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A SERPENTE - Inteligência

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I N S I G H T<br />

A <strong>SERPENTE</strong><br />

INTELIGÊNCIA<br />

DOURADA<br />

EDMUNDO CAMPOS<br />

(1939 2001)<br />

OUTUBRO•NOVEMBRO•DEZEMBRO 2001<br />

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54<br />

I N S I G H T<br />

QUARTA-FEIRA, 27 DE JULHO<br />

Às três da manhã ele deu por concluído seu tratado sobre<br />

as urutus. A exceção, talvez, do capítulo V, no qual deixara<br />

incompleto um complexo sistema classificatório, compusera<br />

uma obra sob vários aspectos superior à Rattlesnakes do curador<br />

do zoológico de San Diego. No dia anterior decidira fazer<br />

dois acréscimos: um anexo sobre ofiomancia, que lhe custara<br />

exaustivas pesquisas nos vales do Jequitinhonga e Doce, e um<br />

longo verbete relativo à presença das serpentes na heráldica<br />

(a cascavel enrodilhada do estandarte do batalhão de John<br />

Proctor, do Condado de Westmoreland, na batalha contra os<br />

ingleses: “Não me pises”).<br />

Releu, sem qualquer satisfação, um trecho do anexo:<br />

“O oráculo deita-se à espera que as serpentes rastejem até<br />

ele. E se lhe picarem os membros inferiores as raízes secarão<br />

no solo e as mulheres abortarão seus filhos; e se lhe picarem o<br />

tronco ou os braços, haverão de se precaver contra a peste e as<br />

doenças; mas se lhe cravarem as presas no rosto e se sangrarem<br />

as gengivas e as pálpebras lhe caírem como a um embriagado,<br />

então as sementes germinarão e as mulheres darão à<br />

luz seus filhos. E os da vila, que em torno dele se dispõem em<br />

círculo, empurram as urutus em direção ao seu rosto para que<br />

o piquem e venha ele a botar sangue pelas gengivas e lhe<br />

caíam as pálpebras como aos bêbados”.<br />

Pousou o manuscrito sobre a mesa de trabalho e fitou com<br />

os olhos doloridos, na parede em frente, a reprodução de um<br />

Siron Franco que mandara emoldurar: dois aterrados tapires,<br />

cercados pelo afilado corpo de uma longa e dourada serpente.<br />

QUINTA-FEIRA, 28 DE JULHO<br />

Onze horas da noite. Há muito caiu sobre o sítio o pesado<br />

silêncio serrano. Lá fora a escuridão era espessa como uma<br />

massa oleosa. As crianças dormiam.<br />

Sentado a um canto da sala ele examinou, sobre as páginas<br />

do livro que não conseguia ler, cada traço do rosto da mulher<br />

que, no divã à sua frente, folheava uma velha revista de<br />

modas. Suas feições eram sombrias e tristes; havia-lhe surgido<br />

uma papada sob o queixo pequeno e arredondado, e o nariz<br />

curvara-se em direção à boca, de lábios finos como um traço,<br />

emprestando-lhe uma aparência de ave de rapina. O antigo<br />

brilho dos olhos apagara-se, restando duas lentes opacas e lacrimosas.<br />

Era esta a sua mulher. E, no entanto, era necessário<br />

saber, naquela noite e com a urgência de uma dor cortante,<br />

até que ponto haviam levado aquela indiferença hostil, aquele<br />

CONTO<br />

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INTELIGÊNCIA<br />

desamor sofrido e velho que lhes grudara na alma.<br />

Ocorreu-lhe dirigir-se à mulher, contar-lhe que, finalmente,<br />

terminara o seu tratado sobre as urutus, ao qual dedicara<br />

tantos anos de sua vida. Mas ele próprio encarava com indiferença<br />

o término do trabalho. E, depois, faltou-lhe ânimo. Ele<br />

sabia, do fundo do coração, que nada do que dissesse jamais<br />

voltaria a interessá-la. Ela levantaria os olhos baços da revista,<br />

para fitá-lo com mudo ressentimento, e acrescentaria um<br />

