime é lembrar,<br />
Aquela cena singela<br />
Da mamãe toda curvada<br />
Batendo de mão em mão<br />
“Está quente ou está fria”...<br />
“Cru cru cru<br />
A velhinha do angu”.<br />
<br />
86
O CORDEL<br />
Antônio Vieira<br />
O cordel é poesia<br />
História, lazer, jornal<br />
É síntese, é cabedal<br />
Ibero – Baltazar Dias<br />
Camões o utilizaria<br />
Dele se serviu Cecéu<br />
No nordeste o menestrel.<br />
Destacou-se a rimar<br />
Versos que não iam ao mar...<br />
Mas cumpriam o papel.<br />
BABÁ ALAPALÁ<br />
Gilberto Gil<br />
Aganju,<br />
Xangô,<br />
Alapalá, alapalá<br />
Alapalá,<br />
Xangô,<br />
Aganju.<br />
O filho perguntou pro pai<br />
Onde é que tá o meu avô?<br />
O meu avô,<br />
Onde é que tá?<br />
O pai perguntou pro avô<br />
Onde é que tá o meu bisavô?<br />
Meu bisavô, onde é que tá?<br />
Avô perguntou bisavô<br />
Onde é que tá tataravô?<br />
Tataravô, onde é que tá?<br />
Tataravô<br />
Bisavô<br />
Avô<br />
Pai Xangô, Aganju<br />
Viva Egum,<br />
Babá Alapalá.<br />
Aganju,<br />
Xangô,<br />
Alapalá, alapalá<br />
Alapalá,<br />
Xangô,<br />
Aganju.<br />
Alapalá egum,<br />
Espírito elevado ao céu,<br />
<br />
87
Machado alado,<br />
Asas do anjo aganju.<br />
Alapalá egum,<br />
Espírito elevado ao céu,<br />
Machado astral,<br />
Ancestral do metal,<br />
Do ferro natural,<br />
Do corpo embalsamado,<br />
Preservado em bálsamo sagrado,<br />
Corpo eterno e nobre<br />
De um rei nagô,<br />
Xangô.<br />
(Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=cXOe-aGxaSY)<br />
CINCO ELEMENTOS<br />
Oubi Inaê Kibuko<br />
aos Manos & Minas do Movimento Hip Hop<br />
A palavra cantada<br />
juventude municiada<br />
tomou de assalto<br />
palcos praças ruas<br />
rimando verbos consequentes<br />
A palavra tocada<br />
orquestra em didjei vinil<br />
criatividade nos dedos<br />
rotação vudum-vudum-vudum<br />
A palavra dançada<br />
B.Boy<br />
B.Girl<br />
passo lunar<br />
compasso moinho<br />
corpo robótico<br />
em múltiplas formas flutua<br />
A palavra grafitada<br />
muros paredes<br />
tela nua<br />
mural dos excluídos<br />
vestindo traços coloridos<br />
em jato spray<br />
A palavra revolucionária<br />
becos vilas cohabs morros favelas<br />
perféricas páginas cotidianas<br />
dialeto de preto<br />
raio x do gueto<br />
em ritmo Che-Marx-Martin-Malcon-<br />
[Mandela-Zumbinianos<br />
<br />
88
SEGUNDA PELEJA DE ROMANO DO TEIXEIRA COM INÁCIO DA CATINGUEIRA<br />
(Cordel)<br />
R - Negro cante com mais jeito<br />
veja tua qualidade<br />
eu sou branco, e tu tição<br />
perante a sociedade<br />
aceitei cantar contigo<br />
baixei a dignidade.<br />
I - Esta tua frase agora<br />
Me deixou admirado<br />
Que para o senhô ser branco<br />
Teu couro é muito tostado<br />
Tua cor imita a minha<br />
Teu cabelo é agastado...”<br />
MARACATU RURAL - PE<br />
Mestre Zé Gordo<br />
“Em tempo de violência<br />
Cheio de medo e pavor<br />
O filho do Salvador<br />
Vê todo mundo pecando<br />
E os falsos profetas enricando<br />
Com o nome do Salvador”<br />
“Tá o pobre aperreado<br />
Pra não manchar seu nome<br />
E vê seu filho com fome<br />
E ele quer pão<br />
E diz o Pai da criação<br />
Que no mundo tudo passa<br />
E dinheiro virou fumaça<br />
Por causa da inflação”<br />
ORIKI – Xângo<br />
Ele ri quando vai à casa de Oxun.<br />
Ele fica bastante tempo em casa de Oyá.<br />
Ele usa um grande pano vermelho.<br />
Elefante que anda com dignidade.<br />
Meu senhor, que cozinha o inhame com o ar que escapa de suas narinas.<br />
Meu senhor, que mata seis pessoas com uma só pedra de raio.<br />
Se franze o nariz, o mentiroso tem medo e foge.<br />
PONCIÁ VICÊNCIO<br />
Conceição Evaristo<br />
... O tempo de espera, se feito quieto e mudo, é pior, pois se torna demoradamente mais<br />
longo ainda. Em suas peregrinações, trabalhava em tudo que era preciso, menos no<br />
<br />
89
arro. Nunca mais tocou na massa, mas continuava cantando muito, como no tempo em<br />
que as duas entoavam juntas as canções. Cantava as cantigas de sua infância, aquelas<br />
que tinha aprendido dos mais velhos, no tempo em que era criança. Cantava as que tinha<br />
