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BION, PASSAGEM PARA UR

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<strong>BION</strong>, <strong>PASSAGEM</strong> <strong>PARA</strong> <strong>UR</strong> - UMA CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE SOBRE<br />

O DESENVOLVIMENTO DA OBRA DE W. R. <strong>BION</strong><br />

Fernanda Marinho, José Hamilton Farias, Lia Nazareth, Ney Marinho e<br />

Paulo Bianchini (SBPRJ) 1<br />

“Não estamos há quatrocentos anos mas somente há dez. O<br />

reino de Ur é aquele do prefixo que designa na obra de Freud tudo que remete ao<br />

primordial e ao originário; o domínio da psicanálise que você tanto ajudou conhecer. O<br />

túmulo real é aquele onde você repousa com suas obras. O ladrão que eu sou tem<br />

tantas riquezas sob seu olhar que nem sabe o que escolher para levar pois o que tem<br />

diante de si é mais do que seu saco pode conter. O conteúdo não tem um continente,<br />

faz-se necessário selecionar o fato.”<br />

1 – A QUESTÃO<br />

(André Green, Carta aberta à Wilfred Ruprecht Bion, Paris, 21/10/1989)<br />

O último número do IJP (2011) traz em sua seção Controvérsias<br />

psicanalíticas um debate sobre “O valor do ‘último Bion’ para a teoria e prática<br />

psicanalíticas” que retoma o iniciado em 2005, agora editado por Rachel Blass<br />

(UK). Destes debates participam: Edna O’Shaughnessy (Londres), Elizabeth de<br />

Bianchedi (Argentina), Antonino Ferro (Itália), Rudi Vermote (Bélgica) e David<br />

Taylor (UK).<br />

Apesar de temerosos da validade de tais debates, lembrando o<br />

comentário pessimista de Max Planck sobre a racionalidade das discussões de<br />

teorias, muito citado por Bion 2 , arriscamos crer na importância deste debate<br />

pois vemos uma contrapartida na clínica, na crítica da cultura e na<br />

epistemologia, temas constitutivos da proposta psicanalítica, que lhe dão uma<br />

peculiar relevância. Adiantamos, dado o pouco espaço que nos cabe, que nos<br />

aproximamos muito da exposição de Bianchedi e, em vários pontos, de<br />

Antonino Ferro e Vermote. Acrescentamos entre nossos interlocutores André<br />

Green, a quem dedicamos este trabalho, autor que julgamos ter compreendido<br />

em sua profundidade a “passagem para Ur” proposta por Bion. Pelo mesmo<br />

motivo de tempo e espaço vamos restringir-nos à apresentação de nossa<br />

experiência.<br />

1 Grupo de Estudos de Bion, Rio de Janeiro (Brasil), do qual fazem parte também: Benar Fuks<br />

(Matemático) e Carla Penna (Psicanalista especializada em Grupoanálise).<br />

2 “... Uma nova verdade científica não triunfa por convencer seus oponentes e fazê-los ver a luz, mas<br />

porque eles finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com esta nova verdade.” [da<br />

Autobiografia de Max Planck, citada por Bion (1977)]


A experiência clínica de nosso grupo de estudos nos sugere que uma<br />

investigação e terapêutica mais consistentes de casos graves ou, melhor<br />

dizendo, de aspectos mais primitivos e desconhecidos de qualquer paciente,<br />

assim como de fenômenos grupais, demandam novos instrumentos, além dos<br />

oferecidos pela tradição psicanalítica. É neste sentido que julgamos válida a<br />

proposta de Bion de levar a pesquisa psicanalítica às últimas consequências,<br />

ou seja, a privilegiar a psicanálise como uma investigação 3 . Na mesma linha de<br />

