18.04.2013 Views

monge joão maria de agostini e as desventuras de um peregrino ...

monge joão maria de agostini e as desventuras de um peregrino ...

monge joão maria de agostini e as desventuras de um peregrino ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

MONGE JOÃO MARIA DE AGOSTINI E AS DESVENTURAS DE UM<br />

PEREGRINO TORNADO SANTO POR SEUS (SUPOSTOS) DONS DE<br />

Introdução<br />

CURANDEIRO (BRASIL – SÉCULO XIX).<br />

Alexandre <strong>de</strong> Oliveira Karsburg 1<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

alexkarsburg@yahoo.com.br<br />

Este artigo é <strong>um</strong> recorte <strong>de</strong> minha tese <strong>de</strong> doutorado on<strong>de</strong> estou reconstruindo a<br />

trajetória do italiano Giovanni Maria <strong>de</strong> Agostini no Br<strong>as</strong>il e outros países da América<br />

em meados do século XIX. Pretendo restituí-lo a <strong>um</strong> momento histórico para perceber<br />

como e porque foi alcançando repercussão entre grupos sociais distintos. O presente<br />

artigo tem por objetivo analisar como este indivíduo surgiu como santo popular em<br />

função da crença que lhe atribuiu o dom <strong>de</strong> tornar milagrosa <strong>um</strong>a n<strong>as</strong>cente <strong>de</strong> água.<br />

Veremos quando os jornais do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul p<strong>as</strong>saram a dar cobertura às notíci<strong>as</strong><br />

sobre os “milagres” d<strong>as</strong> “águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong>” e como foram sendo transmitid<strong>as</strong> e ganhando<br />

espaço à medida que eram divulgad<strong>as</strong>. Privilegiar-se-á a visão dos <strong>de</strong>votos e crentes no<br />

po<strong>de</strong>r miraculoso da fonte do <strong>monge</strong>.<br />

O Monge d<strong>as</strong> Águ<strong>as</strong> Sant<strong>as</strong><br />

No mês <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1848, n<strong>as</strong> págin<strong>as</strong> do jornal O Porto Alegrense, publicava-se<br />

a seguinte notícia: “Na Serra do Botucaraí, próximo a Santa Maria, dizem se <strong>de</strong>scobrira<br />

<strong>um</strong>a fonte, com a água da qual se tem operado alg<strong>um</strong><strong>as</strong> cur<strong>as</strong>, e por isso lhe dão o nome<br />

<strong>de</strong> água milagrosa.” Afirmava o texto ainda que os “exagerados apregoam por toda a<br />

parte que já ela tem curado a elefantí<strong>as</strong>e [lepra], dando vista a cegos, tornando bons os<br />

paralíticos, e não se sabe o que mais”, e que para lá “tem ido doentes <strong>de</strong> tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> partes<br />

da província, atraídos pelos inúmeros prodígios que se contam <strong>de</strong> tal água, que dizem<br />

fora <strong>de</strong>scoberta por <strong>um</strong> <strong>monge</strong>, que se ausentara logo que para ali entrara a concorrer<br />

muito povo.” Para po<strong>de</strong>r melhor informar sobre esta <strong>de</strong>scoberta, o jornal finalizou<br />

1 Doutorando em História Social. Bolsista Capes. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Jacqueline Hermann.


<strong>as</strong>segurando que estava pedindo “alguns esclarecimentos a pesso<strong>as</strong> circunspet<strong>as</strong>, e logo<br />

que nos sejam dados, os transmitiremos aos nossos leitores.” 2<br />

Cientes que este era <strong>as</strong>sunto <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a importância – que atraía a atenção d<strong>as</strong><br />

pesso<strong>as</strong> pel<strong>as</strong> promess<strong>as</strong> <strong>de</strong> cur<strong>as</strong> a divers<strong>as</strong> enfermida<strong>de</strong>s – outros jornais p<strong>as</strong>saram a se<br />

ocupar do acontecimento, republicando o texto do Porto Alegrense e, logo a seguir,<br />

apresentando novos “prodígios” d<strong>as</strong> tais “águ<strong>as</strong> milagros<strong>as</strong>”. O jornal Diário do Rio<br />

Gran<strong>de</strong>, aproveitando-se da curiosida<strong>de</strong> que o c<strong>as</strong>o suscitava, <strong>as</strong>sim o referiu:<br />

“Tamanh<strong>as</strong> virtu<strong>de</strong>s se tem contado por aí d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> que em Santa Maria da Boca do<br />

Monte <strong>de</strong>scobrira <strong>um</strong> padre da Companhia <strong>de</strong> Jesus, que força é ocuparmo-nos também<br />

<strong>de</strong>ste <strong>as</strong>sunto, aliás, <strong>de</strong> importantíssima transcendência para a socieda<strong>de</strong>.” Desconfiados<br />

dos “efeitos tão <strong>as</strong>sombrosos que se atribuíram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio a ess<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>”, os<br />

jornalist<strong>as</strong> confessaram que “duvidaram da sua eficácia”, crendo que “tudo não p<strong>as</strong>sava<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a fábula ou superstição.”<br />

Fazendo breve menção ao <strong>de</strong>scobridor d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>, afirmaram que “em divers<strong>as</strong><br />

povoações era acolhido o reverendíssimo Monge” com veneração, <strong>as</strong>segurando que até<br />

na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pelot<strong>as</strong> o “povo lhe saíra ao encontro para beijar-lhe <strong>as</strong> vestes e o cajado”.<br />

Apesar <strong>de</strong> pensarem que tudo não p<strong>as</strong>s<strong>as</strong>se <strong>de</strong> “<strong>um</strong> excesso <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong>,”<br />

apresentaram os testemunhos que abundavam no interior da província sul-rio-gran<strong>de</strong>nse<br />

a respeito “d<strong>as</strong> miraculos<strong>as</strong> virtu<strong>de</strong>s d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong>”, acreditando ser <strong>um</strong> <strong>de</strong>ver <strong>de</strong><br />

ofício “proclamar com todo o afinco a sua indisputável bonda<strong>de</strong> e eficácia para tod<strong>as</strong> <strong>as</strong><br />

molésti<strong>as</strong> nervos<strong>as</strong>, sifilític<strong>as</strong>, etc.” 3<br />

Porém, havia n<strong>as</strong> reportagens certa confusão na hora <strong>de</strong> retratar o responsável<br />

pela <strong>de</strong>scoberta d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> curativ<strong>as</strong>: O Porto Alegrense afirmou ter sido <strong>um</strong> <strong>monge</strong> –<br />

acrescentando que o mesmo se ausentara tão logo o povo p<strong>as</strong>sou a acorrer em maior<br />

número ao local; o Diário do Rio Gran<strong>de</strong>, por outro lado, dizia se tratar <strong>de</strong> <strong>um</strong> padre da<br />

Companhia <strong>de</strong> Jesus. Informações <strong>um</strong> tanto <strong>de</strong>sencontrad<strong>as</strong> sobre o “<strong>de</strong>scobridor”, m<strong>as</strong><br />

o importante, naquele momento, não era chegar à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do sujeito, antes, sim,<br />

anunciar <strong>as</strong> cur<strong>as</strong> que se realizavam n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> que eram consi<strong>de</strong>rad<strong>as</strong> “sant<strong>as</strong>”. Para tal,<br />

o jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong> publicou <strong>um</strong>a carta datada do dia 30 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1848,<br />

2 Biblioteca Rio Gran<strong>de</strong>nse, cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> - BRG, Jornal O Porto Alegrense, 17 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1848.<br />

