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Gisela ou GuÍsela: a famÍlia e a construção da identidade em ... - TEL

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Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />

<strong>Gisela</strong> <strong>ou</strong> <strong>GuÍsela</strong>: a <strong>famÍlia</strong> e a <strong>construção</strong> <strong>da</strong><br />

identi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> a asa esquer<strong>da</strong> do anjo, de lya luft<br />

Quando nasci, o anjo do jazigo<br />

Desses que festejam a morte<br />

Disse: Vai, <strong>Gisela</strong>! ser gauche na vi<strong>da</strong>.<br />

Nathali Ramos M<strong>ou</strong>ra - UFRJ<br />

Peço licença ao grande Carlos Drummond de Andrade para utilizar,<br />

ao modo de <strong>Gisela</strong>, os versos iniciais de seu “Po<strong>em</strong>a de Sete Faces” 1 , pois a<br />

protagonista de A asa esquer<strong>da</strong> do anjo (1991), assim como “Carlos” é um<br />

“Eu todo retorcido”, ina<strong>da</strong>ptado <strong>em</strong> seu mundo. A narrativa luftiana, que se<br />

faz pelo entrelace de dos t<strong>em</strong>pos presente e passado, nos apresenta a história<br />

de <strong>Gisela</strong>, (no decorrer deste trabalho será adota<strong>da</strong> a variante portuguesa<br />

do nome <strong>Gisela</strong>, exceto, quando exigido pelas citações do romance),<br />

personag<strong>em</strong> que busca resolver seu primordial conflito identitário.<br />

A autora constrói, mais uma vez, um universo <strong>em</strong> que o eu f<strong>em</strong>inino<br />

se vê sufocado por laços íntimos de opressão; melhor dizendo, to<strong>da</strong><br />

família sofre sob o jugo <strong>da</strong> matriarca Frau Wolf. Esse “aparente matriarcado<br />

[...], mimeticamente, reproduz a estrutura desgasta<strong>da</strong> <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> patriarcal;<br />

<strong>da</strong>í ser [Frau Wolf], <strong>em</strong> grande parte, a responsável pelos conflitos<br />

<strong>da</strong> narradora” 2 ; não por acaso Luft escolheu para sua protagonista o nome<br />

<strong>Gisela</strong>, que significa, entre <strong>ou</strong>tras coisas, refém, prisioneira 3 .Feitas as observações<br />

iniciais, nossa proposta é fazer a leitura do romance, examinado<br />

as relações <strong>da</strong> protagonista com as personagens que formam seu quadro<br />

familiar básico: Úrsula Wolf (a avó), Maria <strong>da</strong> Graça (mãe), An<strong>em</strong>arie (prima)<br />

e Otto Wolf (pai). Nesse sentido, por tratar-se <strong>da</strong> formação identitária 4<br />

de um ser do sexo f<strong>em</strong>inino e, também, pelo fato <strong>da</strong> curta extensão deste<br />

1 ANDRADE, Carlos Drummond de. p.3, 1973.<br />

2 XAVIER, Elódia. p.67,1998.<br />

3 www.significadodonome.com/significado-do-nome-gisela.html. Acessado <strong>em</strong> 23/07/2011.<br />

4 Para aprofun<strong>da</strong>r a questão <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de nas socie<strong>da</strong>des pós-modernas, consultar: A<br />

identi<strong>da</strong>de cultural na pós-moderni<strong>da</strong>de, de Stuart Hall, e, entre <strong>ou</strong>tras obras de Zigmunt<br />

Bauman, Amor líquido: sobre a fragili<strong>da</strong>de dos laços humanos.


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trabalho, contar<strong>em</strong>os, fun<strong>da</strong>mentalmente, com as contribuições de Simone<br />

de Beauvoir <strong>em</strong> O Segundo Sexo- volumes I e II.<br />

Admitimos com Beavoir que a família, enquanto instituição social,<br />

é a primeira responsável pela formação do indivíduo, e, também que ‘quase’<br />

originali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> intervenção de <strong>ou</strong>tr<strong>em</strong> na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> criança, desde os primeiros<br />

anos. 5<br />

A importância <strong>da</strong> família, do universo, dos parentes e do<br />

nome são fun<strong>da</strong>mentais no processo [de individualização],<br />

<strong>em</strong>bora não seja homogêneo e n<strong>em</strong> uniforme (...). S<strong>em</strong><br />

dúvi<strong>da</strong> há uma tensão entre o processo de individualização<br />

e a inserção <strong>em</strong> um universo de parentes, consangüíneos,<br />

colaterais, afins etc.(...). Mas, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, o domínio do<br />

parentesco é crucial para a constituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

