Gisela ou GuÍsela: a famÍlia e a construção da identidade em ... - TEL
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Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />
<strong>Gisela</strong> <strong>ou</strong> <strong>GuÍsela</strong>: a <strong>famÍlia</strong> e a <strong>construção</strong> <strong>da</strong><br />
identi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> a asa esquer<strong>da</strong> do anjo, de lya luft<br />
Quando nasci, o anjo do jazigo<br />
Desses que festejam a morte<br />
Disse: Vai, <strong>Gisela</strong>! ser gauche na vi<strong>da</strong>.<br />
Nathali Ramos M<strong>ou</strong>ra - UFRJ<br />
Peço licença ao grande Carlos Drummond de Andrade para utilizar,<br />
ao modo de <strong>Gisela</strong>, os versos iniciais de seu “Po<strong>em</strong>a de Sete Faces” 1 , pois a<br />
protagonista de A asa esquer<strong>da</strong> do anjo (1991), assim como “Carlos” é um<br />
“Eu todo retorcido”, ina<strong>da</strong>ptado <strong>em</strong> seu mundo. A narrativa luftiana, que se<br />
faz pelo entrelace de dos t<strong>em</strong>pos presente e passado, nos apresenta a história<br />
de <strong>Gisela</strong>, (no decorrer deste trabalho será adota<strong>da</strong> a variante portuguesa<br />
do nome <strong>Gisela</strong>, exceto, quando exigido pelas citações do romance),<br />
personag<strong>em</strong> que busca resolver seu primordial conflito identitário.<br />
A autora constrói, mais uma vez, um universo <strong>em</strong> que o eu f<strong>em</strong>inino<br />
se vê sufocado por laços íntimos de opressão; melhor dizendo, to<strong>da</strong><br />
família sofre sob o jugo <strong>da</strong> matriarca Frau Wolf. Esse “aparente matriarcado<br />
[...], mimeticamente, reproduz a estrutura desgasta<strong>da</strong> <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> patriarcal;<br />
<strong>da</strong>í ser [Frau Wolf], <strong>em</strong> grande parte, a responsável pelos conflitos<br />
<strong>da</strong> narradora” 2 ; não por acaso Luft escolheu para sua protagonista o nome<br />
<strong>Gisela</strong>, que significa, entre <strong>ou</strong>tras coisas, refém, prisioneira 3 .Feitas as observações<br />
iniciais, nossa proposta é fazer a leitura do romance, examinado<br />
as relações <strong>da</strong> protagonista com as personagens que formam seu quadro<br />
familiar básico: Úrsula Wolf (a avó), Maria <strong>da</strong> Graça (mãe), An<strong>em</strong>arie (prima)<br />
e Otto Wolf (pai). Nesse sentido, por tratar-se <strong>da</strong> formação identitária 4<br />
de um ser do sexo f<strong>em</strong>inino e, também, pelo fato <strong>da</strong> curta extensão deste<br />
1 ANDRADE, Carlos Drummond de. p.3, 1973.<br />
2 XAVIER, Elódia. p.67,1998.<br />
3 www.significadodonome.com/significado-do-nome-gisela.html. Acessado <strong>em</strong> 23/07/2011.<br />
4 Para aprofun<strong>da</strong>r a questão <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de nas socie<strong>da</strong>des pós-modernas, consultar: A<br />
identi<strong>da</strong>de cultural na pós-moderni<strong>da</strong>de, de Stuart Hall, e, entre <strong>ou</strong>tras obras de Zigmunt<br />
Bauman, Amor líquido: sobre a fragili<strong>da</strong>de dos laços humanos.
