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Aspectos da História Trágico-Marítima. O reverso da medalha ou ...

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Carlos Jaca<br />

<strong>Aspectos</strong> <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong>.<br />

O <strong>reverso</strong> <strong>da</strong> me<strong>da</strong>lha <strong>ou</strong>... “A Face Oxi<strong>da</strong><strong>da</strong> do Doirado Me<strong>da</strong>lhão<br />

<strong>da</strong> Descoberta e Conquista”.<br />

Por Carlos Jaca<br />

A opção por este tema explico-a por duas motivações: uma que poderei<br />

chamar remota e <strong>ou</strong>tra, próxima.<br />

Num dos primeiros anos do liceu (4º ano) a disciplina de Português incluía<br />

com carácter obrigatório a leitura e comentário <strong>da</strong>s passagens mais significativas<br />

de resumos <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong>, cujos episódios nos causavam grande<br />

impressão e admiração, despertando desde aí e dessa época o meu interesse.<br />

Outra razão, prende-se com a circunstância de muito recentemente, no<br />

“Diário do Minho”, ter sido recor<strong>da</strong><strong>da</strong> a face d<strong>ou</strong>ra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Descoberta e Conquista.<br />

Assim, por isso, e também pelo facto de uma obra singular <strong>da</strong> Literatura<br />

Portuguesa, e até Universal, ser desconheci<strong>da</strong> <strong>da</strong> grande maioria <strong>da</strong>s pessoas<br />

resolvi aqui <strong>da</strong>r-lhe alguma divulgação.<br />

De certo modo, a <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong> corresponde à face escura <strong>da</strong><br />

glória dos descobrimentos, a tragédia que fez dizer a Fernando Pessoa: “Ó mar<br />

salgado, quanto do teu sal / são lágrimas de Portugal!”.<br />

Pode considerar-se a <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong> como obra “sui generis”. De<br />

facto, em nenhuma literatura haverá talvez uma soma tão impressionante de relações<br />

de naufrágios como na nossa.<br />

Tão grande foi a voga desses escritos e tantos foram eles, que chegaram a<br />

constituir uma espécie de género literário.<br />

A <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong> não é original, mas sim constituí<strong>da</strong> por várias<br />

descrições (conheci<strong>da</strong>s vulgarmente por “relações”) de naufrágios ocorridos ao<br />

longo de meio século (de 1552 a 1602).<br />

1


Carlos Jaca<br />

Na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Aju<strong>da</strong>, na Torre do Tombo, nas<br />

bibliotecas de Évora, Vila Viçosa, Coimbra e em algumas colecções priva<strong>da</strong>s<br />

encontram-se, manuscritos <strong>ou</strong> impressos, vários exemplares de uns vinte relatos de<br />

naufrágios que foram escritos entre a segun<strong>da</strong> metade do século XVI e o fim do<br />

século XVII por diversos autores desconhecidos e <strong>ou</strong>tros ain<strong>da</strong> anónimos. Os relatos<br />

de naufrágios viriam a tornar-se, na ver<strong>da</strong>de, quase um (sub)género literário, de<br />

algum sucesso em Portugal no período entre meados dos séculos XVI e XVII,<br />

atraindo periodicamente as atenções de editores, compiladores e leitores, em<br />

especial a partir <strong>da</strong> cristalização nos dois volumes <strong>da</strong> “<strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong>”<br />

de Bernardo Gomes de Brito, publica<strong>da</strong> em 1735-1736 e mais tarde apocrifamente<br />

acrescenta<strong>da</strong> por um terceiro. Produto do labor de sobreviventes <strong>ou</strong> testemunhas<br />

próximas dos desastres ocorridos com embarcações <strong>da</strong> “Carreira <strong>da</strong> Índia”, este tipo<br />

de relatos revela-se fun<strong>da</strong>mental não apenas para o conhecimento <strong>da</strong>s circunstâncias<br />

<strong>da</strong> per<strong>da</strong> de uma a duas dezenas de naus, mas também para o <strong>da</strong>s próprias arma<strong>da</strong>s<br />

em que se integravam.<br />

Desde já convém dizer que se trata de uma breve abor<strong>da</strong>gem à <strong>História</strong><br />

<strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong>, uma obra de alto valor <strong>da</strong> nossa literatura, focando-a,<br />

essencialmente, em três aspectos: sob o ponto de vista literário, como documento<br />

histórico e como documento humano.<br />

O estilo<br />

Sob o ponto de vista literário o seu valor é muito desigual, o que<br />

perfeitamente se compreende, pois tais “relações” foram escritas por diversos<br />

autores. Quase to<strong>da</strong>s elas saíram do punho de sobreviventes, muitos dos quais não<br />

possuíam capaci<strong>da</strong>des para <strong>da</strong>r brilho à sua prosa, que se apresenta, frequentemente,<br />

bastante confusa, originando problemas de interpretação o que de certa maneira<br />

tenha sido, talvez um bem: algumas dessas “relações” apesar de escritas<br />

apressa<strong>da</strong>mente e sem cui<strong>da</strong>dos de estilo (porventura ain<strong>da</strong> sob a emoção causa<strong>da</strong><br />

2


pela proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> catástrofe, <strong>da</strong>do terem sido publica<strong>da</strong>s na maioria, p<strong>ou</strong>co tempo<br />

depois), adquirem, talvez por isso mesmo, um tom de ver<strong>da</strong>de e de sinceri<strong>da</strong>de que<br />

transmitem ao relato uma forte carga dramática, que é possível viesse a ser atenua<strong>da</strong><br />

se fossem mais trabalha<strong>da</strong>s... A narração atinge o seu maior vigor na hora patética<br />

do naufrágio e no subsequente caminhar dos desditosos náufragos, meses sem fim,<br />

por terras desconheci<strong>da</strong>s e cheias de perigos, tantas vezes habita<strong>da</strong>s por gente<br />

estranha que os hostilizava. Daí que talvez não seja exagero o que nos diz P. Blanco<br />

Suarez, tradutor espanhol de algumas “relações”.<br />

Carlos Jaca<br />

“Sólo quiero decir que, más de una vez, al hacer mi trabajo de tradutor, he<br />

tenido que interrumpirlo, porque la emocion hon<strong>da</strong> y angustiosa produci<strong>da</strong> por la<br />

tragedia me impedia continuar, estaba ante la tragedia historica, la más real de to<strong>da</strong>s<br />

por haber sido vivi<strong>da</strong>; talvez, por este mismo, la única tragedia ver<strong>da</strong>dera”.<br />

De facto, literariamente, ninguém poderia apontar estes relatos como primores<br />

<strong>da</strong> nossa língua, pois, como alguns dos seus autores salientam, interessava aqui<br />

preservar a ver<strong>da</strong>de e conhecimento dos factos, sendo secundária a perfeição<br />

literária, tanto mais que muitos dos que os escreveram eram marinheiros e <strong>ou</strong>tras<br />

pessoas sem pretensões intelectuais.<br />

Sob o ponto de vista do estilo podemos considerar duas espécies de<br />

“relações”: as que foram escritas pelos próprios que escaparam à tragédia, e as<br />

escritas por estranhos, que tomaram conhecimento dos factos através do testemunho<br />

oral dos sobreviventes. Obviamente, entende-se que as primeiras tenham em geral<br />

maior vivaci<strong>da</strong>de, mais poder comunicativo, por representarem a própria<br />

experiência, embora um autor ilustre como Diogo do C<strong>ou</strong>to, pertencente ao segundo<br />

grupo, consiga, por via do seu talento, “representar-nos belissimamente um<br />

naufrágio que não padeceu”. Ain<strong>da</strong> incluí<strong>da</strong> na primeira referência poder-se-á<br />

distinguir as “relações” escritas por padres, normalmente mais literárias, com um<br />

estilo mais erudito e entremeado de citações latinas. Exemplo significativo deste<br />

género é a “relação” <strong>da</strong> viagem <strong>da</strong> nau “S. Francisco”, em 1596, escrita pelo jesuíta<br />

