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LITERATURA BRASILEIRA E LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

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Segundo a Lei n. 10.639/03, todas as escolas brasileiras da educação básica,<br />

privadas ou públicas, precisam incorporar em suas práticas a diversidade étnica de<br />

seu país. Porém, muito antes da implementação da lei, encontrávamos registros de<br />

ações individuais ou coletivas, realizadas pelos movimentos sociais. Cientes que<br />

nossas práticas precisam superar o âmbito da denúncia, a intenção deste Módulo de<br />

literatura afro-brasileira é efetivar ações que modifiquem o cenário de exclusão e<br />

inferiorização da comunidade negra. Nossas ações precisam envolver todos os<br />

atores da escola (secretarias de educação, diretores(as), professores(as),<br />

alunos(as), funcionários(as) e a comunidade) e requerem também uma pesquisa de<br />

qualidade e sua inclusão no projeto pedagógico da escola.<br />

Nesta unidade, discutiremos sobre o papel da literatura na construção da nação<br />

brasileira e refletiremos sobre as representações dos afro-brasileiros e africanos na<br />

literatura.<br />

<br />

<br />

<strong>LITERATURA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong><br />

E <strong>LITERATURA</strong> <strong>AFRO</strong>-<strong>BRASILEIRA</strong><br />

Tópico 1 - Literatura Brasileira e Literatura Afro-brasileira<br />

São objetivos desta unidade:<br />

• Analisar como a Literatura Brasileira representa os africanos e seus<br />

descendentes;<br />

• Refletir sobre as representações estereotipadas no tocante à população<br />

negra.<br />

Vamos começar a refletir sobre literatura negra?<br />

<br />

9


Tópico 1 – Literatura brasileira e literatura afro-brasileira<br />

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<br />

A literatura possui papel preponderante na constituição de um<br />

discurso de homogeneização nacional, constituindo-se como um<br />

dos imaginários de um território nacional, desenhando perfis,<br />

transmitindo idéias e valores que irão compor discursos oficiais e<br />

extra-oficiais de uma nação específica.<br />

No intuito de delimitar o patrimônio artístico-cultural de cada país,<br />

pelo menos desde fins do século XV, nações européias elegem<br />

obras literárias consideradas clássicas dos seus idiomas oficiais.<br />

Posteriormente, as novas nações americanas, nascidas sob o<br />

jugo da colonização européia, seguiram o mesmo caminho,<br />

canonizando obras literárias, que acabaram por se transformar<br />

em representantes dos traços característicos de cada nação. Na<br />

verdade, traços específicos, imaginados como verdadeiros e<br />

autênticos dentro de cada projeto de nação. Essa imaginação<br />

nacional, no caso da produção literária brasileira, implica<br />

sobretudo representações de diferentes grupos étnico-raciais.<br />

Em relação a países da América Latina, que ingressaram no<br />

cenário da modernidade ocidental a partir do projeto europeu de<br />

colonização, o jugo de determinados grupos étnico-raciais tornase<br />

um processo intimamente ligado a uma subalternidade que se<br />

estende desde o período de dominação européia direta. Dessa<br />

forma, grupos tomados como a degenerescência do projeto<br />

europeu de civilização, sejam descendentes de africanos<br />

escravizados ou indígenas e índio-descendentes, são rebaixados<br />

à condição de subalternos, tanto em termos físicos quanto nos<br />

níveis social, cultural, intelectual ou político.<br />

<br />

10


Tal processo de subalternização perpassa por diversas<br />

instituições sociais que constituem um Estado-nação, dentre elas<br />

uma que nos interessa mais de perto: a escola. No artigo The<br />

Nation Form: History and Ideology [A forma nação: história e<br />

ideologia], Étienne Balibar 1 contextualiza a estreita correlação<br />

histórica entre formação nacional e desenvolvimento da escola<br />

enquanto instituição popular, ou seja, não restrita à educação e<br />

cultura das elites. Nesse processo, a escola se torna a instituição<br />

principal na produção de etnicidade baseada em uma comunidade<br />

lingüística comum, sendo decisiva não só na oficialização da<br />

língua nacional, como também na transformação do idioma<br />

materno 2 em realidade afetiva e identitária para cada indivíduo.<br />

Dessa forma, a ambígua realidade idiomática, a um só tempo<br />

individual e coletiva, será um dos meios pelos quais a identidade<br />

nacional se constituirá, utilizando um código comum, por sob as<br />

diferenças lingüísticas de classe, geração, grupos profissionais,<br />

grupos étnicos, entre outras.<br />

Embora uma comunidade de língua não seja suficiente para,<br />

sozinha, produzir etnicidade, o encaminhamento teórico de<br />

Balibar coloca em questão algo que interessa de perto às<br />

reflexões deste módulo, levando-nos a olhar criticamente um<br />

ensino de literatura que tem excluído as textualidades negras,<br />

sejam elas afro-brasileiras ou africanas, além de questionar o<br />

nosso papel como professor de língua materna, no caso<br />

brasileiro, do professor de língua portuguesa ou de qualquer outra<br />

disciplina, como agente do processo de legitimação de<br />

determinadas narrativas nacionais.<br />

Estudos sobre historiografia literária têm demonstrado que o<br />

processo de eleição dos clássicos literários se relaciona ao ensino<br />

formal da literatura, é importante questionar em que medida os<br />

professores de língua materna no Brasil têm reproduzido uma<br />

perspectiva limitadora de nossa nação ao ensinarem<br />

acriticamente uma excludente história da literatura brasileira, em<br />

<br />

11


circulação tanto nos manuais didáticos mais usados quanto nas<br />

salas de aula.<br />

No Brasil do século XIX, o indianismo romântico pode ser visto<br />

como a primeira tentativa intelectual sistematizada de, no plano<br />

metafórico da literatura, representar o que se entendia por nossa<br />

especificidade nacional, construída pelo apagamento do papel de<br />

grupos étnico-raciais não ocidentais. Dessa maneira, excluindo a<br />

mão-de-obra africana escravizada dessa representação e<br />

construindo literariamente o indígena de maneira europeizada, o<br />

indianismo deu forma, ainda na primeira metade do século XIX, a<br />

uma concepção de Brasil caracterizada por um harmonioso<br />

relacionamento étnico, pois subtraía da tessitura textual-literária<br />

as violências sofridas pelos grupamentos africanos e indígenas no<br />

processo histórico da colonização brasileira. O amparo que a<br />

literatura indianista recebeu do público letrado da época traduz<br />

plenamente a função ideológica dessa interpretação das relações<br />

étnico-raciais no Brasil.<br />

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A importância estratégica da<br />

supervalorização do indígena na<br />

literatura brasileira do século XIX<br />

revela o viés excludente da tradição<br />

literária brasileira, cujo movimento<br />

canonizado como principal 3 <br />

<br />

se<br />

comprometeu a criar uma idéia de nação que ignorava os nossos<br />

problemas sociais e acabava por velar nossas desigualdades<br />

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sociais e étnicas, através do tom exótico ao representar o nativo 4 ,<br />

concebido como o antepassado mítico dos brasileiros.<br />

A face conservadora do indianismo romântico pode ser<br />

apreendida quando se percebe que a visão européia restringiu a<br />

representação do índio, definindo-a segundo parâmetros da<br />

imaginação do ocidente.<br />

Assim, de modo semelhante ao mecanismo da (re)invenção dos<br />

selvagens pelos cronistas europeus do século XVI, reafirma-se,<br />

com o indianismo, a visão exógena, comprometida com a<br />

perspectiva européia de mundo. Além disso, ignora a presença de<br />

africanos nessa imaginação de nação brasileira. Perpetua-se,<br />

portanto, o racismo, já que, no plano da imaginação literária,<br />

naturalizam-se relações sociais desiguais, injustas e baseadas,<br />

inclusive, no extermínio físico, cultural e imaginário de grupos<br />

étnico-raciais subalternizados. A partir do que foi demonstrado,<br />

pode-se perceber que a passagem da literatura colonial para a<br />

pós-colonial, no Brasil, não significou mudança radical de<br />

enfoque, pois a medida e o olhar continuaram ainda a ser<br />

europeus.<br />

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Acreditando na existência de diferenças ontológicas entre as<br />

etnias, capazes de determinarem as características físicas e<br />

psicológicas dos seres humanos — cuja divisão hierárquica<br />

tomava como parâmetro a etnia branco-européia — estudiosos<br />

brasileiros responsabilizavam, por um lado, a união de diferentes<br />

<br />

13


grupos étnico-raciais pelo atraso do país − caso, por exemplo, do<br />

médico legista baiano Nina Rodrigues, cujas idéias concebiam a<br />

mestiçagem como degradação; todavia, por outro lado,<br />

representavam-na como a marca essencial da nossa brasilidade −<br />

caso da singular interpretação do Brasil feita pelo historiador<br />

literário Sílvio Romero 5 , que acreditou na possibilidade de a<br />

mistura étnica ser positiva para o Brasil.<br />

O antropólogo Kabengele Munanga, no livro Rediscutindo a<br />

mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade<br />

negra, argumenta que a mistura étnico-racial só era considerada<br />

positiva, para Silvio Romero, porque resultaria na<br />

homogeneização da sociedade brasileira a partir do<br />

desaparecimento dos segmentos étnico-raciais negros e<br />

indígenas, que se diluiriam na predominância biológica e cultural<br />

branca.<br />

Na visão do intelectual de fins do século XIX, a seleção natural<br />

faria prevalecer na mestiçagem, após algumas gerações, o tipo<br />

racial mais numeroso, no caso do Brasil, segundo ele, a raça<br />

branca. O arcabouço do pensamento de Romero leva então a<br />

uma visão otimista, segundo os parâmetros das elites letradas da<br />

época, pois interpreta a cultura brasileira mestiça como em vias<br />

de embranquecimento. O fundamento de tal ideologia parece,<br />

portanto, óbvio: a inferioridade e o conseqüente apagamento dos<br />

grupos étnico-raciais não-brancos.<br />

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Nesse sentido, a quase total ausência, nas salas de aula, da<br />

produção literária em que vozes negras articulem sentidos sobre<br />

sua própria condição social pode ser vista como a perpetuação<br />

dessa representação de Brasil. O que se observa na produção<br />

editorial dirigida à escola é a obliteração da problemática racial<br />

nos poucos escritores negros que têm suas literaturas analisadas,<br />

além da minimização dos papéis das representações<br />

estereotipadas ou animalizadas dos negros em obras literárias<br />

que fazem referência a teorias raciais ou discutem as<br />

especificidades das relações entre os diferentes grupos étnicoraciais<br />

no Brasil, caso de parte da produção literária de Machado<br />

de Assis, Cruz e Souza, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Mário<br />

de Andrade, Jorge Amado, entre tantos outros.<br />

Trabalhar a historicidade do texto literário tem significado,<br />

portanto, na Escola Básica brasileira, tratá-lo em uma linha de<br />

tempo linear-cronológica, desde o século XVI até o século XX,<br />

reproduzindo a organização tradicional dos estudos em estilos de<br />

época, seus autores e obras mais representativos. Organizado<br />

dessa forma, nosso ensino reduz tanto o multiperspectivismo<br />

próprio do texto literário quanto a concepção de história literária,<br />

ao compreender a literatura como uma naturalizada sucessão de<br />

estilos, períodos ou movimentos literários.<br />

O reducionismo desse tipo de concepção se torna ainda mais<br />

complexo, porque, sob tal quadro cronológico, surgindo como um<br />

fundamento da escolha da maioria dos autores e obras<br />

canonizados, encontra-se um projeto de nação limitador, marcado<br />

pela amenização de tensões sociais que possam levar a lembrar<br />

a violência sofrida por grupos étnico-raciais sujeitados, dizimados<br />

ou silenciados no decorrer de nossa história.<br />

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Dentro do contexto aqui apresentado, a literatura brasileira em<br />

seu termo abrangente – todas as formas literárias produzidas no<br />

Brasil – não tem representado, em equidade, todos os grupos<br />

étnicos que compõem o país, nem os conflitos nem a<br />

complexidade cultural de cada um deles. E, principalmente, não<br />

dá conta dos escritores negros e de suas produções, mantendoos<br />

fora dos cânones e das salas de aulas.<br />

Levando em consideração as questões até aqui apresentadas, os<br />

estudos literários voltados para textualidades negras ou afrobrasileiras<br />

suprimidas de nossa tradição literária lidam com, pelo<br />

menos, duas perspectivas metodológicas: por um lado, uma<br />

análise das representações negativas ou estereotipadas do negro<br />

na literatura brasileira; por outro, uma preocupação por inserir a<br />

produção literária afro-brasileira, que contempla a opressão<br />

cotidiana das populações negras no Brasil, implicando, além de<br />

matrizes culturais africanas, contradições sociais por elas<br />

vivenciadas, em decorrência sobretudo do racismo.<br />

Uma observação do romance de Mário de Andrade Macunaíma<br />

um herói sem nenhum caráter, por exemplo, pode demonstrar o<br />

quanto uma obra canonizada como uma das mais importantes do<br />

Modernismo brasileiro, tradicionalmente conhecida como<br />

representante de um nacionalismo crítico em oposição ao<br />

nacionalismo ufanista dos escritores românticos, é construída,<br />

todavia, a partir da representação negativa do negro e do<br />

indígena.<br />

O herói civilizador sem nenhum caráter nasce preto retinto em<br />

tribo indígena; adulto, toma banho em uma cova de água<br />

encantada, embranquecendo. Entretanto, os irmãos Jiguê e<br />

Maanape, ao se lavarem na cova encantada, não tiveram o<br />

mesmo destino, ficando o primeiro cor de bronze e o último preto,<br />

somente com as palmas dos pés e das mãos vermelhas, devido à<br />

<br />

16


sujeira e à quantidade ínfima de água na cova. O fragmento que<br />

narra a transformação física dos irmãos é bem significativo de<br />

como as relações étnico-raciais são tratadas na narrativa:<br />

Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do<br />

pezão do Sumé. Porém a água já estava suja da negrura do<br />

herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando<br />

água para todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze<br />

novo. Macunaíma teve dó e consolou:<br />

_ Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foise<br />

e antes fanhoso do que sem nariz.<br />

Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara a água<br />

encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e<br />

Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos.<br />

Por isso ficou negro bem filho da tribo Tapanhumas. Só que as<br />

palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se<br />

limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou:<br />

_ Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais sofreu<br />

nosso tio Judas! (Macunaíma, p. 37)<br />

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Trabalhada como um milagre, a<br />

metamorfose física do herói e de<br />

seus dois irmãos é uma construção<br />

ficcional de um dos traços que tem<br />

tradicionalmente caracterizado o<br />

brasileiro, mestiço por excelência.<br />

Dessa forma, mesmo com tonalidades de pele diferentes são —<br />

tanto os personagens do romance quanto os próprios brasileiros<br />

— representados como irmãos. A valorização de uma mestiçagem<br />

harmoniosa, caracterizada pela ausência aparente de tensão<br />

entre os diferentes grupos étnicos, está explícita nesse episódio.<br />

Todavia, as falas do herói demonstram o desejo latente de<br />

embranquecimento, na medida em que concebe o “pretume”<br />

como um defeito ou um intenso sofrimento, respectivamente,<br />

construindo de forma explícita uma representação pejorativa do<br />

brasileiro negro.<br />

<br />

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Além do discurso nacionalista baseado na união harmoniosa de<br />

distintos grupos étnico-raciais, a construção dos personagens<br />

baseada em estereótipos também é uma das marcas do romance<br />

de Mário de Andrade. O capítulo “Macumba” pode ser lido,<br />

inclusive, como um fragmento que congrega, ao máximo,<br />

representações estereotipadas e negativas de culturas de<br />

matrizes africanas. De acordo com o enredo do romance, o herói,<br />

na busca do amuleto que se perdeu e de destruir o seu principal<br />

inimigo, usa uma série de estratégias para recuperá-lo, dentre<br />

elas a ida a um ritual de candomblé.<br />

Talvez com o intuito de trabalhar o sincretismo religioso brasileiro,<br />

intimamente relacionado à ideologia da mestiçagem, a qual<br />

concebe a cultura como una, todavia composta por diversidades<br />

étnicas que se somam harmonicamente, Mário cria ficcionalmente<br />

um terreiro de candomblé que representa um verdadeiro inferno<br />

na terra, mundo da animalidade e dos baixos instintos. Situada no<br />

Rio de Janeiro, a casa da Tia Ciata é o lugar onde acontece a<br />

orgia ritualística dedicada a Exu-Diabo 6 .<br />

De acordo com o estudioso de cultos africanos Pierre Verger 7 ,<br />

Exu, intermediário entre os homens e os deuses, é um orixá de<br />

múltiplos e contraditórios aspectos, revelando-se o mais humano<br />

entre eles, nem completamente mau, nem completamente bom.<br />

Como dono da encruzilhada, Exu revela um lado favorável e um<br />

lado caótico, incorporando em si a ambigüidade, as múltiplas<br />

identidades. Entretanto, devido ao viés astucioso e sensual com<br />

que é caracterizado na cosmogonia africana, missionários<br />

católicos europeus fizeram dele símbolo de tudo o que é maldade,<br />

comparando-o ao Diabo.<br />

O capítulo “Macumba” deixa de lado a ambivalência da divindade,<br />

construindo-a apenas como Diabo; por isso, Exu, no episódio, só<br />

concede os pedidos pernósticos de seus fiéis e se porta como um<br />

pai espiritual do “herói sem nenhum caráter”, que se vinga de<br />

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Venceslau Pietro Pietra, através dos poderes demoníacos desse<br />

orixá. A reza final dedicada a Exu, construída como paródia à<br />

prece “Padre Nosso”, reduz o culto afro-brasileiro a uma<br />

caricatura infernal do ritual católico:<br />

- Padre Exu achado nosso que vós estais no trezeno inferno da<br />

esquerda de baixo, nóis te quereremo muito, nóis tudo!<br />

- Quereremos! quereremos!<br />

- ... O pai nosso Exu de cada dia nos dai hoje, seja feita vossa<br />

vontade assim também no terreiro da sanzala que pertence pro<br />

nosso padre Exu, por todo o sempre que assim seja, amém!...<br />

Glória pra pátria jeje de Exu!<br />

- Glória pro fio de Exu!<br />

Macunaíma agradeceu. A tia acabou:<br />

- Chico-t era um príncipe jeje que virou nosso padre Exu dos<br />

século seculoro pra sempre que assim seja, amém.<br />

- Pra sempre que assim seja, amém! (Macunaíma, p. 63-64)<br />

O humor zombeteiro presente no capítulo “Macumba” é, portanto,<br />

a forma extremada de uma série de representações<br />

estereotipadas que perpassam pelo romance. Perceber<br />

representações negativas do negro na literatura é condição<br />

indispensável para compreender que há representações literárias<br />

positivas tanto dos afro-descendentes quanto das culturas e<br />

conhecimentos por eles produzidos. A literatura contemporânea<br />

que se auto-nomeia afro-brasileira produz uma perspectiva<br />

radicalmente oposta às visões correntes dos afro-descendentes<br />

na literatura que mais comumente tem circulado nas salas de aula<br />

do país.<br />

Acadêmicos brasileiros cuja produção tem se voltado para<br />

textualidades negras demonstram a ampliação identitária que o<br />

texto afro-brasileiro proporciona à sociedade, na medida em que<br />

joga com a possibilidade de deslizar produtivamente entre a<br />

tradição ocidental européia e tradições africanas aqui<br />

retrabalhadas.<br />

Dentro de tal processo de deslizamento identitário, a mudança de<br />

referenciais do texto afro-brasileiro desnaturaliza um leitor<br />

fabulado como único no Brasil: branco e, quase sempre,<br />

<br />

19


masculino 8 . O escritor negro precisa lidar, portanto, com no<br />

mínimo duas contradições: não só ser exceção em seu meio<br />

social como escrever para leitores formados segundo parâmetros<br />

da tradição literária ocidental. O escritor e crítico literário Cuti<br />

esmiúça o drama vivido pelo autor negro que reivindica essa<br />

condição social, ao escrever para leitores negros, mestiços e<br />

brancos:<br />

A relação leitor/texto/autor, na literatura brasileira, implica quase<br />

sempre a invisibilidade do leitor negro. É, como no contexto social<br />

o foi por muito<br />

tempo, desconsiderado enquanto cidadão. A experiência do leitor<br />

negro ante o grande espectro da literatura nacional é a mesma de<br />

quem tivesse ouvindo uma conversa entre brancos, atrás da porta,<br />

do lado de fora. E só encontra uma saída: abstrair-se de sua<br />

concrecute e admitir, em si, o branco, enquanto autor, personagem<br />

principal e destinatário do discurso. Não se constitui como “leitor<br />

ideal” para os escritores brancos nem mesmo para os mestiços ou<br />

negros, inclusive a maioria dos modernos. Até que o escritor,<br />

sendo negro que escreve sem renegar sua experiência subjetivoracial,<br />

eleja-o em seu ato de criação. Nasce o interlocutor negro<br />

do texto emitido pelo “eu” negro, num diálogo que põe na<br />

estranheza, na condição de ausente, o leitor “branco”. [grifos do<br />

autor] 9<br />

Essa liberação da criação literária, sob a perspectiva étnico-racial<br />

do negro no Brasil, abre espaço não só para o intercâmbio com<br />

outras tradições culturais não legitimadas no ambiente escolar<br />

como também para uma discussão mais aprofundada dos lugares<br />

de privilégio reservados aos brancos brasileiros enquanto<br />

categoria social. Um ensino de literatura que promova o<br />

desbloqueio de vozes literárias tradicionalmente silenciadas<br />

possibilita ao educando estar no lugar, literalmente na pele do<br />

outro, apreendendo-lhe a dimensão humana.<br />

Dando continuidade às questões até aqui abordadas, na próxima<br />

Unidade, discutiremos a produção literária afro-brasileira, do<br />

século XIX até a contemporaneidade.<br />

<br />

20


Leituras sugeridas<br />

Concluímos a Unidade 1. Na próxima Unidade,<br />

discutiremos em pormenores a literatura denominada<br />

afro-brasileira e suas diferenças em relação à literatura<br />

canônica.<br />

FONSECA, Maria Nazareth. “Poesia Afro-brasileira: vertentes e feições”. In:<br />

http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm (artigos).<br />

SILVA, Luiz. “O leitor e o texto afro-brasileiro”. In: http://www.cuti.com.br/ensaios3.htm<br />

Para saber mais<br />

CAMARGO, Oswaldo. O negro escrito: apontamentos sobre a presença do negro na<br />