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trabalho, contar<strong>em</strong>os, fun<strong>da</strong>mentalmente, com as contribuições de Simone<br />
de Beauvoir <strong>em</strong> O Segundo Sexo- volumes I e II.<br />
Admitimos com Beavoir que a família, enquanto instituição social,<br />
é a primeira responsável pela formação do indivíduo, e, também que ‘quase’<br />
originali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> intervenção de <strong>ou</strong>tr<strong>em</strong> na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> criança, desde os primeiros<br />
anos. 5<br />
A importância <strong>da</strong> família, do universo, dos parentes e do<br />
nome são fun<strong>da</strong>mentais no processo [de individualização],<br />
<strong>em</strong>bora não seja homogêneo e n<strong>em</strong> uniforme (...). S<strong>em</strong><br />
dúvi<strong>da</strong> há uma tensão entre o processo de individualização<br />
e a inserção <strong>em</strong> um universo de parentes, consangüíneos,<br />
colaterais, afins etc.(...). Mas, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, o domínio do<br />
parentesco é crucial para a constituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />
(...) 6 .<br />
O que na infância de <strong>Gisela</strong> parecia ser o estranhamento de uma<br />
criança dividi<strong>da</strong> entre duas culturas, na fase adulta, se tornará uma convivência<br />
que ao mesmo t<strong>em</strong>po é abrigo e prisão. Vejam-se os trechos:<br />
5 BEAUVOIR, 1980,p.10<br />
6 VELHO, 2004,p.46[ apud<br />
Minha mãe: Maria <strong>da</strong> Graça Moreira Wolf,único nome<br />
estrangeiro que um dia escreveriam na parede do<br />
jazigo.<br />
Dela herdei os olhos pretos, que <strong>em</strong> mim ficavam<br />
deslocados, não combinavam com o cabelo desbotado, a<br />
pele branca. Não me transmitiu o que eu mais desejava<br />
ter: a alegria e a capaci<strong>da</strong>de de a<strong>da</strong>ptação. Mas era<br />
possível que partilháss<strong>em</strong>os, s<strong>em</strong> comentar, a sensação<br />
de estarmos no lugar errado.Maria <strong>da</strong> Graça, numa família<br />
de Helga e Heidis.E eu, Guísela <strong>ou</strong> <strong>Gisela</strong>? (p.21)
Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />
Naquele momento, no pátio <strong>da</strong> escola, odiei-a [a avó] por<br />
me fazer passar aquela humilhação. Qu<strong>em</strong> era eu: Guísela<br />
<strong>ou</strong> <strong>Gisela</strong>? (p.26)<br />
Nenhum deles, exceto talvez minha mãe, suspeitava a<br />
extensão <strong>da</strong> minha dor e do meu medo de jamais vir a<br />
pertencer a na<strong>da</strong> <strong>ou</strong> a ninguém.<br />
N<strong>em</strong> nome certo eu tinha (p.32).<br />
Tudo precisava ser recomen<strong>da</strong>do, ensaiado, mil vezes<br />
l<strong>em</strong>brado; gestos expressões, linguag<strong>em</strong>, tudo falsificado<br />
na montag<strong>em</strong> <strong>da</strong>quele teatro <strong>em</strong> que se frau<strong>da</strong>va, até o<br />
menor resquício, a nossa identi<strong>da</strong>de (p.45) 7 .<br />
Os trechos citados faz<strong>em</strong> referência direta <strong>ou</strong> indiretamente ao tipo<br />
de relação que <strong>Gisela</strong> os d<strong>em</strong>ais m<strong>em</strong>bros <strong>da</strong> família nutr<strong>em</strong> com Úrsula<br />
Wolf. Linhas acima, afirm<strong>ou</strong>-se o aparente matriarcado desta viúva al<strong>em</strong>ã<br />
de hábitos e feições rigorosas. Concordo com Elódia Xavier neste ponto,<br />
pois analisando a figura de Frau Wolf pod<strong>em</strong>os encontrar marcas do patriarcalismo,<br />
que vão desde a utilização <strong>da</strong> bengala, aqui entendido como<br />
símbolo fálico, até o modelo de conduta asséptico estabelecido por ela e<br />
acatado por homens e mulheres <strong>da</strong> família.<br />
Úrsula Wolf, mesmo vivendo <strong>em</strong> uma ci<strong>da</strong>de do Sul do Brasil e cerca<strong>da</strong><br />
de imigrantes que se misturaram à cultura brasileira, insiste <strong>em</strong> recriar<br />
sua “pequena Al<strong>em</strong>anha”, chegando ao cúmulo de infligir aos <strong>ou</strong>tros que se<br />
report<strong>em</strong> a ela <strong>em</strong> língua al<strong>em</strong>ã. As atitudes <strong>da</strong> avó de <strong>Gisela</strong> contribu<strong>em</strong><br />
para manutenção de um mundo unilateral, tal qual o criado pelo patriarcalismo,<br />
<strong>em</strong> que sua representação “ é operação dos homens; eles o descrev<strong>em</strong><br />
do ponto de vista que lhes é peculiar e que confund<strong>em</strong> com a ver<strong>da</strong>de<br />