Notícia republicada no jornal O Rio-gran<strong>de</strong>nse, 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1848, n. 327, p. 3. A notícia mais recuada<br />

no tempo que pu<strong>de</strong> encontrar sobre <strong>as</strong> “águ<strong>as</strong> milagros<strong>as</strong> do <strong>monge</strong>” foi a publicada no jornal O Porto<br />

Alegrense do dia 17 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1848.<br />

3 BRG, Jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>, 16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1848, n. 1, ano 1, p. 1-2.


da vila <strong>de</strong> Alegrete – interior do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul –, escrita por “pessoa competente”,<br />

que <strong>as</strong>sim relatava: “Por aqui nada irá <strong>de</strong> notável, além d<strong>as</strong> prodigios<strong>as</strong> cur<strong>as</strong> operad<strong>as</strong><br />

pel<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> <strong>de</strong>nominad<strong>as</strong> do Monge, em Santa Maria da Boca do Monte, simplesmente<br />

bebid<strong>as</strong> ou em banhos.” Regionalista convicto, o autor da carta <strong>as</strong>severava que com a<br />

água pura do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, “que apresenta maiores e mais completos resultados na<br />

cura do mal <strong>de</strong> São Lázaro”, já não se precisava do Assaçú do Pará, “tão recomendado<br />

pelo governo” para curar diversos males do corpo. 4<br />

Depois <strong>de</strong> divulgad<strong>as</strong> na imprensa do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul <strong>as</strong> notíci<strong>as</strong> sobre <strong>as</strong><br />

“águ<strong>as</strong> milagros<strong>as</strong>”, os principais jornais da corte imperial p<strong>as</strong>saram a publicar os<br />

referidos artigos. O primeiro a estampar em su<strong>as</strong> págin<strong>as</strong> os “prodígios d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>” foi o<br />

Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 5 seguido pelo Correio Mercantil, Jornal do Comércio e A<br />

Nova Gazeta dos Tribunais. 6 De maio a novembro <strong>de</strong> 1848, inúmer<strong>as</strong> foram <strong>as</strong><br />

reportagens comunicando o que acontecia naquele ponto <strong>de</strong>sconhecido do interior do<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, na pequena vila <strong>de</strong> Santa Maria da Boca do Monte. As informações<br />

veiculad<strong>as</strong> na imprensa transmitiam o ponto <strong>de</strong> vista dos crédulos, daqueles que<br />

frequentaram o lugar e tinham alcançado ou presenciado alg<strong>um</strong>a cura. Sendo <strong>as</strong>sim, em<br />

<strong>um</strong> primeiro momento, os jornais não emitiram opinião própria a respeito dos fatos,<br />

restringindo-se a publicar <strong>as</strong> vári<strong>as</strong> cart<strong>as</strong> que recebiam <strong>de</strong> “pesso<strong>as</strong> competentes” do<br />

interior da província. Dentre estes textos, <strong>um</strong> em especial mereceu maior espaço n<strong>as</strong><br />

págin<strong>as</strong> dos jornais, repercutindo por todo o Br<strong>as</strong>il. 7 Assim, sob o título “As Águ<strong>as</strong><br />

Sant<strong>as</strong>”, iniciava a carta/reportagem:<br />

4 Em 3 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1848, o governo da província do Pará enviou a diversos presi<strong>de</strong>ntes <strong>um</strong> relatório<br />

feito por três médicos que atestaram os po<strong>de</strong>res medicinais do vegetal <strong>de</strong>nominado Assacú para o<br />

tratamento da morféia. O presi<strong>de</strong>nte interino do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, em 30 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1848, agra<strong>de</strong>ceu o<br />

relatório confirmando que daria publicida<strong>de</strong> na imprensa sobre o uso <strong>de</strong> tal planta. Arquivo Histórico do<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – AHRS, Códice A-3.08 (1846-1854), Porto Alegre, 30 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1848.<br />

5 Biblioteca Nacional – Setor <strong>de</strong> Periódicos, Rio <strong>de</strong> Janeiro – BN, Jornal Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 6 <strong>de</strong><br />

julho <strong>de</strong> 1848, n. 7836, p. 1. No mesmo jornal, até <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1848, há outros artigos sobre <strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

sant<strong>as</strong>. Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, janeiro a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1848, localização: PR-SPR 00005.<br />

6 Todos estes jornais encontram-se micro-filmados no Setor <strong>de</strong> Periódicos da Biblioteca Nacional, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Correio Mercantil, janeiro a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1848, localização: PR- SPR 00001; Jornal do<br />

Comércio, janeiro a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1848, localização: PR-SPR 1 (31); o jornal A Nova Gazeta dos<br />

Tribunais encontra-se igualmente na Biblioteca Nacional, m<strong>as</strong> no setor <strong>de</strong> Obr<strong>as</strong> Rar<strong>as</strong>.<br />

7 Ao ser primeiramente divulgada no jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>, em 11 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1848,<br />

rapidamente essa reportagem alcançou a corte imperial sendo republicada em três jornais do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jornal do Comércio, 21 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1848, n. 321, p.1; Correio Mercantil, 23 <strong>de</strong> novembro<br />

<strong>de</strong> 1848, n. 320, p. 3 e A Nova Gazeta dos Tribunais, 6 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1848, n. 43, p. 4. BN, Setor <strong>de</strong><br />

Periódicos e Setor <strong>de</strong> Obr<strong>as</strong> Rar<strong>as</strong>.


Temos <strong>de</strong>baixo dos olhos <strong>um</strong>a longa relação <strong>de</strong> n<strong>um</strong>eros<strong>as</strong> cur<strong>as</strong> operad<strong>as</strong><br />

pel<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> medicinais <strong>de</strong> Santa Maria da Boca do Monte. C<strong>as</strong>os espantosos<br />

e <strong>de</strong> incrível realida<strong>de</strong> aí se acham <strong>de</strong>scritos, com <strong>as</strong> cores singel<strong>as</strong> da fé mais<br />

pura, fé robustecida diante do testemunho ocular <strong>de</strong>sses prodígios da bonda<strong>de</strong><br />

divina. Aí a entregamos ao conhecimento da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, omitindo muitos<br />

c<strong>as</strong>os, por menos interessante. 8<br />

Percebe-se, aqui, que o termo criado pelo povo – “Águ<strong>as</strong> Sant<strong>as</strong>” – foi o que<br />

prevaleceu e p<strong>as</strong>sou a i<strong>de</strong>ntificar <strong>as</strong> “águ<strong>as</strong> medicinais” que existiam na então<br />

<strong>de</strong>sconhecida vila <strong>de</strong> Santa Maria da Boca do Monte, no interior do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Na sequência, o autor apresentou os <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> quarenta pesso<strong>as</strong> enferm<strong>as</strong> que<br />

foram até <strong>as</strong> “águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong>” para tratarem <strong>de</strong> sua saú<strong>de</strong>, e, após banharem-se nel<strong>as</strong>,<br />

voltavam sãs.<br />

A reportagem mencionava o nome, o local <strong>de</strong> origem, a ida<strong>de</strong>, em alguns c<strong>as</strong>os a<br />

cor, <strong>as</strong> molésti<strong>as</strong> e quantos banhos foram necessários para o restabelecimento. Dentre os<br />

quarenta nomes, havia gente <strong>de</strong> tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> partes da província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul:<br />

Santa Maria, Cachoeira, Porto Alegre, Santa Bárbara, Caçapava, Camaquã, São Gabriel,<br />