Gaspar Afonso. Já as narrações de autores seculares, nomea<strong>da</strong>mente os do primeiro<br />

3


período clássico, apresentam muito melhor estilo, salientando-se entre estes, Manuel<br />

de Mesquita Perestrelo, que descreveu o naufrágio <strong>da</strong> nau “S. Bento”, e o boticário<br />

Henrique Dias, autor <strong>da</strong> “relação” <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> nau “S. Paulo”.<br />

Carlos Jaca<br />

Tanto um como <strong>ou</strong>tro manifestam o propósito de contar as coisas na sua<br />

generali<strong>da</strong>de e não se preocupar com o pormenor fastidioso. Cingiam-se assim aos<br />

cânones <strong>da</strong> arte clássica, que procura evitar o excesso <strong>da</strong>s particulari<strong>da</strong>des, a fim de<br />

privilegiar os aspectos gerais. Isto era o preceito, mas nem sempre foi a prática. As<br />

próprias exigências do tema se encarregavam de mostrar a ca<strong>da</strong> passo o<br />

incumprimento desta determinação, pela incapaci<strong>da</strong>de de relatar satisfatoriamente<br />

um naufrágio <strong>ou</strong> as aventuras por terra, sem descer a certas minúcias que mais<br />

possam impressionar os leitores.<br />

Estas narrações que hoje encaramos como documentos históricos fizeram na<br />

época, a paixão de quantos as liam, pois o público, então como agora, não conseguia<br />

fugir ao fascínio pelas emoções fortes.<br />

Compreende-se como o público de <strong>ou</strong>tros tempos na rotina <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

quotidiana, devia de apreciar essas impressionantes narrativas, o espectáculo <strong>da</strong>s<br />

naus destroça<strong>da</strong>s pela tormenta, a confusão e o alarido <strong>da</strong>s gentes, o engenho dos<br />

homens buscando meios de salvação, e a triste e aventurosa caminha<strong>da</strong> pelo sertão<br />

africano.<br />

Cerca de um quinto <strong>da</strong> população portuguesa <strong>da</strong> época (dois milhões e meio)<br />

and<strong>ou</strong> em viagens marítimas, to<strong>da</strong>s as famílias tinham pelo menos um <strong>ou</strong> dois<br />

elementos embarcados; a repercussão de tais relatos no imaginário nacional torn<strong>ou</strong>-<br />

se, assim, irrecusável apaixonando todos durante gerações sucessivas – os que iam e<br />

os que ficavam, os que sofriam e os que fantasiavam.<br />

Os episódios sucediam-se, um mais desgraçado do que o <strong>ou</strong>tro, numa série<br />

(precursora do “folhetim” e <strong>da</strong> “telenovela”) de horrores, suplícios e fatalismos<br />

intermináveis.<br />

4


Carlos Jaca<br />

Como hoje se comenta o crime sensacional, descrito pelas gazetas diárias,<br />

assim <strong>ou</strong>trora se falaria do último naufrágio, cujos episódios eram referidos pela<br />

“relação” acaba<strong>da</strong> de sair.<br />

Autênticos “best-sellers”, desconhece-se, em geral, qual seria a tiragem dessas<br />

“relações”, mas sabe-se que muitas delas eram impressas várias vezes, havendo<br />

casos em que a primeira edição se esgotava em breve lapso de tempo, uma vez que<br />

há conhecimento <strong>da</strong> existência de uma segun<strong>da</strong> edição publica<strong>da</strong> no mesmo ano.<br />

Refere Giulia Lanciani e reportando-se ao naufrágio de Jorge de Albuquerque<br />

Coelho, depreender-se do texto que tanto <strong>da</strong> primeira como <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> edição se<br />

tiraram mil exemplares de ca<strong>da</strong> uma, enquanto os estudiosos consideraram que na<br />

segun<strong>da</strong> metade do século XVI a tiragem média de um livro na Europa dificilmente<br />

superava os trezentos exemplares.<br />

O Documento Histórico<br />

Como documento histórico é extremamente valioso o testemunho <strong>da</strong> <strong>História</strong><br />

<strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong>.<br />

O tema dos naufrágios e <strong>ou</strong>tras per<strong>da</strong>s de naus <strong>da</strong> Índia foi, desde as últimas<br />

déca<strong>da</strong>s do século XVI, em Portugal, uma <strong>da</strong>s questões que mais análises suscit<strong>ou</strong>, e<br />

que, em conjunto com as circunstâncias e consequências <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> independência<br />

em 1580, mais estreitamente esteve liga<strong>da</strong> ao desenvolvimento <strong>da</strong>s visões<br />

decadentistas <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de nacional. Mesmo quando, séculos mais tarde, o tema <strong>da</strong><br />

decadência nacional aflora através <strong>da</strong> análise de <strong>ou</strong>tros sintomas, as razões <strong>da</strong>s suas<br />

origens e a fun<strong>da</strong>mentação histórica de tal situação recua sempre até à segun<strong>da</strong><br />

metade do séc. XVI, de quando se <strong>da</strong>tam o declínio do trato <strong>da</strong>s drogas e especiarias<br />

do Oriente e o início <strong>da</strong>s tragédias marítimas que teriam então ensombrado a antes<br />

gloriosa “Carreira <strong>da</strong> Índia”.<br />

O fenómeno dos naufrágios na rota do Cabo não deix<strong>ou</strong> de despertar, porém,<br />

sentimentos de carácter contraditório nos seus analistas, muitas vezes divididos e<br />

5


hesitantes entre cederem ao ímpeto de uma exaltação nacionalista do heroísmo dos<br />

Portugueses de então, que bravamente lutaram contra as adversi<strong>da</strong>des, <strong>ou</strong><br />

envere<strong>da</strong>rem por um espírito fatalista de rendição perante os factos que indiciavam,<br />

claramente, quando Portugal começara a perder as pretensões a afirmar-se como<br />

uma potência internacional de primeira grandeza e passara a uma situação de<br />

dependência e sombra perante as novas potências em ascensão.<br />

Carlos Jaca<br />

Foi o discurso pessimista, contudo, que predomin<strong>ou</strong>, desde finais <strong>da</strong> Centúria<br />

de Quinhentos, nas leituras <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong> “Carreira <strong>da</strong> Índia” e do impacto <strong>da</strong>s<br />

suas per<strong>da</strong>s.<br />

A <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong> passaria, a breve prazo, a ilustrar e simbolizar a<br />

própria <strong>História</strong> nacional, tomando um lugar central na mentali<strong>da</strong>de colectiva de um<br />

povo que, quando se sentiu afastado de um papel nuclear e activo nos negócios <strong>da</strong>s<br />

nações, para isso necessit<strong>ou</strong> prementemente de uma justificação e explicação<br />

histórica onde se refugiar.<br />

A rota do Cabo, aberta em 1497-1498 por Vasco <strong>da</strong> Gama e institucionaliza<strong>da</strong><br />

como “Carreira” no seu ritmo anual de arma<strong>da</strong>s com a viagem de Pedro Álvares<br />