(...) 6 .<br />

O que na infância de <strong>Gisela</strong> parecia ser o estranhamento de uma<br />

criança dividi<strong>da</strong> entre duas culturas, na fase adulta, se tornará uma convivência<br />

que ao mesmo t<strong>em</strong>po é abrigo e prisão. Vejam-se os trechos:<br />

5 BEAUVOIR, 1980,p.10<br />

6 VELHO, 2004,p.46[ apud<br />

Minha mãe: Maria <strong>da</strong> Graça Moreira Wolf,único nome<br />

estrangeiro que um dia escreveriam na parede do<br />

jazigo.<br />

Dela herdei os olhos pretos, que <strong>em</strong> mim ficavam<br />

deslocados, não combinavam com o cabelo desbotado, a<br />

pele branca. Não me transmitiu o que eu mais desejava<br />

ter: a alegria e a capaci<strong>da</strong>de de a<strong>da</strong>ptação. Mas era<br />

possível que partilháss<strong>em</strong>os, s<strong>em</strong> comentar, a sensação<br />

de estarmos no lugar errado.Maria <strong>da</strong> Graça, numa família<br />

de Helga e Heidis.E eu, Guísela <strong>ou</strong> <strong>Gisela</strong>? (p.21)


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Naquele momento, no pátio <strong>da</strong> escola, odiei-a [a avó] por<br />

me fazer passar aquela humilhação. Qu<strong>em</strong> era eu: Guísela<br />

<strong>ou</strong> <strong>Gisela</strong>? (p.26)<br />

Nenhum deles, exceto talvez minha mãe, suspeitava a<br />

extensão <strong>da</strong> minha dor e do meu medo de jamais vir a<br />

pertencer a na<strong>da</strong> <strong>ou</strong> a ninguém.<br />

N<strong>em</strong> nome certo eu tinha (p.32).<br />

Tudo precisava ser recomen<strong>da</strong>do, ensaiado, mil vezes<br />

l<strong>em</strong>brado; gestos expressões, linguag<strong>em</strong>, tudo falsificado<br />

na montag<strong>em</strong> <strong>da</strong>quele teatro <strong>em</strong> que se frau<strong>da</strong>va, até o<br />

menor resquício, a nossa identi<strong>da</strong>de (p.45) 7 .<br />

Os trechos citados faz<strong>em</strong> referência direta <strong>ou</strong> indiretamente ao tipo<br />

de relação que <strong>Gisela</strong> os d<strong>em</strong>ais m<strong>em</strong>bros <strong>da</strong> família nutr<strong>em</strong> com Úrsula<br />

Wolf. Linhas acima, afirm<strong>ou</strong>-se o aparente matriarcado desta viúva al<strong>em</strong>ã<br />

de hábitos e feições rigorosas. Concordo com Elódia Xavier neste ponto,<br />

pois analisando a figura de Frau Wolf pod<strong>em</strong>os encontrar marcas do patriarcalismo,<br />

que vão desde a utilização <strong>da</strong> bengala, aqui entendido como<br />

símbolo fálico, até o modelo de conduta asséptico estabelecido por ela e<br />

acatado por homens e mulheres <strong>da</strong> família.<br />

Úrsula Wolf, mesmo vivendo <strong>em</strong> uma ci<strong>da</strong>de do Sul do Brasil e cerca<strong>da</strong><br />

de imigrantes que se misturaram à cultura brasileira, insiste <strong>em</strong> recriar<br />

sua “pequena Al<strong>em</strong>anha”, chegando ao cúmulo de infligir aos <strong>ou</strong>tros que se<br />

report<strong>em</strong> a ela <strong>em</strong> língua al<strong>em</strong>ã. As atitudes <strong>da</strong> avó de <strong>Gisela</strong> contribu<strong>em</strong><br />

para manutenção de um mundo unilateral, tal qual o criado pelo patriarcalismo,<br />