Santa Ana do Livramento, Lavr<strong>as</strong>, Santo Antônio da Patrulha, Piratini, Taquari, etc.;<br />

bem como do Estado Oriental (Uruguai). A <strong>de</strong>scrição era <strong>as</strong>sim: “Rufino Teixeira <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong>, branco, morador em Santa Bárbara, 22 anos. Sofria a 8 meses <strong>de</strong> <strong>um</strong>a afecção<br />

interna do lado direito. Chegou a 13 <strong>de</strong> maio, e no dia 16 estava perfeitamente bom.”<br />

À frente <strong>de</strong> alguns nomes, quando convinha, aparecia o ofício ou <strong>um</strong>a patente<br />

militar: “Tenente Coronel João Gonçalves Padilha, 65 anos, morador na Boa-Vista,<br />

distrito <strong>de</strong> São Martinho. Incômodo do peito, gran<strong>de</strong> tosse, e qu<strong>as</strong>e privação do andar,<br />

pel<strong>as</strong> dores n<strong>as</strong> cox<strong>as</strong> e pés. Está que não sente mais nada”. Buscar a cura n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> era<br />

opção <strong>de</strong> qualquer pessoa in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> seu nível social, pois esse Tenente<br />

Coronel era <strong>um</strong> dos maiores proprietários <strong>de</strong> terr<strong>as</strong> da região <strong>de</strong> São Martinho, e militar<br />

<strong>de</strong>stacado que lutou ao lado dos legalist<strong>as</strong> na Revolução Farroupilha. Quando a pessoa<br />

era <strong>de</strong>sconhecida, o parentesco <strong>de</strong>veria ser frisado para dar credibilida<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>poimento:<br />

“Rita, irmã <strong>de</strong> Luiz Rodrigues <strong>de</strong> Moraes, 35 anos. Sofria a 16 anos dos ouvidos. Com 6<br />

banhos tirou <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>stes <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> pele em forma <strong>de</strong> funil com du<strong>as</strong> perninh<strong>as</strong>. E<br />

daí em diante não sentiu nada mais.”<br />

8 BRG, Jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>, 11 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1848, n. 23, p. 2-3.


Como no c<strong>as</strong>o <strong>de</strong> Rita, outros expulsavam do corpo alg<strong>um</strong> objeto estranho, além<br />

<strong>de</strong> apresentarem-se com mais <strong>de</strong> <strong>um</strong> sintoma <strong>de</strong> doença: “José Pompeu <strong>de</strong> Toledo, 45<br />

anos, morador no 1° distrito <strong>de</strong> Santa Maria. Ferid<strong>as</strong> n<strong>as</strong> pern<strong>as</strong> e pel<strong>as</strong> mãos. Ficou<br />

bom.” O mesmo sofria <strong>de</strong> <strong>um</strong>a dor <strong>de</strong> garganta que o privava da fala, <strong>de</strong> comer e beber.<br />

“Indo à fonte d’água e molhando-se, voltou ao seu arranchamento, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>itou<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sangue e matéria pela boca. Tomou logo <strong>um</strong> caldo, e sem mais nada<br />

restabeleceu-se.” Da família Pompeu <strong>de</strong> Toledo – proeminentes moradores da vila <strong>de</strong><br />

Santa Maria – vieram outros membros: “Maria Pompeu <strong>de</strong> Toledo, 35 anos, tinha <strong>um</strong>a<br />

inchação do lado esquerdo do pescoço do vol<strong>um</strong>e <strong>de</strong> <strong>um</strong> ovo, que vári<strong>as</strong> vezes lhe<br />

embaraçava a fala e a atormentava com dores cruéis. A inchação já está na décima parte<br />

do vol<strong>um</strong>e.”; Adriana Pompeu <strong>de</strong> Toledo, “tinha <strong>um</strong>a impigem brava há 18 anos. Está<br />

inteiramente boa”; Manoel Pompeu <strong>de</strong> Toledo, “inchação geral há 6 meses, <strong>de</strong>fluxo<br />

<strong>as</strong>mático há 25 para 26 anos. Ficou completamente bom”.<br />

A forma com que usavam d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> era variada, m<strong>as</strong> a cura era atestada como<br />

certa. Podia ser ingerida ou em banhos, e o número <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>pendia do recuo da doença.<br />

Alguns com três banhos nada mais sentiam. Outros, <strong>de</strong>ixando-se ficar por mais tempo e<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, chegavam aos <strong>de</strong>zesseis banhos, como “Manoel José<br />

Caetano, natural <strong>de</strong> Porto Alegre, 17 anos. Mal <strong>de</strong> São Lázaro em chaga viva pelo rosto,<br />

mãos e pés”. A ida<strong>de</strong> dos enfermos também variava: ia dos 13 aos 112 anos, como<br />

“Pedro Padilha, morador em São Martinho”.<br />

Não se sabe quem foi o responsável por elaborar a lista, m<strong>as</strong> o objetivo foi<br />

atingido, que era dar publicida<strong>de</strong> aos efeitos “maravilhosos” que <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> propiciavam<br />

àqueles que <strong>as</strong> procuravam. Tentando ser eclético na escolha <strong>de</strong> quem entrevistar,<br />

buscou o <strong>de</strong>poimento daqueles que pu<strong>de</strong>ssem dar credibilida<strong>de</strong> ao po<strong>de</strong>r d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

sant<strong>as</strong>, por isso não colocou nenh<strong>um</strong> testemunho <strong>de</strong> negros (escravos ou forros) e foi<br />

econômico no <strong>de</strong> pardos e índios. Ao i<strong>de</strong>ntificar somente três indivíduos como pardos –<br />

Nicolau José Manuel, pardo, 26 anos; Florinda, parda, 50 anos, moradora em Tia Ana;<br />

José Aguiar, pardo, 45 anos, morador em Santa Bárbara –, <strong>um</strong> como índio – João Índio,<br />

<strong>de</strong> Caçapava, 13 anos – e nenh<strong>um</strong> como negro, a lista carrega os preconceitos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a


época, <strong>um</strong>a vez que o número <strong>de</strong> negros, pardos e índios que procuravam a cura n<strong>as</strong><br />

águ<strong>as</strong> do Campestre era, sem dúvida, maior do que o apresentado. 9<br />

A lista é fundamental por sua representativida<strong>de</strong> cultural, e <strong>de</strong>scarta<br />

imediatamente a idéia <strong>de</strong> que quem acorria ao lugar d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong> eram unicamente<br />

pesso<strong>as</strong> pobres e abandonad<strong>as</strong>, esquecid<strong>as</strong> pel<strong>as</strong> autorida<strong>de</strong>s polític<strong>as</strong> e religios<strong>as</strong> da<br />

província. 10 Se <strong>as</strong>sim fosse, como explicar a presença, ali, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s proprietários <strong>de</strong><br />

terr<strong>as</strong> – como o Tenente Coronel João Gonçalves Padilha, <strong>de</strong> São Martinho –, e,<br />

também, da rica família Pompeu <strong>de</strong> Toledo <strong>de</strong> Santa Maria? A crença no po<strong>de</strong>r curativo<br />

d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> não po<strong>de</strong> ser <strong>um</strong>a característica cultural <strong>de</strong> <strong>um</strong> grupo social específico: era<br />

algo compartilhado, em menor ou maior grau, por todos. 11 Contudo, po<strong>de</strong>ria haver<br />

diferentes explicações d<strong>as</strong> razões <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminad<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> terem po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> cura: para<br />

alguns eram seus princípios sobrenaturais, para outros, su<strong>as</strong> proprieda<strong>de</strong>s minerais, e,<br />

muit<strong>as</strong> vezes, tais pontos <strong>de</strong> vista entravam em choque. Porém, na lista em questão, fica<br />

impossível <strong>de</strong>svendar se havia quem fizesse a distinção entre águ<strong>as</strong> minerais e<br />

sobrenaturais, pois da maneira que foi publicada transmitiu a idéia <strong>de</strong> que todos<br />

acreditavam nos po<strong>de</strong>res sobrenaturais d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>.<br />