Cabral, foi a primeira grande rota interoceânica dos Tempos Modernos. Na própria<br />

época, h<strong>ou</strong>ve mesmo quem chegasse a afirmar que uma viagem na Carreira <strong>da</strong> Índia<br />

era então “sem qualquer dúvi<strong>da</strong> a maior e mais árdua de to<strong>da</strong>s as que se conhecem<br />

no mundo” (Padre Alexandre Valignano, citado em Boxer).<br />

Empreendimento épico e desmesurado para a dimensão <strong>da</strong> nação que o<br />

sustentava, a rota do Cabo e a Carreira <strong>da</strong> Índia viveram as naturais dificul<strong>da</strong>des<br />

inerentes à escassez de recursos humanos, materiais e técnicos com que Portugal<br />

sempre se debateu. O resultado foi um misto de grandeza e declínio que sempre<br />

deix<strong>ou</strong> testemunhas, suas contemporâneas, <strong>ou</strong> observadores distanciados algo<br />

indecisos quanto à posição a tomar, devido à atracção exerci<strong>da</strong> pelas visões<br />

extremas do fenómeno em causa – optar pela exaltação <strong>da</strong> gesta heróica <strong>ou</strong><br />

sublinhar os traços mais <strong>ou</strong> menos trágicos que traduziram o seu declínio ?<br />

6


Carlos Jaca<br />

Em boa ver<strong>da</strong>de, as características e a história <strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong> Índia contiveram<br />

em si um p<strong>ou</strong>co de tudo. À magnitude e ambição <strong>da</strong> vontade concretiza<strong>da</strong>, junt<strong>ou</strong>-se<br />

muitas vezes a mesquinhez dos actos humanos e <strong>da</strong>s condições em que os mesmos<br />

decorreram.<br />

A Carreira <strong>da</strong> Índia exigia sobretudo acomo<strong>da</strong>ção perfeita ao condicionalismo<br />

físico dos oceanos, isto é, ao regime variável dos ventos e correntes no Atlântico e<br />

no Índico.<br />

As naus deviam largar <strong>ou</strong> regressar em meses certos e nunca fora do tempo,<br />

navegar de conserva, fugir à zona <strong>da</strong>s calmas e <strong>da</strong>s tempestades, bem como buscar<br />

atempa<strong>da</strong>mente as agua<strong>da</strong>s.<br />

Atendendo às condições de navegação no Atlântico e Índico que era<br />

necessário conciliar, e certamente também por questões de natureza organizativa, foi<br />

necessário estabelecer um calendário minimamente rigoroso para as parti<strong>da</strong>s e<br />

etapas <strong>da</strong>s viagens <strong>da</strong>s naus <strong>da</strong> Índia, interligado de forma muito íntima com o<br />

trajecto a seguir.<br />

De acordo com o modelo rapi<strong>da</strong>mente estabelecido após as primeiras viagens,<br />

as naus <strong>da</strong> Índia saíam em conserva do Tejo nas últimas semanas do Inverno <strong>ou</strong> nos<br />

começos <strong>da</strong> Primavera, <strong>ou</strong> seja, entre o início de Março e a primeira quinzena de<br />

Abril. Desta forma, ser-lhes-ia possível aproveitar um regime favorável de ventos no<br />

Atlântico, na primeira fase <strong>da</strong> viagem, e atingir o Índico a tempo de beneficiarem <strong>da</strong><br />

monção de sudoeste para rumarem à costa ocidental <strong>da</strong> península indostânica.<br />

A permanência no Índico para as naus que completassem a viagem de i<strong>da</strong> no<br />

calendário normal, e que estivessem destina<strong>da</strong>s a regressar com carregamento de<br />

especiaria, era de apenas três <strong>ou</strong> quatro meses, até ao início do ano seguinte. A<br />

parti<strong>da</strong> do Índico realizava-se, por regra, em finais de Dezembro <strong>ou</strong> nos primeiros<br />

dias de Janeiro, de maneira a ser possível à arma<strong>da</strong> aproveitar a monção do norte e<br />

dirigir-se rapi<strong>da</strong>mente até ao Cabo pelo canal de Moçambique <strong>ou</strong> pelo Índico<br />

Central. Passado o Cabo em finais de Fevereiro, seria possível aproveitar ventos<br />

7


favoráveis no Atlântico Sul e alcançar Lisboa em Julho <strong>ou</strong> Agosto, após a chama<strong>da</strong><br />

“volta pelo largo” até à altura dos Açores.<br />

Carlos Jaca<br />

Desta maneira, uma “viagem redon<strong>da</strong>” <strong>da</strong> Carreira durava, em termos ideais,<br />

entre o início de Março de um ano e finais de Julho do ano seguinte, o que equivale<br />

a mais de dezasseis meses de viagem, dos quais doze eram de navegação efectiva.<br />

O recrutamento de pessoas necessário ao provimento <strong>da</strong>s arma<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Índia foi<br />

um problema que cedo se levant<strong>ou</strong> na história <strong>da</strong> Carreira.<br />

As questões colocaram-se quer no plano <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de quer no <strong>da</strong><br />

qualificação dos tripulantes disponíveis, encontrando-se muitas vezes entrecruza<strong>da</strong>s<br />

ambas as circunstâncias.<br />

A situação a ultrapassar, em primeiro lugar, com frequência, era a <strong>da</strong> falta de<br />

homens qualificados para servirem de tripulação a to<strong>da</strong>s as naus que anualmente<br />

saíam de Lisboa para o Oriente.<br />

Apesar <strong>da</strong> atracção exerci<strong>da</strong> pelas hipóteses, mais <strong>ou</strong> menos reais, de lucros<br />

fáceis e imensos, os riscos envolvidos nas viagens eram muitos e cedo se foi<br />

descobrindo a alta mortali<strong>da</strong>de provoca<strong>da</strong> por doenças e acidentes vários nas<br />

tripulações embarca<strong>da</strong>s.<br />

Mas o problema de recrutamento não se colocava apenas ao nível <strong>da</strong> “arraia-<br />

miú<strong>da</strong>”, <strong>da</strong> marinhagem responsável pelas tarefas mais duras <strong>da</strong> navegação.<br />

Também quanto aos capitães, pilotos, contramestres e <strong>ou</strong>tros cargos de maior<br />

responsabili<strong>da</strong>de a bordo existiam questões de difícil resolução, só que de natureza<br />

geralmente diversa.<br />

Ao capitão era indispensável a ciência <strong>da</strong> manobra, a visão de pormenor e de<br />

conjunto, a sereni<strong>da</strong>de no perigo e a firmeza no comando.<br />

O cargo de capitão-mor <strong>da</strong>s arma<strong>da</strong>s, assim como a capitania de to<strong>da</strong>s as<br />

embarcações, foi desde cedo um durad<strong>ou</strong>ro monopólio <strong>da</strong> nobreza, mesmo sem<br />

qualquer experiência náutica prévia, por nomeação <strong>da</strong> Coroa, funcionando como<br />

uma espécie de preben<strong>da</strong>, quase um título honorífico <strong>ou</strong> recompensa por serviços<br />

prestados. Ambicionado por muitos, o cargo de capitão de uma nau <strong>da</strong> Índia<br />

8


chegava a ser arduamente disputado, mas isso em raras ocasiões significava uma<br />

melhoria dos conhecimentos náuticos dos escolhidos. O mais comum era que estes<br />

p<strong>ou</strong>co mais água tivessem visto que a do Tejo, como afirma Boxer citando o Padre<br />