Literatura Brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1987.<br />

FONSECA, Maria Nazareth. “Poesia Afro-brasileira: vertentes e feições”. In:<br />

http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm (artigos).<br />

SOUZA, Florentina. “Literatura Afro-brasileira: algumas reflexões”. In:<br />

http://www.palmares.gov.br/_temp/sites/000/2/download/revista2/revista2-i64.pdf<br />

OLIVEIRA, Sílvio. “Séculos de Arte e Literatura Negra”. In: LIMA, Maria Nazaré e SOUZA,<br />

Florentina (Org.). Literatura Afro-brasileira. Salvador: CEAO / Brasília: Fundação Cultural<br />

Palmares, 2006. (p. 39 – 76).<br />

BARRETO, Lima. Os melhores contos. São Paulo: Martin Claret, 2003.<br />

BERND, Zilá. Introdução à Literatura Negra. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988.<br />

______. Literatura e identidade nacional. 2ª. Ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. p.<br />

103-123.<br />

DUARTE, Eduardo de A. “Literatura e Afro-descendência”. In:<br />

http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm (tópico artigos).<br />

FREITAS, Celi. “Lima Barreto: um intelectual negro na avenida central”. In:<br />

http://www2.uerj.br/~intellectus/textos/Celi.pdf.<br />

JESUS, Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Livraria<br />

Francisco Alves, 1960.<br />

<br />

21


LIMA, Maria Nazaré e SOUZA, Florentina (Org.). Literatura Afro-brasileira. Salvador: CEAO,<br />

Brasília: Fundação Palmares, 2006.<br />

MARGARIDO, Alfredo. Estudo sobre literatura das nações africanas de língua portuguesa.<br />

Lisboa: a regra do jogo, 1980.<br />

SANTOS, Jean Carlos Ferreira. “Saber, beleza e arte em Carolina Maria de Jesus”. In:<br />

http://www.palmares.gov.br/sites/000/2/download/revista2/revista2-i96.pdf<br />

Material de apoio<br />

Convite ao livro Clara dos Anjos – Lima Barreto<br />

http://www.youtube.com/watch?v=hBQyvJaMbOI<br />

Canção para Solano Trindade<br />

http://www.youtube.com/watch?v=L8YmtGkX5LE&feature=related<br />

Filmes<br />

“Cruz e Sousa – poeta do desterro” de Sylvio Back<br />

Documentário “Carolina” de Jeferson De, 2003.<br />

“Macunaíma” de Joaquim Pedro de Andrade, 1969.<br />

“Alma no olho” de Zózimo Bulbul, 1973.<br />

Enquanto isso, na sala de aula...<br />

A necessidade de uma revisão da<br />

historiografia literária se faz urgente<br />

e sistemática, no tocante às<br />

representações simbólicas da<br />

população negra, especialmente, no<br />

contexto da sala de aula. Pensamos<br />

algumas estratégias de práticas<br />

pedagógicas e convidamos os<br />

professores e professoras a<br />

<br />

experimentarem outras; aos<br />

<br />

professores(as) que já realizam<br />

ações na perspectiva da lei 10.639/03, que socializem suas experiências, pesquisas e/ou<br />

produzam materiais didáticos que contemplem a dimensão étnicorracial na escola.<br />

Uma das estratégias sugeridas é contrapor as representações da literatura brasileira<br />

canônica com outros modos de representação - a exemplo a produção literária afrobrasileira,<br />

evidenciando as versões que contemplem a diversidade étnicorracial e cultural<br />

brasileira. Os professores de língua portuguesa, por vezes, enfrentam o desafio de<br />

<br />

22


trabalhar obras específicas (cumprindo o projeto pedagógico da escola) no qual os negros<br />

não aparecem, ou, quando são inseridos nas narrativas, é em posição de subalternidade. O<br />

importante, nesse caso, é ter professores atentos e capacitados para desconstruir essas<br />

representações para que, no processo, possam aproveitar para problematizar junto a<br />

seus(suas) alunos(as) as mais diversas situações encontradas.<br />

Na perspectiva das discussões desta Unidade, propomos um trabalho com o livro “Vítimas<br />

Algozes” (1869), de Joaquim Manoel de Macedo, no qual o escravo Simeão é assim<br />

descrito:<br />

Simeão, o crioulo mimoso, perdido, malcriado pelas afetuosas condescendências e<br />

fraquezas dos senhores em casa, pervertido pelos deboches da venda e pelo<br />

veneno do crápula, ingrato pela condição de escravo, sem educação e sem habito<br />

de trabalho, contando com a liberdade e não conseguindo era um perverso<br />

armando loucamente contra os seus senhores pelas mãos de seus senhores<br />

(MACEDO, 2005, p.49)<br />

Apesar da existência de personagens negros, estes não eram vistos<br />

como brasileiros pela maioria das narrativas do século XIX. Alguns<br />

autores da época ignoraram completamente a presença da<br />

população de origem africana de suas narrativas. Ou representavam<br />

de forma estereotipada, como no trecho do romance “Vítimas<br />

Algozes”, no qual pudemos ver a descrição do escravo perverso,<br />

traidor e pervertido. Infelizmente, muitos estigmas foram construídos<br />

e são reiterados em obras literárias até os dias atuais.<br />

Para um debate em classe, destacamos a escritora maranhense, Maria Firmina Reis, com<br />

romance “Úrsula” (1859),<br />

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a<br />

teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça<br />

ao seu semelhante!... aquele que também era livre no seu país... aquele que é seu<br />

irmão?!<br />

E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma;<br />

porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração,<br />

permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por<br />

isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe<br />

ofereceu à vista.<br />

A leitura proposta por Firmina sobre a escravidão e os escravos é completamente diferente<br />

do olhar de Macedo. Sob a perspectiva feminina, os escravos eram virtuosos, possuindo<br />

sentimentos de generosidade mesmo em meio à violência e aos maus tratos.<br />

Os trechos de Macedo e Firmina aqui expostos evidenciam os diferentes modos de<br />

interpretação para o mesmo evento: escravidão. A importância de Firmina não está só nos<br />

<br />

23


modos como os escravos são descritos, acrescenta-se o fato de ser a primeira escritora<br />

mulher e mulata.<br />

Com base nos recortes, propor discussões em classe, pesquisa sobre o século XIX, a<br />

escravidão; pensar como as novelas de época, filmes, materiais publicitários representam os<br />

escravos na atualidade. Será que a representação de Macedo ficou lá, no século XIX, ou<br />

ainda é possível encontrarmos sua reprodução atualmente? Outra possibilidade é a<br />

realização de oficina de produção textual, em que o(a) aluno(a) é estimulado(a) a escrever<br />

sobre o período escravocrata. No momento reservado à leitura oral dos textos, observar e<br />

registrar os diferentes tipos de narração, como foram descritos os corpos e as ações da<br />

população negra.<br />

Na educação infanto-juvenil, recontar histórias é sempre bem<br />

aceito e estimula a criatividade. Como sugestão, recriar a história<br />

de Tia Nastácia, personagem de Monteiro Lobato que, quando<br />

não é ofendida e humilhada pela boneca-falante Emília, é<br />

destituída de qualquer ligação com sua origem africana para ser<br />

evocada e apresentada como princesa. A seguir, o trecho do livro<br />

Reinações de Narizinho:<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha,<br />

coitada, por ser preta.<br />

— Que não seja boba e venha — disse Narizinho<br />

— eu dou uma explicação ao respeitável público...<br />

— Respeitável público! tenho a honra de apresentar<br />

(...) a Princesa Anastácia. Não reparem<br />

ser preta. É preta só por fora, e não de nascença.<br />

Foi uma fada que um dia a pretejou,<br />

condenando-a a ficar assim até que encontre<br />

um certo anel na barriga de um certo peixe.<br />

Então, o encanto quebrar-se-á e ela virará<br />

uma linda princesa loura. (LOBATO, 1931, p. 206)<br />

Sugerir que os(as) alunos(as), a partir de uma provocação (“Nastácia a heroína negra”, “As<br />

aventuras de Nastácia em África”, ou outro qualquer), criem uma nova história, que pode ser<br />

uma produção coletiva, sob a condução e orientação do(a) professor(a), atentando para as<br />

falas da narrativa de modo que “Tia” Nastácia saia do contexto de submissão dos textos de<br />

Monteiro Lobato, que não precise negar sua identidade. Enfim, não mais ser tolerada via a<br />

condição de um dia aparecer uma fada madrinha que a transforme numa princesa loura.<br />

Para os menores, selecionar histórias infantis que contemplem a diversidade étnica<br />

brasileira, além dos materiais didáticos como: livros, cartazes, bonecos, entre outros.<br />

A cada Unidade são disponibilizados, no tópico “Textos literários”, alguns poemas e contos<br />

que podem ajudar a viabilizar práticas afirmativas na educação. Os poemas selecionados<br />

<br />

24


questionam a não participação dos negros nas narrativas nacionais, seus textos também<br />

expõem à participação do negro na construção do país, entre outros, como: o papel da<br />

literatura afro-brasileira, a abordagem da mídia na representação da população negra, a<br />

desconstrução de alguns estereótipos.<br />

O meta-poema “Outras notícias” de Éle Semog, (ver Unidade I, em Textos Literários), além<br />

de falar sobre o seu fazer poético, crítica o não envolvimento de alguns poetas nos<br />

problemas sociais, os escritores que apresentam uma excessiva preocupação formal. Nessa<br />

linha, encontramos o poema “A um poeta”, de Olavo Bilac - preocupação formal e<br />

necessidade de isolamento para chegar à perfeição artística; já no texto “Emparedado”, de<br />

Cruz e Sousa, o isolamento tem outra perspectiva, vamos descobrir? (consta no texto de<br />

Silvio Oliveira – módulo).<br />

Na perspectiva da literatura comparada, o poema “Ser universal” de Oubi Inaê Kibuko e a<br />

música epígrafe do compositor Chico César, possibilitam um trabalho que dialogue literatura<br />

e música. Quanto ao conteúdo, temos: a relação entre África, Brasil e Minas Gerais, a<br />

discussão do que é ser negro no Brasil. Professores de Geografia, alerta! Milton Santos é<br />

uma excelente sugestão para guiar essas discussões.<br />

Para fomentar debates na escola sobre os modos de construção de personagens negros na<br />

mídia, sugerimos o poema “Efeito Colaterais”, de Jamu Minka. O mito da democracia racial,<br />

mídia e racismo e o objetivo da poesia negra são alguns dos temas a serem trabalhados. É<br />

importante que os(as) estudantes possam evidenciar na prática essas versões, perceber o<br />

cerceamento desses espaços, conseguir flagrar a não equivalência quanto aos lugares<br />

sociais em que os personagens se constituem e são representados nas diferentes etnias.<br />

Outro texto sugerido é a crônica “Maio”, de Lima Barreto, publicada em 04 de Maio de 1911.<br />

Nela, percebemos a forma irônica com que o assunto da libertação dos negros escravizados<br />

no Brasil adquire contornos de crítica. Além da leitura crítica da crônica, podemos mencionar<br />

o nome de figuras significativas no processo da abolição no Brasil como José do Patrocínio,<br />

André Rebouças, Luiz Gama, Francisco de Paula Brito e outros. Todos negros na linha de<br />

frente da intelectualidade escravista. Os intelectuais negros no Brasil, a exemplo de Lima<br />

Barreto, sempre esboçaram preocupações que extrapolaram o texto literário. A militância,<br />

sempre fez parte da vida do escritor como homem de cultura e intelectualmente engajado.<br />

Estimule seus(suas) alunos(as) a conhecer nossos intelectuais negros e negras!<br />

O desafio foi lançado, Professoras(es)!<br />

Usem a criatividade e o conhecimento específico de suas áreas e proponham outras<br />

leituras... Bom trabalho !!!!<br />

<br />

25


26


Os(as) escritores(as) negros(as) apresentam desejos e denominam suas produções<br />

de diferentes modos. Nesta unidade, conheceremos algumas delas a partir da<br />

interpretação dos próprios autores(as). O destaque é para a produção literária das<br />

mulheres negras.<br />

Tópico 1 – Produção literária afro-brasileira<br />

Tópico 2 – Auto-representação da mulher negra<br />

Objetivos:<br />

<br />

<strong>LITERATURA</strong> <strong>AFRO</strong>-<strong>BRASILEIRA</strong><br />

• Discutir a leitura dos autores/as da literatura afro-brasileira sobre suas<br />