As notíci<strong>as</strong> d<strong>as</strong> cur<strong>as</strong> repercutiram em vários pontos da província, atraindo a<br />

atenção, por exemplo, do padre da vila <strong>de</strong> P<strong>as</strong>so Fundo (interior do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul),<br />

o ex-<strong>monge</strong> beneditino Francisco da Madre <strong>de</strong> Deus Cunha. Em novembro <strong>de</strong> 1848, o<br />

sacerdote pediu licença ao governo da província para “tratar <strong>de</strong> sua saú<strong>de</strong> n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

minerais” <strong>de</strong> São Martinho. 12 Interce<strong>de</strong>ndo a seu favor, o Vigário Geral padre Thomé<br />

Luiz <strong>de</strong> Souza reiterou o pedido junto ao presi<strong>de</strong>nte do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, que<br />

conce<strong>de</strong>u alg<strong>um</strong><strong>as</strong> seman<strong>as</strong> <strong>de</strong> licença ao enfermo sacerdote. 13 E para lá foi o ex-<strong>monge</strong><br />

9 A configuração social da região on<strong>de</strong> estava localizada a vila <strong>de</strong> Santa Maria, na década <strong>de</strong> 1840,<br />

comportava <strong>um</strong> número significativo <strong>de</strong> índios, pardos e negros, conforme se po<strong>de</strong> constatar pelo estudo<br />

<strong>de</strong> FARINATTI (1999).<br />

10 A busca por cur<strong>as</strong> n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> <strong>de</strong> Santa Maria da Boca do Monte, no interior do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, foi<br />

vista pelo sociólogo José Fraga FACHEL (1995, p. 52-53) como sinal evi<strong>de</strong>nte do abandono que <strong>as</strong><br />

pesso<strong>as</strong> sofriam d<strong>as</strong> autorida<strong>de</strong>s públic<strong>as</strong>, que, não tendo hospitais ou médicos para socorrê-los,<br />

acabavam por procurar “saíd<strong>as</strong> alternativ<strong>as</strong>”. Ou ainda, que <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do Campestre eram “dos pobres”, ao<br />

contrário d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> termais <strong>de</strong> Santa Catarina – já famos<strong>as</strong> naquele ano <strong>de</strong> 1848 e contando com<br />

investimento do governo para melhori<strong>as</strong> como construção <strong>de</strong> <strong>um</strong> hospital –, consi<strong>de</strong>rad<strong>as</strong> por FACHEL<br />

(1995, p. 68-70) como “água dos ricos”.<br />

11 Sobre prátic<strong>as</strong> <strong>de</strong> cura no sul do Br<strong>as</strong>il em meados do século XIX, ver: WITTER (2001; 2007).<br />

12 AHRS, Assuntos Religiosos, Maço 13, Cx 6, 1° <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1848. São Martinho, geograficamente,<br />

era a povoação mais próxima <strong>de</strong> on<strong>de</strong> estavam <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong>. Porém, a vila <strong>de</strong> Santa Maria da Boca do<br />

Monte, distante nove quilômetros, era quem tinha, <strong>de</strong> fato, a jurisdição sobre o lugar.<br />

13 AHRS, Códice A-5.90, 1848-1849, Palácio do Governo, 27 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1848.


eneditino tentar sua sorte n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> minerais da fonte do <strong>monge</strong>. A crença no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

cura <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminad<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> era algo compartilhado por vários grupos,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua condição social. Assim, vale mencionar o pedido que José<br />

Joaquim <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Neves fez ao governo da província no princípio <strong>de</strong> 1849.<br />

Pertencente a tradicional família do município <strong>de</strong> Rio Pardo, José Joaquim <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> Neves atuou como li<strong>de</strong>rança militar legalista prestando serviços ao Império à<br />

época da revolta farroupilha. Futuro herói da Guerra do Paraguai, on<strong>de</strong> morreu em<br />

combate, envolveu-se em <strong>um</strong> c<strong>as</strong>o lendário, qu<strong>as</strong>e anedótico, quando surrou a<br />

bengalad<strong>as</strong> o <strong>monge</strong> que “<strong>de</strong>scobriu” <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong>. 14 Por ora, é relevante dizer que<br />

Andra<strong>de</strong> Neves era homem <strong>de</strong> posses e <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacada importância no governo do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, ocupando o cargo <strong>de</strong> Diretor Geral dos Índios na província. No dia 1° <strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 1849, ao apresentar relatório sobre sua visita às al<strong>de</strong>i<strong>as</strong> indígen<strong>as</strong> <strong>de</strong> Nonoai e<br />

Guarita (norte da província), e comentar, com preocupação, a respeito da elefantí<strong>as</strong>e que<br />

estava infectando os índios, fez a seguinte sugestão: “(...) parece-me acertado que estes<br />

enfermos fossem auxiliados com sustento e transporte, e levados às águ<strong>as</strong> minerais <strong>de</strong><br />

Santa Maria da Boca do Monte, ou do Botucaraí, on<strong>de</strong> consta que iguais doentes têm<br />

melhorado.” 15 A conservação dos enfermos n<strong>as</strong> al<strong>de</strong>i<strong>as</strong>, segundo Andra<strong>de</strong> Neves,<br />

tornar-se-ia prejudicial, pois, além <strong>de</strong> <strong>um</strong> suposto contágio, <strong>as</strong> mortes causavam pavor<br />

aos outros índios que já estavam abandonando <strong>as</strong> al<strong>de</strong>i<strong>as</strong> indo refugiar-se n<strong>as</strong> mat<strong>as</strong> em<br />

busca <strong>de</strong> seus próprios métodos <strong>de</strong> sanar tão medonha enfermida<strong>de</strong>.<br />

Se ao pedido do vigário <strong>de</strong> P<strong>as</strong>so Fundo o governo <strong>de</strong>u autorização, à solicitação<br />

<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Neves o presi<strong>de</strong>nte do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, general Francisco José <strong>de</strong> Souza<br />

Soares <strong>de</strong> Andrea, respon<strong>de</strong>u negativamente, arg<strong>um</strong>entando: “(...) pelo que respeita às<br />

águ<strong>as</strong> <strong>de</strong>nominad<strong>as</strong> Sant<strong>as</strong>, não concordo que ali vá curar-se ninguém com auxílio dos<br />

cofres públicos, por que não tenho dado alg<strong>um</strong> para me persuadir que seja <strong>um</strong> remédio<br />

ao mal [da elefantí<strong>as</strong>e].” 16 Ao fazer o pedido ao governo, Andra<strong>de</strong> Neves podia não ter<br />

certeza se <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> eram realmente eficazes para <strong>de</strong>belar doenç<strong>as</strong>, no c<strong>as</strong>o a elefantí<strong>as</strong>e.<br />

M<strong>as</strong>, na esteira d<strong>as</strong> notíci<strong>as</strong> que propagan<strong>de</strong>avam divers<strong>as</strong> cur<strong>as</strong>, inclusive <strong>as</strong> da<br />