aprendido com a mãe e que tinha oferecido depois, mais tarde, à filha. E nessas canções<br />
havia muitas que eram dialogadas e quando chegava na parte em que entraria a voz da<br />
filha, a mãe de Ponciá se calava. (p. 85)<br />
SOU NEGRO D+ PRA VOCÊ<br />
Thaíde e Dj Hum<br />
Irmão, Irmã, assuma a sua mente<br />
Eu sei que você é inteligente<br />
Infelizmente tem um par de Judas por<br />
[aí<br />
Mesmo não querendo eles vão ter que<br />
[me ouvir<br />
viver intensamente é o meu objetivo<br />
Se sou feliz assim, como sou, é porque<br />
[tenho motivo<br />
Meu instinto guerreiro tá no sangue<br />
Pra mim não basta apenas ter a cor<br />
[predominante<br />
Não, não tem como fugir daquilo que a<br />
[gente é<br />
Se aceite ou seja escravo pra sempre, se você quiser (...)<br />
(http://vagalume.uol.com.br/thaide-dj-hum/sou-negro-d-pra-voce.html)<br />
DE MÃE<br />
Conceição Evaristo<br />
O cuidado da minha poesia<br />
aprendi foi de mãe<br />
mulher de pôr reparo nas coisas<br />
e de assuntar a vida<br />
A brandura de minha fala<br />
na violência dos meus ditos<br />
ganhei de mãe<br />
mulher prenhe de dizeres<br />
fecundados na boca do mundo<br />
Foi de mãe todo o meu tesouro,<br />
veio dela todo o meu ganho,<br />
mulher sapiência, yabá<br />
do fogo tirava água<br />
do pranto criava consolo.<br />
Foi de mãe esse meio riso<br />
dado para esconder<br />
alegria inteira<br />
<br />
90
e essa fé desconfiada,<br />
pois, quando se anda descalço<br />
cada dedo olha a estrada.<br />
Foi mãe que me descegou<br />
para os cantos milagreiros da vida,<br />
apontando-me o fogo disfarçado<br />
em cinzas e a agulha do<br />
tempo movendo no palheiro.<br />
Foi mãe que me fez sentir<br />
as flores amassadas<br />
debaixo das pedras<br />
os corpos vazios<br />
rente às calçadas<br />
e me ensinou, insisto, foi ela<br />
a fazer da palavra<br />
artifício<br />
arte e oficio<br />
do meu canto<br />
da minha fala.<br />
MAHIN AMANHÃ<br />
Mirian Alves<br />
Ouve-se nos cantos a conspiração<br />
vozes baixas sussurram frases<br />
[precisas<br />
escorre nos becos a lâmina das adagas<br />
Multidão tropeça nas pedras<br />
Revolta<br />
há revoada de pássaros<br />
sussurro, sussurro:<br />
“é amanhã, é amanhã.<br />
Mahin falou, é amanhã”<br />
A cidade toda se prepara<br />
Malês<br />
Bantus<br />
Geges<br />
Nagôs<br />
vestes coloridas resguardam<br />
[esperanças<br />
aguardam a luta<br />
Arma-e a grande derrubada branca<br />
a luta é tramada, na língua dos Orixás<br />
“é aminhã, aminhã”<br />
Sussurram<br />
Malês<br />
Bantus<br />
Geges<br />
Nagôs<br />
“é aminhã, Luiza Mahin falô”<br />
<br />
91
LADAINHA - Cântico que é entoado na Roda de Capoeira Angola, que, seguido a<br />
tradição, deve ser cantada por um Mestre - o mais velho e/ou mais considerado -, ou,<br />
com a autorização do Mestre da Roda, por um dos Capoeiristas que vão "fazer um jogo",<br />
ao "pé do Berimbau". As Ladainhas trazem em seu bojo a história da Capoeira e de seus<br />
grandes personagens, concepções de mundo, orientações a algum aprendiz. Segundo os<br />
"Velhos Mestres" da Bahia, enquanto a Ladainha está sendo cantada, não se realiza<br />
nenhum "jogo físico", é necessário aproveitar o momento para dedicar-se à concentração<br />
máxima, tendo em vista o correto entendimento da(s) mensagem(ns) que nela<br />
está(estão) contida(s).<br />
Yê !<br />
Eu vou ler o B-A-Bá<br />
B-A-Bá do Berimbau<br />
a moeda e o arame<br />
com dois pedaços de pau<br />
a cabaça e o caxixi<br />
aí está o berimbau<br />
Berimbau é um instrumento<br />
que toca numa corda só<br />
vai tocar São Bento Grande<br />
toca Angola em tom maior<br />
agora acabei de crer<br />
o Berimbau é o maior<br />
Camaradinho<br />
Yê Viva meu Deus<br />
Yê viva meus Deus, camará<br />
...<br />
Yê !<br />
São quatro coisa no mundo<br />
que ao homem consome<br />
uma casa pingando<br />
um cavalo chotão<br />
uma mulher ciumenta<br />
um menino chorão<br />
Tudo isso ele dá um jeito<br />
a casa ele retelha<br />
o cavalo negoceia<br />
o menino acalenta<br />
mulher ciumenta<br />
