Álvaro Pereira do Nascimento, A ressaca da marujada ... - Unicamp
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por Claudia Antunes<br />
<strong>Álvaro</strong> <strong>Pereira</strong> <strong>do</strong> <strong>Nascimento</strong>, A <strong>ressaca</strong> <strong>da</strong> maruja<strong>da</strong>: recrutamento e disciplina na<br />
Arma<strong>da</strong> Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.<br />
Os antecedentes <strong>da</strong> Revolta <strong>da</strong> Chibata<br />
A história vista de baixo, sob a ótica <strong>da</strong>s estratégias populares para driblar ou mesmo<br />
transformar em lucro as situações adversas, é o senti<strong>do</strong> que percorre "A Ressaca <strong>da</strong> Maruja<strong>da</strong> -<br />
Recrutamento e Disciplina na Arma<strong>da</strong> Imperial", livro que pretende levantar os antecedentes, na<br />
Marinha, <strong>da</strong> Revolta <strong>da</strong> Chibata, já no perío<strong>do</strong> republicano, em 1910.<br />
Apresenta<strong>da</strong> como tese de mestra<strong>do</strong> na <strong>Unicamp</strong>, a obra <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r <strong>Álvaro</strong> <strong>Pereira</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Nascimento</strong>, 37, foi premia<strong>da</strong> pelo Arquivo Nacional em 1999 e edita<strong>da</strong> no ano passa<strong>do</strong>.<br />
Usan<strong>do</strong> como fontes boletins policiais e processos submeti<strong>do</strong>s ao Conselho de Guerra <strong>da</strong><br />
Arma<strong>da</strong>, <strong>Nascimento</strong> conclui que a rebelião coman<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo marinheiro de primeira classe João<br />
Cândi<strong>do</strong> Felisberto não foi um acontecimento isola<strong>do</strong>. Ao contrário, ela foi precedi<strong>da</strong> de um clima de<br />
inquietação constante entre a maruja<strong>da</strong>, na época <strong>do</strong> Império, e de pelo menos três rebeliões em<br />
navios de guerra depois de 1889.<br />
O mais interessante, porém, é que as fontes usa<strong>da</strong>s por <strong>Nascimento</strong> desven<strong>da</strong>m a mistura<br />
de atração e de repulsa exerci<strong>da</strong> pelo serviço militar nos marinheiros, que naquela época vinham<br />
<strong>do</strong>s estratos mais desfavoreci<strong>do</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de -ex-escravos, filhos de escravos e uma minoria de<br />
brancos muito pobres.<br />
Ao mesmo tempo em que eram submeti<strong>do</strong>s, na Arma<strong>da</strong>, a um regime draconiano de<br />
disciplina, com castigos corporais constantes, esses homens viam no alistamento ou no<br />
recrutamento força<strong>do</strong> (usa<strong>do</strong> pela polícia para "limpar" as ci<strong>da</strong>des de desemprega<strong>do</strong>s e de<br />
infratores) "caminhos para conquistarem suas liber<strong>da</strong>des". Uma vez em serviço, eles não abriam<br />
mão, mesmo sob punição física, <strong>do</strong>s "valores e costumes construí<strong>do</strong>s nas ruas" -a turma, as<br />
mulheres, a bebi<strong>da</strong>-, o que os levava a infringir as regras <strong>da</strong> oficiali<strong>da</strong>de.<br />
"A Ressaca <strong>da</strong> Maruja<strong>da</strong>" está dividi<strong>da</strong> em três partes. Na primeira, a partir <strong>do</strong> processo a<br />
que foi submeti<strong>do</strong> em 1873, no Conselho de Guerra, o oficial José Cândi<strong>do</strong> Guilhobel, <strong>Nascimento</strong><br />
descreve a prática <strong>do</strong> "tribunal <strong>do</strong> convés". Numa analogia com o que chamaria hoje de "tribunal <strong>do</strong><br />
camburão", o historia<strong>do</strong>r mostra como, nos navios <strong>do</strong> Brasil imperial, os oficiais julgavam e puniam,<br />
passan<strong>do</strong> por cima <strong>do</strong>s códigos escritos de Justiça.<br />
Num caso que <strong>Nascimento</strong> considera atípico, Guilhobel foi leva<strong>do</strong> a julgamento (e absolvi<strong>do</strong>)<br />
por submeter um marinheiro a 500 chibata<strong>da</strong>s de uma só vez, quan<strong>do</strong> o máximo permiti<strong>do</strong> eram 25<br />
chibata<strong>da</strong>s por dia. Em sua defesa, o oficial argumentou: "Será lógico e justo que eu respon<strong>da</strong> por<br />
aquilo que já encontrei como praxe a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong>s navios de guerra?"<br />
Na segun<strong>da</strong> parte, o historia<strong>do</strong>r mostra como era feito o alistamento no século 19. À falta de<br />
voluntários, prevaleciam o recrutamento força<strong>do</strong>, feito pela polícia, e o arrolamento de menores, que<br />
passavam antes por escolas de aprendizes. O serviço militar era considera<strong>do</strong> um castigo, mas<br />
<strong>Nascimento</strong> enumera casos em que homens presos por "arruaça" optavam pelo alistamento, para<br />
escapar <strong>da</strong> cadeia.<br />
Na última parte <strong>do</strong> livro, dedica<strong>da</strong> aos tempos conturba<strong>do</strong>s que marcaram a Abolição e a<br />
transição para a República, <strong>Nascimento</strong> mostra como os marujos usaram o "privilégio" <strong>da</strong> far<strong>da</strong> para<br />
acertar contas, nas ruas <strong>do</strong> Rio, com policiais repressores. O historia<strong>do</strong>r ressalta que os marinheiros<br />
não se movimentaram em prol <strong>da</strong> monarquia, apesar de a corrente majoritária <strong>da</strong> historiografia<br />
destacar a simpatia <strong>do</strong>s negros pela família imperial.
Eufóricos, no segun<strong>do</strong> dia <strong>da</strong> República, com o decreto que aboliu os castigos corporais na<br />
Arma<strong>da</strong>, os marujos logo se sentiram traí<strong>do</strong>s por uma medi<strong>da</strong> que, cinco meses depois,<br />
restabeleceu essas punições.<br />
Porta<strong>do</strong>res de uma nova consciência política, eles deram início a uma série de motins,<br />
culminan<strong>do</strong> com a revolta lidera<strong>da</strong> pelo "almirante negro". Nela, cita <strong>Nascimento</strong>, os marinheiros não<br />
reclamavam somente o fim <strong>da</strong> chibata, mas "os direitos sagra<strong>do</strong>s que as leis <strong>da</strong> República nos<br />
facultam" -e que ain<strong>da</strong> deve a muitos de seus ci<strong>da</strong>dãos.<br />
Claudia Antunes<br />
<strong>da</strong> Sucursal <strong>do</strong> Rio<br />
*Publica<strong>da</strong> na Folha de S.Paulo, 09/fev/2002.