produções;<br />

• Estudar a produção literária feita pelas escritoras negras;<br />

<br />

27


Tópico 1 – Produção literária afro-brasileira<br />

Escrever é dar movimento<br />

à dança-canto<br />

Que meu corpo não executa.<br />

A poesia é a senha que invento<br />

Para poder acessar o Mundo.<br />

(Conceição Evaristo)<br />

Retomando as palavras de Conceição Evaristo, poetisa negra,<br />

essa escrita-corpo - mistura de canto e dança, com poder de<br />

“acessar o Mundo” - é a literatura, que se auto-declara produção<br />

textual afro-brasileira e/ou negra. Para o poeta negro Elio Ferreira,<br />

escrever<br />

É uma maneira de falar para o mundo, contar a história dos meus<br />

antepassados negros e a minha própria história, influindo e<br />

participando na transformação da sociedade através da denúncia<br />

contra as violências racial e social. O que me levou a escrever foi<br />

uma necessidade interior de falar de mim e da condição humana.<br />

A sensação e a crença de escrever é uma forma de perpetuar a<br />

nós mesmos e as pessoas que estimamos; as pessoas simples,<br />

sobretudo negras, da nossa convivência. 1<br />

Com o intuito de reverter imagens negativas e estereótipos que os<br />

termos “afro” e “negro” assumiram ao longo de nossa história, a<br />

escrita negra e/ou afro-brasileira visa apresentar uma leitura<br />

crítica dos preconceitos disseminados na sociedade, além de<br />

apontar possibilidades de o escritor/ escritora negro/a consciente<br />

de seu papel lutar contra um modelo de identidade nacional<br />

baseado na idéia de democracia racial.<br />

A literatura afro-brasileira está, portanto, mergulhada na<br />

experiência de vida da população negra, não só como estratégia<br />

artística de denúncia da exclusão do afro-descendente, mas<br />

também como meio de liberação de tradições africanas<br />

silenciadas em nossa cultura. Conforme Cuti,<br />

O texto escrito começa a trazer a marca de uma<br />

experiência de vida distinta do estabelecido. A emoção<br />

– inimiga dos pretensos intelectuais negros – entra em<br />

campo, arrastando dores antigas e desatando silêncios<br />

enferrujados. É a poesia feita pelo negro brasileiro<br />

consciente. 2<br />

<br />

28


Para o afro-descendente, escrever reivindicando direitos de<br />

cidadão e ocupando novos lugares sociais, não limitados aos<br />

espaços destinados aos escravizados, passa a ter visibilidade<br />

durante o século XIX, com uma imprensa negra de viés<br />

abolicionista, cujo nome principal foi José do Patrocínio, escritor<br />

e jornalista que atuou intensamente na campanha pela abolição<br />

da escravatura. Todavia, em diferentes partes do país, escritores<br />

atuaram como defensores da abolição do trabalho escravo<br />

também através da imprensa escrita, caso de Maria Firmina dos<br />

Reis (Maranhão), Antonio Rebouças (Rio de Janeiro), Luiz<br />

Gama (São Paulo), entre outros.<br />

Desde então, escritores e intelectuais afro-brasileiros dão<br />

continuidade à tradição de fundar grupos, jornais, revistas e<br />

coletâneas de textos literários, como, por exemplo, durante o<br />

século XX, o Jornal Quilombo, os Cadernos de Cultura da<br />

Associação Cultural do Negro, a Revista Tição, o Jornal do<br />

Movimento Negro Unificado, o grupo Gens, os Cadernos<br />

Negros, a antologia Quilombo de Palavras, para citar alguns dos<br />

mais significativos.<br />

No decorrer do século XX, podemos fazer referência a autores<br />

que produzem literatura com a intenção óbvia de trabalhar com<br />

vozes rasuradas de nossa tradição cultural hegemônica, tais<br />

como Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Ruth<br />

Guimarães, Joel Rufino dos Santos, Geni Guimarães,<br />

Conceição Evaristo, Jônatas Conceição da Silva, Cuti, Adão<br />

Ventura, entre outros e outras que produzem textos sobre<br />

tradições histórico-culturais de origem africana no Brasil ou sobre<br />

o cotidiano do afro-brasileiro. É nesse falar de si e das próprias<br />

tradições culturais que escritores afro-brasileiros rasuram a<br />

pretensa universalidade e ocidentalidade da arte literária.<br />

Embora o uso dos termos literatura negra, literatura afro-brasileira<br />

ou literatura afro-descendente não seja consenso entre críticos<br />

<br />

29


literários e escritores, importa perceber o quanto textualidades<br />

negras no Brasil têm representado positivamente populações<br />

negras, tirando do silêncio, através da escrita, tradições africanas<br />

suprimidas e experiências sociais relacionadas ao cotidiano dos<br />

afro-descendentes.<br />

Antecedentes da literatura negra<br />

O escritor Oswaldo de Camargo, no livro O negro escrito, levanta<br />

o primeiro registro de um negro letrado no Brasil. Fato importante,<br />

tendo em vista as condições adversas dos africanos e afrodescendentes<br />

na época. Tratava-se de Henrique Dias, que<br />

escreveu uma carta ao rei de Portugal, reclamando maus tratos,<br />

em 1650. Há também registros em nossa história colonial de<br />

textos que informavam sobre atos de resistência ao sistema<br />

escravista e de textos de irmandades religiosas e de sociedades<br />

negras, demonstrando a existência de negros alfabetizados e o<br />

uso da escrita como resistência a um meio opressor.<br />

Todavia, o primeiro a fazer esparsas referências à condição do<br />

negro em sua produção poética foi Domingos Caldas Barbosa, no<br />

século XVIII. Fortemente aclamado pelo público, levou seus<br />

lundus (música de origem africana) e modinhas para Portugal. Em<br />

“Retratos de Lucinda”, o eu lírico canta a beleza suprema de uma<br />

mulher trigueira, de pele escura, construindo uma inversão de<br />

valores dentro dos padrões europeus do Arcadismo no Brasil:<br />

Não tens nas faces<br />

Jasmins de rosa,<br />

Cor mais graciosa<br />

Nas faces tens.<br />

Todas t’a invejam,<br />

E há quem ser queira,<br />

Assim trigueira<br />

Como tu és.<br />

(Viola de Lereno, p. 10, v. 2)<br />

<br />

30


Luiz Gonzaga Pinto da Gama, no século<br />

XIX, foi um abolicionista que utilizou a<br />

intelectualidade para a libertação de<br />

negros escravizados, como rábula<br />

(advogado sem diploma), jornalista em<br />

escritor. Em 1959, publicou Primeiras<br />

Luiz Gama<br />

Trovas Burlescas de Getulino, através das<br />

quais satirizou a aristocracia da época. No<br />

período em que se construía literariamente uma brasilidade<br />

representada sobretudo pelo indianismo de caráter ufanista, Luiz<br />

Gama, com lirismo e sátira, escreveu, a partir da perspectiva de<br />

um negro, impressões de um Brasil autoritário, como se pode ver<br />

no fragmento do poema abaixo:<br />

No álbum do meu amigo J.A. da Silva Sobral<br />

Se tu queres, meu amigo,<br />

No teu álb’um pensamento<br />

Ornado de frases finas,<br />

Ditadas pelo talento;<br />

Não contes comigo,<br />

Que sou pobretão:<br />

Em coisas mimosas<br />

Sou mesmo um ratão<br />

(...)<br />

Ouvindo o conselho<br />

Da minha razão,<br />

Calei o impulso<br />

Do meu coração.<br />

Se o muito que sinto<br />

Não posso dizer,<br />

Do pouco que sei<br />

Não quero escrever.<br />

Não quero que digam<br />

Que fui atrevido;<br />

E que na ciência<br />

Sou intrometido.<br />

Desculpa, meu amigo,<br />

Eu nada te posso dar;<br />

Na terra que rege o branco<br />

Nos privam té de pensar!...<br />

<br />

31


No mesmo ano das Trovas de Gama, foi<br />

editado o romance de compromisso<br />

abolicionista Úrsula, escrito pela<br />

maranhense Maria Firmina dos Reis.<br />

Dois anos após a edição de O Guarani de<br />

José de Alencar, obra emblemática do<br />

Maria Firmina dos Reis<br />

indianismo romântico, a escrita literária<br />

de uma mulher negra e nordestina põe no centro as dores dos<br />

negros escravizados, além disso posiciona-se a favor de um<br />

Brasil sem preconceitos, cujas diferenças de classe, raça e<br />

gênero não signifiquem desigualdade no plano social.<br />

Apesar de protagonizado pelos jovens brancos Úrsula e<br />

Tancredo, o enredo se desenrola de tal forma que os<br />

personagens submetidos à escravidão são dignificados,<br />

sobretudo Túlio, que ajuda o jovem advogado Tancredo, e a preta<br />

Susana, através da qual a maior parte dos discursos contrários à<br />

escravização de africanos são enunciados. No fragmento a<br />

seguir, Susana, aconselhando Túlio, faz um discurso dolorido<br />

sobre a realidade dela:<br />

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento<br />

depois exclamou:<br />

— Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são<br />

inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não<br />

posso deixar de render a tudo que me foi caro! Liberdade!<br />

Liberdade... ah! Eu gozei na minha mocidade! — continuou<br />

Susana com amargura — (...) Mais tarde deram-me em<br />

matrimônio a um homem, que amei com a luz dos meus<br />

olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida,<br />

em que me revia, em que tinha depositado todo o amor da<br />

minha lama: — um filha que era a minha vida, as minhas<br />

ambições, a minha suprema ventura, veio selar a nossa<br />

santa união. E esse país de minhas afeições, e esse esposo<br />

querido, essa filha tão extremamente amada! Oh! Túlio!<br />

Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo! Até a<br />

própria liberdade!<br />

Dois outros importantes escritores, em termos de produção<br />

literária que lida com representações positivas do negro no Brasil,<br />

<br />

32


são conhecidos por um público mais amplo, pois constam na<br />

maioria dos livros didáticos em circulação no país: Cruz e Sousa<br />

e Lima Barreto. Todavia, eles são, geralmente, apresentados de<br />

forma superficial ou inadequada ao estudante.<br />

A obra de Cruz e Sousa, nesse sentido, é a<br />

que mais tem sido deturpada em manuais<br />

de ensino de literatura, fazendo com que a<br />

visão corrente sobre o escritor seja a de<br />

quem representou em sua produção<br />

Cruz e Sousa<br />

poética um latente desejo de<br />

(1861-1898) embranquecer, devido a uma pretensa<br />

preocupação obsessiva pela cor branca no vocabulário por ele<br />

usado. Entretanto, tem sido sistematicamente ignorada a<br />

produção literária em que um eu negro se coloca bravamente<br />

contra a violência que o racismo cravava na sociedade brasileira<br />

da época em que Sousa viveu e produziu. Nascido em<br />

Florianópolis, foi poeta, escritor e advogado preocupado com a<br />

situação do escravizado e com a discriminação sofrida pelos<br />

descendentes de africanos.<br />

Poemas como Escravocratas, Na senzala, Grito de Guerra, a<br />

prosa poética Emparedado, entre outros textos, demonstram a<br />

participação de Sousa no processo social de seu tempo. As<br />

paredes que cerram um sujeito poético aos limites<br />

autoritariamente demarcados por uma sociedade racista são uma<br />

hiperbólica imagem que traduz as contradições e a dor com que<br />

um escritor negro, de fins do século XIX, tinha que lidar:<br />

Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da<br />

vasta edificação do mundo, porque atrás de ti e adiante<br />

de ti não sei quantas gerações foram acumulando, pedra<br />

sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora<br />

o verdadeiro emparedado de uma raça. Se caminhares<br />

para a direita baterás e esbarrarás, ansioso, aflito, numa<br />

parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e<br />

Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra<br />

parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a<br />

primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se<br />

caminhares para a frente, ainda nova parede, feita<br />

<br />

33


de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito,<br />

broncamente se elevará ao alto! Se caminhares,<br />

enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede,<br />

fechando tudo, fechando tudo - horrível - parede de<br />

Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio<br />

espasmo de terror absoluto...<br />

E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às<br />

pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras...<br />

Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes<br />

Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais<br />

pedras! E as estranhas paredes hão de subir<br />

longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir,<br />

mudas, silenciosas, até as Estrelas, deixando-te<br />

para sempre perdidamente alucinado e emparedado<br />

dentro do teu Sonho..." (Cruz e Sousa Obra<br />

Completas, p. 664)<br />

A devastadora ironia da poesia Caveira, do mesmo autor,<br />

publicada em Faróis (1900), é também sublime ao trabalhar com<br />

uma inversão existencial e política dos papéis do branco e do<br />

negro na sociedade brasileira do final do século XIX. Através de<br />

uma imagem hedionda, a morte acaba, neste interessante poema,<br />

por humanizar a todos, sem distinção:<br />

I<br />

Olhos que foram olhos, dois buracos<br />

Agora, fundos, no ondular da poeira...<br />

Nem negros, nem azuis e nem opacos.<br />

Caveira!<br />

II<br />

Nariz de linhas, correções audazes,<br />

De expressão aquilina e feiticeira,<br />

Onde os olfatos virginais, falazes?!<br />

Caveira! Caveira!!<br />

III<br />

Boca de dentes límpidos e finos,<br />

De curva leve, original, ligeira,<br />

Que é feito dos teus risos cristalinos?!<br />

Caveira! Caveira!! Caveira!!!<br />

(Cruz e Sousa Obras Completas, p. 119)<br />

<br />

34


Lima Barreto, por sua vez, é apresentado<br />

aos estudantes da Escola Básica quase<br />

exclusivamente através do romance<br />

nacionalista Triste fim de Policarpo<br />

Quaresma, deixando de lado toda a<br />

produção literária em que encenou<br />

condições sociais do afro-descendente do<br />

início do século XX, através de<br />

personagens que denunciam a aspereza do<br />

preconceito racial e social. Nesse sentido, a temática aparece em<br />

romances como Clara dos Anjos, Recordações do escrivão Isaías<br />

Caminha, entre outros contos e crônicas. O protagonista de<br />

Recordações, no trecho a seguir, demonstra como escritores de<br />

origem negra motivaram seus interesses intelectuais e artísticos:<br />

E o monstruoso redator desandou dizendo asneiras. Eu<br />

estava ali de colarinho sujo, esfomeado, mas tive ímpeto<br />

de discutir e de quebrar a cara dos idiotas que o ouviam.<br />

Entre eles, havia alguns a quem cabia bem a carapuça,<br />

mas que se calaram cobardemente. Queria perguntar-lhe<br />

se aqueles seus artigos acacianos, cheirando ainda<br />

muito à brochura francesa de dois mil e quinhentos se<br />

podiam por a par dos trabalhos de Tito Lívio, do Tobias<br />

Barreto; eu queria perguntar-lhe se sua genialidade no<br />

artiguete seria capaz de aparecer se tivesse nascido nas<br />

condições desfavoráveis do Caldas Barbosa, do José<br />

Maurício, do Silva Alvarenga e outros!<br />

A intenção aqui é traçar um panorama da produção literária que,<br />

no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, já fazia<br />

referência à condição social subalterna do escravizado (no<br />

período pré-abolição), ou do afro-descendente (no período pósabolição).<br />

No entanto, cabe a você, professor, conhecer a fundo<br />

outros escritores que também produziram literariamente em torno<br />

da mesma questão, tais como Silva Alvarenga, Gonçalves<br />

Crespo, Machado de Assis, etc.. O conhecimento desses nomes<br />

e textos esquecidos é condição central para compreender que a<br />

resistência literária ao racismo, através de tratamento direto ou<br />

<br />

35


indireto, foi fundamental em nossa história social e literária.<br />

Dentre esses(as) primeiros(as) escritores(as), destaca-se o nome<br />

da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, que rompeu não<br />

só com a barreira racial, mas também com a barreira de gênero.<br />

Como mulher e negra, conseguiu ter acesso à escrita em pleno<br />

século XIX. Além disso, apresentar-se como intelectual, escritora<br />

de romances e poesias coloca-a num lugar de exceção. Esse<br />

espaço será também ocupado pela escrita de outras mulheres na<br />

contemporaneidade. A próxima seção será destinada a refletir um<br />

pouco sobre a escrita literária de mulheres negras no cenário<br />

brasileiro contemporâneo.<br />

<br />

36


Tópico 2 – Auto-representação da mulher negra<br />

(...)<br />

A noite não adormecerá<br />

Jamais nos olhos das fêmeas<br />

Pois o nosso sangue-mulher<br />

Do nosso líquido lembradiço<br />

Em cada gota que jorra<br />

Um fio invisível e tônico<br />

Pacientemente cose a rede<br />

De nossa milenar resistência.<br />

(A noite não adormece nos olhos das mulheres,<br />

Conceição Evaristo)<br />

Como diz o poema de Conceição Evaristo, em homenagem à<br />

memória de Beatriz Nascimento 1 , “a noite não adormece nos<br />

olhos das mulheres”! É pensando nessa rede milenar de<br />

resistência que as representações do sujeito-mulher-negra não<br />

poderiam ficar de fora das produções afro-brasileiras<br />

contemporâneas.<br />

A escrita da mulher negra é de grande importância devido<br />

sobretudo aos séculos de silenciamento a que as mulheres<br />

negras foram submetidas; elas têm se apoderado do espaço<br />

privilegiado da literatura e apresentado outras formas de<br />

representação, dando legitimidade, principalmente, ao papel<br />

histórico delas e de tradições negras na cultura nacional.<br />

<br />

37


Quantas vezes não ouvimos tais frases em nossas vidas ou até<br />

as repetimos sem pensar? Crescemos vendo os espaços<br />

discriminados e também discriminando os que são ocupados<br />

pelas mulheres e pelos homens. Na literatura não ocorre de<br />

maneira diferente: as representações dos papéis das mulheres na<br />

sociedade brasileira constituem um acervo simbólico que acaba<br />

por reforçar estereótipos e demarcar os possíveis lugares sociais<br />

a serem ocupados por elas. Infelizmente, algumas dessas<br />

representações condicionam as mulheres negras a espaços ainda<br />

menos privilegiados que os reservados às mulheres não-negras –<br />

espaços já tão limitados, diga-se de passagem! Segundo Sueli<br />

Carneiro,<br />

As denúncias sobre essa dimensão da problemática<br />

da mulher na sociedade brasileira, que é o silêncio<br />

sobre outras formas de opressão que não somente o<br />

sexismo vêm exigindo a re-elaboração do discurso e<br />

práticas políticas do feminismo. E o elemento<br />

determinante nessa alteração de perspectiva é o<br />

emergente movimento de mulheres negras sobre o<br />

ideário e a prática política feminista no Brasil 2 .<br />

Na literatura, desde o século XIX, podemos citar as escritoras<br />

Maria Firmina dos Reis e Francisca Júlia da Silva que furam o<br />

cerco do patriarcado e, através da palavra, apresentam uma<br />

versão da história em que as mulheres se auto-representam como<br />

sujeitos. É essa presença resistente de escritoras negras – tais<br />

como Rosa Egipcíaca, Teresa Margarida da Silva, Antonieta<br />

de Barros, Maria Carolina de Jesus, Conceição Evaristo,<br />

Miriam Alves, Alzira Rufino, Esmeralda Ribeiro, Geni Mariano<br />

Guimarães, Sônia Fátima, dentre outras – que vem publicando<br />

de forma organizada e representando na sua escrita a perspectiva<br />

“mulher” e “negra” –, o foco desse tópico no módulo de Literatura<br />

Afro-brasileira.<br />

A literatura produzida por mulheres negras, no ambiente da sala<br />

de aula, contribui para a redução da desigualdade de gênero e o<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

38


enfrentamento do preconceito e da discriminação étnico-racial,<br />

visando uma educação equânime. Esses textos literários podem<br />

ajudar a eliminar e/ou problematizar os conteúdos sexistas e<br />

discriminatórios que rondam as representações simbólicas e o<br />

imaginário brasileiro, sejam nos livros didáticos, na mídia, nas<br />

músicas, entre tantos outros.<br />

Algumas temáticas trabalhadas pelas escritoras:<br />

• Tradições de mulheres em rede, através das gerações<br />

A voz de minha mãe ecoou<br />

Criança<br />

Nos porões do navio.<br />

Ecoou lamentos<br />

De uma infância perdida.<br />

A voz de minha avó<br />

Ecoou obediência<br />

Aos brancos-donos de tudo.<br />

A voz de minha mãe<br />

ecoou baixinho revolta<br />

no fundo das cozinhas laheias<br />

debaixo das trouxas<br />

roupagens sujas dos brancos<br />

pelo caminho empoeirado<br />

rumo à favela.<br />

A minha voz ainda<br />

ecoa versos perplexos<br />

com rimas de sangue<br />

e<br />

fome.<br />

A voz da minha filha<br />

recolhe todas as nossas vozes<br />

recolhe em si<br />

as vozes mudas caladas<br />

engasgadas nas gargantas.<br />

A voz da minha filha<br />

recolhe em si<br />

a fala e o ato.<br />

O ontem — o hoje — o agora.<br />

VOZES-MULHERES<br />

(Conceição Evaristo)<br />

Na voz de minha filha<br />

Se fará ouvir a ressonância<br />

O eco da vida-liberdade.<br />

<br />

39


• Definição do que é ser negra<br />

Ser negra<br />

Na integridade<br />

Calma e morna dos dias<br />

Ser negra<br />

De carapinhas,<br />

De dorso brilhante<br />

De pés soltos nos caminhos<br />

Ser negra<br />

De Negras mãos<br />

De negras mamas,<br />

De negra alma.<br />

Ser negra,<br />

Nos traços,<br />

Nos passos,<br />

Na sensibilidade negra.<br />

Ser negra,<br />

Do verso e reverso,<br />

De choro e riso,<br />

De verdades e mentiras,<br />

Como todos os seres que habitam a terra.<br />

Negra<br />

Puro afro sangue negro<br />

Saindo aos jorros,<br />

Por todos os poros.<br />

(Geni Mariano Guimarães)<br />

Integridade<br />

<br />

40


• Corpo da mulher negra em ação, como sujeito<br />

<br />

41


Leituras sugeridas<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

EVARISTO, Conceição. “Da representação à auto-representação da mulher negra na<br />

literatura brasileira. In: Revista Palmares - Cultura Afro-brasileira. Ano 1, n. 1, ago. 2005.<br />

p. 52-57.<br />

FERREIRA, Luzilá Gonçalves Ferreira. “Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista<br />

brasileira”.<br />

In:http://www.cesargiusti.bluehosting.com.br/Especiais/MFReis/critica.htm#luzila<br />

MAYA-MAYA, Estevão. “Análise e reflexões críticas sobre a produção literária afrobrasileira<br />

nos anos 70”. In: Criação Crioula: Nu elefante branco. São Paulo: Secretaria de<br />

Estado da Cultura, 1987. p. 107- 111.<br />

Para saber mais<br />

BRITTO. Carla dos Santos. “Antologia de escritoras afro-brasileiras: afirmação de<br />

identidade nas escrituras de Miriam Alves”. Disponível em:<br />

<br />

Cadernos Negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 1979-2005.<br />

Cadernos Negros: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 1978-2006.<br />

CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: Imprensa oficial do Estado S.A<br />

IMESP, 1987.<br />

______. A razão da Chama. São Paulo: GRD, 1986.<br />

______. O estranho. São Paulo: Roswitha Kempt Editores, 1984.<br />

CONCEIÇÃO, Jônatas da Silva. Outras Miragens. São Paulo: Confraria do Livro, 1989.<br />

COSTA, Madu. Meninas negras. (coleção Griot Mirim, vol. 3). Belo Horizonte: Mazza<br />

<br />

42


edições, 2006.<br />

CUNHA JUNIOR, Henrique. Tear africano: contos afrodescendentes. São Paulo: Selo<br />

Negro, 2004.<br />

CUTI. Sanga. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002.<br />

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza edições, 2003.<br />

JESUS, Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Livraria<br />

Francisco Alves, 1960.<br />

LOPES, Nei. Vinte contos e uns trocados. Rio de Janeiro: Record, 2006.<br />

LUCINDA, Elisa. Euteamo e suas estréias. 2ªed. Rio de Janeiro: Record, 2000.<br />

MAYA-MAYA, Estevão. “Análise e reflexões críticas sobre a produção literária afrobrasileira<br />

nos anos 70”. In: Criação Crioula: Nu elefante branco. São Paulo: Secretaria de<br />

estado da cultura, 1987.<br />

ONAWALE, Landê. O vento. Salvador: ed. Do autor, 2003.<br />

PADILHA, Laura Cavalcante. “Nas dobras dos panos – feminino e textualidade em duas<br />

narrativas fundacionais angolanas”. In: Novos pactos, outras ficções. Porto Alegre:<br />

Edipucrs, 2002.<br />

PALMEIRA, Francineide S. “Representações de gênero e afrodescendência<br />

na obra de Conceição Evaristo”. In: http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14440.pdf<br />

RIBEIRO, Esmeralda. Malungos e milongas. São Paulo: Quilombhoje, 2003. (conto).<br />

______. “A Relação Afetiva entre o Homem e a Mulher na Poesia dos Cadernos Negros”.<br />

In: http://www.quilombhoje.com.br/ensaio/esmeralda/relacao_afetiva.htm<br />

SILVA, Jônatas C. da. Miragem de Engenho. Salvador: IRDEB, 1984. (poemas).<br />

SOUZA, Florentina da Silva. “Intelectual negro e mediações culturais: Solano Trindade”.<br />

In: Revista SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 226-239, 2º. sem. 2004.<br />

http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm (índice de autores)<br />

TRINDADE, Solano. Poemas antológicos. São Paulo: Nova Alexandria, 2008.<br />

_______________. Canto Negro. São Paulo: Pallas, 2006.<br />

VENTURA, Adão. Litanias de cão. Belo Horizonte: edição do autor, 2002.<br />

Material de apoio<br />

Filmes:<br />

Documentário “Solano Trindade: 100 anos” de Alessandro Guedes e Helder Vieira, 2008.<br />

“As filhas do vento” de Joel Zito Araújo, 2005.<br />

“A cor púrpura” de Steven Spielberg, 1985.<br />

“Makota Valdina: um jeito negro de ser e viver” de Ana Verena Carvalho, Joiciléia<br />

Rodrigues Ribeiro e Paulo Rogério Nunes, 2005.<br />

“Atabaque Nzinga” de Octavio Bezerra, 2008.<br />

<br />

43


Enquanto isso, na sala de aula...<br />

O uso de textos literários é de fundamental importância para desenvolver as habilidades<br />

dos(as) alunos(as), por possibilitar múltiplas perspectivas e níveis de apreensão do texto.<br />

O(A) leitor(a) compartilha do jogo da imaginação para captar o sentido das coisas e os<br />

sentimentos ali contidos permitindo, assim, “o desenvolvimento de todas as virtualidades<br />

da linguagem e, portanto, permite-nos analisar os mecanismos empregados pelo autor<br />

para produzir beleza, recriar mecanismos, desentranhar os símbolos que estruturam a<br />

mensagem, brincar com a musicalidade das palavras liberadas de sua função<br />

designativa, etc.” (KAUFMAN & RODRIGUEZ, 1995)<br />

Nesta Unidade, a seleção de “textos literários” baseou-se nos artigos e entrevistas<br />

dos(as) escritores afro-brasileiros(as). Alguns poemas, como “Vento Forte”, de Lepê<br />

Correia, “Ancestral”, de Landê Onawale, “Cumplicidade” e “Quase hai kai”, de Graça<br />

Graúna, “Diário de uma favelada”, de Ademiro Alves, abordam a importância da<br />

ancestralidade, além de contribuir para a constituição de uma historiografia afrobrasileira,<br />

trazendo para o bojo das discussões contemporâneas a influência de<br />

autores(as) que há muito tempo escreviam textos literários sobre a história e cultura afrobrasileiras.<br />

Em “Acerto de cotas”, do poeta baiano Landê Onawale, além da riqueza de imagens<br />

poéticas e do ritmo, destaco o polêmico tema a ser abordado: as políticas de cotas.<br />

Muitos são os recursos complementares, artigos de jornais, revistas, e demais debates<br />

realizados sobre o assunto. Interessante propor - após o trabalho com o poema e leitura<br />

de demais fontes, a construção de um júri, no qual os educandos(as) possam argumentar<br />

sobre o tema e defender suas teses. Passeiam pelo poema ainda discussões sobre: a<br />

história do negro no Brasil, o contexto de pobreza e abandono em que vive a maioria da<br />

população negra e os modos como os negros foram e são representados pela mídia.<br />

O conto “Desenganos” de Márcio Barbosa é uma alternativa para incluir as disciplinas de<br />

Matemática e Geografia no trânsito pela literatura. A situação-problema relatada no<br />

conto, independente de todo trabalho de análise textual que pode - e deve - ser realizada,<br />

motiva a realização de uma “pesquisa de campo” nos principais Shoppings Centers da<br />

cidade quanto ao número de funcionários negros e negras contratados; ou a realização<br />

de uma entrevista na própria escola entre alunos(as) e professores/as sobre terem ou<br />

não enfrentado situações de racismo; ou ainda, o número de pessoas negras em cargos<br />

de poder. Enfim, uma série de possibilidades de pesquisa, que, com base em seus<br />

<br />

44


esultados, podem depois virar fontes estatísticas e fomentar o desenvolvimento de<br />

conteúdos da matemática. Detalhe, se o trabalho acontece em acordo e consonância<br />

com diferentes disciplinas, enriquece ainda mais os resultados.<br />

A literatura produzida por mulheres negras recebeu um espaço especial, por se tratar de<br />

produções tão significativas e ricas de poesia. A apresentação em power-point facilita o<br />

trabalho do(a) professor(a) na exposição e disposição dos poemas e informações básicas<br />

das referidas autoras. Essa literatura surge em oposição à literatura canônica, que<br />

durante muito tempo reservou às mulheres negras perfis bastante questionáveis.<br />

Vejamos alguns exemplos clássicos: Gregório de Matos (1636-1695) é o primeiro escritor<br />

da literatura brasileira a propor uma hierarquização étnica na qual à mulher branca cabe<br />

o papel de mãe e esposa e à mulher negra apenas o papel de amante.<br />

Em “O Cortiço” (1890), de Aloísio de Azevedo, a personagem Rita Baiana é assim<br />

descrita:<br />

E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e<br />

plantas aromáticas. Irriquieta, saracoteando, o atrevido e rijo quadril baiano,<br />

respondia para a direita e para a esquerda, pondo a mostra um fio de dentes<br />

claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce<br />

fascinador.<br />

Acudiu quase todo o cortiço para recebê-la. Choveram abraços e as chufas<br />

do bom acolhimento(...)<br />

Ele tinha “paixão” pela a Rita, e ela, apesar de volúvel como toda a mestiça,<br />

não podia esquecê-lo por uma só vez (...)<br />

(AZEVEDO, 1975, p.45-57)<br />

O apelo ao corpo e a vulgarização da mulher negra, não fica apenas nessa obra, a<br />

personagem principal do livro “Gabriela Cravo e Canela” (1958) do escritor Jorge Amado,<br />

mantém esses estereótipos, acrescentando o apelo a mistura das raças e a democracia<br />

racial do país. A lista é grande de representações negativas sobre o corpo, o caráter e<br />

identidade da mulher negra. Quando menos esperamos, encontramos as marcas desses<br />

imaginários no nosso dia-a-dia e comportamentos sociais, seja nas letras de música<br />

popular, no cinema, na mídia.<br />

O estudo dos textos literários produzidos pelas escritoras negras proporcionam ouvir e<br />

sentir através de seus versos e narrativas a força de seu descontentamento quanto a<br />

essas representações negativas, deixando evidente o desejo por mudança. É preciso<br />

que nossos(as) alunos(as) se apropriem desses debates e possam reconhecer como<br />

construções culturais as características socialmente atribuídas a homens e mulheres, a<br />

<br />

45


negros e não-negros, tomando um posicionamento contra a discriminação de raça e<br />

gênero.<br />

Quanto ao trabalho em classe, a partir do texto ou obra selecionada, o aluno deve ser<br />

estimulado a levantar questionamentos e verificar os comportamentos dos personagens,<br />

em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais: “Em língua portuguesa, nos<br />

textos literários, podem-se perceber as perspectivas de gênero por meio da análise das<br />

personagens e descrição de suas características”. No ensino da língua portuguesa,<br />

também podemos observar que nas regras do idioma as questões de gênero não estão<br />

muito bem colocadas, como podemos encontrar nas gramáticas e livros didáticos.<br />