14 As consequênci<strong>as</strong> para Rio Pardo, vila on<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Neves espancou o <strong>monge</strong>, foram trágic<strong>as</strong> segundo<br />

a crença popular, <strong>um</strong>a vez que o escorraçado <strong>monge</strong> lançou <strong>um</strong>a “maldição” para a cida<strong>de</strong>. Este <strong>as</strong>sunto<br />

até hoje é tratado em Rio Pardo, constando, inclusive, <strong>de</strong> parte da tese <strong>de</strong> doutorado em sociologia <strong>de</strong><br />

César Hamilton GOES (2007).<br />

15 AHRS, Índios, Maço 3, Rio Pardo, 1° <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1849.<br />

16 AHRS, Códice A-5.92, 1848-1850, Palácio do Governo, 1° <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1849.


elefantí<strong>as</strong>e, seria vantajoso ao estado patrocinar o envio <strong>de</strong> índios enfermos à Santa<br />

Maria, ou ao Botucaraí, para que experiment<strong>as</strong>sem <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> minerais. Porém, como<br />

àquela altura dos acontecimentos <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong> já estavam com fortes adversários – os<br />

médicos diplomados –, o governo não po<strong>de</strong>ria alimentar a crença popular patrocinando<br />

o transporte <strong>de</strong> doentes ao local, pois isso seria <strong>um</strong>a completa contradição. 17<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da opinião médica ou do governo, o número <strong>de</strong> crentes<br />

continuava a a<strong>um</strong>entar, fazendo com que <strong>um</strong>a extensa ro<strong>maria</strong> se form<strong>as</strong>se até o local<br />

d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong>, ou fonte do <strong>monge</strong>. Os jornais do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, <strong>de</strong> maio a<br />

novembro <strong>de</strong> 1848, ao publicarem <strong>as</strong> cart<strong>as</strong> <strong>de</strong> pesso<strong>as</strong> do interior, davam espaço em<br />

su<strong>as</strong> págin<strong>as</strong> para <strong>as</strong> notíci<strong>as</strong> que já eram <strong>de</strong> amplo conhecimento público. A imprensa,<br />

portanto, não foi a primeira e nem a principal responsável por espalhar que cur<strong>as</strong><br />

milagros<strong>as</strong> aconteciam em Santa Maria. De modo acrítico, foi na esteira do entusi<strong>as</strong>mo<br />

popular que, do modo tradicional – pela oralida<strong>de</strong> – foi o personagem central em<br />

comunicar os “milagres” que ocorriam n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do <strong>monge</strong>. No entanto, tão logo os<br />

jornalist<strong>as</strong> tomaram conhecimento <strong>de</strong> <strong>um</strong>a nova informação – a prisão do <strong>monge</strong><br />

<strong>de</strong>scobridor d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong> – p<strong>as</strong>saram a emitir pareceres antagônicos aos que antes<br />

expunham com tanta euforia.<br />

Dando <strong>um</strong>a reviravolta, <strong>as</strong> notíci<strong>as</strong> que p<strong>as</strong>saram a ser veiculad<strong>as</strong> pela imprensa<br />

revelaram o falecimento <strong>de</strong> vári<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> que se banharam n<strong>as</strong> dit<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>, como que<br />

ao entrarem em contato com o líquido outrora milagroso viam seu estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />

piorar. Para comprovar o que falavam, <strong>um</strong> correspon<strong>de</strong>nte do jornal O Rio Gran<strong>de</strong>nse<br />

afirmava que “o general correntino [Província <strong>de</strong> Corrientes, na Argentina] Joaquim<br />

Madariaga, emigrado no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul faleceu n<strong>as</strong> Águ<strong>as</strong> Sant<strong>as</strong>.” Negando <strong>as</strong><br />

virtu<strong>de</strong>s terapêutic<strong>as</strong> atribuíd<strong>as</strong> àquel<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>, dizia o artigo que o general Madariaga,<br />

“que para aí tinha ido curar-se da morféia, fora <strong>um</strong>a d<strong>as</strong> <strong>de</strong>sgraçad<strong>as</strong> vítim<strong>as</strong> do<br />

fanatismo, tendo o uso daquel<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> apressado a sua morte.” 18 Certamente estavam os<br />

jornalist<strong>as</strong> constrangidos por se <strong>de</strong>ixarem levar pela euforia popular ao apresentarem<br />

tant<strong>as</strong> notíci<strong>as</strong> que davam conta dos prodígios e fabulos<strong>as</strong> cur<strong>as</strong> alcançad<strong>as</strong> n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

sant<strong>as</strong>. Do entusi<strong>as</strong>mo à crítica, já no final <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1848 os jornais p<strong>as</strong>saram a<br />

retratar <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> que para Santa Maria se dirigiam como “vítim<strong>as</strong> do fanatismo”, e não<br />

17 O relatório do médico Thomaz Antunes <strong>de</strong> Abreu foi entregue ao governo do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul no dia<br />

25 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1849, trazendo a constatação <strong>de</strong> serem <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> “sant<strong>as</strong>” unicamente potáveis.<br />

18 BN, Jornal O Rio Gran<strong>de</strong>nse, janeiro <strong>de</strong> 1849, Jornal do Comércio, 18 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1849, n. 49, p. 2.


pouparam esforços, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, para <strong>de</strong>sacreditar os efeitos terapêuticos d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

agora mortífer<strong>as</strong>.<br />

Por outro lado, fica a dúvida se realmente o general da província <strong>de</strong> Corrientes,<br />

Joaquim Madariaga, 19 procurou o lugar para sanar sua enfermida<strong>de</strong> e ali tenha falecido.<br />

Os jornais, muit<strong>as</strong> vezes, não questionavam <strong>as</strong> su<strong>as</strong> fontes porque acreditavam que seus<br />

informantes eram pesso<strong>as</strong> “circunspect<strong>as</strong>”. Portanto, c<strong>as</strong>o <strong>as</strong>sim tenha acontecido, o<br />

general Madariaga po<strong>de</strong> ter sido a pessoa mais importante, em termos políticos, a ter<br />

buscado a cura n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> milagros<strong>as</strong> <strong>de</strong> Santa Maria, quiçá tornando-se o mais famoso<br />

<strong>de</strong>funto a ser ali enterrado.<br />

Ainda no início da divulgação pela imprensa, em maio <strong>de</strong> 1848, o médico e<br />

<strong>de</strong>putado eleito pelo Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, José Martins da Cruz Jobim, que estava na<br />

corte c<strong>um</strong>prindo su<strong>as</strong> funções legislativ<strong>as</strong> e médic<strong>as</strong>, procurou informar-se a respeito<br />

d<strong>as</strong> “águ<strong>as</strong> que chamam águ<strong>as</strong> do Monge.” Em reunião na Aca<strong>de</strong>mia Imperial <strong>de</strong><br />

Medicina, à qual presidia em novembro <strong>de</strong> 1848, José Martins da Cruz Jobim propunha<br />

<strong>um</strong>a discussão a respeito <strong>de</strong> <strong>um</strong>a notícia publicada pelo Jornal do Comércio sobre <strong>um</strong><strong>as</strong><br />

águ<strong>as</strong> minerais da província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, “no lugar <strong>de</strong> Santa Maria da Boca<br />

do Monte, <strong>de</strong>nominad<strong>as</strong> vulgarmente Águ<strong>as</strong> Sant<strong>as</strong>”. Segundo o médico, a notícia saiu<br />

originalmente no Jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>, que ele tinha à vista e que apresentava à<br />

Aca<strong>de</strong>mia. 20 Segundo Cruz Jobim, era útil que a Aca<strong>de</strong>mia se ocup<strong>as</strong>se com est<strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

e outr<strong>as</strong> que havia pelo Br<strong>as</strong>il, “m<strong>as</strong> que infelizmente ainda são inteiramente<br />

