Poesias líricas - Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes

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18.04.2013 Views

Se houver um ente, que sorvido tenha gota a gota o veneno da amargura; que nem nos horizontes da esperança veja raiar-lhe um dia de ventura; se houver um ente, que, dos homens certo, neles espere certa a falsidade; que veja um laço vil num rir de amores, uma traição nos mimos da amizade; se houver um ente, que, votado às dores, todo com a tristeza desposado, de cruéis desenganos só nutrido, somente males a esperar do fado; que venha, acompanhar-me na agonia, qu'esta minh'alma, sem cessar, traspassa! Venha, qu'há muito luto, a ver se encontro quem sinta, como eu, tanta desgraça Venha, sim, que talvez por nosso trato uma nova linguagem seja urdida, em que possam falar-se os desgraçados, que do mundo não seja traduzida. Por lei inexorável do destino, quem gemer à desgraça condenado, inda lidando no lidar do mundo, há de viver do mundo desterrado. E em que desterro! Os outros só nos tiram os olhos do lugar do nascimento; A linguagem dos tristes Poesias completas 28

a desgraça, porém, do mundo inteiro desterra o coração e o pensamento. Ao menos a linguagem deste exílio mais suportável torne a vida crua; tenha ao menos a terra da desgraça uma linguagem propriamente sua. E quem tê-la melhor? Por mais que fale o sedutor prazer em frase ardente, por mais que se perfume e se floreie, nunca é, como a dor, tão eloqüente. Nos fenômenos d'alma o corpo sempre do seu modo de obrar diversifica: Pelas quebras da orgânica fraqueza a força esp'ritual se multiplica. Quando, livre, o esp'rito aos céus remonta, da Eternidade demandando o norte, toda força primeva recobrando- tomba a matéria, e cai nas mãos da morte! Quando o gás do prazer dilata o seio, a força do sentir dormente acalma; quando a pressa da dor o seio aperta, a força do sentir se expande n'alma. Assim novas palavras, novas frases, nova linguagem, pede o sofrimento; porque dobra o sentir, e duplas asas p'ra vôos duplos colhe o pensamento: Não, não pode em seus termos quase inertes, esse falar comum de cada dia, deste duplo sentir, d'idéias duplas, exprimir fielmente a valentia. Poesias completas 29

a <strong>de</strong>sgraça, porém, do mundo inteiro<br />

<strong>de</strong>sterra o coração e o pensamento.<br />

Ao menos a linguagem <strong>de</strong>ste exílio<br />

mais suportável torne a vida crua;<br />

tenha ao menos a terra da <strong>de</strong>sgraça<br />

uma linguagem propriamente sua.<br />

E quem tê-la melhor? Por mais que fale<br />

o sedutor prazer em frase ar<strong>de</strong>nte,<br />

por mais que se perfume e se floreie,<br />

nunca é, como a dor, tão eloqüente.<br />

Nos fenômenos d'alma o corpo sempre<br />

do seu modo <strong>de</strong> obrar diversifica:<br />

Pelas quebras da orgânica fraqueza<br />

a força esp'ritual se multiplica.<br />

Quando, livre, o esp'rito aos céus remonta,<br />

da Eternida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mandando o norte,<br />

toda força primeva recobrando-<br />

tomba a matéria, e cai nas mãos da morte!<br />

Quando o gás do prazer dilata o seio,<br />

a força do sentir dormente acalma;<br />

quando a pressa da dor o seio aperta,<br />

a força do sentir se expan<strong>de</strong> n'alma.<br />

Assim novas palavras, novas frases,<br />

nova linguagem, pe<strong>de</strong> o sofrimento;<br />

porque dobra o sentir, e duplas asas<br />

p'ra vôos duplos colhe o pensamento:<br />

Não, não po<strong>de</strong> em seus termos quase inertes,<br />

esse falar comum <strong>de</strong> cada dia,<br />

<strong>de</strong>ste duplo sentir, d'idéias duplas,<br />

exprimir fielmente a valentia.<br />

<strong>Poesias</strong> completas<br />

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