absoluta” 8 .<br />
7 To<strong>da</strong>s as citações sao de LUFT,1991.<br />
8 BEAUVOIR, 1980,p.183.
Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />
A tirania matriarcalista <strong>da</strong> Frau se impõe às figuras masculinas <strong>da</strong><br />
família, que são apaga<strong>da</strong>s, a exceção de Stefan que não possui com ela<br />
laços sanguíneos. Otto Wolf, cuja transgressão foi ter se casado com uma<br />
brasileira, foi s<strong>em</strong>pre austero, comedido, também, se preocupava, como<br />
todo o resto <strong>da</strong> família, <strong>em</strong> agra<strong>da</strong>r a mãe; nisso estava incluído corrigir<br />
a filha canhota. Apesar de não ser mau pai, Otto não possuía a firmeza<br />
necessária para essa missão, ad<strong>em</strong>ais, a morte <strong>da</strong> esposa e a velhice o tornaram<br />
um ser que definha pelos cantos <strong>da</strong> casa, <strong>ou</strong>vindo a noite os passos<br />
<strong>da</strong> esposa morta.<br />
A representação de figuras masculinas inermes acentua-se no trecho:<br />
“Herr Wolf. Ele morrera há muito t<strong>em</strong>po, eu não o conhecera. Diziam-no<br />
tiranizado pela mulher. Depois do nascimento de Marta, a filha mais nova,<br />
ela o expulsara do quarto conjugal(...).Eu não conseguia pensar Frau Wolf<br />
dividindo cama com hom<strong>em</strong> algum.” 9<br />
O modelo Wolf<br />
Pod<strong>em</strong>os identificar como marcas do modelo cultivado pela matrona<br />
dos Wolf os seguintes aspectos - as vestimentas de Frau Wolf, a bengala, o<br />
rigor nos hábitos (como no estudo <strong>da</strong> música) e o culto a língua al<strong>em</strong>ã. Além<br />
disso, a obsessão de Úrsula por relógios d<strong>em</strong>onstra seu desejo de controlar<br />
a tudo, inclusive, o t<strong>em</strong>po.<br />
Frau Wolf tinha p<strong>ou</strong>cas fraquezas. Mas cultivava algumas<br />
manias. Como o rigor absoluto quanto a limpeza e ord<strong>em</strong>,<br />
e o extr<strong>em</strong>ado carinho por sua coleção de relógios<br />
.Colecionava-os havia muitos anos, uma boa quanti<strong>da</strong>de se<br />
espalhava por to<strong>da</strong> a casa. Dava-lhes cor<strong>da</strong> diariamente.<br />
Em geral batiam juntos,com diferença de segundos. Para<br />
mim, os relógios eram a voz <strong>da</strong> casa10 .<br />
Esse controle foi também exercido sobre a mulher de Otto. Ain-<br />
9 LUFT,1991, p.44.<br />
10 LUFT,1991, p.43
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<strong>da</strong> que levasse consigo certo alheamento, Maria <strong>da</strong> Graça Medeiros Wolf<br />
converteu-se ao modelo <strong>da</strong> Frau, dedicando-se a fazer agrados a sogra e<br />
o marido; tal postura reitera que a “ord<strong>em</strong> patriarcal anula to<strong>da</strong> e qualquer<br />
possibili<strong>da</strong>de de realização que não a inseri<strong>da</strong> no contexto doméstico” 11 .<br />
Vejam-se os trechos:<br />
Minha mãe sentava-se na poltrona de c<strong>ou</strong>ro negro como<br />
seus cabelos. Era uma mulher doce e alegre, raramente a<br />
vi altera<strong>da</strong> <strong>ou</strong> zanga<strong>da</strong>. Sabia manter sereni<strong>da</strong>de mesmo<br />
diante de certas observações mor<strong>da</strong>zes <strong>da</strong> sogra, que<br />
s<strong>em</strong>pre a considerava uma estrangeira (p.20).<br />
Cálices de cristal, bebi<strong>da</strong>s estrangeiras Meu pai, solene;<br />
minha mãe, cabelo preso no alto, ansiosa para que ele<br />
aprovasse os preparativos. Via-se que ficava encanta<strong>da</strong><br />