António Vieira, <strong>da</strong>do que a grande maioria não tinha qualquer experiência de<br />

navegação <strong>ou</strong> mesmo as mais vagas noções teóricas <strong>da</strong> manobra de uma nau em alto<br />

mar. Os “fi<strong>da</strong>lgos-marinheiros” eram raros e uma excepção à regra longamente<br />

dominante. Só nas naus dos armadores particulares era mais frequente encontrar-se<br />

um capitão de origem vilã e, nesse caso, eventualmente, com maiores<br />

conhecimentos <strong>da</strong> arte de bem navegar.<br />

Carlos Jaca<br />

Perante esta situação, a figura central na tripulação de uma destas<br />

embarcações era o piloto, o ver<strong>da</strong>deiro responsável pelo (in)sucesso <strong>da</strong> viagem. Ao<br />

piloto exigia-se uma observação atenta ao voo <strong>da</strong>s aves que anunciavam terra<br />

próxima, aos fundos do mar onde se escondiam baixios e recifes, e do curso <strong>da</strong>s<br />

estrelas que lhe traçavam a “derrota”.<br />

Apesar dos cui<strong>da</strong>dos postos na sua selecção e formação, são vários os<br />

testemunhos mais <strong>ou</strong> menos directos que indiciam a sua escassez, em particular à<br />

medi<strong>da</strong> que as déca<strong>da</strong>s iam passando.<br />

A transferência de muitas dezenas dos melhores pilotos, atraídos a países<br />

estrangeiros por avultados salários e vantagens, esvaziavam os quadros. Muitos,<br />

contagiados pela vi<strong>da</strong> fácil e p<strong>ou</strong>co escrupulosa do Oriente, por lá ficavam,<br />

desertavam do ofício perigoso e arriscado, aumentando o êxodo. A fim de substituir<br />

os mestres que haviam feito uma preparação atenta e científica na escola <strong>da</strong><br />

experiência, improvisavam-se pilotos de gabinete que saíam directamente <strong>da</strong> aula de<br />

cosmografia para as naus.<br />

Diogo do C<strong>ou</strong>to refere-se à “jactanciosa suficiência desses pilotos novos,<br />

munidos apenas de saber livresco, mas tão precário, quando comparado com as<br />

ciências dos antigos, adquiri<strong>da</strong> no demorado transcurso <strong>da</strong>s viagens e em contacto<br />

diuturno com o mar”. No Índico, torn<strong>ou</strong>-se comum o recurso a pilotos árabes <strong>ou</strong><br />

hindus como estratégia útil para ultrapassar o desconhecimento e as dificul<strong>da</strong>des de<br />

9


navegação na região. Por <strong>ou</strong>tro lado, à parti<strong>da</strong> de Lisboa não era também caso raro<br />

encontrarem-se pilotos castelhanos, maiorquinos <strong>ou</strong> de <strong>ou</strong>tras origens<br />

mediterrânicas nas naus portuguesas.<br />

Carlos Jaca<br />

As tentativas para fechar a profissão de piloto a uma estreita elite, limitando a<br />

difusão dos seus conhecimentos e ocultando os seus segredos com a concorrência<br />

estrangeira, tinha consequências difíceis de conciliar com a necessi<strong>da</strong>de de dispor de<br />

um corpo de pilotos em quanti<strong>da</strong>de suficiente para o provimento <strong>da</strong>s arma<strong>da</strong>s.<br />

Também a consciência <strong>da</strong> sua importância e do valor dos seus conhecimentos, para<br />

além <strong>da</strong>s próprias recomen<strong>da</strong>ções régias no sentido do seu secretismo, nem sempre<br />

tornavam os pilotos figuras particularmente simpáticas <strong>ou</strong> afáveis para os mais<br />

curiosos.<br />

Apesar dos testemunhos que nos restam sobre as condições <strong>da</strong>s viagens <strong>da</strong><br />

Carreira existirem em quanti<strong>da</strong>de e varie<strong>da</strong>de suficientes para tornar possível traçar<br />

um quadro com a diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s experiências possíveis durante o seu longo<br />

trajecto, limitar-me-ei, apenas a breves referências.<br />

Em média , entre tripulantes, passageiros e militares, os navios <strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong><br />

Índia transportavam 400 a 500 pessoas (apesar de haver casos em que a barreira do<br />

milhar foi ultrapassa<strong>da</strong>), pertencentes aos diversos estratos sociais: nobres que<br />

partiam para o Oriente para ocupar cargos administrativos e militares, membros do<br />

clero, em particular missionários, gente do terceiro Estado em busca de melhores<br />

condições de vi<strong>da</strong> e bons negócios.<br />

Um dos maiores problemas que se colocava ao longo <strong>da</strong> viagem era o <strong>da</strong><br />

alimentação de to<strong>da</strong>s estas pessoas. O biscoito (feito com farinha de trigo) era o<br />

principal recurso alimentar, seguido de alimentos secos e fumados.<br />

Mantimentos frescos eram quase inexistentes: apenas podiam ser embarcados<br />

os que se iriam consumir nos primeiros dias de viagem, pois caso contrário,<br />

acabariam por se estragar. Por vezes optava-se pelo embarque de animais vivos<br />

(coelhos, galinhas...), que iriam sendo mortos no decurso <strong>da</strong> travessia oceânica. E,<br />

sempre que era possível, pescava-se. Tão <strong>ou</strong> mais importantes que os géneros<br />

10


alimentícios era a água, embarca<strong>da</strong> em grandes quanti<strong>da</strong>des. Também o vinho, o<br />

azeite e o vinagre faziam parte <strong>da</strong> carga <strong>da</strong>s naus.<br />

Carlos Jaca<br />

Se os mantimentos eram embarcados tendo em atenção o número de viajantes<br />

e a duração previsível <strong>da</strong> viagem, vários eram os imprevistos que estragavam os<br />

cálculos. Em primeiro lugar, a existência de clandestinos, que aumentavam o<br />

número de bocas a alimentar; em segundo lugar, a falta de quali<strong>da</strong>de de muitos dos<br />

alimentos. Também o desvio de verbas, que leva ao embarque de p<strong>ou</strong>cos géneros<br />

alimentícios, põe em perigo a vi<strong>da</strong> dos que partem: “encolhem os Provedores as<br />

mãos para encher as unhas, e dão provimento para três semanas: eis que na segun<strong>da</strong><br />

semana já falta a água, e na terceira já não há pão”.<br />

As más condições de higiene e o mau acondicionamento dos mantimentos<br />

provoca a sua deterioração: o porão, onde iam armazenados, era frequentemente<br />

utilizado para urinar, e a água que aí se acumulava apodrecia muitos géneros,<br />

enquanto a existência de ratos e baratas, em número considerável, acelerava a<br />

degra<strong>da</strong>ção.<br />

Na região equatorial, o calor tornava a situação ain<strong>da</strong> mais dramática. O Padre<br />

Dionísio, em 1563, refere que, nos dez dias de calmaria a que a nau esteve sujeita<br />