cai na peia<br />
Yê viva a Bahia<br />
Yê viva a Bahia, camará<br />
Yê !<br />
Lá no céu tem três estrelas<br />
todas as três em carririnha<br />
uma é minha a outra é sua<br />
a outra vai ficar sozinha<br />
Camaradinho<br />
Yê Viva meu Mestre<br />
<br />
92
Yê viva meu Mestre, camará<br />
Yê !<br />
Bahia minha Bahia<br />
capital do Salvador<br />
quem não conhece esta capoeira<br />
não lhe dá o seu valor<br />
todos podem aprender<br />
General e também quem é Doutor<br />
quem desejar aprender<br />
venha a Salvador<br />
procure Pastinha<br />
ele é professor<br />
Camaradinho<br />
Yê viva meu Deus<br />
Yê viva meu Deus, camará<br />
Yê !<br />
Menino quem te matou ?<br />
foi a língua meu senhor<br />
eu te dava conselho<br />
pensava ser ruim<br />
e eu sempre te dizendo<br />
inveja matou Caim.<br />
Camaradinho<br />
Yê viva a Bahia<br />
Yê viva a Bahia, camará<br />
Yê<br />
Hê...cidade de Assunção<br />
capital do Itamaraty<br />
é engano das nações<br />
das sepulturas do Brasil<br />
Pastinha já foi a África<br />
pra mostrar a capoeira do Brasil<br />
Camaradinho<br />
Yê viva Pastinha<br />
Yê viva Pastinha, camará<br />
Yê<br />
A Bahia é terra boa<br />
tem de tudo pra se ver<br />
tem gostoso acarajé<br />
tem abará e tem dendê<br />
e tem a capoeira angola<br />
para nós nos defender<br />
Camaradinho<br />
Yê Viva a capoeira<br />
Yê viva a capoeira, camará.<br />
(http://cuica.tripod.com/musicas.htm)<br />
<br />
93
OBALUWAIYÊ, O DONO DA PESTE<br />
Deoscóredes M. dos Santos (Mestre Didi)<br />
Em uma daquelas tribos lá da África, há 900 anos passados, nasceu um menino, e os<br />
pais botaram o nome de Obaluwaiyê. Este menino foi crescendo, e quando já estava<br />
mais ou menos com uns quatorze anos de idade, resolveu sair pelo mundo para<br />
conquistar bons trabalhos e ganhar muito dinheiro para ele e seus pais. Um dia<br />
amanheceu já preparado, tomou a bênção aos pais e saiu pela porta a fora, procurando<br />
um jeito de vida. Andou, andou, andou muito mesmo, até que por fim, depois de já ter<br />
passado por várias cidadezinhas, deu numa cidade muito grande e começou a procurar<br />
emprego.<br />
Porém ninguém quis lhe atender, e por se achar esfomeado resolveu bater na porta de<br />
uma casa grande e muito bonita também. Quando vieram atender ele pediu uma esmola<br />
e, por resposta, fecharam a porta da casa e não lhe deram coisíssima nenhuma.<br />
Desiludido, continuou a andar, e um cachorro que estava deitado na dita porta o<br />
acompanhou até quando chegaram numa mata virgem, onde ficaram comendo folhas e<br />
bichos de toda espécie.<br />
Obaluwaiyê por companhia naquela mata virgem só tinha o cachorro e as cobras que<br />
sempre estavam junto com ele. Mesmo assim, e com toda a fé que ele tinha em Olorum<br />
(Deus), não deixou de sofrer. Já estava com o corpo todo aberto em chagas e o cachorro<br />
era quem cuidava, com sua própria língua, aliviando as dores e sofrimentos. Obaluwaiyê<br />
já tinha perdido toda a esperança de vida e estava jogado entre as raízes dum pé de rôko<br />
(gameleira) esperando a morte. Foi quando ouviu uma voz dizer:<br />
- Obaluwaiyê, levanta-te, já cumpriste a tua missão com os teus sofrimentos, agora vá<br />
aliviar os sofrimentos daqueles que reclamam por ti.<br />
Quando ele deu cor de si e se levantou assustado, sentiu que estava mais forte e das<br />
chagas só tinham as marcas por todo o corpo. Ele aí se ajoelhou, deu graças a Olorum, e<br />
pediu para que lhe desse o direito e a virtude de poder cumprir aquela missão de acordo<br />
com a ordem que tinha recebido; e assim, com um pedaço de pau, espécie de um cajado,<br />
umas cabaças onde carregava água e remédios, e com o seu cachorrinho, começou a<br />
viagem de volta para a tribo de seus pais. Nessa ocasião, em várias tribos de lugares<br />
diferentes, estava assolando uma grande e desconhecida peste, e também morrendo<br />
gente que nem formiga.<br />
Os pais de Obaluwaiyê, antes de ficarem doentes, foram à casa de Olowô (olhador) fazer<br />
uma consulta sobre aquela calamidade que estava acontecendo. Então o Olowô disse<br />