com os elogios;estava s<strong>em</strong>pre querendo agra<strong>da</strong>r ao<br />
marido e a nova família (p.31) 12 .<br />
A herança brasileira de orig<strong>em</strong> materna de torna-se ca<strong>da</strong> vez mais<br />
opaca, ficando sua marca apenas na pronúncia portuguesa do nome <strong>Gisela</strong>.<br />
Entretanto, seu lado obliquo ficará latente, até que a Asa esquer<strong>da</strong> do<br />
anjo se manifeste.<br />
Se <strong>Gisela</strong> representa o lado torto <strong>da</strong> família, sua prima, An<strong>em</strong>arie<br />
representaria o sucesso do modelo Wolf e ao identificar isso <strong>Gisela</strong> se compara<br />
constant<strong>em</strong>ente à prima:<br />
11 XAVIER, 1998 ,p.65<br />
12 LUFT, 1991.<br />
Por que não era como An<strong>em</strong>arie? Nunca a censuravam.<br />
Como conseguia ser s<strong>em</strong>pre assim, pláci<strong>da</strong>,<br />
harmoniosa,agra<strong>da</strong>ndo a todo mundo, ate nossa<br />
avó,aparent<strong>em</strong>ente s<strong>em</strong> esforço? (p.23)<br />
An<strong>em</strong>arie, que pela cor dos cabelos chamavam
Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />
goldfischchen, o peixinho d<strong>ou</strong>rado, e a qu<strong>em</strong> todos<br />
amavam (p.39). 13<br />
Ninguém mais que <strong>Gisela</strong> amava e admirava An<strong>em</strong>arie, por ser e o<br />
que ela não era, por se tão ama<strong>da</strong>. Enquanto Anamarie brilhava com seu<br />
violoncelo nas tarde de domingo <strong>em</strong> família, <strong>Gisela</strong> torna-se ca<strong>da</strong> vez mais<br />
uma jov<strong>em</strong> débil e insegura - poderíamos asseverar que sua subjetivi<strong>da</strong>de,<br />
nas palavras do sociólogo francês, Felix Guattari, “está <strong>em</strong> processo de “laminação”-<br />
o que o autor classifica como uma per<strong>da</strong> de valores identitários<br />
do sujeito” 14 . Vejamos o trecho:<br />
Guisela para uma, <strong>Gisela</strong> para <strong>ou</strong>tra. A noite, fantasmas<br />
- de dia, dúvi<strong>da</strong>s. E eu? Eu me sentia exposta, avalia<strong>da</strong>,<br />
reprova<strong>da</strong>. Os exercício de piano iam mal, a letra gótica<br />
saia mole <strong>da</strong> mão canhota - as orelhas de abano, e<br />
minha avó s<strong>em</strong>pre sugerindo que eu dormisse com t<strong>ou</strong>ca<br />
aperta<strong>da</strong>, para corrigi-las15 .<br />
Contrariando o que todos esperavam, An<strong>em</strong>arie não poderia mais ser<br />
o símbolo <strong>da</strong> família Wolf. <strong>Gisela</strong> descobrira antes de todos que a prima mantinha<br />
relação adúltera com Stefan, o marido de tia Marta - fato que só foi descoberto<br />
com a fuga dos apaixonados fugiram. To<strong>da</strong>via, se esta tinha sido a forma<br />
encontra<strong>da</strong> por An<strong>em</strong>arie para sua realização, o destino fora implacável,<br />
13 LUFT, 1991.<br />
14 GUATARRI,1991, P.11-12<br />
15 LUFT, 1991.p.52<br />
16 XAVIER,1998. P.67<br />
(...) sua volta, doente de câncer,dez anos depois,representa<br />
a punição infalível. Daí a narradora optar pelo modelo<br />
asséptico e rigoroso de Frau Wolf, como uma [suposta]<br />
c<strong>ou</strong>raça protetora. Ao final <strong>da</strong> trajetória, diz ela: ”fechome<br />
nesta casa e cumpro minhas obrigações .Não<br />
encontrarão na<strong>da</strong> desarrumado.Servirei chá com uma<br />
torta de cama<strong>da</strong>s, que faço com perfeição”(p.124). Mas a<br />
identi<strong>da</strong>de não foi resgata<strong>da</strong> (...). 16