“se <strong>da</strong>nno la mayor parte de las cosas de comer, porque o aceyte, la manteca, la<br />

marmela<strong>da</strong>, y la miel herviam; el agua se corrompia; las pasas, los higos e <strong>ou</strong>tras<br />

muchas cosas, com grande calma, se deñaram”. Beber urina, água do mar, comer<br />

c<strong>ou</strong>ro, ratos <strong>ou</strong> mesmo cartas náuticas, tornaram-se assim expedientes relativamente<br />

frequentes.<br />

Se as condições alimentares não eram, muitas vezes, as melhores, as<br />

condições de higiene mostravam-se também bastante deficientes: À acumulação de<br />

centenas de pessoas num espaço tão pequeno, convivendo muitas vezes com<br />

animais (lembremo-nos que, por vezes, na torna viagem, vinham embarcados<br />

elefantes e <strong>ou</strong>tros bichos exóticos), e sem água doce que pudesse ser usa<strong>da</strong> para a<br />

lavagem de r<strong>ou</strong>pas <strong>ou</strong> do corpo provocava problemas. Em 1597, é encontra<strong>da</strong> a<br />

11


meio <strong>da</strong> viagem uma criança morta na nau “São Martinho”. O seu corpo estava<br />

totalmente coberto de piolhos.<br />

Carlos Jaca<br />

Com este panorama, era habitual o desencadear de surtos epidémicos. Por<br />

vezes, o número de pessoas com problemas de saúde atingia tais proporções que se<br />

tornava difícil encontrar quem desempenhasse as tarefas liga<strong>da</strong>s à navegação. Na já<br />

referi<strong>da</strong> nau “São Martinho”, o piloto queixa-se que, a determina<strong>da</strong> altura, apenas<br />

existiam oito marinheiros e quatro <strong>ou</strong> cinco grumetes em boas condições de saúde.<br />

Todos os <strong>ou</strong>tros, <strong>ou</strong> tinham falecido, <strong>ou</strong> estavam acamados.<br />

Uma <strong>da</strong>s mais graves doenças que atingia muitos dos embarcados era o<br />

escorbuto, provocado pela alimentação carente em vitaminas. Camões, no canto V<br />

de “Os Lusía<strong>da</strong>s” afirma, referindo-se à doença e aos seus efeitos:<br />

“ [...]<br />

Quem haverá que sem o ver creia,<br />

Que tão disformemente ali lhe incharam<br />

As gengivas na boca, que crescia<br />

A carne e juntamente apodrecia?”<br />

Viajar nas naus <strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong> Índia era assim aventura que implicava<br />

vários riscos. Chegar são e salvo ao local de destino, apresentava-se como um<br />

objectivo nem sempre fácil de cumprir. E mesmo que se escapasse a to<strong>da</strong>s essas<br />

peripécias, era necessário lutar pela sobrevivência num espaço onde a acumulação<br />

de centenas de pessoas, durante vários meses, propiciava situações de conflitos.<br />

Como afirm<strong>ou</strong> Belchior Barreto, em 1551, “quase todos se pelejam ora huns ora<br />

<strong>ou</strong>tros”. Os motivos não faltavam: conseguir aquecer os alimentos, r<strong>ou</strong>bar os bens<br />

de alguém mais afortunado, vingar insultos provocados pelo jogo, <strong>ou</strong> simplesmente<br />

extravasar as tensões provoca<strong>da</strong>s por uma travessia tão difícil e desgastante.<br />

12


naufrágios?<br />

Carlos Jaca<br />

E agora julgo ser oportuno pôr a questão: quais as causas de todos esses<br />

Por simples critério metodológico parece correcto proceder a uma<br />

classificação que englobasse as causas que, de uma forma mais activa, contribuíram<br />

em ca<strong>da</strong> naufrágio registado para a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> respectiva embarcação. Seguindo este<br />

princípio, a generali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s identifica<strong>da</strong>s podem enquadrar-se no seguinte<br />

conjunto de categorias:<br />

1º O naufrágio clássico, na acepção mais tradicional do termo, provocado<br />

por uma tempestade cujos efeitos conduziam à destruição, afun<strong>da</strong>mento e/<strong>ou</strong><br />

encalhe <strong>da</strong> embarcação, tornando esta irrecuperável para a navegação.<br />

2º A per<strong>da</strong> causa<strong>da</strong> por um erro de navegação que levava o navio a<br />

encalhar em baixios, desfazer-se contra rochedos <strong>ou</strong> ain<strong>da</strong> a falhar as<br />

manobras de entra<strong>da</strong> na barra de um determinado porto de escala <strong>ou</strong> de<br />

destino.<br />

3º A per<strong>da</strong> provoca<strong>da</strong> por uma acção inimiga de carácter militar (pirataria,<br />

corso <strong>ou</strong> acto declarado de guerra), com vários desfechos possíveis:<br />

afun<strong>da</strong>mento na sequência <strong>da</strong> agressão, naufrágio na fuga <strong>ou</strong> afun<strong>da</strong>mento<br />

voluntário pela tripulação, para não cair em mãos inimigas.<br />

Segundo autores britânicos, como o professor E. Taylor, foi nestas naus<br />

<strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong> Índia então apresa<strong>da</strong>s, que os Ingleses se apoderaram <strong>da</strong>s cartas<br />

de marear, dos roteiros e relações comerciais, que lhes revelaram os segredos<br />

náuticos e mercantis dos Portugueses sobre as rotas e o tráfico do Oriente.<br />

4º Os desastres ocorridos em determinado momento <strong>da</strong> viagem, cuja<br />

responsabili<strong>da</strong>de se pode atribuir a um excessivo carregamento <strong>da</strong> nau, o<br />

13


Carlos Jaca<br />

que impedia a existência de boas condições de manobra e implicava uma<br />

maior vulnerabili<strong>da</strong>de aos efeitos de qualquer temporal <strong>ou</strong> <strong>ou</strong>tro imprevisto;<br />

De facto, a ambição e a cobiça dos mercadores (gente fi<strong>da</strong>lga),<br />

carregando desmedi<strong>da</strong>mente os navios, numa ânsia de lucro e de rápido<br />

enriquecimento de qualquer maneira, mesmo pondo em risco a sua vi<strong>da</strong> e a<br />

dos demais passageiros e tripulantes, é aponta<strong>da</strong> por todos os autores como<br />

causa suprema dos desastres marítimos.<br />

Carregar as naus, aj<strong>ou</strong>jando-as ao peso <strong>da</strong>s mercadorias e riquezas<br />

pessoais, quando do regresso à metrópole, foi uma <strong>da</strong>s maiores e mais<br />

desastrosas preocupações de todos aqueles que eram dominados pela ânsia de<br />

se locupletarem a curto prazo; “os cofres flutuantes não resistiam à fúria dos<br />

elementos e abriam-se em pleno mar para os afun<strong>da</strong>r nos abismos, com as<br />

riquezas, os possuidores, e com os culpados, os inocentes”.<br />

Um bom exemplo, significativo <strong>da</strong> sobrecarga dos navios, é bem<br />

patente na per<strong>da</strong> do galeão “Santiago”, apresado pelos Holandeses em 1602.<br />

Atente-se. Após terem alijado inúmeras mercadorias suficientes para<br />

carregarem uma grande nau, os corsários estavam espantados de o verem<br />

ain<strong>da</strong> tão cheio de fazen<strong>da</strong>, não deixando de exclamar increpando: “Dizei,<br />

gente portuguesa, que nação haverá no mundo tão bárbara e cobiçosa, que<br />

cometa passar o Cabo <strong>da</strong> Boa Esperança na forma que todos passais, metidos<br />

no profundo do mar com carga, pondo as vi<strong>da</strong>s a tão provável risco de as<br />

perder, só por cobiça; e por isso não é maravilha que percais tantas naus e<br />

tantas vi<strong>da</strong>s”.<br />

Os estivadores carregavam conforme mais lhes convinha, ao sabor <strong>da</strong>s<br />

espórtulas de ca<strong>da</strong> interessado, “atulhando o galeão de far<strong>da</strong>ria em bar<strong>da</strong>, que<br />

subia no convés até à altura dos castelos, que transpunha o costado,” autêntica<br />

feira flutuante.<br />

14


Carlos Jaca<br />

5º As per<strong>da</strong>s na sequência do mau estado de conservação <strong>da</strong>s<br />

embarcações que, em algumas situações, tornava necessário o seu abandono<br />

em alguma escala intermédia do percurso <strong>ou</strong> conduzia ao seu próprio<br />

naufrágio em pleno oceano;<br />

O mau estado de conservação <strong>da</strong>s naus agravava-se, sobretudo, devido<br />

ao processo de reparação por empreita<strong>da</strong>. A fim de p<strong>ou</strong>parem tempo, o<br />

trabalho fazia-se negligentemente e as naus ficavam com muitas deficiências.<br />