pensamento valorizamos a grade tanto como um instrumento como uma<br />

notação desta pesquisa. Da mesma forma entendemos a teoria das<br />

transformações, como uma notável contribuição a uma teoria da observação<br />

psicanalítica, não por acaso apresentada, pela primeira vez, em reunião<br />

científica da Sociedade Britânica juntamente com a grade 4 . Mais adiante<br />

comentaremos a importância da teoria das transformações como uma caesura<br />

na obra de Bion e, a rigor, na história do pensamento psicanalítico, dadas as<br />

suas implicações epistemológicas. No momento e a este respeito – a<br />

epistemologia da psicanálise – pretendemos realçar o papel da grade. Esta, ao<br />

abranger tanto analista como analisando, é algo inédito na teoria psicanalítica e<br />

tornar-se-á uma invariante na obra de Bion, sempre presente no que se<br />

convencionou chamar o “último Bion”. 5<br />

Como já dissemos, concordamos com a exposição de Bianchedi na<br />

medida em que esta autora vê uma continuidade na pesquisa proposta por<br />

Bion – desde Experiências com Grupos, onde já menciona estados<br />

protomentais e valoriza o vértice grupal para a compreensão do indivíduo – até<br />

a investigação de estados mentais primitivos e a busca de uma linguagem de<br />

êxito. Entendemos este percurso como um detalhado exame das<br />

tranformações em K (conhecimento) e em O (ser) e sua permanente dinâmica.<br />

Esclarecemos: vemos o trabalho analítico como uma atividade constante tanto<br />

no âmbito do conhecimento como no do ser. Esta dinâmica nos parece escapar<br />

3 “Esta é uma característica do domínio mental: não pode estar contido dentro da estrutura da teoria<br />

psicanalítica. Isso é sinal de teoria defeituosa, ou denota que os psicanalistas não entendem que a<br />

psicanálise não pode estar contida permanentemente dentro das definições que eles usam? Seria uma<br />

observação válida dizer que a psicanálise não pode ‘conter’ o domínio mental porque ela não é um<br />

‘continente’, mas uma ‘investigação’; a formulação que tentei promover usando os símbolos ♀ e ♂<br />

minimiza essa dificuldade, deixando ♀ e ♂ como desconhecidos de valor a ser determinado.” (Bion,<br />

[1970] 1973:80)<br />

4 Em 2 de outubro de 1963.<br />

5 Ver Klimovsky, G. (1989).<br />

2


a alguns dos debatedores citados, embora seja uma contribuição da<br />

psicanálise para o entendimento de estados mentais com que partilham tanto<br />

cientistas, como filósofos ou artistas, quer no estudo da invenção matemática,<br />

no surgimento da experiência ética, ou, na criação estética. Lembremo-nos de<br />

Poincaré e Jacques Hadamard, Kierkegaard, ou, de Pirandello 6 . Nesta linha de<br />

pensamento é que se colocam certas questões que chocaram a tradição<br />

iluminista da psicanálise – a qual tende a constituir a psicanálise mais como um<br />

corpo fixo de doutrina do que um formidável instrumento de pesquisa e crítica<br />

da cultura – como as noções de “pensamento sem pensador”, ato de fé, ou, da<br />

busca de uma linguagem estética para a psicanálise. Entretanto, lembramos<br />

que a primeira ocorreu também a rigorosos matemáticos e filósofos da ciência,<br />

como Frege e Popper, autores citados por Bion (1963), dos quais curiosamente<br />

não teve conhecimento de suas últimas obras que guardam a este respeito um<br />

parentesco com o que se denominou o “último Bion” 7 .<br />

Nosso grupo de estudos julga que para falar da loucura – objeto<br />

primordial da pesquisa psicanalítica – a trilogia Uma Memória do Futuro seria o<br />

nosso Grande Sertão, Veredas 8 . Qualquer aproximação pretensamente<br />

científica da desrazão cai na armadilha de explicá-la, compreendê-la e destituí-<br />

la de sua natureza rebelde a quaisquer regras, exceto às suas próprias, como<br />