<strong>em</strong> que sua representação “ é operação dos homens; eles o descrev<strong>em</strong><br />

do ponto de vista que lhes é peculiar e que confund<strong>em</strong> com a ver<strong>da</strong>de<br />

absoluta” 8 .<br />

7 To<strong>da</strong>s as citações sao de LUFT,1991.<br />

8 BEAUVOIR, 1980,p.183.


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A tirania matriarcalista <strong>da</strong> Frau se impõe às figuras masculinas <strong>da</strong><br />

família, que são apaga<strong>da</strong>s, a exceção de Stefan que não possui com ela<br />

laços sanguíneos. Otto Wolf, cuja transgressão foi ter se casado com uma<br />

brasileira, foi s<strong>em</strong>pre austero, comedido, também, se preocupava, como<br />

todo o resto <strong>da</strong> família, <strong>em</strong> agra<strong>da</strong>r a mãe; nisso estava incluído corrigir<br />

a filha canhota. Apesar de não ser mau pai, Otto não possuía a firmeza<br />

necessária para essa missão, ad<strong>em</strong>ais, a morte <strong>da</strong> esposa e a velhice o tornaram<br />

um ser que definha pelos cantos <strong>da</strong> casa, <strong>ou</strong>vindo a noite os passos<br />

<strong>da</strong> esposa morta.<br />

A representação de figuras masculinas inermes acentua-se no trecho:<br />

“Herr Wolf. Ele morrera há muito t<strong>em</strong>po, eu não o conhecera. Diziam-no<br />

tiranizado pela mulher. Depois do nascimento de Marta, a filha mais nova,<br />

ela o expulsara do quarto conjugal(...).Eu não conseguia pensar Frau Wolf<br />

dividindo cama com hom<strong>em</strong> algum.” 9<br />

O modelo Wolf<br />

Pod<strong>em</strong>os identificar como marcas do modelo cultivado pela matrona<br />

dos Wolf os seguintes aspectos - as vestimentas de Frau Wolf, a bengala, o<br />

rigor nos hábitos (como no estudo <strong>da</strong> música) e o culto a língua al<strong>em</strong>ã. Além<br />

disso, a obsessão de Úrsula por relógios d<strong>em</strong>onstra seu desejo de controlar<br />

a tudo, inclusive, o t<strong>em</strong>po.<br />

Frau Wolf tinha p<strong>ou</strong>cas fraquezas. Mas cultivava algumas<br />

manias. Como o rigor absoluto quanto a limpeza e ord<strong>em</strong>,<br />

e o extr<strong>em</strong>ado carinho por sua coleção de relógios<br />

.Colecionava-os havia muitos anos, uma boa quanti<strong>da</strong>de se<br />

espalhava por to<strong>da</strong> a casa. Dava-lhes cor<strong>da</strong> diariamente.<br />

Em geral batiam juntos,com diferença de segundos. Para<br />

mim, os relógios eram a voz <strong>da</strong> casa10 .<br />

Esse controle foi também exercido sobre a mulher de Otto. Ain-<br />

9 LUFT,1991, p.44.<br />

10 LUFT,1991, p.43


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<strong>da</strong> que levasse consigo certo alheamento, Maria <strong>da</strong> Graça Medeiros Wolf<br />

converteu-se ao modelo <strong>da</strong> Frau, dedicando-se a fazer agrados a sogra e<br />

o marido; tal postura reitera que a “ord<strong>em</strong> patriarcal anula to<strong>da</strong> e qualquer<br />

possibili<strong>da</strong>de de realização que não a inseri<strong>da</strong> no contexto doméstico” 11 .<br />

Vejam-se os trechos:<br />

Minha mãe sentava-se na poltrona de c<strong>ou</strong>ro negro como<br />

seus cabelos. Era uma mulher doce e alegre, raramente a<br />

vi altera<strong>da</strong> <strong>ou</strong> zanga<strong>da</strong>. Sabia manter sereni<strong>da</strong>de mesmo<br />

diante de certas observações mor<strong>da</strong>zes <strong>da</strong> sogra, que<br />

s<strong>em</strong>pre a considerava uma estrangeira (p.20).<br />

Cálices de cristal, bebi<strong>da</strong>s estrangeiras Meu pai, solene;<br />

minha mãe, cabelo preso no alto, ansiosa para que ele<br />

aprovasse os preparativos. Via-se que ficava encanta<strong>da</strong><br />

com os elogios;estava s<strong>em</strong>pre querendo agra<strong>da</strong>r ao<br />

marido e a nova família (p.31) 12 .<br />

A herança brasileira de orig<strong>em</strong> materna de torna-se ca<strong>da</strong> vez mais<br />

opaca, ficando sua marca apenas na pronúncia portuguesa do nome <strong>Gisela</strong>.<br />