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Passado o escân<strong>da</strong>lo, antes do retorno de Stefan e An<strong>em</strong>arie (doente),<br />
<strong>Gisela</strong> inicia namoro Léo, cujo amor “fazia recuperar o sentimento<br />
de identi<strong>da</strong>de” 17 . Entretanto não sabia b<strong>em</strong> como agir diante do amor que<br />
ele lhe oferecera; pass<strong>ou</strong> a se sentir culpa<strong>da</strong> por amar, enquanto a mãe<br />
estava com a saúde debilita<strong>da</strong>. Não sabendo administrar seus conflitos,<br />
dedic<strong>ou</strong>-se aos afazeres domésticos e negligenci<strong>ou</strong> o sentimento por Léo.<br />
Nesse ponto <strong>da</strong> narrativa, acentua-se o conflito identitário <strong>da</strong> personag<strong>em</strong>:<br />
<strong>Gisela</strong> e Guísela passam a se confrontar - de um lado o amor, com os riscos<br />
e a possibili<strong>da</strong>de de realização, de <strong>ou</strong>tro os Wolf e um futuro s<strong>em</strong> paixão,<br />
mas cheio de certezas.<br />
Antigas sombras voltam a aparecer:<br />
S<strong>ou</strong> uma mulher normal?<br />
S<strong>ou</strong> Guisela <strong>ou</strong> <strong>Gisela</strong>?Odio <strong>ou</strong> amor? Fogo <strong>ou</strong> gelo? Meu<br />
lugar e ain<strong>da</strong> nos braços de Leo, que me ama? Ou nesse<br />
campo de neve, eu comigo mesma encastoa<strong>da</strong> no corpo<br />
imune a qualquer toque, qualquer afago incandescido a<br />
m<strong>em</strong>ória do que poderia ter sido e não foi? 18<br />
Diante <strong>da</strong> punição de An<strong>em</strong>arie, <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> mãe, do rompimento<br />
com Léo, nossa protagonista se esmera ca<strong>da</strong> vez mais para se enquadrar<br />
no modelo <strong>da</strong> avó. Se anteriormente não estava dividi<strong>da</strong> entre ser Guísela<br />
<strong>ou</strong> <strong>Gisela</strong>, agora, aceita aprisionar-se como Guísela. Agora, com o destino<br />
trágico de An<strong>em</strong>arie, precisava ser admira<strong>da</strong> pela família. Qual seria o símbolo<br />
<strong>da</strong> família Wolf? E caso se entregasse a Léo, o que aconteceria? Ele<br />
era seu objeto de desejo, seria com isso, também, sua transgressão. Segundo<br />
avalia Simone de Beauvoir, muitas mulheres procuram afastar-se de seu<br />
objeto de desejo, receando uma decepção 19 . Mas o que aconteceria com ela<br />
se rebentasse <strong>em</strong> sua busca de felici<strong>da</strong>de? O destino seria “zeloso” com ela<br />
como fora com a prima, faria seu corpo est<strong>ou</strong>rar como com os mortos no<br />
jazigo <strong>da</strong> família?<br />
17 LUFT,1991.p.90<br />
18 LUFT,1991.p.100<br />
19 BEAUVOIR,1980, p.88
Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />
Preferiu a certeza do modelo Wolf ao invés dos riscos pela felici<strong>da</strong>de,<br />
mas<br />
À noite, insone por causa <strong>da</strong> solidão e de tantas<br />
recor<strong>da</strong>ções, escutando sussurros soltos pela casa, eu<br />
meditava na minha vi<strong>da</strong>.<br />
Vi<strong>da</strong> s<strong>em</strong> graça. Já estava envelhecendo. Tormentos e<br />
exílio na infância. Orelhas grandes. Al<strong>em</strong>ão <strong>ou</strong> Português?<br />
Qual a mão certa? Onde o meu lugar? Minha avó me ama<br />
<strong>ou</strong> me despreza? 20<br />
Assim como os vermes que corroíam os corpos se alimentando <strong>da</strong><br />
carne morta, os questionamentos ficariam rastejando <strong>em</strong> sua mente, alimentados<br />
pela destruição do espírito. Nesse ponto as primeiras e as últimas<br />