Veremos, a seguir, a discussão proposta por José de Nicola, no livro “Língua literatura e<br />

redação” (1990),<br />

É interessante notar como o patriarcalismo de uma sociedade se<br />

manifesta nos mais variados setores da atividade humana. Por exemplo,<br />

na gramática. Francisco da Silva Borba, em seu livro “Introdução aos<br />

estudos lingüísticos, ao analisar o gênero dos substantivos, a certa<br />

altura afirma: ‘Nas línguas românicas a oposição masculino/feminino<br />

oscila entre critério de sexo e contraste superior/inferior (em português o<br />

aumentativo em “-ão” é masculino: carta/cartão; porta/portão) (NICOLA,<br />

1990, p. 29-39)<br />

Na “Nova gramática do Português Contemporâneo” de Celso Cunha e Lindley Cintra,<br />

encontramos a seguinte citação: “Há dois gêneros no português: o masculino e o<br />

feminino. O masculino é o termo não marcado; o feminino é o termo marcado” (CUNHA &<br />

CINTRA, p. 182). Diante desses registros, constatamos que a língua portuguesa entende<br />

que o feminino, como gênero marcado, está relacionado à categoria dos diminutivos, ao<br />

passo que o masculino é apontado como gênero não marcado e ligado ao aumentativo.<br />

Também no contexto lingüístico as mulheres se encontra numa posição desprivilegiada<br />

em relação aos homens.<br />

Outra atividade a ser realizada em classe é uma pesquisa de consulta em dicionários no<br />

tocante às questões étnicas. Como as palavras: “branco” , “negro”, “negrume”, “denegrir”<br />

são apresentadas?<br />

Conforme Leda Martins,<br />

O signo “negro” está intimamente identificado com um valor<br />

depreciativo, nas mais diversas situações da fala brasileira, definindo<br />

uma posição social ou adjetivando um grupo racial e uma cultura. “Um<br />

<br />

46


dia negro”, a “ovelha negra da família”, por exemplo, são expressões<br />

que explicitam uma analogia entre o que é negro e o que é considerado<br />

ruim ou desagradável. “lugar de negro é na cozinha”, “negro quando não<br />

suja na entrada, suja na saída”, “trabalho de negro” são ditos ou<br />

expressões populares que têm o negro como objeto. Identificando um<br />

sujeito enunciado na própria margem do discurso, essa linguagem<br />

destaca-o como um outro não apenas diferente, mas indesejável, ou<br />

desejável em lugares previamente determinados” (MARTINS, 1995, p.<br />

36)<br />

O resultado da pesquisa e a constatação de Lêda Martins são desanimadores, porém, o<br />

domínio dessas informações e o bom uso delas podem ser significativos para que os(as)<br />

alunos(as) percebam as armadilhas do racismo e possam se defender dessas<br />

construções sociais. Esse trabalho de pesquisa, aliado aos poemas afro-brasileiros,<br />

passa pela tentativa de criar novas palavras. Mesmo as já existentes, com sentidos<br />

pejorativos, passam a ganhar outros sentidos, além da possibilidade de discutir e<br />

problematizar o perfil de nação traçado pela língua e produção canônica.<br />

Nas turmas de alunos(as) que ainda se encontram na infância e pré-adolescência, a<br />

seleção das obras é um fato que precisa ser enfatizado, não apenas em seus conteúdos,<br />

mas as ilustrações e abordagem precisam ser bem observadas. A ausência desses<br />

sujeitos no imaginário simbólico dos(as) alunos(as) dificulta bastante a construção de<br />

cidadãos atentos e sensíveis às diferentes diferenças ou que se engaje na luta pelo fim<br />

do machismo, discriminação e racismo. Algumas obras serão sugeridas na 3ª Unidade<br />

deste módulo, atendendo o perfil do público infanto-juvenil. Além dos textos literários,<br />

podemos ainda fazer uso de histórias em quadrinhos, filmes e jogos que abordam a<br />

história do negro no Brasil.<br />

Agora, acrescente muita criatividade e crie uma aula bem interessante!!!<br />

<br />

47


48


TRADIÇÕES ORAIS NEGRAS E ESCRITA<br />

LITERÁRIA<br />

Sabemos que os mitos, lendas, contos populares africanos constituem a memória<br />

dos afro-brasileiros que, em diáspora, guardaram, re-significaram e reorganizaram<br />

esses registros e foram constituindo o acervo simbólico das<br />

tradições culturais da população negra. Nesta Unidade, voltaremos nossas<br />

atenções para o uso e apropriações das riquezas de conteúdos, significados e<br />

valores contidos na tradição oral no âmbito das atividades em sala de aula.<br />

Outro foco desta Unidade é a literatura infanto-juvenil afro-brasileira e os modos<br />

de participação e representação dos personagens negros dirigidas ao publico<br />

infantil.<br />

Tópico 1 – Tradições orais<br />

Tópico 2 – Literatura afro-brasileira infanto-juvenil<br />

Objetivos:<br />

• Refletir sobre a importância da tradição oral na constituição do acervo<br />

simbólico das tradições culturais da população negra.<br />

• Subsidiar professores quanto o ensino da literatura afro-brasileira infantojuvenil.<br />

<br />

49


Tópico 1 – Tradições orais<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Conforme as questões trabalhadas nas unidades anteriores,<br />

pode-se inferir que um dos traços característicos da produção<br />

literária afro-brasileira é ser porta-voz de uma coletividade. O<br />

escritor se debruça sobre os desejos, dores, projetos e<br />

tradições de um grupo étnico-racial que tem sido<br />

historicamente silenciado, retrabalhando-os no jogo do texto<br />

literário. Dentro desse processo, a oralidade é elemento<br />

fundamental para o reencontro com tradições históricas<br />

suprimidas.<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Nas culturas orais, o conhecimento adquirido por várias<br />

gerações ao longo dos tempos é guardado na memória. A<br />

importância da tradição oral africana, na transmissão de<br />

valores simbólicos, liga-se ao fortalecimento das relações entre<br />

os integrantes de um grupo ou comunidade e à criação de uma<br />

rede de transmissão de conhecimentos que consolida a cultura<br />

do grupo.<br />

No contexto africano tradicional, é destacável o valor do ancião<br />

na garantia da socialização dessas memórias/palavras. É ele o<br />

<br />

50


esponsável pela manutenção do laço social da<br />

comunidade. Segundo A. Hampaté Ba, “A tradição oral é a<br />

grande escola da vida”.<br />

A força da palavra contém a vibração e a circulação do axé<br />

(força da natureza, energia, poder de realização pela força<br />

sobrenatural). Vale lembrar, aqui, a chamada pedagogia negra,<br />

iniciativa das comunidades de terreiro, na qual as crianças são<br />

iniciadas e passam a conhecer as histórias de seus orixás,<br />

através das narrativas orais transmitidas pelos mais velhos.<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

A palavra contada, todavia, não é simplesmente fala. Ela<br />

carrega significados, através do gestual, do ritmo, da<br />

entonação, da expressão facial, etc.. O seu valor estético está<br />

na conjugação harmoniosa desses elementos. Em<br />

grupamentos humanos onde a palavra falada possui força vital<br />

para os comportamentos, para as atividades diárias e para os<br />

vôos do imaginário, a voz participa da significância do texto,<br />

porque este só se realiza em performance, processo em que a<br />

mensagem é produzida e transmitida simultaneamente em um<br />

contexto onde dialogam intérprete, ouvintes e circunstâncias.<br />

Dessa forma, todos os traços característicos de formas<br />

expressionais orais são decorrentes da aludida situação de<br />

performance, maneira pela qual elas são propagadas corpo a<br />

corpo.<br />

Como essa prática de produção e recepção textual está<br />

estruturada a partir do diálogo em presença entre os<br />

envolvidos, nas culturais orais, conhecer implica passar pela<br />

<br />

51


vivência, diferentemente do conhecimento solitário mediado pela escrita.<br />

Por isso, em sociedades africanas tradicionais, o texto oral não<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

somente diz, mas, principalmente, coloca o vivido em<br />

movimento, possuindo a capacidade dinâmica de construir ou<br />

desconstruir mundos. Segundo J. Vansina, intelectual africano,<br />

“...a oralidade é uma atitude diante da realidade e não ausência<br />

de uma habilidade”.<br />

Dentro desse contexto de oralidade, portanto, a voz, gestos,<br />

contos e cantos têm reencenado memórias negras e feito do<br />

processo de recepção um ato coletivo. Como bem enfatiza a<br />

professora Florentina da Silva Souza, a dinâmica da oralidade<br />

tem sido<br />

Um exercício de sabedoria e de memória que se mostrou de<br />

extrema produtividade na transmissão e preservação de<br />

contos, procedimentos rituais, cantos e tradições que só<br />

sobreviveram até a presente data justamente porque os<br />

ancestrais acreditaram na memória e na oralidade como<br />

instrumentos privilegiados na correia de transmissão de<br />

conhecimentos e saberes. No campo das tradições<br />

religiosas do candomblé, da umbanda, das congadas, podese<br />

observar uma série de exemplos de releituras de gestos,<br />

movimentos, códigos secretos e rituais que foram/são<br />

memorizados, reinterpretados e transmitidos pela “escola da<br />

oralidade” em exercícios constantes de memória e de<br />

sabedoria.<br />

Busca-se aqui, portanto, destacar as possibilidades de se<br />

trabalhar na escola com as narrativas orais, fazendo dessa<br />

“atitude” um instrumento pedagógico, já que vivemos cercados<br />

por elas no nosso dia-a-dia pelos provérbios, orikis (canto de<br />

louvor, gênero da literatura oral africana que louva divindades<br />

ou pessoas dignas de serem lembradas), pregões (das feiras<br />

livres e ambulantes), emboladas, repentes, ladainhas da<br />

capoeira, cantigas de roda, raps (hip hop), contos orais, entre<br />

outras produções artístico-culturais.<br />

<br />

52


Na literatura afro-brasileira, a reencenação da oralidade<br />

na escrita pode acontecer através de vários caminhos. No<br />

plano das tradições religiosas, Abdias do Nascimento, Mestre<br />

Didi, Solano Trindade, entre outros e outras, reanimam mitos,<br />

evocam forças de diferentes orixás, além de representarem<br />

outros elementos de religiões brasileiras de matrizes africanas<br />

em seus textos. Solano, no poema Olorum Ekê constrói um<br />

maravilhoso grito de resistência à discriminação racial:<br />

Olorum Ekê<br />

Olorum Ekê<br />

Eu sou poeta do povo<br />

Olorum Ekê<br />

A minha bandeira<br />

É de cor de sangue<br />

Olorum Ekê<br />

Olorum Ekê<br />

Da cor da revolução<br />

Olorum Ekê<br />

Meu avós foram escravos<br />

Olorum Ekê<br />

Olorum Ekê<br />

Eu ainda escravo sou<br />

Olorum Ekê<br />

Olorum Ekê<br />

Os meus filhos não serão<br />

Olorum Ekê<br />

Olorum Ekê<br />

O contexto de oralidade também está presente em inúmeras<br />

canções de protesto, criadas para blocos afros, com a intenção<br />

direta de combater a opressão vivenciada pelos negros<br />

brasileiros. Suka, em Ilê de Luz, através de enunciados que<br />

circulam oralmente, critica a construção de estereótipos<br />

negativos, discutindo o processo de exclusão a que é<br />

submetido o afrodescendente. A partir de uma inusitada<br />

conjugação de cores, a letra fala em brilho, intensa luz na<br />

<br />

53


escuridão da pele dos componentes do Ilê, tornando mais<br />

vigoroso o discurso crítico:<br />

Me diz que sou ridículo,<br />

Nos teus olhos sou mal visto,<br />

Diz até tenho má índole<br />

Mas no fundo tu me achas bonito<br />

Lindo! Ilê Aiyê...!<br />

Negro sempre é vilão!<br />

Até meu bem, provar que não<br />

É racismo meu? Não<br />

Todo mundo é negro de verdade<br />

É tão escuro que percebo a menor claridade<br />

E se eu tiver barreiras?<br />

Pulo, não me iludo não,<br />

"Com essa" de classe do mundo,<br />

Sou um filho do mundo,<br />

Um ser vivo de luz<br />

Ilê de luz<br />

A cultura hip hop (na tradução, balanço de cintura) também<br />

nasceu em contexto de oralidade das ruas de bairros pobres de<br />

Nova York, com grande concentração de negros e, como lá é<br />

chamado, de latinos. Na década de 80, a cultura hip hop<br />

chegou a bairros proletários da cidade de São Paulo,<br />

espalhando-se, desde então, para várias regiões marcadas<br />

pela pobreza e concentração de população negra.<br />

Em 2003, o grupo maranhense<br />

Clã Nordestino lançou o álbum<br />

A peste negra: o vírus da<br />

informação, trabalhando em<br />

todas as letras a idéia de<br />

quilombologia. Na letra Coração<br />

feito de África, o termo é explicado poeticamente como misto<br />

de orgulho negro com a atitude política preconizada pelo grupo,<br />

constituindo-se em uma forma discursiva de construção<br />

identitária étnico-racial. Segundo a referida letra, a “ideologia<br />

quilombola ferve da sul até o nordeste”, ou seja, estende-se da<br />

<br />

54


zona sul de São Paulo, uma das mais fortes regiões da cultura<br />

hip-hop, a todo o Brasil.<br />

A música central do álbum é aberta com referência a Zumbi:<br />

“Zumbi Rei!!!! Vixe! Zumbi dos Palmares, Quilombo dos<br />

Palmares, quebrem as algemas, queimem os emblemas.<br />

Avante! Revolução! O guerreiro de antes!”. Há a exposição do<br />

sofrimento dos negros e pobres ao lado da colocação da<br />

necessidade de uma união a partir de referenciais étnicoraciais<br />

africanos: “Guerreiros, avante, a guerra é constante/ No<br />

solo, no berço da África, no coração do guerreiro de antes”.<br />

Essa África é representada como origem, “berço”, mas não se<br />

restringe a ser uma África mítica, una, passada e impalpável,<br />

constituindo-se como todos os espaços da diáspora africana<br />

onde há afro-descendentes em condição social subalterna.<br />

Para tanto, é feita a mixagem do Hino da Liberdade Africana,<br />

segundo palavras da letra: “o mais célebre dos hinos”, pois faz<br />

relembrar a luta de africanos pela libertação colonial.<br />

A relação entre essa África mítica criada como ancestral e a<br />

atualidade de pobreza dos afro-descendentes da ampla<br />

diáspora encontra-se visível no seguinte trecho:<br />

Antigamente quilombos, hoje periferia/ O esquadrão<br />

zumbizando as origens africanias/ Somos filhos de uma<br />

guerra sagrada, qualquer periferia, qualquer quebrada é<br />

um pedaço da África/.../ Quiloas, bantos, monjolos,<br />

cabinda, mina, angola, Brasil, Cuba Ruanda, Haiti,<br />

Jamaica e Etiópia/.../ Tirei do Cartola, leniniei as<br />

poesias, saquei um Garrincha e da mão de Luiz fiz a<br />

melodia, a fusão, a toada de uma raça libertária. Sou<br />

Haile Salassie, sou Múmia Abu-Jamal.../sou James<br />

Brown, Berimbrown, Lino Brown, sou da favela. Sou<br />

Kingston, sou do Capão, sou Marrous, sou Sucupira,.../<br />

Sou um da sul/ Nos antigos mistérios da Quilombologia/<br />

Toda quebrada é quebrada na grande periafricania<br />

<br />

55


A ligação entre todas as quebradas da diáspora se dá não só<br />

através da miséria e de péssimas condições de sobrevivência,<br />

mas também por ícones negros da música e da esfera de luta<br />

política contra a discriminação racial. O enunciado construído<br />

em torno de um poderoso neologismo,“ Toda quebrada é<br />

quebrada na grande periafricania”, grava uma idéia de<br />

diáspora negra, contraditoriamente unida e dispersa desde a<br />

época do périplo europeu em torno do continente africano.<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Caso do pioneiro<br />

Teatro Experimental<br />

do Negro (1944-1957),<br />

companhia teatral<br />

idealizada, fundada e<br />

dirigida por Abdias do<br />

Nascimento, possuía<br />

como principais<br />

objetivos a valorização<br />

<br />

<br />

do negro no teatro e a<br />

criação de uma nova dramaturgia. O projeto do Teatro<br />

Experimental do Negro - TEN, englobou o trabalho pela<br />

cidadania do ator, por meio da conscientização e também da<br />

alfabetização do elenco, recrutado entre operários,<br />

empregadas domésticas, favelados sem profissão definida e<br />

modestos funcionários públicos.<br />

A companhia iniciou suas atividades em 1944, colaborando<br />

com o Teatro do Estudante do Brasil - TEB, na encenação da<br />

<br />

56


peça Palmares, de Stella Leonardos. Quando decide<br />

empreender um espetáculo próprio constata que não há, na<br />

dramaturgia brasileira, textos que sirvam aos seus objetivos.<br />

Abdias do Nascimento descobre em O Imperador Jones, de<br />

Eugene O'Neill, o retrato mais aproximado da situação do<br />

negro após a abolição da escravatura. O espetáculo, dirigido<br />

por Abdias do Nascimento, estréia em maio de 1945 no<br />

Theatro Municipal do Rio de Janeiro e obtém boa<br />

receptividade, com elogios ao protagonista, Aguinaldo<br />

Camargo.<br />

Com montagens teatrais até fins da década de 50, o Teatro<br />

Experimental do Negro nunca atingiu o prestígio que pretendia<br />

em seu tempo. Mas, em termos de história do teatro, significou<br />

uma iniciativa pioneira, que mobilizou a produção de novos<br />

textos, propiciou o surgimento de novos atores e grupos e<br />

semeou uma discussão que permaneceria em aberto: a<br />

questão da ausência do negro na dramaturgia e nos palcos e,<br />

posteriormente, nas telenovelas de um país de maioria negra.<br />

Contemporaneamente, grupos de performance teatral negra<br />

buscam ainda furar o cerco da exclusão. Destacam-se o Grupo<br />

de Teatro do Olodum (Salvador – década de 90) e Cia dos<br />

Comuns (Rio de Janeiro - 2001), que, através de textos que<br />

conjugam o cotidiano com memórias africanas ancestrais, têm<br />

produzido belos e críticos espetáculos.<br />

Elenco de Bakulo, encenado em 2005 pela Cia dos Comuns<br />

<br />

57


Esses são alguns exemplos de como a oralidade e a escrita<br />

podem se encontrar, recriando formas de resistir ao racismo. O<br />

trabalho pedagógico com as culturas orais também permite um<br />

diálogo com muitos escritores africanos de língua portuguesa,<br />

que produzem textos reencenando contextos orais na escrita,<br />

como estratégia de resistência aos valores europeus do<br />

colonialismo. Esse é o caso de Pepetela (Angola), Manuel Rui<br />

(Angola), Mia Couto (Moçambique), Paulina Chiziane<br />

(Moçambique), entre tantos outros e outras.<br />

Experimente também ouvir seus alunos(as), permitindo que<br />

eles contem suas histórias na sala de aula. Enfim, o desafio<br />

está lançado, professor(a)! Experimente fazer da oralidade de<br />

origem africana instrumento de promoção da igualdade étnico-<br />

racial dentro da sala de aula.<br />

<br />

58


Tópico 2 – Literatura afro-brasileira infanto-juvenil<br />

(...)<br />

Eu era criança<br />

Papai me contava<br />

Histórias de Trancoso<br />

Que entravam,<br />

Por uma perna de pinto<br />

E saíam por uma perna de pato<br />

...<br />

E papai<br />

Viver me fazia,<br />

Com rei e rainha,<br />

E bichos que falavam,<br />

Fadas e monstros,<br />

Princesas encantadas,<br />

“Comadre onça morreu,<br />

Disse a cabra ao macaco”<br />

Eu achava bonito<br />

Eu achava engraçado...<br />

(Abençam papai, que bicho é esse? Solano Trindade)<br />

O poema de Solano Trindade traz à cena lembranças da<br />

infância, as viagens pelo mundo da imaginação, levando-nos a<br />

refletir sobre como a criança, no processo de se constituir<br />

sujeito leitor, introjeta valores, crenças e padrões em relação a<br />

si mesmo e à sociedade onde interage. No universo literário<br />

infanto-juvenil, o pequeno leitor se reconhece ou se estranha<br />

nos modelos de ambientes, emoções e personagens<br />

transmitidos. Por isso, torna-se fundamental buscar<br />

compreender como a criança negra e culturas de matrizes<br />

africanas têm sido representadas na literatura infanto-juvenil<br />

brasileira.<br />

Pesquisas recentes têm demonstrado o viés eurocêntrico da<br />

produção infanto-juvenil brasileira, inclusive na década de 80,<br />

período em que houve uma inserção quantitativamente<br />

relevante de protagonistas negros em obras dirigidas a esse<br />

público. Esse segmento literário, no Brasil, constitui-se como<br />

um espaço privilegiado de produção simbólica e de sentidos.<br />

<br />

59


Apenas nos fins do séc. XIX e início do séc. XX, a literatura<br />

infanto–juvenil surge com fins didáticos, moralizantes e/ou de<br />

catequização de crianças e jovens, tendo como referência a<br />

Europa.<br />

Nessas narrativas, somente foram encontrados personagens<br />

negros no final da década de 20. Esses personagens, porém,<br />

apresentam um perfil de subalternidade, como os presentes<br />

nas narrativas de Monteiro Lobato, por exemplo. Esse tópico<br />

do módulo de Literatura Afro-brasileira atenta, basicamente,<br />

para uma pergunta: como o negro tem sido representado na<br />

produção literária brasileira dirigida a crianças? É preciso que<br />

pais e/ou professores estejam sensíveis à importância de se ter<br />

na infância referências e heróis negros para constituição,<br />

inclusive, da própria identidade infantil.<br />

Quais personagens negros aparecem em<br />

nossa memória da infância? Quantos<br />

invadiram o mundo de fantasia e nos<br />

fizeram sonhar que éramos eles?<br />

Infelizmente, ter a presença de personagens negros numa obra<br />

ou livro didático não resolve a questão da educação pela<br />

igualdade étnico-racial. É indispensável atentarmos ao modo<br />

como eles são representados: observar as ilustrações, os<br />

conteúdos, os personagens e os seus comportamentos, e<br />

outros aspectos apresentados nas narrativas. É fundamental<br />

que essas obras re-escrevam a história e re-signifiquem a<br />

memória dos negros, e demais grupos étnico-raciais do Brasil,<br />

construindo, de fato, uma representação literária da diversidade<br />

que nos constitui enquanto nação.<br />

O objetivo principal de se ter um olhar crítico em relação à<br />

produção literária infanto-juvenil é questionar e desconstruir<br />

<br />

60


Leituras sugeridas<br />

práticas racistas e discriminatórias em nossas salas de aulas,<br />

denunciando abordagens desfavoráveis à construção da<br />

identidade afro-brasileira, recusando livros didáticos que<br />

comprometam um trabalho pedagógico voltado a uma<br />

educação pela diversidade. Para tanto, é necessário redobrar<br />

os cuidados na seleção dos materiais didáticos e culturais<br />

dirigidos à educação infanto-juvenil.<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Concluímos a Unidade 3. Na próxima<br />