<strong>de</strong>sconhecid<strong>as</strong>, ou são mui pouco em razão <strong>de</strong> que <strong>as</strong> análises feit<strong>as</strong> a respeito <strong>de</strong>l<strong>as</strong> tem<br />

sido incomplet<strong>as</strong>, ou pela maior parte feit<strong>as</strong> por pesso<strong>as</strong> pouco habilitad<strong>as</strong> para isso, e<br />

sobre cuj<strong>as</strong> conclusões ainda po<strong>de</strong>m subsistir dúvid<strong>as</strong>.” O médico <strong>de</strong>sejava isso não só<br />

pel<strong>as</strong> vantagens terapêutic<strong>as</strong> que ess<strong>as</strong> e outr<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> minerais do país po<strong>de</strong>riam resultar<br />

à ciência e à h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, m<strong>as</strong> pelo “incremento e civilização do país como meio eficaz<br />

19 O general Joaquim Madariaga estava como exilado político no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong>vido às <strong>de</strong>savenç<strong>as</strong><br />

polític<strong>as</strong> com o governador <strong>de</strong> Buenos Aires Juan Manoel Ros<strong>as</strong>. Uma vez no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul,<br />

Joaquim Madariaga participou d<strong>as</strong> celebrad<strong>as</strong> califórni<strong>as</strong> ao lado <strong>de</strong> proprietários rurais sul-riogran<strong>de</strong>nses,<br />

como o Barão do Jacuí (coronel Francisco Pedro <strong>de</strong> Abreu) <strong>de</strong>ntre outros. As califórni<strong>as</strong> –<br />

analogia à corrida do ouro nos Estados Unidos nesta mesma época (início da década <strong>de</strong> 1840) – eram<br />

incursões armad<strong>as</strong> <strong>de</strong> bandos <strong>de</strong> br<strong>as</strong>ileiros em território uruguaio a fim <strong>de</strong> roubar gado e capturar negros<br />

foragidos. Sobre este <strong>as</strong>sunto, consultar: BANDEIRA (1995, p. 104).<br />

20 A reportagem em questão apresentava o testemunho d<strong>as</strong> quarenta pesso<strong>as</strong> atestando o po<strong>de</strong>r curativo<br />

d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong>. Cf. BRG, Jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>, 11 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1848, n. 23, p. 2-3. O<br />

periódico fl<strong>um</strong>inense a que se refere o médico era o Jornal do Comércio, 21 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1848, n.<br />

321, p.1. BN, Setor <strong>de</strong> Periódicos.


que el<strong>as</strong> são <strong>de</strong> se <strong>de</strong>rramar e espalhar a população em lugares incultos, promovendo<br />

nos lugares <strong>de</strong> su<strong>as</strong> fontes o estabelecimento <strong>de</strong> povoações, que <strong>de</strong>pois se convertem em<br />

al<strong>de</strong>i<strong>as</strong>, vil<strong>as</strong> e até cida<strong>de</strong>s.” 21<br />

Os outros médicos da Aca<strong>de</strong>mia concordavam que <strong>de</strong>veriam se ocupar d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

minerais, porém, afirmaram que “pouco ou nada po<strong>de</strong>mos dizer a este respeito na<br />

presente discussão e, sobretudo, d<strong>as</strong> ultimamente <strong>de</strong>scobert<strong>as</strong> no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.” A<br />

Aca<strong>de</strong>mia não possuía outros conhecimentos e dados relativos às águ<strong>as</strong> <strong>de</strong> Santa Maria<br />

senão os que vinham relatados pelos jornais públicos. Na sequência, o Dr. Cruz Jobim<br />

lembra e propõe que também “se recomen<strong>de</strong> ao governo que man<strong>de</strong> não só examinar e<br />

analisar ess<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tantos contos milagrosos que por aí correm a<br />

respeito d<strong>as</strong> mesm<strong>as</strong>.” Ao responsável pela análise d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> <strong>de</strong> Santa Maria, convinha<br />

indagar que relação po<strong>de</strong>ria ter “<strong>as</strong> qualida<strong>de</strong>s minerais e medicinais d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> na<br />

província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul para a produção [cura] do bócio, moléstia que vai se<br />

generalizando muito nessa província, e ameaça invadi-la (...).” 22<br />

Do mesmo modo que os médicos da Aca<strong>de</strong>mia Imperial, outros indivíduos<br />

tomaram conhecimento d<strong>as</strong> informações <strong>de</strong> cur<strong>as</strong> n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> <strong>de</strong> Santa Maria pelos<br />

jornais da Corte. Natural do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – município <strong>de</strong> São José do Norte –,<br />

Delfina Benigna da Cunha vivia no Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1830. N<strong>as</strong>cida em<br />

1791, era filha do capitão-mor Joaquim Ferreira da Cunha Sá e Menezes, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />

serviços à Coroa portuguesa. Ao per<strong>de</strong>r a mãe em 1833, p<strong>as</strong>sou a viver mo<strong>de</strong>stamente<br />

com <strong>um</strong>a mesada mensal concedida por dom Pedro I, já que Delfina da Cunha era cega<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os vinte meses <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, em <strong>de</strong>corrência da varíola. M<strong>as</strong> isso não a impediu <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scobrir e <strong>de</strong>senvolver dotes poéticos. Gran<strong>de</strong> admiradora da família real dos<br />

Bragança, consagrou vári<strong>as</strong> obr<strong>as</strong> aos imperadores D. Pedro I e Pedro II, além <strong>de</strong> su<strong>as</strong><br />

espos<strong>as</strong> (TEIXEIRA, 1920, p. 87). À época da revolta farroupilha, escreveu artigos<br />

criticando Bento Gonçalves da Silva, então presi<strong>de</strong>nte da República Rio-gran<strong>de</strong>nse.<br />

Sempre viajando acompanhada por <strong>um</strong>a africana livre, Delfina da Cunha tomou<br />

o caminho <strong>de</strong> sua província natal possivelmente na meta<strong>de</strong> final <strong>de</strong> 1848. Esta viagem<br />

tinha por objetivo a cura n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do <strong>monge</strong>. Após p<strong>as</strong>sar pel<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do Cerro do<br />

Botucaraí, próximo à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Pardo, e pelo Campestre <strong>de</strong> Santa Maria, a poetisa<br />

21 BN, Setor <strong>de</strong> Periódicos, Revista dos Annaes <strong>de</strong> Medicina Br<strong>as</strong>iliense, n. 10, Abril, 1849, p. 241-242.<br />

22 BN, Setor <strong>de</strong> Periódicos, Revista dos Annaes <strong>de</strong> Medicina Br<strong>as</strong>iliense, n. 10, Abril, 1849, p. 241-242.


escreveu longo artigo que foi publicado no jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>. 23 Pela<br />

imprensa, portanto, divulgou a busca d<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> por cur<strong>as</strong> milagros<strong>as</strong>. Declarou que <strong>as</strong><br />

águ<strong>as</strong> do Botucaraí, por ser <strong>um</strong>a “<strong>de</strong>scoberta” posterior e igualmente feita pelo<br />

misterioso <strong>monge</strong>, não eram <strong>as</strong>sim tão concorrid<strong>as</strong> como <strong>as</strong> <strong>de</strong> Santa Maria, est<strong>as</strong> sim<br />

pioneir<strong>as</strong> n<strong>as</strong> cur<strong>as</strong> e <strong>as</strong> que mais atraíam pesso<strong>as</strong> da província. M<strong>as</strong> para Delfina da<br />