tijolo a mais no muro que emparedava sua mágoa.<br />

SEXTA-FEIRA, 29 DE JULHO<br />

À mesa, ao jantar, ele observou com profundo desgosto,<br />

como se os visse pela primeira vez, a mulher e os dois filhos,<br />

três estranhos a mastigarem, famintos. Era-lhe penoso admitir<br />

que já não enterneciam-lhe o coração, tanto mais quanto<br />

não apagara da lembrança o alegre alvoroço que lhe causara o<br />

nascimento dos dois.<br />

Mas muitas outras coisas haviam morrido dentro dele; de<br />

fato, pouco sobrara que valesse à pena. Ele se sentia como<br />

quando terminara o seu tratado: você fecha o manuscrito, sem<br />

prazer ou pena, olha para a parede à frente e vê uma serpente<br />

imaginária, e de real existe apenas o medo pânico dos tapires<br />

encurralados.<br />

SÁBADO, 30 DE JULHO<br />

Ele removeu as serpentes do laboratório montado no subsolo<br />

da casa do sítio. Carregou as caixas, uma a uma, até o<br />

serpentário, um fosso de paredes altas e lisas sobre as quais se<br />

debruçava, freqüentemente, para observar, por horas, as criaturas<br />

escamosas e coleantes. Por anos levara-as dali para o<br />

laboratório onde abria-lhes o corpo – pesando vísceras, medindo,<br />

comparando. Jogava-lhes, ainda vivos, ratos e preás e gostava<br />

de surpreendê-los no momento em que, imobilizados de<br />

terror, fechavam-se neles as finas presas perfuradas.<br />

Com um gancho puxou as cobras para fora das caixas e<br />

desceu-as ao fundo do fosso. Conhecia-as, todas, como se conhecem<br />

animais de estimação. Terminado o trabalho, pôs-se a<br />

observá-las. Algumas deslizaram pela grama rala, outras se<br />

encolheram, montículos de carne elástica, escamas coloridas,<br />

línguas bífidas. Algumas cascáveis agitaram os guizos.<br />

DOMINGO, 31 DE JULHO<br />

Foi um dia longo e quente. Os meninos vagaram pela casa,<br />

silenciosos e tristes como pequenas almas danadas. Depois do


I N S I G H T<br />

almoço a mulher recolheu-se ao quarto pelo resto da tarde.<br />

Sozinho, ele pensou em trabalhar por algumas horas no laboratório,<br />

mais por hábito do que por desejo, mas lembrou-se de<br />

que terminara o tratado e de que removera as serpentes. Sentiu-se<br />

confuso e desorientado, não tanto pela falta de uma atividade<br />

que se tornara rotineira quanto pela intuição de que<br />

estava condenado, pelo resto de sua existência, àquela solidão<br />

silente.<br />

À noite, deitado mas desperto, evitou olhar para a mulher<br />

que ressonava a seu lado. Levantou-se e foi ao quarto das crianças.<br />

Curvou-se sobre um e outro para observar-lhes a face,<br />

à procura da mais tênue linha na qual pudesse reconhecer-se.<br />

Conseguiu apenas que o coração se confrangesse com sua própria<br />

aridez. Desceu ao laboratório, sentando-se à mesa de trabalho,<br />

sem ao menos notar o manuscrito que terminara há<br />

quatro dias. Seus olhos vagaram até se fixarem na serpente<br />

dourada que pendia da parede. Levantou-se, apagou a luz e<br />

caminhou em direção ao serpentário.<br />

Era uma noite magnífica. A lua, bela, fria e solitária, cobria<br />

a serra de uma luz azulada e transparente, o céu salpicado<br />

de estrelas cintilantes. Um silêncio majestoso nascia nas<br />

montanhas e pairava sobre o vale adormecido.<br />

Envolto pela claridade diáfana ele galgou a mureta do serpentário<br />

e deixou-se escorregar para dentro do fosso, ouvindo<br />

o chocalhar de guizos enlouquecidos.<br />

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INTELIGÊNCIA<br />

OUTUBRO•NOVEMBRO•DEZEMBRO 2001<br />

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