Unidade conheceremos os Cadernos<br />

Negros e ouitras expressões literárias<br />

negras.<br />

GOUVÊA, Maria Cristina Soares. “Imagem do negro na literatura infantil brasileira:<br />

análise historiográfica”. In: http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n1/a06v31n1.pdf<br />

OLIVEIRA, Anória. “Literatura afro-brasileira infanto-juvenil: enredando inovação em face<br />

à tessitura dos personagens negros”. In:<br />

http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/024/MARIA_OLIVEIRA.pdf<br />

SOUZA, Florentina da Silva. “Memória e performances nas culturas afro-brasileiras”. In:<br />

ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias,<br />

práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 30-39.<br />

VASINA, J. “A tradição oral e as metodologia” In:<br />

http://afrologia.blogspot.com/2008/03/tradio-oral-e-sua-metodologia.html<br />

Para saber mais<br />

ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. “Construindo a Auto-estima da Criança Negra”. In:<br />

MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª ed. Brasília: Ministério<br />

da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2008.<br />

BÁ, A Hampaté. “A tradição viva”. In: KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I. 3ª.<br />

<br />

61


Ed. Portugal: Publicações Europa América, 1999. (Ver: História da África).<br />

CIANNI, Solange. Doce princesa negra. Brasília: LGE, 2006.<br />

COSTA, Madu. Kolumba e o tambor Diamba. (coleção Griot Mirim, vol. 1). Belo<br />

Horizonte: Mazza edições, 2006.<br />

GUIMARÃES, Geni. A cor da Ternura. São Paulo: Editora FTD, 1979.<br />

LUIS, Augusto. Lápis de Cor. Coleção Papo sério. Salvador: Ed. FMP: Governo do<br />

Estado da Bahia, 2004.<br />

LUZ, Marco Aurélio de Oliveira. “Novos espaços de comunicação: tradição dos contos na<br />

literatura escrita, no teatro, no cinema e no rádio.” In: Agdá: dinâmica da civilização afrobrasileira.<br />

2ª. Ed. Salvador: EDUFBA, 2000.<br />

LIMA, Fabiana. “É possível afrobetizar a excludente tradição literária brasileira?”. In:<br />

http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/024/FABIANA_LIMA.pdf<br />

_________. O presente de Ossanha. 2ª. Ed. São Paulo: Global, 2006.<br />

LIMA, Heloisa Pires. “Personagens Negros: um breve perfil na literatura infanto-juvenil”.<br />

In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª ed. Brasília:<br />

Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e<br />

Diversidade, 2008.<br />

______. Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das letrinhas, 1998.<br />

MACHADO, Ana Maria. Menina bonita laço de fita. 7ª. Ed. São Paulo: Ática, 2005.<br />

OLIVEIRA, Maria Anória de Jesus. “Negros personagens nas narrativas literárias infantojuvenis<br />

brasileiras: 1979-1989”. Salvador: UNEB, 2003. [Dissertação]<br />

ORTHOF, Sylvia. O rei preto de ouro. São Paulo: Global, 2003.<br />

RODRIGUES, Martha. Que cor é a minha cor? (coleção Griot Mirim, vol. 2). Belo<br />

Horizonte: Mazza edições, 2006.<br />

SOUSA, Andréia Lisboa de. “Nas tramas das imagens: um olhar sobre o imaginário da<br />

personagem negra na literatura infantil e juvenil”. São Paulo: USP, 2003. [Dissertação]<br />

TRINDADE, Solano. Tem gente com fome. São Paulo: Nova Alexandria, 2008.<br />

Material de apoio<br />

Filme:<br />

Kiriku e a feiticeira – Michel Ocelot, 1998. www.kirikou-lefilm.com<br />

Kiriku 2 – os animais selvagens – Michel Ocelot e Bénédicte Galup, 2005.<br />

As aventuras de Azur e Asmar – Michel Ocelot, 2005.<br />

Happy Feet, direção George Miller, 2006.<br />

A princesa e o sapo (em produção) Disney, 2009.<br />

Enquanto isso, na sala de aula...<br />

Costumo iniciar minhas aulas sobre a importância da tradição oral africana, com uma<br />

dinâmica que propõe a socialização da história do nome de cada um dos participantes.<br />

<br />

62


Estimulados(as) a contar para o grupo “qual história envolve a escolha do seu nome?”<br />

os(as) envolvidos(as) vão buscar em suas memórias o que ouviram ao longo da vida<br />

sobre essa escolha e, então, expõem para o grupo se gostam ou não deles. Além dessa<br />

etapa, os(as) participantes substituem seus nomes por outra palavra qualquer; todas elas<br />

são registradas num papel e colocadas num recipiente para o sorteio. Assim, à medida<br />

que os participantes retiram a palavra, vão complementando a história iniciada e<br />

construindo uma grande narrativa improvisada na oralidade.<br />

Todo esse ritual é para motivar os envolvidos a atentarem para a importância da<br />

oralidade, a força da palavra falada, dos registros da memória, dos Griots, das<br />

contadoras de histórias, dos orikis, dos mitos e contos orais das religiões de matriz<br />

africana.<br />

A dinâmica sugerida pode ser modificada, substituída ou adaptada a realidade da turma e<br />

as expectativas do professor. A música do compositor da MPB, Gilberto Gil, “Baba<br />

Alapalá” pode contribuir para uma pesquisa, nessa mesma linha, sobre a origem dos<br />

antepassados dos(as) alunos(as). Essa música requer um cuidado especial, já que a<br />

utilização de textos que envolvem as religiosidades (nesse caso, a de matriz africana)<br />

precisa ser conduzida de maneira saudável e respeitosa para com diferenças. Um(a)<br />

professor(a) precisa transitar, sem juízo de valor, pelas várias religiões existentes,<br />

independendo da sua opção pessoal.<br />

O estudo da tradição oral compreende um universo muito rico de possibilidades. Além<br />

dos já citados, podemos lembrar ainda: das manifestações culturais brasileiras como:<br />

congada, samba de roda, maracatus de baque solto e rurais, festas de bumba-meu-boi,<br />

festas de Reis, marujada, carnaval, capoeira, provérbios africanos, repentistas e<br />

emboladores, hip hop, entre tantos outros, constituintes do acervo vivo e simbólico da<br />

memória cultural afro-brasileira.<br />

O(A) professor(a) encontrará na seção “Textos literários” alguns materiais que abordam,<br />

ou que tragam a tona, o tema da tradição oral. O poema “A velhinha do Angu”, de Solano<br />

Trindade, apresenta fragmentos de pregões dos vendedores de Recife. Este poema pode<br />

fomentar um concurso, no qual os(as) estudantes precisam escolher um objeto a ser<br />

vendido e, a partir dessa seleção, construir seu próprio pregão. Será escolhido o pregão<br />

mais criativo ou proposta uma pesquisa de campo com respectivo registro dos pregões<br />

de ambulantes nos ônibus, praias e/ou feiras livres, à escolha do(a) professor(a).<br />

Os contos orais africanos, especialmente os contos de mestre Didi - que tenta manter na<br />

escrita os traços da oralidade - compõem um excelente acervo do universo mítico das<br />

<br />

63


eligiões de matriz africana e cultura afro-brasileira. Eles podem, no ambiente de sala de<br />

aula, ser encenados pelos(as) alunos(as) em formato de peças teatrais e ou<br />

performances.<br />

O conto de mestre Didi, “Obaluwaiyê – o dono da peste” (disponível na seção “Textos<br />

literários”), ao contar a história/mito de Obaluaê, convida a comunidade a repensar suas<br />

práticas e seus julgamentos precipitados. O orixá citado na narrativa apresenta-se em<br />

situação de enfermidade e é desprezado por toda comunidade. Depois de ser abençoado<br />

pelo deus Olorum e receber o dom de cura, retorna à comunidade e salva a todos de<br />

uma epidemia. Pode-se também trabalhar a presença das folhas, no ritual de cura,<br />

descrito no conto de mestre Didi, para motivar um trabalho de pesquisa sobre essas<br />

práticas no cotidiano brasileiro e baiano. Afinal, quem nunca tomou um chazinho feito<br />

pela vovó para melhorar um desconforto alimentar ou para relaxar? Ver como a ciência<br />

vem se apropriando desses conhecimentos em seus estudos; destacar a importância das<br />

religiões de matrizes africanas na preservação dessa memória, assim como na tradição<br />

indígena.<br />

O trecho de música “Sou negro d+ para você”, do rapper Thaíde, representa a linguagem<br />

do hip hop, movimento que, atualmente, é um forte aliado da educação brasileira. De<br />

modo geral, escola, professores(as), alunos(as) e comunidade, quando se envolvem em<br />

projetos com o hip hop e seus elementos, conseguem resultados excelentes,<br />

principalmente, por parte da juventude. A escola passa a ser uma galeria de arte, com<br />

seus muros e paredes grafitadas e limpas – professores(as) de arte tomam conta dessa<br />

parte do projeto. Os(As) professores(as) de música, dança e educação física aliam-se<br />

aos b.boys e b. girls na arte do Break e dos DJs. A prática de escrita das letras de música<br />

favorece um melhor domínio da língua e dos recursos estéticos e literários, já que os(as)<br />

envolvidos(as) se dedicam a melhorar suas composições e rimas. O(A) aluno(a) exercita<br />

a escrita com mais prazer, passa a questionar, debater e argumentar sobre os problemas<br />

sociais, entre eles, as questões étnico-raciais, como a discriminação e o racismo.<br />

Para a educação infantil, propomos um trabalho que envolva<br />

muita criatividade, alegria e cor. Conforme leitura dos textos<br />

sugeridos, constatamos que algumas obras deixam brechas,<br />

nas quais os(as) mediadores(as) devem intervir: seja nas<br />

descrição de personagens negras que, por vezes, ganham<br />

traços animalizados, sejam os desenhos e ilustrações nos quais os personagens negros<br />

(embora, na narrativa, tenham sua identidade preservada), são representados como<br />

monstros e aberrações nas imagens, ou, mesmo, uma armadilha bastante discreta e<br />

<br />

64


ecorrente nos conteúdos dos textos que se pretendem afro-brasileiros ou africanos. Um<br />

bom exemplo podemos encontrar no livro Flor Encarnada (1919) de Tales de Andrade,<br />

coleção Biblioteca Infantil, em que descreve uma princesa africana:<br />

(...) tão inteligente e tão instruída que todas<br />

as pessoas vinham lhe pedir conselhos<br />

Ela sabia qual o remédio a dar aos doentes,<br />

conhecia todas as espécies de plantas. (...)<br />

Um dia Flor Encarnada ao passear encontrou<br />

uma linda moça, sentada junto de um<br />

algodoeiro. Era um jovem branca, de estranha<br />

beleza...<br />

— Quem é você? perguntou Flor Encarnada<br />

cheia de admiração. Eu nunca a vi em nossas<br />

cabanas...<br />

— É verdade, respondeu a moça, sorrindo.<br />

Embora você não me visse, era eu quem<br />

segredava aos seus ouvidos tudo o que<br />

você sabe em relação à floresta. Quem julga<br />

você que lhe tenha ensinado as coisas<br />

que você conhece das plantas e dos animais?<br />

Era eu quem lhe ensinava, menina...<br />

(Andrade, 1919, p. 7-8)<br />

A Flor encantada, apesar de todas as qualidades e a visível valorização de sua cultura<br />

descritas na narrativa, vacila ao atribuir ao personagem branco a bondade de ter passado<br />

para o negro seus conhecimentos e saberes. Essa prática é recorrente em diversas<br />

obras, inclusive em narrativas televisionadas, na qual os negros, ao ascenderem<br />

socialmente, são sempre via bondade e desprendimento dos personagens não-negros.<br />

Interessante criar ambientes agradáveis para a prática de leitura de textos infanto-juvenis<br />

afro-brasileiros, decorando a sala e provocando a curiosidade dos alunos sobre o que vai<br />

ser contado. A inclusão de imagens de negros(as) em situações do cotidiano na<br />

decoração da sala, nos brinquedos, fantoches, etc. contemplando a diversidade étnica<br />

brasileira, pois ajuda no desenvolvimento e na promoção de um melhor rendimento das<br />

crianças negras, que passam a se sentir incluídas no processo educacional.<br />

Nas unidades anteriores, vimos outras possibilidades de atividades e discussões a serem<br />

propostas no ensino infanto-juvenil. Reforçamos a solicitação de inclusão de outras<br />

formas narrativas e de representação para dialogar com essa literatura, assim como a<br />

música, as telenovelas, revistas, propagandas e comerciais, o cinema, a pintura, o teatro,<br />

entre outros, precisam e podem ser incluídos às nossas práticas em sala de aula.<br />

<br />

65


Professores(as), explorem os textos sugeridos, criem outras atividades com<br />

outras referências e, assim, vamos trocando nossas experiências!<br />

<br />

66


CADERNOS NEGROS E OUTRAS<br />

POÉTICAS<br />

A última Unidade do Módulo de Literatura Afro-brasileira chegou e ainda há tanto<br />

a ser lido, dito, sugerido... tantos são os acervos e as referências a serem citadas<br />

sobre o assunto. É com o objetivo de criar mais oportunidades de inovação para a<br />

prática pedagógica antirracista que fechamos esse trabalho com o “Cadernos<br />

Negros e outras poéticas”.<br />

Após trinta e um anos de publicação ininterrupta, a importante antologia afro-<br />

brasileira de literatura, os Cadernos Negros, também serão nosso tema de<br />

estudo. As outras poéticas são as demais publicações, canções, obras de arte e<br />

diferentes linguagens, que podem ser dialogadas com a literatura para o<br />

cumprimento da Lei nº 10.639/03.<br />

Tópico 1 – Cadernos Negros e outras poéticas<br />

Objetivos:<br />

• Estudar as produções mais significativas sobre a literatura afro-brasileira;<br />

• Refletir sobre o papel dos Cadernos Negros no que refere à legitimação da<br />