Expressivamente, refere João Batista Lavanha: “enfeitam o <strong>da</strong>no de maneira<br />

que pareça bem consertado, e debaixo dele fica a perdição escondi<strong>da</strong> e certa.<br />

Cortam-se também as madeiras fora do seu tempo e sazão, pelo que são<br />

pesa<strong>da</strong>s verdes e dessazona<strong>da</strong>s; e como tais encolhem, e fendem, e<br />

desencaixam-se do seu lugar; e com a humi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> água de fora e grande<br />

quentura <strong>da</strong> pimenta, e drogas de dentro, logo se apodrecem e corrompem na<br />

primeira viagem”. Tal deveria ser o caso do naufrágio <strong>da</strong> nau “Santo<br />

Alberto”: a madeira <strong>da</strong> quilha estava tão podre que, quando deu à costa, Nuno<br />

Velho Pereira a desfez em pe<strong>da</strong>ços com uma cana.<br />

6º Finalmente, temos ain<strong>da</strong> uma situação, que não corresponde propriamente<br />

a uma causa de naufrágio, mas antes ao desconhecimento sobre o seu destino,<br />

testemunhado pela globali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s fontes documentais consulta<strong>da</strong>s. Este é o<br />

caso <strong>da</strong>s naus que desapareceram em determina<strong>da</strong> fase <strong>da</strong> viagem sem<br />

que tenham restado quaisquer testemunhas <strong>ou</strong> sobreviventes conhecidos<br />

para relatar o ocorrido, e <strong>da</strong>s quais nem sequer foi encontrado qualquer tipo<br />

de vestígio material que ajude a eluci<strong>da</strong>r--nos, <strong>ou</strong> aos contemporâneos, sobre<br />

o que então se pass<strong>ou</strong>.<br />

O maior número de naufrágios não deix<strong>ou</strong> rasto que pudesse assinalar o<br />

lugar e a causa do desastre. O mar “comia as naus” na expressão do tempo.<br />

Não deve, contudo, esquecer-se que em várias situações os naufrágios<br />

podiam ser motivados, não por uma causa eficaz isola<strong>da</strong>, mas antes por uma<br />

15


Carlos Jaca<br />

conjugação de vários factores articulados entre si. Era muito provável, por<br />

exemplo, que a sobrecarga <strong>ou</strong> o mau estado de conservação de uma nau<br />

diminuíssem substancialmente as suas possibili<strong>da</strong>des de sobrevivência<br />

perante um temporal <strong>ou</strong> um ataque pirata. Em algumas situações não é muito<br />

correcto apontarmos um único factor como responsável pela per<strong>da</strong>, sendo<br />

mais aconselhável considerar a combinação <strong>da</strong>s condições desfavoráveis.<br />

Igualmente útil, revela-se também a articulação <strong>da</strong>s informações sobre<br />

as diversas causas de per<strong>da</strong> <strong>da</strong>s naus com a fase <strong>da</strong> viagem <strong>ou</strong> a área<br />

geográfica em que aquelas se verificam com maior intensi<strong>da</strong>de.<br />

As razões que contribuíam para o desaparecimento de embarcações<br />

eram diferentes conforme isso acontecia no percurso de i<strong>da</strong>, de volta <strong>ou</strong> em<br />

trânsito no Índico, assim como se o facto ocorria no início <strong>ou</strong> no final <strong>da</strong><br />

viagem.<br />

Resta, fun<strong>da</strong>mentalmente, a confirmação <strong>da</strong> percepção empírica que<br />

nos leva a pensar que, seja na sequência de tempestades, em virtude do<br />

excesso de carga <strong>ou</strong> devido a acção inimiga, os navios são sempre mais<br />

vulneráveis a acidentes com consequências graves quando se encontram no<br />

final <strong>da</strong> sua viagem, com as tripulações cansa<strong>da</strong>s e o material bem mais<br />

debilitado do que p<strong>ou</strong>co depois <strong>da</strong> parti<strong>da</strong>.<br />

O documento humano<br />

Referi<strong>da</strong>s as causas <strong>da</strong>s tragédias, vejamos segui<strong>da</strong>mente, qual o<br />

comportamento humano na aflição e na subsequente caminha<strong>da</strong> por terra.<br />

Com efeito na <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong> encontram-se os mais<br />

extraordinários relatos <strong>da</strong>s horas dramáticas do naufrágio e <strong>da</strong> dolorosa peregrinação<br />

dos escapados à morte, percorrendo léguas e léguas através de terras do interior,<br />

atravessando serras altíssimas e de difícil acesso, utilizando janga<strong>da</strong>s para a<br />

16


travessia dos rios mais cau<strong>da</strong>losos, transpondo pântanos e regiões lodosas,<br />

padecendo fomes e sedes, fazendo frente a traições e ataques dos indígenas,<br />

tragados pelas feras, r<strong>ou</strong>bados, escarnecidos, maltratados e sujeitos a mil vexames.<br />

Carlos Jaca<br />

Dolorosa é a descrição do comportamento destes desgraçados náufragos e <strong>da</strong>s<br />

suas reacções à iminência <strong>da</strong> morte, numa luta feroz pela sobrevivência, em<br />

arrepiantes lances de barbari<strong>da</strong>de e egoísmo. É o homem no seu primitivismo, sem<br />

disfarces, extravasando quanto a alma tem de negativo. De facto, é quando o ser<br />

humano tomba no abismo <strong>da</strong> desgraça e <strong>da</strong> miséria, despojados de todos os seus<br />

bens e inexoravelmente posto frente a frente <strong>da</strong> morte, que ele se mostra a nu e se<br />

revela em plena grandeza e baixeza de alma. Ca<strong>da</strong> um gritava a sua ver<strong>da</strong>de mais<br />

profun<strong>da</strong>. E em quase todos o instinto elementar do apego à vi<strong>da</strong> sobrepunha-se e<br />

obscurecia os demais sentimentos.<br />

Na hora alucinante de abandonar a nau, prestes a afun<strong>da</strong>r-se, os homens<br />

acorriam em tumulto ao batel, esperança derradeira de salvamento; e aqueles<br />

mesmos, que de manhã se tratavam de amigos, à noite disputavam-se às cutila<strong>da</strong>s os<br />

lugares, ferindo e matando sem pie<strong>da</strong>de.<br />

Declara<strong>da</strong> a per<strong>da</strong> fatal do navio, era um alarido angustioso por todo ele. Os<br />

navegantes precipitavam-se desordena<strong>da</strong>mente sobre os religiosos para serem<br />