Bion propõe em Transformações (cap. 10). Vemos a proposta bioniana como<br />

um convite a uma aventura pessoal, neste aspecto não diferindo da experiência<br />

da análise pessoal pela qual todos nós passamos. Assim, entendemos a<br />

Trilogia como uma caesura – continuidade e descontinuidade na obra de Bion –<br />

como a Teoria do Pensar, a Teoria das Transformações e outras marcantes<br />

contribuições suas.<br />

2 - A CLÍNICA<br />

2.1 - O que faz com que em uma determinada sessão, a analista, ao<br />

observar a sua paciente dirigindo-se ao divã, tenha a visão de um homem?<br />

6 Poincaré (Science et Méthode); Hadamard (The Psychology of invention in the mathematical field);<br />

Kierkegaard (Terror e Tremor); Pirandello (O falecido Mattia Pascal).<br />

7 No caso de Popper e Frege, pensamos na noção de “pensamento sem pensador” como está exposta no<br />

ensaio “Epistemologia sem um sujeito conhecedor”, in Conhecimento Objetivo [(1972) 1975), no qual<br />

Popper atribui a origem da proposta a Frege (2001), embora a utilize com características um tanto<br />

diversas. Para uma discussão mais ampla do tema ver Marinho, N. (2012)<br />

8 Como certamente os demais colegas latinoamericanos encontram obras emblemáticas para descrever<br />

com profundidade a experiência humana em suas literaturas (surge-nos de imediato Borges, Garcia<br />

Marques, Alejo Carpentier, entre tantos outros).<br />

3


Algum distúrbio perceptivo? Alguma reação contratransferencial? Após esta<br />

primeira percepção da analista, acompanhada de certo desconforto, a paciente<br />

inicia um relato sobre um encontro casual com uma mulher muito conhecida<br />

publicamente pela beleza e sensualidade. Passa, então, a descrever um<br />

desagradável sentimento de surpresa que experimentara, achando-a magra e<br />

musculosa, com uma atitude dura em relação ao próprio filho. Aponto-lhe que<br />

me descrevia, possivelmente, uma figura máscula. Assente de forma viva: “Isso<br />

mesmo, parecia um homem!”<br />

2.2 - Um sonho de Lucia de que tem seu rosto cheio de espinhas<br />

desperta na analista, pela segunda vez na sessão, a idéia de gravidez. A<br />

analista, neste momento, se lembra dos comentários de Freud, em seu<br />

trabalho sobre o inconsciente, sobre a diferença entre as formações<br />

substitutivas nas neuroses e nas psicoses: do mesmo modo que poros<br />

dificilmente poderiam representar orifícios vaginais em pacientes neuróticos,<br />

como pensar em barriga proeminente quando referidas a espinhas na face,<br />

senão no âmbito da psicose?<br />

O primeiro momento em que surge na analista a idéia de gravidez, é<br />

quando, após um relato do que a fizera faltar à sessão anterior, Lucia exclama<br />

animada: “Enfim, acho que vamos... (a analista completa a frase mentalmente:<br />

ter o segundo filho)... fechar a venda”. Após discorrer longamente sobre as<br />

negociações, como ficará sua participação na sociedade, e tal, conta um sonho<br />

que tivera: “Tinha o rosto cheio de espinhas, mas, pensava, vai passar,<br />

espinhas se tratam, mas era muito feio!”. A analista pensa, então, em<br />

protuberâncias, vê barrigas salientes, algo irrompendo pela epiderme, gravidez,<br />

a idéia de Lucia de que a gravidez deforma, filho.<br />

Bem mais tarde, ao longo da sessão, a paciente diz: “Ah! Parei a pílula;<br />

aliás, esse sonho com este rosto horrível, que vai passar... como a gravidez...”<br />

As espinhas-barriga de Lucia configuradas em um estado de alucinose<br />

compartilhado – barriga-espinho, situação espinhosa.<br />

3 - DISCUSSÃO<br />

Julgamos dois os domínios em que se passa o processo psicanalítico:<br />

os domínios do ser e do conhecer. Ao discorrer sobre o ato de fé, as<br />

transformações em O, a verdade última, incognoscível, Bion nos dá elementos<br />

para pensar o inefável em análise, algo que pertence à dimensão do ser, não<br />