Entretanto, seu lado obliquo ficará latente, até que a Asa esquer<strong>da</strong> do<br />

anjo se manifeste.<br />

Se <strong>Gisela</strong> representa o lado torto <strong>da</strong> família, sua prima, An<strong>em</strong>arie<br />

representaria o sucesso do modelo Wolf e ao identificar isso <strong>Gisela</strong> se compara<br />

constant<strong>em</strong>ente à prima:<br />

11 XAVIER, 1998 ,p.65<br />

12 LUFT, 1991.<br />

Por que não era como An<strong>em</strong>arie? Nunca a censuravam.<br />

Como conseguia ser s<strong>em</strong>pre assim, pláci<strong>da</strong>,<br />

harmoniosa,agra<strong>da</strong>ndo a todo mundo, ate nossa<br />

avó,aparent<strong>em</strong>ente s<strong>em</strong> esforço? (p.23)<br />

An<strong>em</strong>arie, que pela cor dos cabelos chamavam


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goldfischchen, o peixinho d<strong>ou</strong>rado, e a qu<strong>em</strong> todos<br />

amavam (p.39). 13<br />

Ninguém mais que <strong>Gisela</strong> amava e admirava An<strong>em</strong>arie, por ser e o<br />

que ela não era, por se tão ama<strong>da</strong>. Enquanto Anamarie brilhava com seu<br />

violoncelo nas tarde de domingo <strong>em</strong> família, <strong>Gisela</strong> torna-se ca<strong>da</strong> vez mais<br />

uma jov<strong>em</strong> débil e insegura - poderíamos asseverar que sua subjetivi<strong>da</strong>de,<br />

nas palavras do sociólogo francês, Felix Guattari, “está <strong>em</strong> processo de “laminação”-<br />

o que o autor classifica como uma per<strong>da</strong> de valores identitários<br />

do sujeito” 14 . Vejamos o trecho:<br />

Guisela para uma, <strong>Gisela</strong> para <strong>ou</strong>tra. A noite, fantasmas<br />

- de dia, dúvi<strong>da</strong>s. E eu? Eu me sentia exposta, avalia<strong>da</strong>,<br />

reprova<strong>da</strong>. Os exercício de piano iam mal, a letra gótica<br />

saia mole <strong>da</strong> mão canhota - as orelhas de abano, e<br />

minha avó s<strong>em</strong>pre sugerindo que eu dormisse com t<strong>ou</strong>ca<br />

aperta<strong>da</strong>, para corrigi-las15 .<br />

Contrariando o que todos esperavam, An<strong>em</strong>arie não poderia mais ser<br />

o símbolo <strong>da</strong> família Wolf. <strong>Gisela</strong> descobrira antes de todos que a prima mantinha<br />

relação adúltera com Stefan, o marido de tia Marta - fato que só foi descoberto<br />

com a fuga dos apaixonados fugiram. To<strong>da</strong>via, se esta tinha sido a forma<br />

encontra<strong>da</strong> por An<strong>em</strong>arie para sua realização, o destino fora implacável,<br />

13 LUFT, 1991.<br />

14 GUATARRI,1991, P.11-12<br />

15 LUFT, 1991.p.52<br />

16 XAVIER,1998. P.67<br />

(...) sua volta, doente de câncer,dez anos depois,representa<br />

a punição infalível. Daí a narradora optar pelo modelo<br />

asséptico e rigoroso de Frau Wolf, como uma [suposta]<br />

c<strong>ou</strong>raça protetora. Ao final <strong>da</strong> trajetória, diz ela: ”fechome<br />

nesta casa e cumpro minhas obrigações .Não<br />

encontrarão na<strong>da</strong> desarrumado.Servirei chá com uma<br />

torta de cama<strong>da</strong>s, que faço com perfeição”(p.124). Mas a<br />

identi<strong>da</strong>de não foi resgata<strong>da</strong> (...). 16


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Passado o escân<strong>da</strong>lo, antes do retorno de Stefan e An<strong>em</strong>arie (doente),<br />

<strong>Gisela</strong> inicia namoro Léo, cujo amor “fazia recuperar o sentimento<br />

de identi<strong>da</strong>de” 17 . Entretanto não sabia b<strong>em</strong> como agir diante do amor que<br />

ele lhe oferecera; pass<strong>ou</strong> a se sentir culpa<strong>da</strong> por amar, enquanto a mãe<br />

estava com a saúde debilita<strong>da</strong>. Não sabendo administrar seus conflitos,<br />

dedic<strong>ou</strong>-se aos afazeres domésticos e negligenci<strong>ou</strong> o sentimento por Léo.<br />