<strong>ou</strong>vidos de confissão: ”to<strong>da</strong> a gente, não tratando já mais que <strong>da</strong> salvação <strong>da</strong>s almas<br />

por quão desengana<strong>da</strong> se viu <strong>da</strong> dos corpos, pediam todos confissão aos religiosos,<br />

com muitas lágrimas e gemidos, com tão p<strong>ou</strong>co tino e ordem que todos se queriam<br />

confessar juntamente e em voz tão alta que todos se <strong>ou</strong>viam uns aos <strong>ou</strong>tros. Um<br />

homem, não podendo esperar, começ<strong>ou</strong> a gritar a um dos religiosos e, sem mais<br />

aguar<strong>da</strong>r, dizia suas culpas em voz alta, tão graves e enormes, que foi necessário ir-<br />

lhe o religioso com a mão à boca, gritando-lhe que se calasse”.<br />

Preparava-se afanosamente o batel de salvação, mas nele só iam grandes e a<br />

parentela e próximos dos graúdos escolhidos, arbitrariamente, dum modo<br />

revoltantemente pessoal. Na nau a afun<strong>da</strong>r-se ficava a chusma dos escravos, a gente<br />

menor e uma <strong>ou</strong> <strong>ou</strong>tra pessoa de condição que não estivesse nas boas graças dos<br />

17


chefes. Por isso se compreende aquele episódio <strong>da</strong> ama que não quis largar a filha<br />

de D. Joana de Mendonça, descrito por Diogo do C<strong>ou</strong>to na per<strong>da</strong> <strong>da</strong> nau “S. Tomé”.<br />

No dizer de Rodrigues Lapa, tem to<strong>da</strong> a força essa imagem <strong>da</strong> pobre mulher que,<br />

não podendo ser salva, quer levar para o fundo do mar a menina que criara ao seu<br />

colo.<br />

Carlos Jaca<br />

Procedimento atroz era o frequente lançamento ao mar <strong>da</strong>s pessoas<br />

excedentes no batel, após o naufrágio. Era a condenação à morte feita<br />

calcula<strong>da</strong>mente a frio.<br />

Refiram-se algumas passagens que documentam tão desumano procedimento:<br />

“E tornando ao batel: tanto que cometeu sua viagem acharam-no os oficiais<br />

tão pejado, por ir muito carregado, com todo o grosso debaixo de água, que fizeram<br />

grandes requerimentos que se lançassem algumas pessoas ao mar para poderem<br />

salvar as <strong>ou</strong>tras, o que aqueles fi<strong>da</strong>lgos consentiram, deixando a eleição delas aos<br />

oficiais, que logo lançaram ao mar seis pessoas que foram toma<strong>da</strong>s nos ares,<br />

lança<strong>da</strong>s nele, onde ficariam submergi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s cruéis on<strong>da</strong>s, sem mais aparecerem”.<br />

E, ain<strong>da</strong>, “aconteceu aqui que querendo botar ao mar o tanoeiro de<br />

sobressalente, o qual tinha trabalhado muito bem no conserto do batel, e vendo o<br />

pobre homem que não tinha nenhum remédio, pediu uma talha<strong>da</strong> de marmela<strong>da</strong>;<br />

deram-lha e sobre ela bebeu uma vez de vinho, e assim se deix<strong>ou</strong> lançar ao mar,<br />

indo-se a pique ao fundo, sem mais aparecer”.<br />

Durante o naufrágio desta nau que, em 1585, se rompeu nos baixos <strong>da</strong> Judia,<br />

deu-se entre os sobreviventes o lance costumado. Como todos corriam risco com o<br />

peso excessivo começaram a lançar a carga humana, até que o batel desafogado<br />

pudesse tomar o rumo. Alguns, que sabiam na<strong>da</strong>r, vieram com o pavor <strong>da</strong> noite<br />

enclavinhar-se à bor<strong>da</strong> do batel. De dentro, implacavelmente, decepavam-lhes as<br />

mãos à espa<strong>da</strong>.<br />

Mas paralelamente, há lances que contrastando com tais cruel<strong>da</strong>des,<br />

reconfortam e comovem pelo altruísmo e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de manifestados, pela<br />

18


generosi<strong>da</strong>de e amor aos companheiros de sofrimento, desde o simples conforto e<br />

amparo à maior abnegação e sacrifício.<br />

Carlos Jaca<br />

Sucedia muitas vezes que a nau <strong>da</strong>va à costa. Então todos <strong>ou</strong> quase todos se<br />

salvavam. Carregando o mais que podiam dos destroços <strong>da</strong> nau, “a triste caravana<br />

seguia por terra em direcção a Sofala, com um crucifixo arvorado numa lança”.<br />

Nestas caminha<strong>da</strong>s com muita gente, onde se incluíam velhos, mulheres e<br />

crianças, o ritmo de an<strong>da</strong>mento não era, naturalmente, muito forte, o que fazia<br />

desesperar os mais impacientes, geralmente membros <strong>da</strong> tripulação, que chegavam a<br />

planear abandonar os companheiros de caminha<strong>da</strong> para poderem avançar mais<br />

depressa.<br />

Durante a caminha<strong>da</strong>, os náufragos encontravam aldeias, onde procuravam<br />

comprar mantimentos e obter aju<strong>da</strong>, como por exemplo, conseguir que algum<br />

indígena os acompanhasse e lhes pudesse servir de guia. Porém, grande parte dos<br />

guias disponíveis apenas os sabia conduzir nas redondezas <strong>da</strong> sua aldeia, pois, como<br />

nos diz o narrador <strong>da</strong> relação do naufrágio <strong>da</strong> nau “São Bento”, a propósito de um<br />

guia que acompanh<strong>ou</strong> os caminhantes, “como a gente <strong>da</strong>quela terra não se afaste<br />

muito dos limites onde nasce [...], e ao redor <strong>da</strong>quelas ch<strong>ou</strong>panas se crie e morra,<br />

quando veio o terceiro dia tinha o cafre tanta necessi<strong>da</strong>de de quem o guiasse como<br />

nós”. Por esse motivo, e vendo a insatisfação dos Portugueses face ao seu trabalho<br />

de orientação, muitos deles acabavam por fugir, o que contribuía para aumentar o<br />

desalento dos náufragos.<br />

Por vezes, eram encontrados, entre os cafres, sobreviventes de naufrágios<br />

anteriores. Tal situação era motivo de grande alegria para os caminhantes, pois<br />

reforçava a esperança <strong>da</strong> salvação de todos. O “língua” (designação que se <strong>da</strong>va ao<br />

homem que aprendeu a língua <strong>da</strong> terra) não só facilitava a comunicação e permitia<br />

melhorar o relacionamento com os autóctones, como também podia servir de guia<br />

na caminha<strong>da</strong>, já que a confiança posta nestes ex-náufragos era bem maior que a que<br />

suscitam qualquer cafre.<br />

19


Carlos Jaca<br />

Mas os três grandes inimigos dos náufragos, segundo o autor <strong>da</strong> relação <strong>da</strong><br />

per<strong>da</strong> <strong>da</strong> nau “Santiago”, eram a fome, a sede e o frio. Durante a caminha<strong>da</strong>,<br />

chegavam a passar-se vários dias em que não se encontrava na<strong>da</strong> para comer,<br />

levando a que muitos caíssem doentes <strong>ou</strong> morressem. A fome chegava a ser tanta<br />

que não havia qualquer preconceito sobre o tipo de alimento a ingerir. Lado a lado<br />

com os côcos, a carne de elefante, a carne de macaco, que se dizia ser “nojenta e<br />

ruim carne”, comiam-se também sapatos, procuravam – se com sofreguidão ossos,<br />

espinhas, ervas, pequenos bichos, engoliam-se favas do mato, muitas vezes<br />

peçonhentas, provocando grande sofrimento, matavam-se e ingeriam-se ratos,<br />

cobras e lagartos.<br />

Menor não era, de modo algum, o drama <strong>da</strong> sede. Era frequente caminhar-se<br />

cinco e seis dias sem beber, o que provocava grande sofrimento e desespero.<br />