páginas, que representam a história do romance no t<strong>em</strong>po presente, se encontram.<br />
O leitor poderia ver nos trechos abaixo apenas uma cena grotesca<br />
de parto. Entretanto, o que se t<strong>em</strong> é um ritual catártico, <strong>em</strong> que virá a luz não<br />
um bebê, mas uma fênix monstruosa, que esteve presa desde a infância.<br />
Seria a simbólica manifestação dAsa Esquer<strong>da</strong> do Anjo:<br />
20 LUFT,1991, p.122<br />
Agora preciso concentrar-me neste ritual - ficarei alivia<strong>da</strong><br />
e limpa depois do horrendo parto. Deitar-me na cama e<br />
deixar que meu corpo expulse seu violador. Por muito<br />
t<strong>em</strong>po esteve esquecido. Hibernava? (...) Meu inquilino<br />
reviveu. (p.11-12)<br />
Criei corag<strong>em</strong>, est<strong>ou</strong> me libertando/ boca feri<strong>da</strong>, maxilares<br />
travados, n<strong>em</strong> querendo poderia voltar atrás, como num<br />
parto - a mulher não pode recolher o filho que, fechar o<br />
corpo acab<strong>ou</strong>-se a encenação. (...)<br />
Enche a minha boca, sai <strong>em</strong> borbotões, retorc<strong>em</strong>o-nos os<br />
dois (...) (p.132).
Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />
Num espasmo de vomito consigo expelir o resto de uma<br />
só vez. Como c<strong>ou</strong>be <strong>em</strong> mim essa coisa imensa? Que<br />
comunhão foi a nossa?<br />
Est<strong>ou</strong> livre.<br />
(...)<br />
Devagar meu habitante se vira. (...) Vira-se mais, sei<br />
que vai me encarar. Minha identi<strong>da</strong>de- qual e minha<br />
identi<strong>da</strong>de?<br />
Ele vai me fitar, s<strong>em</strong> olhos, s<strong>em</strong> nariz, s<strong>em</strong> feições. S<strong>em</strong><br />
identi<strong>da</strong>de como eu (...) (p.139).<br />
Um suspiro um lamento perpassa pela casa. Sussurros<br />
que se fund<strong>em</strong> e g<strong>em</strong><strong>em</strong>. Meu habitante e eu somos a<br />
única criatura viva neste quarto.<br />
(No c<strong>em</strong>itério, na entra<strong>da</strong> do jazigo, a asa esquer<strong>da</strong> do<br />
anjo se fende um p<strong>ou</strong>co mais.) (p.141) 21 .<br />
As linhas finais do romance permit<strong>em</strong>-nos admitir que, mesmo não<br />
resolvendo seus conflitos de identi<strong>da</strong>de, agora, brota <strong>em</strong> <strong>Gisela</strong> um desejo<br />
de (re)agir, por isso, escolho para terminar este trabalho um trecho do po<strong>em</strong>a<br />
“Contrabismo”, do poeta carioca Jimmy Charles Mendes, entendendo<br />
que os primorosos versos desse meu conterrâneo ilustram b<strong>em</strong> o último movimento<br />
de nossa protagonista. Segu<strong>em</strong> os versos:<br />
21 LUFT, 1991.<br />
Venço o cansaço na ro<strong>da</strong> do<br />
contrabismo,<br />
na essência do espelho <strong>da</strong>s almas<br />
na estra<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> esperança,<br />
pois na enormi<strong>da</strong>de do t<strong>em</strong>po,
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<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> topo de minha ardilosa<br />
vontade, eu sinto fome<br />
a fome de um suculento e saboroso<br />
prato chamado vi<strong>da</strong>.
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Bibliografia<br />
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 5ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José<br />
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des<strong>construção</strong> do gênero. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos T<strong>em</strong>pos, 1998.