Nesse ponto <strong>da</strong> narrativa, acentua-se o conflito identitário <strong>da</strong> personag<strong>em</strong>:<br />

<strong>Gisela</strong> e Guísela passam a se confrontar - de um lado o amor, com os riscos<br />

e a possibili<strong>da</strong>de de realização, de <strong>ou</strong>tro os Wolf e um futuro s<strong>em</strong> paixão,<br />

mas cheio de certezas.<br />

Antigas sombras voltam a aparecer:<br />

S<strong>ou</strong> uma mulher normal?<br />

S<strong>ou</strong> Guisela <strong>ou</strong> <strong>Gisela</strong>?Odio <strong>ou</strong> amor? Fogo <strong>ou</strong> gelo? Meu<br />

lugar e ain<strong>da</strong> nos braços de Leo, que me ama? Ou nesse<br />

campo de neve, eu comigo mesma encastoa<strong>da</strong> no corpo<br />

imune a qualquer toque, qualquer afago incandescido a<br />

m<strong>em</strong>ória do que poderia ter sido e não foi? 18<br />

Diante <strong>da</strong> punição de An<strong>em</strong>arie, <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> mãe, do rompimento<br />

com Léo, nossa protagonista se esmera ca<strong>da</strong> vez mais para se enquadrar<br />

no modelo <strong>da</strong> avó. Se anteriormente não estava dividi<strong>da</strong> entre ser Guísela<br />

<strong>ou</strong> <strong>Gisela</strong>, agora, aceita aprisionar-se como Guísela. Agora, com o destino<br />

trágico de An<strong>em</strong>arie, precisava ser admira<strong>da</strong> pela família. Qual seria o símbolo<br />

<strong>da</strong> família Wolf? E caso se entregasse a Léo, o que aconteceria? Ele<br />

era seu objeto de desejo, seria com isso, também, sua transgressão. Segundo<br />

avalia Simone de Beauvoir, muitas mulheres procuram afastar-se de seu<br />

objeto de desejo, receando uma decepção 19 . Mas o que aconteceria com ela<br />

se rebentasse <strong>em</strong> sua busca de felici<strong>da</strong>de? O destino seria “zeloso” com ela<br />

como fora com a prima, faria seu corpo est<strong>ou</strong>rar como com os mortos no<br />

jazigo <strong>da</strong> família?<br />

17 LUFT,1991.p.90<br />

18 LUFT,1991.p.100<br />

19 BEAUVOIR,1980, p.88


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Preferiu a certeza do modelo Wolf ao invés dos riscos pela felici<strong>da</strong>de,<br />

mas<br />

À noite, insone por causa <strong>da</strong> solidão e de tantas<br />

recor<strong>da</strong>ções, escutando sussurros soltos pela casa, eu<br />

meditava na minha vi<strong>da</strong>.<br />

Vi<strong>da</strong> s<strong>em</strong> graça. Já estava envelhecendo. Tormentos e<br />

exílio na infância. Orelhas grandes. Al<strong>em</strong>ão <strong>ou</strong> Português?<br />

Qual a mão certa? Onde o meu lugar? Minha avó me ama<br />

<strong>ou</strong> me despreza? 20<br />

Assim como os vermes que corroíam os corpos se alimentando <strong>da</strong><br />

carne morta, os questionamentos ficariam rastejando <strong>em</strong> sua mente, alimentados<br />

pela destruição do espírito. Nesse ponto as primeiras e as últimas<br />

páginas, que representam a história do romance no t<strong>em</strong>po presente, se encontram.<br />