<br />
94
que tudo aquilo tinha fim, e que a peste ia ser sanada em todo o mundo. A<br />
demora só era Obaluwaiyê voltar da sua grande viagem. Os pais de Obaluwaiyê ficaram<br />
bastante satisfeitos por saberem que seu filho ainda existia, e a notícia foi espalhada.<br />
Todos estavam à sua espera, mesmo sem conhecer e sem saber que Obaluwaiyê era<br />
aquele menino que tinha passado por todas aquelas cidades pedindo emprego e<br />
implorando uma esmolinha sem nunca ter sido atendido. Dito e feito, Obaluwaiyê passou<br />
pela última cidade que foi a primeira em que lhe negaram emprego. Dirigiu-se para a<br />
casa onde lhe bateram a porta na cara negando uma esmola e pediu agasalho. Desta<br />
vez ele foi mais feliz. Não teve nem quem viesse atender. Devido ao estado de saúde em<br />
que todos do lugar se encontravam, as casas amanheciam e anoiteciam com as portas já<br />
abertas.<br />
Logo que Obaluwaiyê entrou nessa casa aconteceu um dos mais verdadeiros milagres.<br />
Todas as pessoas que estavam doentes imediatamente levantaram da cama já curadas.<br />
Reconhecendo a Obaluwaiyê, foram caindo a seus pés pedindo perdão do que tinham<br />
feito. Ele com toda a paciência perdoava e dizia:<br />
– Agora cada um de vocês tem de ir ver uma folha perêgum, pintar com efum osum e<br />
uáje (ingredientes africanos) e em seguida apregar a folha na casa de cada um para que<br />
Olorum tenha compaixão dos moradores desta cidade e isole todo o mal que recaiu sobre<br />
vocês.<br />
Imediatamente foi tudo feito conforme determinação de Obaluwaiyê. A cidade se<br />
normalizou, voltando a funcionar conforme antes da peste ter caído sobre ela. Na tribo de<br />
Obaluwaiyê já sabiam de tudo, porque a fama corria longe. Estavam bastante agoniados<br />
porque ele demorava de chegar. Um dia de segunda-feira, quando menos esperavam,<br />
Obaluwaiyê chegou na tribo de seus pais. Só por saberem que ele tinha chegado todos<br />
os doentes da peste se levantaram já curados.<br />
Foram com os seus próprios pés à entrada da tribo, esperarem Obaluwaiyê com uma<br />
grande manifestação. Daí por diante nunca mais teve uma epidemia tão grande e que<br />
durasse tanto tempo. Obaluwaiyê ficou na terra para cumprir com a determinação<br />
daquela voz que ele ouviu, que foi a voz de Olorum (a voz de Deus). Por este motivo<br />
todos dizem e têm a impressão de que Obaluwaiyê é um Orixá (santo) vivo, e é o<br />
verdadeiro dono da terra e de toda qualidade de peste deste mundo.<br />
<br />
95
HOMENAGEM<br />
Andréia Lisboa<br />
Um quarto de dores e desejos de tanto<br />
[sóis,<br />
Suportando por luares de preferência<br />
[de todos nós,<br />
Com o Axé e proteção de nossas<br />
[Grandes Mães.<br />
Um quarto de lua crescente e<br />
[aguerrida,<br />
Que germina a terra e engravida de<br />
[esperança<br />
Palavras mágicas, ecoantes de vozes<br />
[silenciadas.<br />
Um quarto de século de negros Poetas<br />
[e Poetisas,<br />
Rompendo com os séculos de<br />
[opressão<br />
Com sua verbosidade, garra e arte.<br />
Um quarto de século de Cadernos<br />
[Negros,<br />
Fonte viva das tessituras da nossa<br />
[memória,<br />
Contemplando e registrando nossa<br />
[cultura ancestral.<br />
PORTO SEM MAR<br />
Jônatas Conceição<br />
Como um rio que não deságua<br />
O porto desta cidade não me transporta.<br />
As cidades sendo como dois rios<br />
Que caminham mas não me encontram.<br />
Cá, nas campinas<br />
O porto inexiste não por faltar o mar<br />
Mas o amar.<br />
O porto da minha cidade<br />
Não me leva a um ponto salvador.<br />
O porto que gostaria que tivesse na minha cidade<br />
Carrego comigo, a procura de um mar.<br />
ORIKI - CADERNOS NEGROS<br />
Thaide<br />
aos 25 anos dos Cadernos Negros<br />
Guerra é o que nosso povo mais conhece.<br />
As guerras dos Palmares, a guerra de Canudos, as guerras das favelas, as<br />
guerras do dia-a-dia.<br />
As armas não eram suficientes para combater o inimigo e as baixas sempre<br />
<br />
96
formam enormes. Mas hoje é diferente; não é satisfatório, mas é diferente. Estamos<br />