Literatura Afro-brasileira;<br />

• Dialogar a literatura afro-brasileira com outras expressões artísticas;<br />

<br />

67


Tópico 1 – Cadernos Negros e outras poéticas<br />

A nossa fala desvela, delata, relata, invade quem ouvi-la ou lê-la.<br />

Ela é a própria personificação de negro sendo, re-sendo,<br />

mudando, re-mudando, sentindo, re-sentindo<br />

<br />

Miriam Alves<br />

Em São Paulo, um grupo de escritores afro-brasileiros se<br />

organiza e publica textos voltados para a condição social do<br />

negro no Brasil, com a colaboração financeira de cada um dos<br />

integrantes. Surgiam, assim, os Cadernos Negros em 1978. A<br />

idéia de se fazer uma antologia, para publicação de poemas e<br />

contos negros, surge no CECAN – Centro de Cultura e Arte<br />

Negra, espaço onde jovens se reuniam e participavam de<br />

discussões políticas. A estudante de Letras, no artigo “Uma<br />

história que está apenas começando” contextualiza o momento<br />

histórico em que a juventude negra paulista se voltava para a<br />

criação dos próprios meios de comunicação, como estratégia<br />

de luta contra o racismo e propagação de imagens positivas do<br />

negro:<br />

Jovens como Jamu Minka se envolviam cada vez mais<br />

com mídias alternativas: “Eu vinha de uma experiência<br />

alternativa, um tablóide muito famoso na época: Versos.<br />

Era um tablóide de esquerda que criticava todas as<br />

ditaduras do Cone Sul. Em seguida fui para o CECAN<br />

para fazer o jornal dessa entidade, o Jornegro”.<br />

(...)<br />

<br />

68


O jovem negro, nesse momento, começava, em<br />

quantidade, a entrar nas universidades, acessando a<br />

produção cultural: cinema, literatura, teatro —<br />

diferentemente de gerações anteriores, que tinham<br />

mais dificuldade de ingressar num curso superior e<br />

acessar os bens culturais pertencentes a esse<br />

universo. Eram jovens negros que estavam se<br />

destacando da realidade já há muito tempo<br />

tradicional: analfabetismo, exclusão, subempregos,<br />

marginalidade.<br />

A série Cadernos Negros tem sido, desde então, publicada<br />

anualmente, alternando poesia e conto, de maneira até hoje<br />

ininterrupta, envolvendo escritores comprometidos com a<br />

escrita literária afro-brasileira de várias partes do país. Em suas<br />

publicações, consagram-se os nomes de Cuti (Luiz Silva),<br />

Oswaldo de Camargo, Miriam Alves, Márcio Barbosa, Jônatas<br />

Conceição, Éle Semog, Landê Onawale, Esmeralda Ribeiro,<br />

Conceição Evaristo, Alzira Rufino e muitos/as outros/as afrobrasileiros/as<br />

que fazem de sua escrita uma “arma” contra o<br />

preconceito e a discriminação.<br />

Essa produção propõe a representação do Brasil pelo viés das<br />

negociações entre as múltiplas etnias que o compõem,<br />

questionando um modelo de sociedade na qual aos grupos<br />

excluídos só tem restado uma única alternativa: assumir<br />

valores e padrões da tradição erudita de viés branco-europeu.<br />

Dentro de tal contexto de resistência cultural, o uso da<br />

expressão ‘literatura negra e/ou afro-brasileira’ justifica-se, para<br />

os escritores, por falar da realidade e identidade do negro,<br />

trazendo as marcas de sua história, memória, vida, diferenças<br />

e, obviamente, trabalho estético com a palavra em cena no<br />

texto literário. Segundo Florentina Souza, professora de<br />

Literatura Brasileira da UFBA e pesquisadora dos Cadernos<br />

Negros:<br />

Os textos dos CN podem ser lidos como<br />

depoimentos criativos de uma geração de escritores<br />

<br />

69


que reivindica um espaço para a voz negra na vida<br />

cultural e literária brasileira. Para tanto, tematizam<br />

vários aspectos da vida cotidiana do afro-brasileiro em<br />

particular, tais como a necessidade de construção de<br />

uma auto-imagem positiva, o resgate das tradições de<br />

origem africana e o combate às manifestações<br />

cotidianas de discriminação e preconceito racial na<br />

escola e trabalho – problemas decorrentes da<br />

sistemática exclusão do negro dos direito de<br />

cidadania... 1<br />

A preocupação dos escritores na construção dos seus textos<br />

passa pela tentativa de criar novos paradigmas para a literatura<br />

brasileira, pois, conforme as reflexões de Cuti, um dos<br />

iniciadores da publicação, a língua portuguesa não foi<br />

estruturada visando à libertação do povo negro.<br />

Os textos dos Cadernos Negros estão comprometidos com a<br />

história do povo negro e incomodam por trazerem à tona o<br />

problema das desigualdades sociais, por discutirem o perfil<br />

excludente de nação traçado pela maior parte da produção<br />

literária canônica. A literatura negra/afro-brasileira, devido a<br />

todas as questões discutidas neste módulo ligadas ao ensino<br />

formal de literatura e a uma concepção de nação limitadora,<br />

vive praticamente na marginalização, tentando lutar também<br />

contra outro problema brasileiro: a falta do hábito de leitura,<br />

sobretudo entre a população negra.<br />

Ao trazer um discurso comprometido com a desidealização do<br />

negro e do branco na sociedade brasileira, os Cadernos<br />

Negros trazem outras imagens de Brasil, como no poema<br />

Menino BR, de Jorge Siqueira:<br />

Dentes de Brasil, orelhas de abril<br />

Olhos d´águas claras, peito juvenil<br />

Cabelo pixaim, dono do amendoim<br />

Menino pro que der, pivete pro que vier<br />

destino que o mundo fez<br />

Nos olhos, ilusão, nos pés, uma canção<br />

nas mãos, uma aflição<br />

(pronta pra uma solução)<br />

<br />

70


Traído no arranha-céu<br />

Culpado da solidão<br />

Lua de zinco, prato de alcatrão!<br />

(CN melhores poemas, p. 84)<br />

Outras antologias têm se mostrado importantes no cenário<br />

literário da contemporaneidade, como Quilombo de Palavras<br />

(2000), Schwarze poesie – Poesia negra (1988), Poesia Negra<br />

Brasileira: Antologia (1992), entre outras publicações coletivas<br />

e individuais que possuem como foco a escrita afro-brasileira.<br />

Na coletânea Terras de palavras (2004), através de textos<br />

ficcionais, memórias fragmentadas exigem um espaço para<br />

que sejam recompostas, caso, por exemplo, do conto A<br />

Bailarina do escritor baiano Landê Onawalê, em que a linda<br />

moça negra tem seu rosto escondido pela tarja do produto<br />

anunciado na TV, transformando-se em símbolo da<br />

invisibilidade da imagem negra nos meios de comunicação de<br />

massa:<br />

Não via a hora da estréia do comercial. Seria no<br />

horário nobre, e o bairro inteiro, aliás, a cidade inteira<br />

se tornaria um buchicho só no dia seguinte. À tarde,<br />

fora buscar o cachê da sua participação e, junto com<br />

as outras dançarinas, assistiu ao filme já editado.<br />

Faltava apenas a inserção da logomarca do produto.<br />

As evoluções por demais ensaiadas no estúdio e na<br />

escola de balé que freqüentavam ficaram perfeitas. Os<br />

passos finais, em slow motion, culminavam com o salto<br />

de todas em direção à câmera. Uma das colegas, a de<br />

perfil mais próprio, mais nórdico, mostra, na palma da<br />

mão, o copinho do iogurte anunciado — o produto<br />

disputando a tela com os sorrisos sadios das moças<br />

por breves 5 segundos de imagem congelada.<br />

Às 19 horas, a janela da sala — e o próprio cômodo —<br />

estava apinhada de gente. Quem possuía TV em casa<br />

ouvia as reclamações de quem não possuía o<br />

aparelho: todos consideravam mais emocionante<br />

assistir ao comercial na casa da artista.<br />

Plim Plim. Os moleques largaram as bolas de gude na réstia de<br />

barro onde brincavam e se enfiaram por entre as pernas dos<br />

adultos. A irmã da bailarina, na varanda, interrompeu o beijo e<br />

<br />

71


adentrou a sala arrastando o namorado pela mão. Os<br />

comerciais que se sucediam, mesmo os mais tolos, nunca<br />

tiveram uma platéia tão e silenciosa.<br />

Começou. As moças dançavam como as cabeças dos<br />

expectadores. “Cadê ela?! Cadê ela?!” “Ali ó. Aquela<br />

de roupa azul.” “Mas são várias! Bem que a TV<br />

poderia ser maior, né?”, observou o vizinho. “No final<br />

fico mais visível”, disse a dançarina aflita. “Psssiu!”,<br />

repreendeu a mãe.<br />

Para todos os 30 segundos foram eternos. Quando o<br />

balé iniciou os movimentos finais, a bailarina inclinouse<br />

instintivamente para a TV. Na tela, ao canto<br />

superior direito, uma tarja branca com o nome do<br />

produto apareceu e foi<br />

escorregando em diagonal. Foi entrando... entrando...<br />

e parou, escondendo ao fundo seu rosto negro tão<br />

bonito.<br />

Em termos de produção individual, têm se destacado escritores<br />

como Cidinha da Silva, Marcelino Freire, Conceição Evaristo,<br />

Edimilson de Almeida Pereira, entre outros nomes. Em Contos<br />

Negreiros (2005), Marcelino Freire apresenta ao público leitor o<br />

conto Trabalhadores do Brasil, constituído de imagens e vozes<br />

justapostas que acabam por criar um discurso que arrebenta<br />

agressivo, clamando por justiça racial e social:<br />

Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na zona da<br />

mata pernambucana Olorô-Quê vende carne de<br />

segunda a segunda ninguém vive aqui com a bunda<br />

preta pra cima tá me ouvindo bem?<br />

Enquanto a gente dança no bico da garrafinha Odé<br />

trabalha de segurança pega ladrão que não respeita<br />

quem ganha o pão que o Tição amassou<br />

honestamente enquanto Obatalá faz serviço pra<br />

muita gente que não levanta um saco de cimento ta<br />

me ouvindo bem?<br />

Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus<br />

naquele transe infernal de trânsito Ossonhe sonha<br />

com um novo amor pra ganhar 1 passe ou 2 na<br />

praça turbulenta do Pelô fazendo sexo oral anal seja<br />

lá com quem for ta me ouvindo bem?<br />

<br />

72


Enquanto Rainha Quelé limpa fossa de banheiro<br />

Sambongo bungo na lama e isso parece que dá grana<br />

porque o povo se junta e aplaude Sambongo na<br />

merda pulando de cima da ponte ta me ouvindo bem?<br />

Hein seu branco safado?<br />

Ninguém aqui é escravo de ninguém.”<br />

Nos centros urbanos brasileiros, grupos de escritores têm<br />

criado alternativas de publicação e de circulação do texto<br />

literário afro-brasileiro, através de editoras em forma de<br />

cooperativa de autores, caso das Edições Toró (São Paulo),<br />

cuja produção e distribuição de livros é feita pelos próprios<br />

escritores e da Cooperifa (São Paulo), que desde 2002<br />

promove saraus literários onde escritores marginalizados do<br />

mercado editorial comercialmente competitivo, ainda<br />

majoritariamente comprometido com representações literárias<br />

europocêntricas, têm espaço para exibir a própria produção e<br />

trocar com outros escritores.<br />

Este módulo teve, portanto, como principal objetivo sugerir e<br />

fomentar a inserção da produção literária afro-brasileira na<br />

escola básica, seja nas aulas de literatura, em outras<br />

disciplinas ou em atividades pedagógicas interdisciplinares,<br />

como uma possibilidade de diversificar os discursos<br />

relacionados à convivência inter-racial no Brasil. Reflexões<br />

teóricas e literárias contemporâneas favorecem, por outro lado,<br />

a ruptura dos muros e limites disciplinares, proporcionando<br />

cruzamentos entre áreas de conhecimento e produções<br />

artísticas distintas.<br />

Esse processo certamente enriquecerá o contato crítico do<br />

aluno com o texto literário e com o mundo social,<br />

proporcionando-lhe uma visão ampla da diversidade étnicoracial<br />

do Brasil e uma compreensão dos limites individuais e<br />

coletivos que o racismo instaura.<br />

<br />

73


Leituras sugeridas<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

PRUDENTE, Celso Luiz. “Cinema Negro: aspecto de uma arte para afirmação ontológica<br />

do negro brasileiro”. In: Revista Palmares: Cultura Afro-brasileira, Ano 1, n.1, agosto,<br />

2005. p. 68-72.<br />

QUILOMBHOJE. “Histórico dos cadernos negros”. In:<br />

http://www.quilombhoje.com.br/cadernosnegros/historicocadernosnegros.htm<br />

SOUZA, Florentina da Silva. “Os Cadernos Negros”. In: Afro-descendência em Cadernos<br />

Negros e jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.p. 95-111.<br />

Teatro experimental do negro. In: www.abdias.com.br/teatro_experimental.html<br />

Para saber mais<br />

ARAÚJO, Joel Zito. “A TV e a negação do Brasil”. In:<br />

www.tvebrasil.com.br/salto/entrevistas/joel_zito_araujo.htm<br />

BERND, Zilá (Org.). Poesia Negra Brasileira: Antologia. Porto Alegre: Instituto Estadual<br />

do Livro, 1992. Disponível em:<br />

<br />

Cadernos Negros: os melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998.<br />

Cadernos Negros: Os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, 1998.<br />

Cadernos Negros, volume 24: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2001.<br />

Cadernos Negros, volume 28: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2005.<br />

Cadernos Negros, volume 29: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2006.<br />

CONCEIÇÃO, Jônatas e BARBOSA, Lindinalva (Org.). Quilombo de Palavras: a literatura<br />

dos afro-descendentes. 2ª. ed. Salvador: CEAO/UFBA, 2000.<br />

SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e jornal do MNU.<br />

Belo Horizonte: Autêntica, 2005.<br />

<br />

74


______. “Quilombo de Palavras” In: CONCEIÇÃO, Jônatas e BARBOSA,<br />

Lindinalva (Org.). Quilombo de Palavras: a literatura dos afro-descendentes. Salvador:<br />

CEAO/UFBA, 2000.<br />

Schwarze poesie – poesia negra. Alemanha: Edition diá, 1988.<br />

Enquanto isso, na sala de aula...<br />

Nas atividades em sala, pode-se pensar, inicialmente, numa pesquisa sobre a história<br />

dos 31 anos de existência dos Cadernos Negros (esses dados são encontrados<br />

facilmente no site do Quilombhoje, em livros e trabalhos de pesquisa disponíveis na<br />

internet e nas bibliotecas). O segundo passo, após a pesquisa, é estimular a confecção<br />

de um caderno de poesia (atividade que envolve as habilidades artísticas). Caso não seja<br />

viável a compra de um caderno para cada aluno, além da realização de um trabalho<br />

processual de oficinas de criação literária, adapta-se a atividade com apenas uma oficina.<br />

De posse dos textos de cada aluno, constrói-se um livro de poesia afro-brasileira da<br />

turma. Nem vamos precisar de Hugo Ferreira, os próprios alunos devem ter ideias ótimas<br />

para nomear essa “publicação”.<br />

Falando em publicação, destaco duas das mais importantes sobre os Cadernos Negros:<br />

o livro “Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU” de Florentina da Silva<br />

Souza - publicado em 2005, resultado de uma longa e qualificada pesquisa que culminou<br />

em sua tese de Doutorado em Letras, e a publicação-homenagem, “Cadernos Negros:<br />

três décadas: ensaios, poemas, contos”, lançado em 2008, organizado por Esmeralda<br />

Ribeiro e Márcio Barbosa (coordenadores do Quilombohje Literatura). Essa brochura tem<br />

por objetivo mostrar um painel panorâmico sobre a série. Os textos foram selecionados<br />

de diferentes edições contendo um conto e um poema de cada autor. Aqui destaco um<br />

trecho da introdução feita pelos organizadores,<br />

“Desta forma, podemos dizer que a cada lançamento de Cadernos Negros<br />

uma sensação de conquista para toda a sociedade se espalha pelo ar, pois o<br />

todo se enriquece com pequenos passos como esses. Seria interessante que<br />

os educadores, tocados por essa sensação, dessem mais atenção aos<br />

<br />

75


Cadernos Negros, trabalhando com eles nas salas de aula para que os alunos<br />

também pudessem ser brindados com textos que falam, muitas vezes, de<br />

realidades muito próximas às deles.” (BARBOSA & RIBEIRO, 2008, p.16)<br />

Oportunizar que os(as) alunos(as) acessem, possam discutir e reelaborar as leituras dos<br />

textos contidos nos Cadernos Negros também foi uma preocupação ao elaborarmos esse<br />

Módulo. Assim, durante todo curso foram utilizados contos e poemas publicados no CN.<br />

Os(as) professores(as) podem, assim, preparar atividades adequadas a cada nível de<br />

ensino, disciplina e objetivo, assim como promover atividades culturais e realizar oficinas<br />

dinâmicas e criativas nas unidades escolares tendo em vista a sensibilização para a<br />

leitura dos Cadernos Negros (CN).<br />

No tópico “Textos literários” desta Unidade, poderão ser encontrados poemas e contos<br />

dos CN, alguns em homenagem à própria série, outros abordam assuntos como estética<br />

afro, o continente e as produções literárias africanas, as conseqüências do racismo (autocensura).<br />

As discussões em torno dessas temáticas ressignificam valores e crenças<br />

acerca das populações afro-brasileiras, reconstituem o imaginário sobre o negro,<br />

promovem a elevação da auto-estima, além de criarem espaços - dentro e fora da escola,<br />

para discussão das diferenças étnicorraciais.<br />

Quanto às “Outras poéticas”, poderia citar uma série de outras publicações<br />

importantíssimas para a consolidação da Literatura Afro-brasileira, tais como “O negro<br />

escrito” e “A razão da chama: antologia de poetas negros brasileiros”, de Oswaldo de<br />

Camargo, “Axé: antologia da poesia negra contemporânea”, organização de Paulo<br />

Colina, “Criação Crioula: nu elefante branco”, organização de Cuti, Mirian Alves e Arnaldo<br />

Xavier, “Reflexões sobre literatura afro-brasileira”, do Conselho de participação e<br />

desenvolvimento da comunidade negras, “Literatura e identidade Nacional”, de Zilá<br />

Bernd, “Quilombo de palavras: a literatura dos afro-descendentes”, organização de<br />

Jonatas Conceição e Lindinalva Barbosa, citando apenas algumas. Porém, o destaque do<br />

subtítulo fica com as possíveis estratégias contemporâneas de apropriação de diferentes<br />

linguagens e recursos – a notar pelos materiais sugeridos no tópico “Textos literários”, ou<br />

seja, oriki, música, endereços eletrônicos de vídeos de músicas, entidades culturais,<br />

cinema negro, museus afros, teatro negro, dança afro e capoeira, etc. para que, em<br />

diálogo com a literatura afro-brasileira, possam contribuir para a efetiva inclusão da<br />

história e cultura afro-brasileira tanto nas práticas educacionais como nos discursos<br />

nacionais.<br />

<br />

76


Nesse ponto, convido os(as) professores(as) a criar suas atividades, aproveitando as<br />

sugestões das unidades anteriores. No entanto, é preciso atentar ao cumprimento do<br />

nosso objetivo, que é buscar como resultado das atividades das aulas a ampliação das<br />

discussões quanto à presença e importância da população negra na formação e<br />

constituição do Brasil.<br />

As discussões e poéticas precisam sair das páginas dos livros e ganhar o mundo seja<br />

através da música, da TV, da arte, da dança, entre outros caminhos.<br />

Textos literários<br />

VENTO FORTE - POESIA<br />

Lepê Correia<br />

Hoje me falta o verso<br />

Como falta pão e farinha<br />

Na mesa do meu irmão.<br />

Meu estomago poético ronca<br />

Dá nó a tripa da inspiração<br />

Uns com tanto e outros sem saber<br />

Vou gritar pelo velho Trindade<br />

Quero alguma imaginação pra beber<br />

Algo que aplaque esse misere...<br />

Poético sim... Por que não?<br />

Ele sempre teve<br />

Em cada caracol de sua carapinha<br />

Um verso, uma ilusão espalhada: Pelas barbas, nos cabelos do sovaco...<br />

Até nos arames pubianos<br />

É... até lá tinha versos pendurados<br />

Me acode, Veio!<br />

Agora e na hora de qualquer papel em<br />

E depois, vai ser poeta assim na casa<br />

DIÁRIO DE UMA FAVELADA<br />

Ademiro Alves (Sacolinha)<br />

Maria teve uma doença na perna<br />

Curada com o tempo e com as rezas<br />

Passou a adolescência de casa em<br />

Na labuta de empregada<br />

Carolina já adulta continuava sozinha<br />

Andava aqui e ali<br />

Sempre à procura de emprego<br />

Nunca de migalhas<br />

[como.<br />

[branco<br />

[d’Osanlá.<br />

[casa<br />

<br />

77


De Jesus herdou o nome<br />

E a coragem<br />

Foi jogada na favela<br />

Esperta que era<br />

Tirou proveito dela<br />

Relatando os tropeços<br />

Nasceu então o quarto de despejo<br />

ANCESTRAL<br />

Landê Onawale<br />

Para Lindi e Abdias<br />

Em mim falam vozes ancestrais<br />

Que conversam mais, se calo,<br />

Ou a alma silencia<br />

- ainda que em meio à algaravia.<br />

Carrego por dentro abismos<br />

Onde ecoam os mais leves sussurros,<br />

Canyons mergulhados por pássaros<br />

De guinchos e vôos atemporais...<br />

Assim é que, do meu canto,<br />

Surgem versos de improviso;<br />

No meu grito.<br />

Ecos de quilombos e porões;<br />

Em minhas teses, tramas dos canaviais.<br />

Sei a oração que princípio,<br />

Mas não onde o desejo dos verbos acaba:<br />

São incertos os ventos<br />

Que sopram as velas do meu destino.<br />

CUMPLICIDADE<br />

Graça Graúna<br />

Agora pela hora da minha agonia<br />

louvo Trindade e Jorge de Lima<br />

cantando, catando as duras penas, só.<br />

- De onde vem, Solano, esta agonia?<br />

- Vem de longe, nega, muito longe!<br />

De Afroamérica sonhada.<br />

lá, donde crece la palma<br />

plantada em versos de alma,<br />

del hombre José Martí.<br />

- De onde vem, Solano, esta agonia?<br />

- De muito longe, nega.<br />

Do comecinho das coisas;<br />

de muito longe, minha nega, muito<br />

longe...<br />

<br />

78


QUASE HAI KAI<br />

Graça Graúna<br />

Para Cruz e Souza<br />

À cruz do poeta<br />

Doura trêmulas quimeras:<br />

Sempre-vivas sobre a mesa<br />

ACERTO DE COTAS<br />

Landê Onawale<br />

Depois de nos espremermos<br />

sob as pontes<br />

dividindo pedaços de vão<br />

depois de esquentarmos nossos medos<br />

nos limites de cada prisão<br />

e de disputarmos com todos os bichos<br />

buracos no parmesão<br />

é hora de outras partilhas...<br />

distribuir agasalhos, e não o frio<br />

repartir comida, e não a fome<br />

depois dos lares loteados<br />

pelas botas da violência<br />

e dos empregos cotizados<br />

para servir às aparências<br />

depois dos elencos rateados<br />

nos cabendo a subserviência<br />

é tempo de outros papéis<br />

e - por que não? - de anéis...<br />

SE ELA FAZ EU DESFAÇO<br />

Éle Semog<br />

A treze de maio fica decretado<br />

Luto oficial na comunidade negra<br />

E serão vistos com maus olhos<br />

Aqueles que comemorarem festivamente<br />

Esse treze inútil<br />

E fica o lembrete:<br />

Liberdade se toma<br />

Não se recebe<br />

Se toma<br />

Dignidade se adquire<br />

Não se concede.<br />

<br />

79


DOMÍNIO DAS PEDRAS<br />

Jônatas Conceição<br />

As pedras caíam no silêncio<br />

das bocas que mal diziam.<br />

As peças eram trabalhadas<br />

com esmero, precisão,<br />

para a queda final.<br />

Os parceiros não se olhavam<br />

(o jogo não permitia admiração)<br />

Mal miravam as mãos,<br />

os dedos hesitantes.<br />

No domingo,<br />

o domínio das pedras<br />

era absoluto.<br />

Os homens se revestiam<br />

ao redor da tábua<br />

onde a vida não lhes pregava peças.<br />

IDENTIDADE<br />

José Carlos Limeira<br />

Houve um tempo em que<br />

Constava em sua carteira<br />

o dado cor<br />

na minha: pardaescuracabeloscarapinhados.<br />

Diante do espelho, me pergunto<br />

que faço com estes lábios grossos,<br />

este nariz achatado?<br />

Que faço com esta memória<br />

de tantos grilhões,<br />

destas crenças me lambendo as entranhas?<br />

Será que não é demais não ter o direito<br />

de ser negro ?<br />

Causa espanto?<br />

Pardaescura é o aspecto que vocês deram<br />

à nossa historia.<br />

Morra de susto!<br />

Sou, vou sempre ser: NEGRO!<br />

ENE, É,ERRE,Ó.<br />

Aqui, Ó!<br />

DESENGANOS<br />

Márcio Barbosa<br />

Benedito da Silva, ao entrar num shopping para resolver um assunto importante, parou<br />

numa loja de artigos femininos. Escolheu algumas roupas, ia pagar quando o homem do<br />

<br />

80


outro lado do balcão perguntou:<br />

- O cheque é seu?<br />

"É da minha avó", quis dizer. Sempre perguntavam aquilo.<br />

- É - respondeu.<br />

- E o telefone do seu emprego?<br />

Enquanto o homem pegava o cheque e ia telefonar, Benedito olhou para as roupas em<br />

cima do balcão. Caríssimas. E se simplesmente saísse com elas? Não...Ele podia<br />

pagar... E a Preta merecia. Um ano de namoro. - Ninguém o conhece lá - o homem disse,<br />

quando voltou.<br />

- Como?<br />

- Ninguém jamais ouviu falar do senhor.<br />

- Tá certo, então, amigo. Vou comprar em outra loja.<br />

- O senhor aguarde um pouco.<br />

- Aguardar o quê?<br />

O homem, cínico, olhou para a porta, por onde entravam dois seguranças usando ternos<br />

impecáveis. Um deles, o mais baixo, de bigodes, estendeu um queixo acusador e<br />

ordenou:<br />

- O senhor queira nos acompanhar.<br />

- Isto é um erro muito grande - disse Benedito, espantado.<br />

- Por favor, não complique as coisas.<br />

Levaram-no - perplexo e emudecido - rapidamente para uma sala nos subterrâneos.<br />

Benedito, sentado numa das duas cadeiras, imaginava se não fora um equívoco ter<br />

decidido por aquele shopping. O segurança bigodudo, por detrás de uma mesa, balançou<br />

o cheque.<br />

- Temos um problema aqui - falou. É melhor o senhor dizer de quem é isto.<br />

Benedito achou aquilo uma humilhação, um absurdo.<br />

- Vocês não vêem - disse, sem poder conter a exaltação - que é tudo um engano?<br />

Merda...<br />

- Veja como fala.<br />

- Falo do jeito que eu quiser - Benedito gritou.<br />

O bigodudo cerrou os punhos e inflou o peito. Parecia feito de aço. O outro homem, o<br />

careca, que estivera em pé, quieto, interferiu:<br />

- Calma, bigode, vamos devagar. - Virou-se para Benedito - Pode ser que seja um<br />

engano, mas tem um pessoal lá em cima que não vai pensar assim. Por isso, não seja<br />

arrogante.<br />

- Então, eu vou lhes dizer uma coisa...<br />

<br />

81


- Diga de quem é o cheque - ordenou o bigodudo.<br />

- Da tua avó.<br />

- Preto filho da mãe.<br />

Aquilo foi mais forte que um soco.<br />

- Porra, bigode! - O careca contraíra os músculos do pescoço e seu nariz quase<br />

encostava na cabeça do outro.<br />

- Então, é isso - Benedito conseguiu murmurar.<br />

O careca acendeu um cigarro e falou numa voz macia:<br />

- O meu companheiro se exaltou. Não é isso o que ele pensa, não é, bigode?<br />

O outro encostara a cadeira na parede e não falou nada.<br />

- Olha bem pra mim - o careca ordenou. - Eu sou negro também...<br />

- Porra nenhuma - era o bigode que cuspia no chão.<br />

- Sou mulato. E nunca tive problemas por aqui. Mas o senhor vai compreender... A<br />

supervisão lá em cima está nos cobrando. Vem um chefe novo aí e eles querem mostrar<br />

serviço...<br />

- Meto um processo em cima dos dois...<br />

O bigodudo cuspiu no chão outra vez.<br />

- Você não tem onde cair morto. Quem sabe a gente não seja promovido se te der uma<br />

lição? É isso aí, neguinho, promovidos...<br />

- Cala a boca. - o careca inflamou-se. Depois colocou a mão no ombro de Benedito. - Só<br />

irão deixá-lo sair se provar sua inocência. Compreenda, o novo chefe...<br />

Benedito levantou-se, sentia na boca o gosto de algo azedo. Encarou o bigodudo. Seu<br />

rosto iluminou-se.<br />

- Eu não sei do que vocês estão me acusando.<br />

Na verdade, sabia. No fundo, acusavam-no por estar ali - um local que supostamente não<br />

era para ele - , por consumir em lojas que não eram para ele, por ser atendido por<br />

pessoas que não eram iguais a ele.<br />

- Parei naquela loja por acaso. Dei o telefone do meu antigo emprego - argumentou. -<br />

Talvez tenha errado algum número.<br />

- Antigo? Quer dizer que o malandro não trabalha?<br />

- Vim aqui para isso. Assinar a ficha do meu novo emprego.<br />

Os dois homens se olharam, surpresos.<br />

- Aqui, no shopping?<br />

-Era o que eu tentava dizer. Vou trabalhar na segurança. Dizem que está violenta.<br />

Chamaram-me há uma semana... para ocupar a chefia...<br />

<br />

82


O careca deixou cair o cigarro. O bigodudo pensou que a promoção não viria. E Benedito<br />

lembrou-se da Preta. Sentiu ternura e, pensando que algumas coisas por ali seriam<br />

mudadas, respirou aliviado.<br />

GAROTO DE PLÁSTICO<br />

Cristiane Sobral<br />

Tem gente que vem ao mundo a passeio, outros, a serviço. E ele vivia assim, à paisana.<br />