O leitor poderia ver nos trechos abaixo apenas uma cena grotesca<br />

de parto. Entretanto, o que se t<strong>em</strong> é um ritual catártico, <strong>em</strong> que virá a luz não<br />

um bebê, mas uma fênix monstruosa, que esteve presa desde a infância.<br />

Seria a simbólica manifestação dAsa Esquer<strong>da</strong> do Anjo:<br />

20 LUFT,1991, p.122<br />

Agora preciso concentrar-me neste ritual - ficarei alivia<strong>da</strong><br />

e limpa depois do horrendo parto. Deitar-me na cama e<br />

deixar que meu corpo expulse seu violador. Por muito<br />

t<strong>em</strong>po esteve esquecido. Hibernava? (...) Meu inquilino<br />

reviveu. (p.11-12)<br />

Criei corag<strong>em</strong>, est<strong>ou</strong> me libertando/ boca feri<strong>da</strong>, maxilares<br />

travados, n<strong>em</strong> querendo poderia voltar atrás, como num<br />

parto - a mulher não pode recolher o filho que, fechar o<br />

corpo acab<strong>ou</strong>-se a encenação. (...)<br />

Enche a minha boca, sai <strong>em</strong> borbotões, retorc<strong>em</strong>o-nos os<br />

dois (...) (p.132).


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Num espasmo de vomito consigo expelir o resto de uma<br />

só vez. Como c<strong>ou</strong>be <strong>em</strong> mim essa coisa imensa? Que<br />

comunhão foi a nossa?<br />

Est<strong>ou</strong> livre.<br />

(...)<br />

Devagar meu habitante se vira. (...) Vira-se mais, sei<br />

que vai me encarar. Minha identi<strong>da</strong>de- qual e minha<br />

identi<strong>da</strong>de?<br />

Ele vai me fitar, s<strong>em</strong> olhos, s<strong>em</strong> nariz, s<strong>em</strong> feições. S<strong>em</strong><br />

identi<strong>da</strong>de como eu (...) (p.139).<br />

Um suspiro um lamento perpassa pela casa. Sussurros<br />

que se fund<strong>em</strong> e g<strong>em</strong><strong>em</strong>. Meu habitante e eu somos a<br />

única criatura viva neste quarto.<br />

(No c<strong>em</strong>itério, na entra<strong>da</strong> do jazigo, a asa esquer<strong>da</strong> do<br />

anjo se fende um p<strong>ou</strong>co mais.) (p.141) 21 .<br />

As linhas finais do romance permit<strong>em</strong>-nos admitir que, mesmo não<br />

resolvendo seus conflitos de identi<strong>da</strong>de, agora, brota <strong>em</strong> <strong>Gisela</strong> um desejo<br />

de (re)agir, por isso, escolho para terminar este trabalho um trecho do po<strong>em</strong>a<br />

“Contrabismo”, do poeta carioca Jimmy Charles Mendes, entendendo<br />

que os primorosos versos desse meu conterrâneo ilustram b<strong>em</strong> o último movimento<br />

de nossa protagonista. Segu<strong>em</strong> os versos:<br />

21 LUFT, 1991.<br />

Venço o cansaço na ro<strong>da</strong> do<br />

contrabismo,<br />

na essência do espelho <strong>da</strong>s almas<br />

na estra<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> esperança,<br />

pois na enormi<strong>da</strong>de do t<strong>em</strong>po,


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<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> topo de minha ardilosa<br />

vontade, eu sinto fome<br />

a fome de um suculento e saboroso<br />

prato chamado vi<strong>da</strong>.


Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />

Bibliografia<br />

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 5ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José<br />

Olympio Editora, 1973.<br />

BEAUVOIR, Simone.Trad. Sérgio Milliet. V.1- Fatos e Mitos. V.2- A experiência vivi<strong>da</strong>.<br />

Rio de Janeiro - Nova Fronteira, 1980.<br />

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Trad. Vera <strong>da</strong> Costa e Silva ET AL. 18ª ed.<br />

Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro -Jose Olympio, 2003.<br />

GUATTARI, Félix. As três ecologias; tradução de Maria Cristina F. Bittenc<strong>ou</strong>rt; revisão<br />

<strong>da</strong> tradução Suely Rolnik. – 3 ed.- Campinas, SP: Papirus, 1991.<br />

LUFT, Lya. A asa esquer<strong>da</strong> do anjo. 9ª. Ed. São Paulo - Siciliano, 1991.<br />

MENDES, Jimmy Charles. Contrabismo. 1ª ed. Rio de Janeiro - DFBP, 2010.<br />

VELHO, GILBERTO. Individualismo e cultura - notas para antropologia <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

cont<strong>em</strong>porânea. 7ª ed. Rio de Janeiro - Jorge Zahar Ed, 2004.<br />

XAVIER, Elódia. Declínio do Patriarcado: a família no imaginário f<strong>em</strong>inino: Lya Luft: a<br />

des<strong>construção</strong> do gênero. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos T<strong>em</strong>pos, 1998.

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