A situação cheg<strong>ou</strong> a ser de tal modo grave que “h<strong>ou</strong>ve pessoas que bebiam<br />

mijo”, tendo quatro delas morrido por causa disso, e <strong>ou</strong>tras por ingerir água salga<strong>da</strong>.<br />

Para além <strong>da</strong> fome e <strong>da</strong> sede, o frio era <strong>ou</strong>tro dos grandes problemas que os<br />

caminhantes enfrentavam, principalmente durante a noite. Conta Manuel Godinho<br />

Cardoso que “por ser ain<strong>da</strong> Inverno nesta terra o frio era grande”, e que, apesar <strong>da</strong><br />

muita lenha que nela havia, todos “se sentiam enregelados”, queixando-se de “quão<br />

errados vão os que dizem na Zona Tórri<strong>da</strong> não há frio”.<br />

A estes “inimigos” dos náufragos, poderíamos juntar <strong>ou</strong>tros, como o calor em<br />

demasia em muitos momentos do dia, os ataques dos animais <strong>ou</strong> as tempestades de<br />

areia.<br />

Também durante as caminha<strong>da</strong>s, os sobreviventes eram frequentemente<br />

perseguidos por indígenas, que os pretendiam r<strong>ou</strong>bar e, por vezes, mesmo, matar.<br />

Boa parte <strong>da</strong>s vezes, não <strong>ou</strong>savam meter-se directamente com os portugueses por<br />

causa <strong>da</strong>s armas de fogo que estes possuíam, esperando que alguns fossem ficando<br />

para trás, os quais imediatamente eram despidos e despojados de tudo o que<br />

transportavam.<br />

20


Carlos Jaca<br />

To<strong>da</strong>s estas dificul<strong>da</strong>des causavam, obviamente, inúmeras mortes, algumas<br />

bem dramáticas, como a de D. Leonor Sepúlve<strong>da</strong>, que vendo-se despi<strong>da</strong> por acção<br />

dos cafres, “lanç<strong>ou</strong>-se logo no chão, e cobriu-se to<strong>da</strong> com os seus cabelos, que eram<br />

muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até à cintura, sem mais<br />

se erguer <strong>da</strong>li”, vindo a falecer algum tempo depois. O marido, Manuel de S<strong>ou</strong>sa<br />

Sepúlve<strong>da</strong>, depois de enterrar a mulher e um filho, que com ela morrera, meteu-se<br />

pelo mato, e nunca mais o viram.<br />

Muitos <strong>ou</strong>tros casos poderiam ser citados de mortes bem duras que ocorreram<br />

com tripulantes e passageiros de naus <strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong> Índia que naufragaram em<br />

pontos <strong>da</strong> costa africana <strong>ou</strong> em ilhas algures no Índico.<br />

Após uma déca<strong>da</strong> de conquista e instalação do monopólio português <strong>da</strong> rota<br />

do Cabo, seguem-se 75 anos de relativa estabili<strong>da</strong>de na sua exploração, após o que<br />

se segue um longo e doloroso declínio que Camões, talvez de forma premonitória,<br />

prognosticaria:<br />

“Aqui espero tomar, se não me engano,<br />

De quem me descobriu suma vingança;<br />

E não se acabará só nisto o <strong>da</strong>no<br />

De vossa pertinace confiança,<br />

Antes em vossas naus vereis ca<strong>da</strong> ano,<br />

Se é ver<strong>da</strong>de o que meu juízo alcança,<br />

Naufrágios, perdições de to<strong>da</strong> a sorte,<br />

Que o menor mal de todos seja a morte”.<br />

Concluindo: Pode considerar-se a <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong> uma bela e<br />

importante obra que constitui como que o <strong>reverso</strong> do heroísmo cantado n’”Os<br />

Lusía<strong>da</strong>s”; o que em “Os Lusía<strong>da</strong>s” é “glória que guin<strong>da</strong> os heróis às alturas do<br />

Olimpo é aqui drama que os afun<strong>da</strong> nos abismos do sofrimento e <strong>da</strong> miséria<br />

humana.<br />

21


Carlos Jaca<br />

São milhares os Portugueses, desde o grumete de Alfama ao fi<strong>da</strong>lgo de avós<br />

godos, que morrem aos gritos nestas páginas; são milhares os escravos que<br />

igualmente morrem, mas em silêncio, porque deles não fic<strong>ou</strong> nem o nome nem a<br />

voz”.<br />

A leitura desta obra permite-nos tomar consciência de que “os feitos gloriosos<br />

se pagam por um preço muito elevado em morte, sofrimento, dinheiro, desespero e<br />

dor”.<br />

Efectivamente, é a factura com que os Portugueses pagaram o esforço, a<br />

audácia, a coragem, o risco e o espírito de aventura na missão que assumiram no<br />

desbravar de mares “nunca <strong>da</strong>ntes navegados”, e de descobrir para o mundo as<br />

terras até então desconheci<strong>da</strong>s.<br />

Bibliografia consulta<strong>da</strong><br />

ALBUQUERQUE, Luis de – “Escalas <strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong> Índia”. Junta de Investigações<br />

Científicas do Ultramar. Lisboa, 1978.<br />

BOXER, C. R. – O Império Marítimo Português: 1415 - 1825<br />

BRITO, Bernardo Gomes de – “<strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong>” – 2 vols. Fixação do<br />

texto, introdução e notas de Neves Águas. Publicações Europa – América.<br />

BRITO, Bernardo Gomes de – “<strong>História</strong> <strong>Trágico</strong> – <strong>Marítima</strong>” – 2 vols. Fixação do<br />

texto, glossário e notas de Neves Águas. Comentários de Fernando Luso<br />

Soares, José Saramago e Maria Lúcia Lepecki. Edições Afrodite. Lisboa,<br />

1971-1972.<br />

FERREIRA, João Palma – “Naufrágios, Viagens, Fantasias e Batalhas”. Imprensa<br />

Nacional- Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>. Lisboa, 1980.<br />

22


GUINOTE, Paulo, Eduardo Frutuoso e António Lopes – “Naufrágios e <strong>ou</strong>tras<br />

Carlos Jaca<br />

per<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong> Índia” – Séculos XVI e XVII. Grupo de Trabalho do<br />

Ministério <strong>da</strong> Educação para as Comemorações dos Descobrimentos<br />

Portugueses. Lisboa, 1988.<br />

LANCIANI, Giulia – “Uma <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong>”, in Lisboa e os<br />

Descobrimentos” (1415-1580). Terramar. Lisboa, 1992.<br />

LAPA, Manuel Rodrigues – “Prefácio”, in “Quadros <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong>-<strong>Marítima</strong>”.<br />

Lisboa, 1951.<br />

MENEZES, José de Vasconcelos e, - “Arma<strong>da</strong>s Portuguesas de meados do séc.<br />

XIV. Alimentação e Abastecimentos”. Editorial Resistência. Lisboa, 1981.<br />

SÉRGIO, António – “Em torno <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>Trágico</strong> – <strong>Marítima</strong>”, in “Ensaios”, vol.<br />

XVIII. Lisboa, 1974.<br />

23

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