Cunha, tanto <strong>um</strong>a quanto a outra eram “abençoad<strong>as</strong> por Deus” e muitos benefícios<br />

traziam para o povo. Escreveu <strong>um</strong> artigo que o jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong> publicou<br />

em 11 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1849, justamente quando <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong> já estavam em <strong>de</strong>scrédito na<br />

imprensa havia alg<strong>um</strong> tempo.<br />

O texto <strong>de</strong> Delfina da Cunha <strong>de</strong>screve <strong>as</strong> su<strong>as</strong> experiênci<strong>as</strong> tanto no Cerro do<br />

Botucaraí quanto no Cerro <strong>de</strong> Santo Antão, outro nome que <strong>de</strong>signava o local d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

sant<strong>as</strong> <strong>de</strong> Santa Maria da Boca do Monte. Iniciou pela cura que ela mesma alcançou ao<br />

se banhar n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> abençoad<strong>as</strong> do Botucaraí: “pa<strong>de</strong>cia eu <strong>de</strong> <strong>um</strong>a enfermida<strong>de</strong> crônica<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> sirro que sofria há <strong>de</strong>zoito anos, o qual me causava dores por todo o corpo”, o<br />

que afetava sobremaneira o seu pulmão; “e com vinte e cinco banhos fiquei<br />

completamente sã, a ponto <strong>de</strong> parecer que não tive tais molésti<strong>as</strong>”. Declarando que eram<br />

in<strong>um</strong>eráveis os prodígios que n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do Botucaraí se viam a cada dia, relatou<br />

somente os mais notáveis: <strong>um</strong> cego que recuperara a visão, <strong>um</strong> tísico que mal podia<br />

caminhar, <strong>um</strong> que tossia sangue e <strong>um</strong>a mulher com re<strong>um</strong>atismo nos membros<br />

superiores, todos, sem exceção, após alguns banhos saíam como se nada tivessem<br />

sofrido. O número <strong>de</strong> banhos continuava a variar, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da recuperação do<br />

paciente. Vale dizer que, como a própria Delfina da Cunha, muit<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> p<strong>as</strong>savam<br />

di<strong>as</strong>, quando não seman<strong>as</strong> a se banhar e a beber na fonte do <strong>monge</strong>, o que <strong>de</strong>ixa a<br />

enten<strong>de</strong>r que <strong>um</strong>a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> se formou para que os enfermos ali<br />

permanecessem durante esse tempo.<br />

Delfina Benigna da Cunha fez, na sequência, <strong>um</strong>a breve <strong>de</strong>scrição do caminho<br />

que levava ao c<strong>um</strong>e do Cerro do Botucaraí, que, mesmo muito inclinado em alguns<br />

pontos, “é todo guarnecido <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s árvores, e nos lugares on<strong>de</strong> é mais dificultosa a<br />

subida estão em distância que bem se po<strong>de</strong> por a mão”. Tratando o cerro como<br />

patrimônio do povo sulino, a <strong>de</strong>vota poetisa queria convencer os leitores do jornal, bem<br />

como o redator, a acreditarem que também no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul havia “lugares<br />

23 BRG, Jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>, 11 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1849, n. 167, p. 1-2.


abençoados por Deus” a que todos po<strong>de</strong>riam acorrer na busca da saú<strong>de</strong> do corpo e da<br />

alma. Na sequência, p<strong>as</strong>sa a narrar a sua experiência n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do Cerro <strong>de</strong> Santo<br />

Antão, que, na sua visão, “não é mais nem menos prodigiosa que a outra [do Botucaraí],<br />

m<strong>as</strong>, como a primeira <strong>de</strong>scoberta, concorre ali maior número <strong>de</strong> pesso<strong>as</strong> (...)”.<br />

As cur<strong>as</strong> que aconteciam pareciam tão fabulos<strong>as</strong> que, segundo nos diz Delfina da<br />

Cunha, até o médico responsável por dar o parecer oficial sobre os princípios medicinais<br />

se ren<strong>de</strong>u aos fatos no momento em que chegou ao Cerro <strong>de</strong> Santo Antão. Afirma que<br />

“o Dr. Thomaz Antunes <strong>de</strong> Abreu, gran<strong>de</strong> antagonista do <strong>monge</strong> e d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>”, ao<br />

examinar os doentes e os sãos, teceu elogios às águ<strong>as</strong> <strong>de</strong>clarando o seguinte: “Deus <strong>de</strong><br />

nós compa<strong>de</strong>cido, por pieda<strong>de</strong> espantosa, fez com que <strong>um</strong> <strong>monge</strong> <strong>de</strong>scobrisse água<br />

santa, milagrosa.”<br />

Como ápice do artigo, Delfina da Cunha <strong>de</strong>monstra o seu arrebatamento com a<br />

providência Divina, com <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> e com o <strong>monge</strong> responsável pela <strong>de</strong>scoberta. O<br />

poema é eloquente, tal como era a crença daqueles que dia a dia, cada vez em maior<br />

número, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da opinião oficial, faziam ro<strong>maria</strong> aos ditos cerros santos.<br />

(...) De longínqu<strong>as</strong> terr<strong>as</strong> vem<br />

Um eremita ilustrado,<br />

Que nos mostra o que há guardado<br />

O Céu para o nosso bem.<br />

À glória <strong>de</strong> Deus convém,<br />

Que fontes <strong>um</strong> <strong>monge</strong> abrisse,<br />

Que <strong>de</strong>l<strong>as</strong> pura saísse<br />

Água <strong>de</strong> tanta excelência.<br />

Que <strong>um</strong> Deus por s<strong>um</strong>a clemência<br />

Fez com que <strong>um</strong> <strong>monge</strong> <strong>de</strong>scobrisse.<br />

Bendito seja o Senhor<br />

Deus do povo israelita,<br />

Que por bonda<strong>de</strong> infinita<br />

Tem ao homem tanto amor!<br />

A Ele glória e louvor<br />

Dê a terra jubilosa,<br />

Pois da esfera l<strong>um</strong>inosa<br />

Nos dá <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> fontes,


Fazendo manar dos montes<br />

Água santa, milagrosa. 24<br />

Delfina Benigna da Cunha, poetisa <strong>de</strong> renome no Rio <strong>de</strong> Janeiro por seus<br />

talentos literários, não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada, portanto, <strong>um</strong>a pessoa iletrada ou ignorante.<br />

E, certamente, ela não se via como mais <strong>um</strong>a a ser enganada pel<strong>as</strong> “fals<strong>as</strong> promess<strong>as</strong> <strong>de</strong><br />

cura” e “fanatizada” por discursos <strong>de</strong> “lunáticos” que se aproveitavam da “ingenuida<strong>de</strong><br />

do povo” como afirmavam os jornais do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Apesar <strong>de</strong> não ter<br />

conhecido pessoalmente o <strong>monge</strong>, isso não a impediu <strong>de</strong> se fazer porta-voz dos crentes<br />

que o conheceram, <strong>de</strong>ixando transparecer no seu texto <strong>um</strong> imenso respeito e veneração à<br />

figura do “eremita ilustrado”. Do mesmo modo, é possível ver em su<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> <strong>um</strong>a fé<br />

absoluta n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong> e no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> cura que <strong>de</strong>l<strong>as</strong> emanava, o que nos coloca<br />

diante da voz dos crédulos.<br />

Concluindo o artigo, Delfina da Cunha narra mais c<strong>as</strong>os <strong>de</strong> cura, agora os que<br />

ela diz ter presenciado no cerro <strong>de</strong> Santo Antão. O que há <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>, para o<br />

pesquisador, é <strong>um</strong>a cura na qual <strong>um</strong> doente que “pa<strong>de</strong>cia <strong>de</strong> <strong>um</strong> cancro que lhe comera<br />

os olhos, nariz, parte do beiço superior e <strong>um</strong>a face, <strong>de</strong>ixando o osso à mostra”, usara <strong>as</strong><br />