Era um indivíduo descartável e nunca fizera o menor esforço. Malhar, só na academia,<br />

para garantir o êxito dos amassos noturnos no seu ponto de encontro predileto, as<br />

boates, onde costumava caçar seu objeto preferido: mulher. Mulher loira, claro.<br />

Seu jeito era meio distraído durante o dia porque gastava toda a energia à noite, nos<br />

agitos. Sua expressão era meio aérea e seu sorriso, completamente sintético. Marcava<br />

presença na classe jovem que freqüentava pelo seu nada original nick name: "boy". Aliás,<br />

ele considerava-se um dos melhores frutos da era da informática: o gato virtual. Nada de<br />

contatos verdadeiros. Não tinha mesmo muitos neurônios disponíveis para desenvolver<br />

sua inteligência emocional. Seu melhor trunfo era a memória, medida em gigabytes e<br />

equipada com um eficiente kit multímidia. Um gato de plástico motorizado. Tinha um<br />

carro do ano com um equipamento de som de última geração. Presente do pai.<br />

Fazia cursinho de inglês, presente da madrinha. "How are you? Fine, thanks". "Cool".<br />

Estudava Ciências da Computação numa faculdade privada paga por meio de um rateio<br />

feito entre os irmãos mais velhos sem o menor desajuste financeiro. Um garoto de<br />

plástico com roupas de marca. Presentes de uma gatinha "shopping-maníaca", que<br />

sonhava com o seu amor eterno. "Morena", a menina, até estudiosa. Mas muito pé no<br />

chão. O "boy" não agüentava. Papo cabeça. Politicamente correto. Música gospel. Só<br />

mesmo apertando o "delete". Que alívio. Preferia suas batatinhas loiras fritas e<br />

hambúrgueres de carne, muita carne. Boy. Fazia palavras cruzadas nível moleza e era<br />

adepto do discman. Principalmente nas viagens. Uma viagem inesquecível? o primeiro<br />

passeio com seu novo e moderno tênis da onda. Pisando em terra firme com seus pés de<br />

plástico tamanho 42. Seu maior sonho era um mundo com meias descartáveis. Vida para<br />

as meias de algodão do tipo "one way". Liberdade perfumada para dentro dos dedos. Se<br />

alguém quiser lavar meias que lave. Que cara de plástico!<br />

Outro dia, na sua aula de inglês reclamou com o "teacher" que não tinha tempo para<br />

fazer o dever de casa, o "home-work", porque estava freqüentando a academia<br />

regularmente, já que o importante, em sua opinião, era poder ficar sempre orgulhoso de<br />

<br />

83


não ter nenhuma dobrinha no abdome sob as suas camisetinhas tipo "mamãe olha como<br />

estou forte"..."Mother", sou um garoto de plástico bem forte!<br />

E assim seguia nosso ilustre personagem, em sua existência perfeitamente descartável,<br />

de shopping em shopping, de boate em boate, até que um dia, ficou totalmente derretido<br />

por uma garota! Isso não fazia parte do seu roteiro de vida, baseado em técnicas yuppies<br />

e neurolinguísticas...não, não fazia. Pois aconteceu. Só o amor constrói. Ou destrói. Sob<br />

a sua cara-máscara de plástico totalmente derretida, havia um complexo de inferioridade<br />

estrutural, que o fez ficar trancado em casa durante quatro longas semanas, período<br />

suficiente para deixar crescer seus cabelos raspados à máquina zero a cada sete dias.<br />

Seus cabelos eram negros, sua pele cor de azeviche, aquela vida de plástico era um<br />

verdadeiro mito, mito de uma democracia racial. Junto com seus cabelos, cresceram<br />

algumas idéias...e em noites de insônia sua mente formulara algumas perguntas: quem<br />

sou eu? para onde vou? Meu nome é Maurício? Por que me chamam de Mauricinho?<br />

O garoto ficou atordoado e decidiu investigar sua certidão de nascimento. Leu: Nome:<br />

Augusto de Oliveira. Cor : Parda. Junto com a certidão de nascimento havia um álbum de<br />

fotografias com uma foto de casamento de seus pais. Um casal negríssimo, sem dúvida.<br />

Filho de peixe... Augusto. Ficou frente ao espelho do banheiro um longo tempo. Seus<br />

olhos refletiam uma expressão bastante dura. Cara de pau. Sem máscara ele até que<br />

não era tão estranho. Parecia gente. Parecia com tanta gente. Com toda a população do<br />

Brasil, esse país que também usa uma máscara de plástico para disfarçar a cara de pau<br />

que lhe permite vez em quando esquecer que está aqui a maior população negra fora da<br />

África.<br />

PRINCESA SAWANA<br />

José Augusto Bertoncini Ribeiro<br />

Há muito e muito tempo atrás, num antigo reino africano havia uma princesa de nome<br />

Shawana. Ela tinha longos cabelos crespos e belos olhos claros.<br />

Seu pai, o rei, acreditava que já estava na hora da princesa se casar. Mas ele sabia que<br />

o futuro príncipe deveria ser corajoso e inteligente, e por isso convocou todos os homens<br />

do reino e lhes propôs um desafio.<br />

- Aquele que desejar se casar com a minha filha deve lhe trazer um presente; A princesa<br />

Shawana irá então escolher a pessoa que trouxer o presente que mais lhe agradou!<br />

Havia no reino um corajoso guerreiro de nome Mosi, que sempre havia observado a<br />

princesa de longe e sempre desejou conhecê-la. Ele havia se apaixonado ternamente por<br />

<br />

84


ela, e queria aproveitar o desafio proposto pelo rei para conquistá-la.<br />

Muitos moços levaram jóias e outros belos presentes para a princesa. Vendo isso, o<br />

jovem Mosi procurou o sábio feiticeiro da tribo. O sábio feiticeiro disse que as jóias e<br />

todos os outros presentes nada representavam, e que o melhor presente que poderia<br />

entregar à princesa estava no seu coração.<br />

O jovem Mosi muito pensou nas palavras do feiticeiro. Ele foi então ao encontro do rei e<br />

da princesa, e de mãos vazias, agachou, pegou uma pedra e olhando, profundamente,<br />

nos olhos de Shawana, colocou a pedra delicadamente em suas mãos, e disse:<br />

- Coragem é o que não me falta; assim como as pedras, que duram eternamente e<br />

sempre se renovam, assim é o meu amor por você!<br />

Ela se apaixonou, e eles tiveram um belíssimo casamento.<br />

PRETO DE OURO PRETO<br />

Sylvia Orthof<br />

Lembro e esqueço<br />

e assim começo<br />

a história de um rei...<br />

Invento o que não sei?<br />

Era uma vez um lugar<br />

onde os bichos passeavam:<br />

girafas e elefantes<br />

havia aos montes!<br />

Ali tudo era lindo<br />

nas cores muito vermelhas,<br />

verdes azuis, amarelas,<br />

ai que belas aquarelas<br />

feitas de sol e luar!<br />

Venha espiar!<br />

Africano continente,<br />

gente negra e valente,<br />

gente que dança e canta<br />

no sorriso do contente.<br />

Vamos em frente?<br />

Ali morava um rei<br />

todo negro e enfeitado.<br />

Sua pele era um negrume<br />

da noite do estrelado.<br />

Era preto de lindeza,<br />

era sábio em realeza,<br />

com certeza.<br />

<br />

85


Seu povo o admirava,<br />

e ele admirava o povo.<br />

Tal rei eu louvo!<br />

(...)<br />

Chico Rei fez seu reinado<br />

ali em Minas Gerais.<br />

Era um reino pequenito...<br />

tão bonito!<br />

Era um reinado de livres,<br />

escravidão... nunca mais?<br />

Viva Francisco, o Chico<br />

rei de minas, do tesouro,<br />

das liberdades totais!<br />

Quanta dança e folia,<br />

Baticum e alegria!<br />

Quantos anjos e noitadas,<br />

Belezuras muito puras...<br />

E escuras! (...)<br />

A VELHINHA DO ANGU<br />

Solano Trindade<br />

“Pinta pinta pintadinho<br />

Zorra me zorra<br />

Que já está fôrra<br />

Sola sapato,<br />

Rei rainha,<br />

De baixo da cama<br />

Da camarinha”<br />

Como parece essa lua<br />

Com aquele outro luar<br />

Que quando pequeno vi<br />

A lua estava amarela<br />

Rodeada de estrelas<br />

Prá minha infância a sorrir...<br />

“Cru cru cru<br />

A velhinha do angu”.<br />

Como sublime é lembrar,<br />

Aquela cena singela<br />

Da mamãe toda curvada<br />

Batendo de mão em mão<br />

“Está quente ou está fria”...<br />

“Cru cru cru<br />

A velhinha do angu”.<br />

<br />

86


O CORDEL<br />

Antônio Vieira<br />

O cordel é poesia<br />

História, lazer, jornal<br />

É síntese, é cabedal<br />

Ibero – Baltazar Dias<br />

Camões o utilizaria<br />

Dele se serviu Cecéu<br />

No nordeste o menestrel.<br />

Destacou-se a rimar<br />

Versos que não iam ao mar...<br />

Mas cumpriam o papel.<br />

BABÁ ALAPALÁ<br />

Gilberto Gil<br />

Aganju,<br />

Xangô,<br />

Alapalá, alapalá<br />

Alapalá,<br />

Xangô,<br />

Aganju.<br />

O filho perguntou pro pai<br />

Onde é que tá o meu avô?<br />

O meu avô,<br />

Onde é que tá?<br />

O pai perguntou pro avô<br />

Onde é que tá o meu bisavô?<br />

Meu bisavô, onde é que tá?<br />

Avô perguntou bisavô<br />

Onde é que tá tataravô?<br />

Tataravô, onde é que tá?<br />

Tataravô<br />

Bisavô<br />

Avô<br />

Pai Xangô, Aganju<br />

Viva Egum,<br />

Babá Alapalá.<br />

Aganju,<br />

Xangô,<br />

Alapalá, alapalá<br />

Alapalá,<br />

Xangô,<br />

Aganju.<br />

Alapalá egum,<br />

Espírito elevado ao céu,<br />

<br />

87


Machado alado,<br />

Asas do anjo aganju.<br />

Alapalá egum,<br />

Espírito elevado ao céu,<br />

Machado astral,<br />

Ancestral do metal,<br />

Do ferro natural,<br />

Do corpo embalsamado,<br />

Preservado em bálsamo sagrado,<br />

Corpo eterno e nobre<br />

De um rei nagô,<br />

Xangô.<br />

(Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=cXOe-aGxaSY)<br />

CINCO ELEMENTOS<br />

Oubi Inaê Kibuko<br />

aos Manos & Minas do Movimento Hip Hop<br />

A palavra cantada<br />

juventude municiada<br />

tomou de assalto<br />

palcos praças ruas<br />

rimando verbos consequentes<br />

A palavra tocada<br />

orquestra em didjei vinil<br />

criatividade nos dedos<br />

rotação vudum-vudum-vudum<br />

A palavra dançada<br />

B.Boy<br />

B.Girl<br />

passo lunar<br />

compasso moinho<br />

corpo robótico<br />

em múltiplas formas flutua<br />

A palavra grafitada<br />

muros paredes<br />

tela nua<br />

mural dos excluídos<br />

vestindo traços coloridos<br />

em jato spray<br />

A palavra revolucionária<br />

becos vilas cohabs morros favelas<br />

perféricas páginas cotidianas<br />

dialeto de preto<br />

raio x do gueto<br />

em ritmo Che-Marx-Martin-Malcon-<br />

[Mandela-Zumbinianos<br />

<br />

88


SEGUNDA PELEJA DE ROMANO DO TEIXEIRA COM INÁCIO DA CATINGUEIRA<br />

(Cordel)<br />

R - Negro cante com mais jeito<br />

veja tua qualidade<br />

eu sou branco, e tu tição<br />

perante a sociedade<br />

aceitei cantar contigo<br />

baixei a dignidade.<br />

I - Esta tua frase agora<br />

Me deixou admirado<br />

Que para o senhô ser branco<br />

Teu couro é muito tostado<br />

Tua cor imita a minha<br />

Teu cabelo é agastado...”<br />

MARACATU RURAL - PE<br />

Mestre Zé Gordo<br />

“Em tempo de violência<br />

Cheio de medo e pavor<br />

O filho do Salvador<br />

Vê todo mundo pecando<br />

E os falsos profetas enricando<br />

Com o nome do Salvador”<br />

“Tá o pobre aperreado<br />

Pra não manchar seu nome<br />

E vê seu filho com fome<br />

E ele quer pão<br />

E diz o Pai da criação<br />

Que no mundo tudo passa<br />

E dinheiro virou fumaça<br />

Por causa da inflação”<br />

ORIKI – Xângo<br />

Ele ri quando vai à casa de Oxun.<br />

Ele fica bastante tempo em casa de Oyá.<br />

Ele usa um grande pano vermelho.<br />

Elefante que anda com dignidade.<br />

Meu senhor, que cozinha o inhame com o ar que escapa de suas narinas.<br />

Meu senhor, que mata seis pessoas com uma só pedra de raio.<br />

Se franze o nariz, o mentiroso tem medo e foge.<br />

PONCIÁ VICÊNCIO<br />

Conceição Evaristo<br />

... O tempo de espera, se feito quieto e mudo, é pior, pois se torna demoradamente mais<br />

longo ainda. Em suas peregrinações, trabalhava em tudo que era preciso, menos no<br />

<br />

89


arro. Nunca mais tocou na massa, mas continuava cantando muito, como no tempo em<br />

que as duas entoavam juntas as canções. Cantava as cantigas de sua infância, aquelas<br />

que tinha aprendido dos mais velhos, no tempo em que era criança. Cantava as que tinha<br />

aprendido com a mãe e que tinha oferecido depois, mais tarde, à filha. E nessas canções<br />

havia muitas que eram dialogadas e quando chegava na parte em que entraria a voz da<br />

filha, a mãe de Ponciá se calava. (p. 85)<br />

SOU NEGRO D+ PRA VOCÊ<br />

Thaíde e Dj Hum<br />

Irmão, Irmã, assuma a sua mente<br />

Eu sei que você é inteligente<br />

Infelizmente tem um par de Judas por<br />

[aí<br />

Mesmo não querendo eles vão ter que<br />

[me ouvir<br />

viver intensamente é o meu objetivo<br />

Se sou feliz assim, como sou, é porque<br />

[tenho motivo<br />

Meu instinto guerreiro tá no sangue<br />

Pra mim não basta apenas ter a cor<br />

[predominante<br />

Não, não tem como fugir daquilo que a<br />

[gente é<br />

Se aceite ou seja escravo pra sempre, se você quiser (...)<br />

(http://vagalume.uol.com.br/thaide-dj-hum/sou-negro-d-pra-voce.html)<br />

DE MÃE<br />

Conceição Evaristo<br />

O cuidado da minha poesia<br />

aprendi foi de mãe<br />

mulher de pôr reparo nas coisas<br />

e de assuntar a vida<br />

A brandura de minha fala<br />

na violência dos meus ditos<br />

ganhei de mãe<br />

mulher prenhe de dizeres<br />

fecundados na boca do mundo<br />

Foi de mãe todo o meu tesouro,<br />

veio dela todo o meu ganho,<br />

mulher sapiência, yabá<br />

do fogo tirava água<br />

do pranto criava consolo.<br />

Foi de mãe esse meio riso<br />

dado para esconder<br />

alegria inteira<br />

<br />

90


e essa fé desconfiada,<br />

pois, quando se anda descalço<br />

cada dedo olha a estrada.<br />

Foi mãe que me descegou<br />

para os cantos milagreiros da vida,<br />

apontando-me o fogo disfarçado<br />

em cinzas e a agulha do<br />

tempo movendo no palheiro.<br />

Foi mãe que me fez sentir<br />

as flores amassadas<br />

debaixo das pedras<br />

os corpos vazios<br />

rente às calçadas<br />

e me ensinou, insisto, foi ela<br />

a fazer da palavra<br />

artifício<br />

arte e oficio<br />

do meu canto<br />

da minha fala.<br />

MAHIN AMANHÃ<br />

Mirian Alves<br />

Ouve-se nos cantos a conspiração<br />

vozes baixas sussurram frases<br />

[precisas<br />

escorre nos becos a lâmina das adagas<br />

Multidão tropeça nas pedras<br />

Revolta<br />

há revoada de pássaros<br />

sussurro, sussurro:<br />

“é amanhã, é amanhã.<br />

Mahin falou, é amanhã”<br />

A cidade toda se prepara<br />

Malês<br />

Bantus<br />

Geges<br />

Nagôs<br />

vestes coloridas resguardam<br />

[esperanças<br />

aguardam a luta<br />

Arma-e a grande derrubada branca<br />

a luta é tramada, na língua dos Orixás<br />

“é aminhã, aminhã”<br />

Sussurram<br />

Malês<br />

Bantus<br />

Geges<br />

Nagôs<br />

“é aminhã, Luiza Mahin falô”<br />

<br />

91


LADAINHA - Cântico que é entoado na Roda de Capoeira Angola, que, seguido a<br />

tradição, deve ser cantada por um Mestre - o mais velho e/ou mais considerado -, ou,<br />

com a autorização do Mestre da Roda, por um dos Capoeiristas que vão "fazer um jogo",<br />

ao "pé do Berimbau". As Ladainhas trazem em seu bojo a história da Capoeira e de seus<br />

grandes personagens, concepções de mundo, orientações a algum aprendiz. Segundo os<br />

"Velhos Mestres" da Bahia, enquanto a Ladainha está sendo cantada, não se realiza<br />

nenhum "jogo físico", é necessário aproveitar o momento para dedicar-se à concentração<br />

máxima, tendo em vista o correto entendimento da(s) mensagem(ns) que nela<br />

está(estão) contida(s).<br />

Yê !<br />

Eu vou ler o B-A-Bá<br />

B-A-Bá do Berimbau<br />

a moeda e o arame<br />

com dois pedaços de pau<br />

a cabaça e o caxixi<br />

aí está o berimbau<br />

Berimbau é um instrumento<br />

que toca numa corda só<br />

vai tocar São Bento Grande<br />

toca Angola em tom maior<br />

agora acabei de crer<br />

o Berimbau é o maior<br />

Camaradinho<br />

Yê Viva meu Deus<br />

Yê viva meus Deus, camará<br />

...<br />

Yê !<br />

São quatro coisa no mundo<br />

que ao homem consome<br />

uma casa pingando<br />

um cavalo chotão<br />

uma mulher ciumenta<br />

um menino chorão<br />

Tudo isso ele dá um jeito<br />

a casa ele retelha<br />

o cavalo negoceia<br />

o menino acalenta<br />

mulher ciumenta<br />

cai na peia<br />

Yê viva a Bahia<br />

Yê viva a Bahia, camará<br />

Yê !<br />

Lá no céu tem três estrelas<br />

todas as três em carririnha<br />

uma é minha a outra é sua<br />

a outra vai ficar sozinha<br />

Camaradinho<br />

Yê Viva meu Mestre<br />

<br />

92


Yê viva meu Mestre, camará<br />

Yê !<br />

Bahia minha Bahia<br />

capital do Salvador<br />

quem não conhece esta capoeira<br />

não lhe dá o seu valor<br />

todos podem aprender<br />

General e também quem é Doutor<br />

quem desejar aprender<br />

venha a Salvador<br />

procure Pastinha<br />

ele é professor<br />

Camaradinho<br />

Yê viva meu Deus<br />

Yê viva meu Deus, camará<br />

Yê !<br />

Menino quem te matou ?<br />

foi a língua meu senhor<br />

eu te dava conselho<br />

pensava ser ruim<br />

e eu sempre te dizendo<br />

inveja matou Caim.<br />

Camaradinho<br />

Yê viva a Bahia<br />

Yê viva a Bahia, camará<br />

Yê<br />

Hê...cidade de Assunção<br />

capital do Itamaraty<br />

é engano das nações<br />

das sepulturas do Brasil<br />

Pastinha já foi a África<br />

pra mostrar a capoeira do Brasil<br />

Camaradinho<br />

Yê viva Pastinha<br />

Yê viva Pastinha, camará<br />

Yê<br />

A Bahia é terra boa<br />

tem de tudo pra se ver<br />

tem gostoso acarajé<br />

tem abará e tem dendê<br />

e tem a capoeira angola<br />

para nós nos defender<br />

Camaradinho<br />

Yê Viva a capoeira<br />

Yê viva a capoeira, camará.<br />

(http://cuica.tripod.com/musicas.htm)<br />

<br />

93


OBALUWAIYÊ, O DONO DA PESTE<br />

Deoscóredes M. dos Santos (Mestre Didi)<br />

Em uma daquelas tribos lá da África, há 900 anos passados, nasceu um menino, e os<br />

pais botaram o nome de Obaluwaiyê. Este menino foi crescendo, e quando já estava<br />

mais ou menos com uns quatorze anos de idade, resolveu sair pelo mundo para<br />

conquistar bons trabalhos e ganhar muito dinheiro para ele e seus pais. Um dia<br />

amanheceu já preparado, tomou a bênção aos pais e saiu pela porta a fora, procurando<br />

um jeito de vida. Andou, andou, andou muito mesmo, até que por fim, depois de já ter<br />

passado por várias cidadezinhas, deu numa cidade muito grande e começou a procurar<br />

emprego.<br />

Porém ninguém quis lhe atender, e por se achar esfomeado resolveu bater na porta de<br />

uma casa grande e muito bonita também. Quando vieram atender ele pediu uma esmola<br />

e, por resposta, fecharam a porta da casa e não lhe deram coisíssima nenhuma.<br />

Desiludido, continuou a andar, e um cachorro que estava deitado na dita porta o<br />

acompanhou até quando chegaram numa mata virgem, onde ficaram comendo folhas e<br />

bichos de toda espécie.<br />

Obaluwaiyê por companhia naquela mata virgem só tinha o cachorro e as cobras que<br />

sempre estavam junto com ele. Mesmo assim, e com toda a fé que ele tinha em Olorum<br />

(Deus), não deixou de sofrer. Já estava com o corpo todo aberto em chagas e o cachorro<br />

era quem cuidava, com sua própria língua, aliviando as dores e sofrimentos. Obaluwaiyê<br />

já tinha perdido toda a esperança de vida e estava jogado entre as raízes dum pé de rôko<br />