combatendo com armas mais poderosas do que antes e com diversos calibres: Respeito,<br />
Auto-estima, Consciência, Inteligência, Informação. E essa guerra não vai terminar tão<br />
cedo, talvez nunca termine. Eu, como soldado desse exército, sempre saio em busca de<br />
munições e conquistas, mas antes de ir pra batalha, bebo na fonte que me aumenta o<br />
orgulho chamada Cadernos Negros, que me faz maior do que eu sou. Obrigado!<br />
LUANDA<br />
Adão Ventura<br />
Lavrar as palavras<br />
à maneira de Manuel Rui*<br />
- pentear-lhes as sílabas<br />
uma por uma,<br />
- se possível com um pente<br />
de metralhadora<br />
*Manuel Rui, um dos melhores textos da moderna literatura angolana<br />
TRAÇADO<br />
Márcio Barbosa<br />
O traço saído<br />
Ao crespo estilo<br />
Do teu cabelo<br />
Trançado e escuro<br />
Já mora em meu olho<br />
ZUMBI SALDO<br />
Elisa Lucinda<br />
Zumbi, meu Zumbi.<br />
Hoje meu coração eu arranco<br />
Zumbi hoje eu fui ao banco<br />
E ainda estou presa<br />
Escuto os seus sinos<br />
e ainda estou presa na senzala Bamenrindus<br />
Presa definitivamente<br />
Presa absolutamente<br />
à minha conta<br />
corrente.<br />
UM FATO<br />
Cuti<br />
Há poetas negros<br />
cujas palavras<br />
tão alvas<br />
na página se confundem<br />
com o fundo.<br />
<br />
97
RETRATAÇÂO<br />
Adão Ventura<br />
Bela<br />
desejável<br />
atraente<br />
mulher<br />
mulher negra<br />
negra mulher<br />
oprimida<br />
tangenciada<br />
traída e<br />
enxovalhada,<br />
usada.<br />
manipulada<br />
mulher<br />
submissão<br />
negra,<br />
inferiorização<br />
CABELOS QUE NEGROS<br />
Oliveira Silveira<br />
Cabelo carapinha,<br />
engruvinhado, de molinha,<br />
que sem monotonia de lisura<br />
mostra-esconde a surpresa de mil<br />
espertas espirais,<br />
cabelo puro que dizem que é duro,<br />
cabelo belo que eu não corto à zero,<br />
não nego, não anulo, assumo,<br />
assino pixaim,<br />
cabelo bom que dizem que é ruim<br />
e que normal ao natural<br />
fica bem em mim,<br />
fica até o fim<br />
porque eu quero,<br />
porque eu gosto,<br />
porque sim,<br />
porque eu sou<br />
pessoa, porque sou<br />
pessoa negra e vou<br />
ser mais eu, mais neguim<br />
e ser mais ser<br />
assim.<br />
o peito latente<br />
clama<br />
a boca tapada<br />
geme<br />
o coração magoado<br />
anseia<br />
e luta<br />
e sonha<br />
e espera<br />
<br />
98
QUEBRANTO<br />
Cuti<br />
às vezes sou o policial<br />
que me suspeito<br />
me peço documentos<br />
e mesmo de posse deles<br />
me prendo<br />
e me dou porrada<br />
às vezes sou o zelador<br />
não me deixando entrar<br />
em mim mesmo<br />
a não ser<br />
pela porta de serviço<br />
às vezes sou o meu próprio delito<br />
o corpo de jurados<br />
a punição que vem com o veredito<br />
às vezes sou o amor<br />
que me viro o rosto<br />
o quebranto<br />
o encosto<br />
a solidão primitiva<br />
que me envolvo com o vazio<br />
às vezes as migalhas do que<br />
sonhei e não comi<br />
outras o bem-te-vi<br />
com olhos vidrados<br />
trinando tristezas<br />
um dia fui abolição que me<br />
lancei de supetão no espanto<br />
depois um imperador deposto<br />
a república de conchavos no coração<br />
e em seguida<br />
uma constituição que me promulgo<br />
a cada instante<br />
também a violência dum impulso<br />
que me ponho do avesso<br />
com acessos de cal e gesso<br />
chego a ser<br />
às vezes faço questão<br />
de não me ver<br />
e entupido com a visão deles<br />
me sinto a miséria<br />
concebida como um<br />
eterno começo<br />
<br />
99
fecho-me o cerco<br />
sendo o gesto que me nego<br />
a pinga que me bebo<br />
e me embebedo<br />
o dedo que me aponto<br />
e denuncio<br />
o ponto em que me entrego.<br />
às vezes!...<br />
TOTONHA<br />
Marcelino Freire<br />
Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em<br />
quê? Não quero aprender, dispenso.<br />
Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito.<br />
De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu,<br />
aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?<br />
O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o valelingüiça.<br />
Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo? Demente<br />
como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que<br />
eu. A química.<br />
Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco<br />
da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?<br />
Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o<br />
meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem<br />
melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?<br />
Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de<br />
tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa<br />
paciência!<br />
Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí ficar<br />
contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me diga<br />
honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do<br />
nome não conta?<br />
No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui<br />
todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo<br />
de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.<br />
Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não<br />
tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem<br />
sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?<br />
Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa<br />
saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever.<br />
Ah, não vou.<br />
<br />
100
MÚSICAS<br />
QUADRO NEGRO<br />
Simples Rap’ortagem<br />
Acordei de um longo sono, a intensa luz quase me cega<br />
É preciso revelar o que se nega<br />
Se a vida é uma escola toda escola tem seu quadro<br />
Quadro negro, formato quadrado<br />
Nele reescrevo a minha história, faço um diário<br />
Na minha lista negra só tem revolucionário<br />
Marias guerreiras das periferias você tem que ver<br />
Os guerreiros do passado e os atuais do MST<br />
Os homossexuais que resistem com dignidade<br />
Crioulos e indígenas que adentram as faculdades<br />
Se o escuro é feio minha poesia é imunda<br />
Das nuvens mais negras cai água límpida e fecunda<br />
E por falar em água, me vem na lembrança<br />
O quadro negro na verdade tem a cor da esperança<br />
Que caia um temporal sem pedir licença<br />
E faça desabar essas velhas crenças<br />
Visões estúpidas, espalhadas pelo mundo<br />
Que associou a cor preta a tudo que é imundo<br />
O negro discrimina o próprio negro sim<br />
Se aquele que apontas como negro não se acha assim<br />
Cresceu aprendendo que ser negro é feio<br />
Se é tudo de ruim quem é que quer andar no meio?<br />
Quem escreveu a história do negro nesse país?<br />
Basta ver a cor do giz<br />
Os Reis Faraós do Egito hoje mumificados<br />
Se tirassem suas faixas pudessem ser ressuscitados<br />
Saberia dizer a cor da pele deles sem engano?<br />
Quer uma pista: Egito é um país africano<br />
Não adianta sabermos que não existe raça<br />
Se o conceito predomina e representa ameaça<br />
O hip-hop não nega a mestiçagem, porém<br />
Sabe que ela não trouxe igualdade pra ninguém<br />
Tá vendo o que a herança racista ofereceu?<br />
Se existia escravidão entre africanos antes dos europeus<br />
Era com sentido diferente do que se viu<br />
Não eram vendidos, não tinha caráter mercantil<br />
As tribos guerreavam o grupo perdedor assume<br />
Rendição por questão de honra, de costume<br />
Se há uma cor do pecado ela chegou de mansinho<br />
Espalhando discórdia e ambição pelo caminho<br />
Sua ciência e religião assim disseram com toda calma<br />
É inferior! Pode escravizar que não tem alma<br />
A cor da paz cometeu holocausto aos judeus<br />
Barbárie na inquisição em nome de Deus<br />
Nas Américas, índios foram dizimados<br />
Mas quem sobreviveu está criando um novo quadro<br />
Se na prova der branco na memória<br />
<br />
101
Vamos denegrir a sua mente com a nossa história<br />
A luz do sol ofusca a visão<br />
E a beleza da lua só é possível com a escuridão<br />
A luta pelas cotas não anula a luta pela melhora<br />
Da qualidade de ensino público, tu ignora<br />
Pelo contrário, quanto mais negros na academia<br />
Muito mais força pra se lutar por um novo dia<br />
Racismo, o que mais me causa espanto<br />