águ<strong>as</strong> em banhos, e, também, o barro sobre <strong>as</strong> chag<strong>as</strong>. Sarou completamente, <strong>de</strong>clara<br />

Delfina. Diz ela, ainda, que o homem ficou morando naquele lugar, e “por promessa que<br />

fez sobe ao cerro todos os di<strong>as</strong> para ser visto <strong>de</strong> todos, julgando fazer <strong>um</strong>a confissão<br />

expressiva d<strong>as</strong> maravilh<strong>as</strong> do Senhor (...)”. Materialização da vida espiritual do leigo<br />

cristão, prova viva, empírica da graça <strong>de</strong> Deus!<br />

O barro a que se refere a autora era o que se formava sob os pés daqueles que se<br />

banhavam n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> sant<strong>as</strong>, o que, aliás, era <strong>um</strong>a prática com<strong>um</strong> <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>votos lá<br />

presentes. Como veremos em dois relatórios médicos, não somente o barro era usado<br />

nos rituais <strong>de</strong> cura, m<strong>as</strong> tudo o que lá havia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> raízes, folh<strong>as</strong> e caules <strong>de</strong> árvores até<br />

animais como <strong>um</strong>a cobra, a que “tudo chamavam <strong>de</strong> santo”, como dirá o médico<br />

Thomaz Antunes <strong>de</strong> Abreu.<br />

Ao <strong>de</strong>ixar o “arraial <strong>de</strong> Santo Antão”, possivelmente entre março e abril <strong>de</strong><br />

1849, Delfina da Cunha levava consigo não só a certeza <strong>de</strong> ter estado diante <strong>de</strong> <strong>um</strong>a d<strong>as</strong><br />

maiores benesses que a providência Divina conce<strong>de</strong>ra aos homens, m<strong>as</strong>, igualmente,<br />

24 BRG, Jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>, 11 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1849, n. 167, p. 2.


carregava a convicção <strong>de</strong> que os médicos diplomados nada eram diante do verda<strong>de</strong>iro<br />

médico: “Eu <strong>de</strong>ixei oitocent<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> no arraial <strong>de</strong> Santo Antão, e quatrocent<strong>as</strong> no<br />

Botucaraí. Este número bem prova a eficácia d’aquel<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>.” Tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> enfermida<strong>de</strong>s<br />

eram ali vist<strong>as</strong>, “<strong>de</strong> sorte que é remédio para tod<strong>as</strong>; porém não para aqueles doentes que<br />

não tem fé; pois Deus nos quer mostrar que Ele é o verda<strong>de</strong>iro médico.” 25 Crítica<br />

explícita ao Dr. Thomaz Antunes <strong>de</strong> Abreu, <strong>um</strong>a vez que ambos <strong>de</strong>vem ter se<br />

encontrado – e discutido – no local d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do <strong>monge</strong> em Santa Maria. 26<br />

Após publicarem tantos <strong>de</strong>poimentos do interior sobre os prodígios d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

sant<strong>as</strong>, durante boa parte do ano <strong>de</strong> 1848, os jornais p<strong>as</strong>saram a <strong>de</strong>sacreditá-l<strong>as</strong> <strong>de</strong><br />

diferentes modos. M<strong>as</strong> tiveram que se ren<strong>de</strong>r à boa escrita da poetisa sul-rio-gran<strong>de</strong>nse,<br />

que, inclusive, recebeu elogios<strong>as</strong> respost<strong>as</strong> <strong>de</strong> leitores e pedidos para elaborar outros<br />

poem<strong>as</strong>. Porém, o artigo ficou restrito ao jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>, não sendo<br />

reproduzido por nenh<strong>um</strong> outro periódico, pelo menos nada encontrei a respeito. Do final<br />

<strong>de</strong> 1848 até a meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> 1849, o que prevaleceu foram textos críticos às águ<strong>as</strong> ou ao<br />

“<strong>de</strong>scobridor”, muito embora os jornalist<strong>as</strong> pouco soubessem quem era, <strong>de</strong> fato, o<br />

<strong>monge</strong> que p<strong>as</strong>sou pelo Rio Gran<strong>de</strong> do Sul estabelecendo moradia nos cerros <strong>de</strong> Santo<br />

Antão e do Botucaraí. O texto <strong>de</strong> Delfina Benigna da Cunha, a poetisa cega órfã <strong>de</strong> pai e<br />

mãe e que vivia no Rio <strong>de</strong> Janeiro com <strong>um</strong>a mo<strong>de</strong>sta pensão concedida pelo Imperador,<br />

foi, portanto, a última voz a se levantar a favor d<strong>as</strong> benesses d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> “vulgarmente”<br />

chamad<strong>as</strong> <strong>de</strong> “sant<strong>as</strong>”. Após ela, pelo menos nesse primeiro contexto <strong>de</strong> repercussão,<br />

ninguém mais quis se expor publicamente para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os crédulos ou a sua crença.<br />

Referênci<strong>as</strong> Bibliográfic<strong>as</strong><br />

BANDEIRA, Moniz. O expansionismo br<strong>as</strong>ileiro e a formação dos Estados na Bacia<br />

do Prata. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Revan; UNB, 1995.<br />

FACHEL, José Fraga. Monge João Maria: recusa dos excluídos. Porto Alegre;<br />

Florianópolis, Editora da UFRGS; Editora da UFSC, 1995.<br />

25<br />

BRG, Pontal do Norte, 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1849. – Delfina Benigna da Cunha. Jornal Diário do Rio Gran<strong>de</strong>,<br />

11 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1849, n. 167, p. 2.<br />

26<br />

O médico chegou ao local no início do mês <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1849, permanecendo até maio do mesmo ano.<br />

Delfina da Cunha, possivelmente, lá esteve entre março e abril <strong>de</strong> 1849.


FARINATTI, Luis Augusto E. Sobre <strong>as</strong> cinz<strong>as</strong> da mata virgem: os lavradores<br />

nacionais na Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (Santa Maria 1845–1880). Dissertação <strong>de</strong><br />

Mestrado em História, PUC-RS, Porto Alegre, 1999.<br />

GOES, César Hamilton Brito. Nos caminhos do Santo Monge: religião, sociabilida<strong>de</strong> e<br />

lut<strong>as</strong> sociais no sul do Br<strong>as</strong>il. Tese <strong>de</strong> doutorado em Sociologia, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, Porto Alegre, 2007.<br />

TEIXEIRA, Múcio. Os Gaúchos. Tomo II. 2ª. Ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Leite Ribeiro &<br />

Maurillo, 1920, p. 87-90.<br />

WITTER, Nikelen Acosta. Dizem que foi feitiço: <strong>as</strong> prátic<strong>as</strong> <strong>de</strong> cura no sul do Br<strong>as</strong>il<br />

(1845 – 1880). Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001.<br />

_____. Males e epi<strong>de</strong>mi<strong>as</strong>: sofredores, governantes e curadores no sul do Br<strong>as</strong>il (Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, século XIX). Tese <strong>de</strong> doutorado em História, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

Fl<strong>um</strong>inense, Niterói, RJ, 2007.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!