(gameleira) esperando a morte. Foi quando ouviu uma voz dizer:<br />

- Obaluwaiyê, levanta-te, já cumpriste a tua missão com os teus sofrimentos, agora vá<br />

aliviar os sofrimentos daqueles que reclamam por ti.<br />

Quando ele deu cor de si e se levantou assustado, sentiu que estava mais forte e das<br />

chagas só tinham as marcas por todo o corpo. Ele aí se ajoelhou, deu graças a Olorum, e<br />

pediu para que lhe desse o direito e a virtude de poder cumprir aquela missão de acordo<br />

com a ordem que tinha recebido; e assim, com um pedaço de pau, espécie de um cajado,<br />

umas cabaças onde carregava água e remédios, e com o seu cachorrinho, começou a<br />

viagem de volta para a tribo de seus pais. Nessa ocasião, em várias tribos de lugares<br />

diferentes, estava assolando uma grande e desconhecida peste, e também morrendo<br />

gente que nem formiga.<br />

Os pais de Obaluwaiyê, antes de ficarem doentes, foram à casa de Olowô (olhador) fazer<br />

uma consulta sobre aquela calamidade que estava acontecendo. Então o Olowô disse<br />

<br />

94


que tudo aquilo tinha fim, e que a peste ia ser sanada em todo o mundo. A<br />

demora só era Obaluwaiyê voltar da sua grande viagem. Os pais de Obaluwaiyê ficaram<br />

bastante satisfeitos por saberem que seu filho ainda existia, e a notícia foi espalhada.<br />

Todos estavam à sua espera, mesmo sem conhecer e sem saber que Obaluwaiyê era<br />

aquele menino que tinha passado por todas aquelas cidades pedindo emprego e<br />

implorando uma esmolinha sem nunca ter sido atendido. Dito e feito, Obaluwaiyê passou<br />

pela última cidade que foi a primeira em que lhe negaram emprego. Dirigiu-se para a<br />

casa onde lhe bateram a porta na cara negando uma esmola e pediu agasalho. Desta<br />

vez ele foi mais feliz. Não teve nem quem viesse atender. Devido ao estado de saúde em<br />

que todos do lugar se encontravam, as casas amanheciam e anoiteciam com as portas já<br />

abertas.<br />

Logo que Obaluwaiyê entrou nessa casa aconteceu um dos mais verdadeiros milagres.<br />

Todas as pessoas que estavam doentes imediatamente levantaram da cama já curadas.<br />

Reconhecendo a Obaluwaiyê, foram caindo a seus pés pedindo perdão do que tinham<br />

feito. Ele com toda a paciência perdoava e dizia:<br />

– Agora cada um de vocês tem de ir ver uma folha perêgum, pintar com efum osum e<br />

uáje (ingredientes africanos) e em seguida apregar a folha na casa de cada um para que<br />

Olorum tenha compaixão dos moradores desta cidade e isole todo o mal que recaiu sobre<br />

vocês.<br />

Imediatamente foi tudo feito conforme determinação de Obaluwaiyê. A cidade se<br />

normalizou, voltando a funcionar conforme antes da peste ter caído sobre ela. Na tribo de<br />

Obaluwaiyê já sabiam de tudo, porque a fama corria longe. Estavam bastante agoniados<br />

porque ele demorava de chegar. Um dia de segunda-feira, quando menos esperavam,<br />

Obaluwaiyê chegou na tribo de seus pais. Só por saberem que ele tinha chegado todos<br />

os doentes da peste se levantaram já curados.<br />

Foram com os seus próprios pés à entrada da tribo, esperarem Obaluwaiyê com uma<br />

grande manifestação. Daí por diante nunca mais teve uma epidemia tão grande e que<br />

durasse tanto tempo. Obaluwaiyê ficou na terra para cumprir com a determinação<br />

daquela voz que ele ouviu, que foi a voz de Olorum (a voz de Deus). Por este motivo<br />

todos dizem e têm a impressão de que Obaluwaiyê é um Orixá (santo) vivo, e é o<br />

verdadeiro dono da terra e de toda qualidade de peste deste mundo.<br />

<br />

95


HOMENAGEM<br />

Andréia Lisboa<br />

Um quarto de dores e desejos de tanto<br />

[sóis,<br />

Suportando por luares de preferência<br />

[de todos nós,<br />

Com o Axé e proteção de nossas<br />

[Grandes Mães.<br />

Um quarto de lua crescente e<br />

[aguerrida,<br />

Que germina a terra e engravida de<br />

[esperança<br />

Palavras mágicas, ecoantes de vozes<br />

[silenciadas.<br />

Um quarto de século de negros Poetas<br />

[e Poetisas,<br />

Rompendo com os séculos de<br />

[opressão<br />

Com sua verbosidade, garra e arte.<br />

Um quarto de século de Cadernos<br />

[Negros,<br />

Fonte viva das tessituras da nossa<br />

[memória,<br />

Contemplando e registrando nossa<br />

[cultura ancestral.<br />

PORTO SEM MAR<br />

Jônatas Conceição<br />

Como um rio que não deságua<br />

O porto desta cidade não me transporta.<br />

As cidades sendo como dois rios<br />

Que caminham mas não me encontram.<br />

Cá, nas campinas<br />

O porto inexiste não por faltar o mar<br />

Mas o amar.<br />

O porto da minha cidade<br />

Não me leva a um ponto salvador.<br />

O porto que gostaria que tivesse na minha cidade<br />

Carrego comigo, a procura de um mar.<br />

ORIKI - CADERNOS NEGROS<br />

Thaide<br />

aos 25 anos dos Cadernos Negros<br />

Guerra é o que nosso povo mais conhece.<br />

As guerras dos Palmares, a guerra de Canudos, as guerras das favelas, as<br />

guerras do dia-a-dia.<br />

As armas não eram suficientes para combater o inimigo e as baixas sempre<br />

<br />

96


formam enormes. Mas hoje é diferente; não é satisfatório, mas é diferente. Estamos<br />

combatendo com armas mais poderosas do que antes e com diversos calibres: Respeito,<br />

Auto-estima, Consciência, Inteligência, Informação. E essa guerra não vai terminar tão<br />

cedo, talvez nunca termine. Eu, como soldado desse exército, sempre saio em busca de<br />

munições e conquistas, mas antes de ir pra batalha, bebo na fonte que me aumenta o<br />

orgulho chamada Cadernos Negros, que me faz maior do que eu sou. Obrigado!<br />

LUANDA<br />

Adão Ventura<br />

Lavrar as palavras<br />

à maneira de Manuel Rui*<br />

- pentear-lhes as sílabas<br />

uma por uma,<br />

- se possível com um pente<br />

de metralhadora<br />

*Manuel Rui, um dos melhores textos da moderna literatura angolana<br />

TRAÇADO<br />

Márcio Barbosa<br />

O traço saído<br />

Ao crespo estilo<br />

Do teu cabelo<br />

Trançado e escuro<br />

Já mora em meu olho<br />

ZUMBI SALDO<br />

Elisa Lucinda<br />

Zumbi, meu Zumbi.<br />

Hoje meu coração eu arranco<br />

Zumbi hoje eu fui ao banco<br />

E ainda estou presa<br />

Escuto os seus sinos<br />

e ainda estou presa na senzala Bamenrindus<br />

Presa definitivamente<br />

Presa absolutamente<br />

à minha conta<br />

corrente.<br />

UM FATO<br />

Cuti<br />

Há poetas negros<br />

cujas palavras<br />

tão alvas<br />

na página se confundem<br />

com o fundo.<br />

<br />

97


RETRATAÇÂO<br />

Adão Ventura<br />

Bela<br />

desejável<br />

atraente<br />

mulher<br />

mulher negra<br />

negra mulher<br />

oprimida<br />

tangenciada<br />

traída e<br />

enxovalhada,<br />

usada.<br />

manipulada<br />

mulher<br />

submissão<br />

negra,<br />

inferiorização<br />

CABELOS QUE NEGROS<br />

Oliveira Silveira<br />

Cabelo carapinha,<br />

engruvinhado, de molinha,<br />

que sem monotonia de lisura<br />

mostra-esconde a surpresa de mil<br />

espertas espirais,<br />

cabelo puro que dizem que é duro,<br />

cabelo belo que eu não corto à zero,<br />

não nego, não anulo, assumo,<br />

assino pixaim,<br />

cabelo bom que dizem que é ruim<br />

e que normal ao natural<br />

fica bem em mim,<br />

fica até o fim<br />

porque eu quero,<br />

porque eu gosto,<br />

porque sim,<br />

porque eu sou<br />

pessoa, porque sou<br />

pessoa negra e vou<br />

ser mais eu, mais neguim<br />

e ser mais ser<br />

assim.<br />

o peito latente<br />

clama<br />

a boca tapada<br />

geme<br />

o coração magoado<br />

anseia<br />

e luta<br />

e sonha<br />

e espera<br />

<br />

98


QUEBRANTO<br />

Cuti<br />

às vezes sou o policial<br />

que me suspeito<br />

me peço documentos<br />

e mesmo de posse deles<br />

me prendo<br />

e me dou porrada<br />

às vezes sou o zelador<br />

não me deixando entrar<br />

em mim mesmo<br />

a não ser<br />

pela porta de serviço<br />

às vezes sou o meu próprio delito<br />

o corpo de jurados<br />

a punição que vem com o veredito<br />

às vezes sou o amor<br />

que me viro o rosto<br />

o quebranto<br />

o encosto<br />

a solidão primitiva<br />

que me envolvo com o vazio<br />

às vezes as migalhas do que<br />

sonhei e não comi<br />

outras o bem-te-vi<br />

com olhos vidrados<br />

trinando tristezas<br />

um dia fui abolição que me<br />

lancei de supetão no espanto<br />

depois um imperador deposto<br />

a república de conchavos no coração<br />

e em seguida<br />

uma constituição que me promulgo<br />

a cada instante<br />

também a violência dum impulso<br />

que me ponho do avesso<br />

com acessos de cal e gesso<br />

chego a ser<br />

às vezes faço questão<br />

de não me ver<br />

e entupido com a visão deles<br />

me sinto a miséria<br />

concebida como um<br />

eterno começo<br />

<br />

99


fecho-me o cerco<br />

sendo o gesto que me nego<br />

a pinga que me bebo<br />

e me embebedo<br />

o dedo que me aponto<br />

e denuncio<br />

o ponto em que me entrego.<br />

às vezes!...<br />

TOTONHA<br />

Marcelino Freire<br />

Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em<br />

quê? Não quero aprender, dispenso.<br />

Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito.<br />

De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu,<br />

aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?<br />

O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o valelingüiça.<br />

Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo? Demente<br />

como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que<br />

eu. A química.<br />

Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco<br />

da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?<br />

Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o<br />

meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem<br />

melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?<br />

Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de<br />

tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa<br />

paciência!<br />

Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí ficar<br />

contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me diga<br />

honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do<br />

nome não conta?<br />

No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui<br />

todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo<br />

de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.<br />

Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não<br />

tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem<br />

sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?<br />

Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa<br />

saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever.<br />

Ah, não vou.<br />

<br />

100


MÚSICAS<br />

QUADRO NEGRO<br />

Simples Rap’ortagem<br />

Acordei de um longo sono, a intensa luz quase me cega<br />

É preciso revelar o que se nega<br />

Se a vida é uma escola toda escola tem seu quadro<br />

Quadro negro, formato quadrado<br />

Nele reescrevo a minha história, faço um diário<br />

Na minha lista negra só tem revolucionário<br />

Marias guerreiras das periferias você tem que ver<br />

Os guerreiros do passado e os atuais do MST<br />

Os homossexuais que resistem com dignidade<br />

Crioulos e indígenas que adentram as faculdades<br />

Se o escuro é feio minha poesia é imunda<br />

Das nuvens mais negras cai água límpida e fecunda<br />

E por falar em água, me vem na lembrança<br />

O quadro negro na verdade tem a cor da esperança<br />

Que caia um temporal sem pedir licença<br />

E faça desabar essas velhas crenças<br />

Visões estúpidas, espalhadas pelo mundo<br />

Que associou a cor preta a tudo que é imundo<br />

O negro discrimina o próprio negro sim<br />

Se aquele que apontas como negro não se acha assim<br />

Cresceu aprendendo que ser negro é feio<br />

Se é tudo de ruim quem é que quer andar no meio?<br />

Quem escreveu a história do negro nesse país?<br />

Basta ver a cor do giz<br />

Os Reis Faraós do Egito hoje mumificados<br />

Se tirassem suas faixas pudessem ser ressuscitados<br />

Saberia dizer a cor da pele deles sem engano?<br />

Quer uma pista: Egito é um país africano<br />

Não adianta sabermos que não existe raça<br />

Se o conceito predomina e representa ameaça<br />

O hip-hop não nega a mestiçagem, porém<br />

Sabe que ela não trouxe igualdade pra ninguém<br />

Tá vendo o que a herança racista ofereceu?<br />

Se existia escravidão entre africanos antes dos europeus<br />

Era com sentido diferente do que se viu<br />

Não eram vendidos, não tinha caráter mercantil<br />

As tribos guerreavam o grupo perdedor assume<br />

Rendição por questão de honra, de costume<br />

Se há uma cor do pecado ela chegou de mansinho<br />

Espalhando discórdia e ambição pelo caminho<br />

Sua ciência e religião assim disseram com toda calma<br />

É inferior! Pode escravizar que não tem alma<br />

A cor da paz cometeu holocausto aos judeus<br />

Barbárie na inquisição em nome de Deus<br />

Nas Américas, índios foram dizimados<br />

Mas quem sobreviveu está criando um novo quadro<br />

Se na prova der branco na memória<br />

<br />

101


Vamos denegrir a sua mente com a nossa história<br />

A luz do sol ofusca a visão<br />

E a beleza da lua só é possível com a escuridão<br />

A luta pelas cotas não anula a luta pela melhora<br />

Da qualidade de ensino público, tu ignora<br />

Pelo contrário, quanto mais negros na academia<br />

Muito mais força pra se lutar por um novo dia<br />

Racismo, o que mais me causa espanto<br />

Não se encara como problema do branco<br />

Mas entre esses, há os que lutam pelo seu fim<br />

“ah se todo branco fosse assim”<br />

Branquitude, pouco se ouve falar<br />

O que explica o privilégio que sua etnia pode conquistar?<br />

Pra quem nasceu em berço de ouro é difícil entender<br />

Que não é só porque seus pais fizeram por merecer<br />

Foram anos de exploração no passado pra que um dia<br />

A sociedade fosse estruturada a favor de uma minoria<br />

Há os que não admitem cotas julgando serem injustas<br />

Outros julgando serem esmolas, tudo isso me assusta<br />

Pergunto quanto custa superar o engano?<br />

Quanto custa ignorar os direitos humanos?<br />

Muita coisa bonita garante a Constituição<br />

Se esquecida ou ignorada precisa de afirmação<br />

Pretos e brancos são iguais, e daí? Se a norma<br />

Nem no cemitério são tratados da mesma forma<br />

Entenda agora o que são ações afirmativas<br />

Medidas pontuais, alternativas<br />

Medidas passageiras que vem afirmar<br />

Pra sociedade, que há, desigualdades, a reparar<br />

Dos que vivem abaixo da linha da pobreza<br />

70% são negros, que beleza!<br />

Do total de universitários brasileiros<br />

97% são brancos e herdeiros<br />

De uma política que patrocinou para embranquecer a raça<br />

A vinda de 4 milhões de estrangeiros, o tempo passa!<br />

Tudo isso, em 30 anos irmão<br />

Foi o que se trouxe de negros, em 3 séculos de escravidão<br />

Patrocínio com recurso público, o negativo<br />

Para os escravos libertos nenhum tipo de incentivo<br />

Nos mataram, exploraram e depois largaram a toa<br />

Sem emprego, casa, comida, só disseram: vai, voa!<br />

Sem asas e quem sobreviveu tá por um triz<br />

Amontoados nas favelas de todo país<br />

Quantos brancos moram lá? Cê conta no dedos<br />

Agora entenda porque cotas para negros<br />

Refrão<br />

Eu quero bonecas, anjos, apresentadores pretos e pretas<br />

Empresários, juízes, modelos, doutores pretos e pretas<br />

Se querer é uma faceta<br />

Eu quero, desejo, uma elite preta<br />

Uma coisa é pedir outra é conquistar respeito<br />

<br />

102


O fruto de uma conquista dá-se o nome de direito<br />

Olhe pra minha cor, olhe pra nossa luta<br />

Nem esmola nem favor se desigual é a disputa<br />

Entre quem sempre teve privilégio de estudar<br />

Com ensino de qualidade em escola particular<br />

E querer comparar com ensino público e a situação<br />

Tele-aula, aceleração<br />

Vestibular pra faculdade pública o esquema é raro<br />

Com cotas ou não só entra quem tem preparo<br />

Não serão as cotas que terão o privilégio de inaugurar<br />

A presenças de alunos educados pra manguear<br />

Vestibular das particulares tomou a frente, foi mais ligeiro<br />

Freqüentemente só basta ter dinheiro<br />

Quem concorrer pelas cotas vai se deparar legal<br />

Com uma concorrência enorme mas não desleal<br />

Desleal é a condição que o jovem negro encara<br />

Fusca para ele, Ferrari para os de pele clara<br />

Competirem com as mesmas regras, maldade<br />

É isso que eles chamam de igualdade<br />

Engraçada essa gente da estética<br />

Ter instrução em excesso nunca foi sinal de ética<br />

Será mesmo a suposta elevação intelectual<br />

Que garantirá a formação, de um bom profissional?<br />

Não subestime a inteligência dos excluído desse milênio<br />

A faculdade do crime só tem gênio<br />

A elite é quem decide em âmbito nacional<br />

Se nossa inteligência será usada para o bem ou para o mal<br />

Tanto tempo buscando debate ninguém se importou<br />

A cota de tolerância do meu povo já se esgotou<br />

A Simples Rap’ortagem revela para o Brasil<br />

Com cotas ou não vestibular é funil<br />

Com cotas ou não vestibular é peneira<br />

Quem concorrer pelas cotas mas não for bom vai levar rasteira<br />

Que vença o melhor...chega a ser hilário<br />

A prova é uma só os concorrentes que são vários<br />

Quem se afirmou, como provar se é negro ou não?<br />

De uma vez por toda pra se resolver a questão<br />

O cassetete da PM tem dispositivo de elite<br />

Nunca erra quem é negro, acredite!<br />

Refrão<br />

Cuidado quando alguém te incita<br />

A ir a um show onde só tem gente bonita<br />

Olhe sempre com reservas, pra mim o que interessa<br />

É saber que gente bonita é essa<br />

Analise os termos que deixaram pra gente<br />

Entre pardo e mulato qual o mais indecente?<br />

Qual o menos prejudicial?<br />

Ter a identidade de mula ou de pardal<br />

Mas pêra aê, veja que pirraça<br />

Pardal não é aquele passarinho que não tem raça?<br />

Que perambula pelas praças, dizem sem valor<br />

Pássaro sem vocação pra cantor<br />

<br />

103


Vira-lata, a mula é um animal<br />

Mão de obra barata, estéril, irracional<br />

Só serve para o trabalho mas não para produzir<br />

E aí cumpade, tu se encaixa mesmo aqui?<br />

Nem parda, nem mulata eu me defino politicamente<br />

Sou negra, ou se quiser afro-descendente<br />

Cuidado, que eu tô em pele de cordeiro<br />

Do tipo que da coice, afro-brasileiro<br />

Deveria ser executado com um tiro de bazuca<br />

O criador do personagem “negra maluca”<br />

Eu sou sério demais? Não vá se preocupar<br />

Herdei da minha gente o talento pra contrariar<br />

Contrariando, tu vai sim me ver sorrindo<br />

Mas o hip-hop superou o discurso do “negro é lindo!”<br />

A quem interessa? Eu digo a quem pensou<br />

Que eu seria só mais um com vocação pra tambor<br />

Se respeito é bom, não nos leve a mal<br />

Quem vos fala é um skatista, uma pedagoga e cientista social<br />

Da Universidade Federal da Bahia<br />

Detalhe, quem diria, na terra do “é só alegria!”<br />

Se denegrir é tornar negro irmão<br />

Vamos denegrir a faculdade de comunicação<br />

De direito e muito mais<br />

Vamos denegrir os órgãos oficiais<br />

Refrão<br />

A manchete da Simples Rap’ortagem estampa<br />

Um novo quadro negro se levanta<br />

Há muito a ser contado sobre os nossos ancestrais<br />

Não deixar passar em branco, tarefa nossa rapaz<br />

Se ligue, há muito a ser feito<br />

O importante nego é fazer do nosso jeito<br />

(http://www.youtube.com/watch?v=dtZC86NZYpk)<br />

ALIENAÇÃO<br />

Ilê Aiyê (Mario Pam & Sandro Teles)<br />

Se você está a fim de ofender<br />

É só chamá-lo de moreno pode crê<br />

É desrespeito a raça é alienação<br />

Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamado de negão (2 x = feminino)<br />

A consciência é o objetivo principal<br />

Eu quero muito mais<br />

Alem de esporte e carnaval, natural.<br />

Chega de eleger aqueles que tem<br />

Se o poder é muito bom<br />

Eu quero poder também<br />

(refrão)<br />

<br />

104


O sistema tenta desconstruir<br />

lhe afastar de suas origens<br />

Pra que você não possa interagir, construir.<br />

Já passou da hora de acordar<br />

Assumir sua negritude é vital para prosperar<br />

Ser negro não é questão de pigmentação<br />

É resistência para ultrapassar a opressão, sem<br />

pressão.<br />

Lutar sempre igualdade e humildade<br />

Vou subir de Ilê Aiyê<br />

E mudar toda cidade<br />

<br />

105


Sobre as Autoras<br />

Letícia Maria de Souza Pereira<br />

Mestre em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras e<br />

Lingüística da Universidade Federal da Bahia (UFBA), graduação<br />

em Letras Vernáculas (bacharel e licenciada) pela UFBA. Vicecoordena,<br />

desde 2005, o Programa Conexões de Saberes: diálogos<br />

entre a universidade e as comunidades populares (PROEXT-<br />

UFBA/SECAD-MEC) e participa do projeto de pesquisa<br />

EtniCidades: intelectuais e escritores/as negros/as pelo Instituto de Letras da UFBA.<br />

Fabiana de Lima Peixoto<br />

Possui Mestrado em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro (2001) e graduação em Letras pela<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995). Atualmente, é<br />

professora titular do Colégio Pedro II (RJ) e doutoranda em Estudos<br />

Étnicos e Africanos (Centro de Estudos Afro-orientais, UFBA). Tem<br />

experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira<br />

e Literatura afro-brasileira, atuando principalmente nos seguintes<br />

temas: afrodescendências; memórias orais, identidades culturais,<br />

formação de leitores, literatura brasileira, literaturas africanas de<br />

língua portuguesa e literatura afro-brasileira.<br />

<br />

106

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