4


pode ser dito, não pode ser conhecido, apenas ser; e este é o cerne da<br />

experiência emocional transformadora: atemporal, perene imortal. Este<br />

domínio, embora inescapável a qualquer psicanalista militante, é, de modo<br />

geral, muito pouco informado pela literatura psicanalítica.<br />

Do mesmo modo, embora a admissão da coexistência de aspectos na<br />

personalidade que são função da psicose e função da neurose, com<br />

predominância de uns ou outros, tenha origem nas idéias desenvolvidas por M.<br />

Klein e reconhecidas por ampla gama de psicanalistas, pensamos que Bion<br />

expande a possibilidade não só de observação desse fenômeno, mas de<br />

vivência em comunhão da dupla analista-paciente. O meio por ele preconizado<br />

das transformações em O, dimensão do ser, é o estado de alucinose:<br />

abstenção de memória, desejo, compreensão e sensório – sustentado pelo ato<br />

de fé, fé na realidade última, no desconhecido, desconhecível, infinito informe;<br />

a silhueta de um(a) paciente pode, portanto, tomar a forma feminina ou<br />

masculina, independente do gênero, conforme a apreensão da evolução de O<br />

pelas funções derivadas do sensório; já estamos, então, no domínio de K -<br />

conhecer. O que observamos no primeiro fragmento clínico acima citado, a<br />

nosso ver, é a evolução de O até sua interseção com o domínio dos objetos do<br />

sentido, em uma transformação plástica projetiva.<br />

A idéia da dinâmica permanente entre as transformações O→K e K→O<br />

nos liberta das amarras do conhecimento, terreno falso e escorregadio quando<br />

se trata da capacidade de sentir e pensar e, portanto, criar. Criar novos laços,<br />

novas significações, em um espectro de possibilidades infinitas – novas formas<br />

oriundas do infinito informe.<br />

RESUMO<br />

Os autores oferecem uma contribuição ao debate sobre a obra de Bion,<br />

que ocorre nas Controvérsias Psicanalíticas (IJP, 2011). O texto é fruto do<br />

trabalho de um grupo de estudos de Bion do Rio de Janeiro (Br). Pensam a<br />

psicanálise como uma investigação, nos termos descritos em Atenção e<br />

Interpretação. Enfatizam o papel da grade tanto como instrumento como<br />

notação da investigação psicanalítica, da mesma forma, vêem a teoria das<br />

transformações como uma das mais importantes caesuras epistemológicas na<br />

obra de Bion e com a tradição psicanalítica. Apresentam sua experiência<br />

5


clínica que considera o “último Bion”. E discutem a dinâmica conhecer ↔ ser<br />

como um fenômeno constante da clínica psicanalítica.<br />

PALAVRAS CHAVE – <strong>BION</strong> – <strong>UR</strong> – DESENVOLVIMENTO – CLÍNICA –<br />

CONHECER – SER – LINGUAGEM DE ÊXITO<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

1 – Bion, W.R. – (1970) Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1973.<br />

_______(1977) Two Papers: The Grid and Caesura. Rio de Janeiro: Imago.<br />

2 – Klimovsky, G. Aspectos epistemológicos da interpretação psicanalítica. In,<br />

Etchgoyen H. Fundamentos da Técnica Psicanalítica. Porto Alegre: Artes<br />

Médicas, 1989.<br />

3 – Marinho, N. – Popper e a Questão da Psicanálise. In, Ensaios sobre o<br />

pensamento de Karl Popper. Oliveira, Paulo Eduardo de (org.). Curitiba:<br />

Círculo de Estudos Bandeirantes, 2012.<br />

4 – Popper, K. – Conhecimento Objetivo. São Paulo: Ed. Universidade de São<br />

Paulo, 1975.<br />

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