Não se encara como problema do branco<br />
Mas entre esses, há os que lutam pelo seu fim<br />
“ah se todo branco fosse assim”<br />
Branquitude, pouco se ouve falar<br />
O que explica o privilégio que sua etnia pode conquistar?<br />
Pra quem nasceu em berço de ouro é difícil entender<br />
Que não é só porque seus pais fizeram por merecer<br />
Foram anos de exploração no passado pra que um dia<br />
A sociedade fosse estruturada a favor de uma minoria<br />
Há os que não admitem cotas julgando serem injustas<br />
Outros julgando serem esmolas, tudo isso me assusta<br />
Pergunto quanto custa superar o engano?<br />
Quanto custa ignorar os direitos humanos?<br />
Muita coisa bonita garante a Constituição<br />
Se esquecida ou ignorada precisa de afirmação<br />
Pretos e brancos são iguais, e daí? Se a norma<br />
Nem no cemitério são tratados da mesma forma<br />
Entenda agora o que são ações afirmativas<br />
Medidas pontuais, alternativas<br />
Medidas passageiras que vem afirmar<br />
Pra sociedade, que há, desigualdades, a reparar<br />
Dos que vivem abaixo da linha da pobreza<br />
70% são negros, que beleza!<br />
Do total de universitários brasileiros<br />
97% são brancos e herdeiros<br />
De uma política que patrocinou para embranquecer a raça<br />
A vinda de 4 milhões de estrangeiros, o tempo passa!<br />
Tudo isso, em 30 anos irmão<br />
Foi o que se trouxe de negros, em 3 séculos de escravidão<br />
Patrocínio com recurso público, o negativo<br />
Para os escravos libertos nenhum tipo de incentivo<br />
Nos mataram, exploraram e depois largaram a toa<br />
Sem emprego, casa, comida, só disseram: vai, voa!<br />
Sem asas e quem sobreviveu tá por um triz<br />
Amontoados nas favelas de todo país<br />
Quantos brancos moram lá? Cê conta no dedos<br />
Agora entenda porque cotas para negros<br />
Refrão<br />
Eu quero bonecas, anjos, apresentadores pretos e pretas<br />
Empresários, juízes, modelos, doutores pretos e pretas<br />
Se querer é uma faceta<br />
Eu quero, desejo, uma elite preta<br />
Uma coisa é pedir outra é conquistar respeito<br />
<br />
102
O fruto de uma conquista dá-se o nome de direito<br />
Olhe pra minha cor, olhe pra nossa luta<br />
Nem esmola nem favor se desigual é a disputa<br />
Entre quem sempre teve privilégio de estudar<br />
Com ensino de qualidade em escola particular<br />
E querer comparar com ensino público e a situação<br />
Tele-aula, aceleração<br />
Vestibular pra faculdade pública o esquema é raro<br />
Com cotas ou não só entra quem tem preparo<br />
Não serão as cotas que terão o privilégio de inaugurar<br />
A presenças de alunos educados pra manguear<br />
Vestibular das particulares tomou a frente, foi mais ligeiro<br />
Freqüentemente só basta ter dinheiro<br />
Quem concorrer pelas cotas vai se deparar legal<br />
Com uma concorrência enorme mas não desleal<br />
Desleal é a condição que o jovem negro encara<br />
Fusca para ele, Ferrari para os de pele clara<br />
Competirem com as mesmas regras, maldade<br />
É isso que eles chamam de igualdade<br />
Engraçada essa gente da estética<br />
Ter instrução em excesso nunca foi sinal de ética<br />
Será mesmo a suposta elevação intelectual<br />
Que garantirá a formação, de um bom profissional?<br />
Não subestime a inteligência dos excluído desse milênio<br />
A faculdade do crime só tem gênio<br />
A elite é quem decide em âmbito nacional<br />
Se nossa inteligência será usada para o bem ou para o mal<br />
Tanto tempo buscando debate ninguém se importou<br />
A cota de tolerância do meu povo já se esgotou<br />
A Simples Rap’ortagem revela para o Brasil<br />
Com cotas ou não vestibular é funil<br />
Com cotas ou não vestibular é peneira<br />
Quem concorrer pelas cotas mas não for bom vai levar rasteira<br />
Que vença o melhor...chega a ser hilário<br />
A prova é uma só os concorrentes que são vários<br />
Quem se afirmou, como provar se é negro ou não?<br />
De uma vez por toda pra se resolver a questão<br />
O cassetete da PM tem dispositivo de elite<br />
Nunca erra quem é negro, acredite!<br />
Refrão<br />
Cuidado quando alguém te incita<br />
A ir a um show onde só tem gente bonita<br />
Olhe sempre com reservas, pra mim o que interessa<br />
É saber que gente bonita é essa<br />
Analise os termos que deixaram pra gente<br />
Entre pardo e mulato qual o mais indecente?<br />
Qual o menos prejudicial?<br />
Ter a identidade de mula ou de pardal<br />
Mas pêra aê, veja que pirraça<br />
Pardal não é aquele passarinho que não tem raça?<br />
Que perambula pelas praças, dizem sem valor<br />
Pássaro sem vocação pra cantor<br />
<br />
103
Vira-lata, a mula é um animal<br />
Mão de obra barata, estéril, irracional<br />
Só serve para o trabalho mas não para produzir<br />
E aí cumpade, tu se encaixa mesmo aqui?<br />
Nem parda, nem mulata eu me defino politicamente<br />
Sou negra, ou se quiser afro-descendente<br />
Cuidado, que eu tô em pele de cordeiro<br />
Do tipo que da coice, afro-brasileiro<br />
Deveria ser executado com um tiro de bazuca<br />
O criador do personagem “negra maluca”<br />
Eu sou sério demais? Não vá se preocupar<br />
Herdei da minha gente o talento pra contrariar<br />
Contrariando, tu vai sim me ver sorrindo<br />
Mas o hip-hop superou o discurso do “negro é lindo!”<br />
A quem interessa? Eu digo a quem pensou<br />
Que eu seria só mais um com vocação pra tambor<br />
Se respeito é bom, não nos leve a mal<br />
Quem vos fala é um skatista, uma pedagoga e cientista social<br />
Da Universidade Federal da Bahia<br />
Detalhe, quem diria, na terra do “é só alegria!”<br />
Se denegrir é tornar negro irmão<br />
Vamos denegrir a faculdade de comunicação<br />
De direito e muito mais<br />
Vamos denegrir os órgãos oficiais<br />
Refrão<br />
A manchete da Simples Rap’ortagem estampa<br />
Um novo quadro negro se levanta<br />
Há muito a ser contado sobre os nossos ancestrais<br />
Não deixar passar em branco, tarefa nossa rapaz<br />
Se ligue, há muito a ser feito<br />
O importante nego é fazer do nosso jeito<br />
(http://www.youtube.com/watch?v=dtZC86NZYpk)<br />
ALIENAÇÃO<br />
Ilê Aiyê (Mario Pam & Sandro Teles)<br />
Se você está a fim de ofender<br />
É só chamá-lo de moreno pode crê<br />
É desrespeito a raça é alienação<br />
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamado de negão (2 x = feminino)<br />
A consciência é o objetivo principal<br />
Eu quero muito mais<br />
Alem de esporte e carnaval, natural.<br />
Chega de eleger aqueles que tem<br />
Se o poder é muito bom<br />
Eu quero poder também<br />
(refrão)<br />
<br />
104
O sistema tenta desconstruir<br />
lhe afastar de suas origens<br />
Pra que você não possa interagir, construir.<br />
Já passou da hora de acordar<br />
Assumir sua negritude é vital para prosperar<br />
Ser negro não é questão de pigmentação<br />
É resistência para ultrapassar a opressão, sem<br />
pressão.<br />
Lutar sempre igualdade e humildade<br />
Vou subir de Ilê Aiyê<br />
E mudar toda cidade<br />
<br />
105
Sobre as Autoras<br />
Letícia Maria de Souza Pereira<br />
Mestre em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras e<br />
Lingüística da Universidade Federal da Bahia (UFBA), graduação<br />
em Letras Vernáculas (bacharel e licenciada) pela UFBA. Vicecoordena,<br />
desde 2005, o Programa Conexões de Saberes: diálogos<br />
entre a universidade e as comunidades populares (PROEXT-<br />
UFBA/SECAD-MEC) e participa do projeto de pesquisa<br />
EtniCidades: intelectuais e escritores/as negros/as pelo Instituto de Letras da UFBA.<br />
Fabiana de Lima Peixoto<br />
Possui Mestrado em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro (2001) e graduação em Letras pela<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995). Atualmente, é<br />
professora titular do Colégio Pedro II (RJ) e doutoranda em Estudos<br />
Étnicos e Africanos (Centro de Estudos Afro-orientais, UFBA). Tem<br />
experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira<br />
e Literatura afro-brasileira, atuando principalmente nos seguintes<br />
temas: afrodescendências; memórias orais, identidades culturais,<br />
formação de leitores, literatura brasileira, literaturas africanas de<br />
língua portuguesa e literatura afro-brasileira.<br />
<br />
106