A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen (Eugen Herrigel - Webnode
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Mas por que o mestre não encarrega um discípulo<br />
experiente desses trabalhos preparatórios, inevitáveis, porém<br />
secundários? Será que diluir a tinta ou desatar tão<br />
cuida<strong>do</strong>samente a fita ao invés de cortá-la contribuem para<br />
estimular a sua intuição e criatividade? O que o faz repetir em<br />
cada aula essas operações com a mesma e inexorável<br />
insistência, sem nenhuma omissão, exigin<strong>do</strong> que os seus<br />
discípulos o imitem? Ele insiste em manter esse ritual<br />
tradicional porque sabe que os preparativos têm a virtude de<br />
sintonizá-lo com a sua criação artística. À serena tranqüilidade<br />
com que os executa deve o relaxamento decisivo, o equilíbrio<br />
de todas as suas energias e a concentração, sem os quais<br />
nenhuma obra autêntica se realiza. Absorto na sua ação, livre<br />
de intenção, é conduzi<strong>do</strong> até o momento em que a obra,<br />
atingidas suas formas ideais, completa-se quase que por si<br />
mesma. O que são no tiro com arco os passos e os gestos, o<br />
são nestes casos os preparativos: a forma é diferente, mas a<br />
significação é a mesma. Quan<strong>do</strong> tal procedimento não é<br />
possível, como no caso <strong>do</strong> dançarino religioso ou no <strong>do</strong> ator, a<br />
concentração ocorre antes que apareçam em cena.<br />
Não há dúvida de que nesses exemplos, como no <strong>do</strong> tiro<br />
com arco, trata-se de cerimônias. Mais claramente <strong>do</strong> que o<br />
mestre pode explicar com palavras, o discípulo aprende com<br />
elas que o mais alto esta<strong>do</strong> espiritual <strong>do</strong> artista só é alcança<strong>do</strong><br />
quan<strong>do</strong> se mesclam, num único continuum, os preparativos e<br />
a criação, o artesanato e a arte, o material e o espiritual, o<br />
abstrato e o concreto. E graças a isso ele descobre um novo<br />
enre<strong>do</strong> de imitação.<br />
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Depois, o que se exige é que ele <strong>do</strong>mine perfeitamente todas<br />
as técnicas de concentração e meditação, esquecen<strong>do</strong>-se de si<br />
mesmo. A imitação fica mais livre, mais ágil, mais<br />
espiritualizada, pois não mais se refere a conteú<strong>do</strong>s objetivos<br />
que qualquer um pode reproduzir apenas com um pouco de<br />
boa vontade. O aluno se vê frente a novas possibilidades, mas<br />
ao mesmo tempo aprende que sua realização de maneira<br />
nenhuma depende da simples boa vontade.<br />
O aluno que tenha todas as possibilidades de progredir<br />
encontra-se diante de um perigo que é muito difícil de ser<br />
evita<strong>do</strong> durante seu desenvolvimento. Não se trata de se<br />
perder num narcisismo estéril, porque o oriental tem pouca<br />
predisposição à egolatria, mas de achar que o que já sabe é<br />
suficiente, principalmente se obteve êxito e fama naquilo que<br />
fez. Assim, ele corre o risco de se comportar como se a<br />
existência artística fosse uma forma de vida nascida e<br />
justificada espontaneamente em si mesma. O mestre sabe<br />
desse perigo. Cautelosamente, com sutis recursos psicológicos,<br />
trata de prevenir a tempo e de liberar o aluno de si mesmo. Faz<br />
com que ele perceba, sem insistir, como se se tratasse de algo<br />
secundário — e referin<strong>do</strong>-se à própria experiência <strong>do</strong> aluno —,<br />
que a criação autêntica só é possível num esta<strong>do</strong> de<br />
desprendimento de si mesmo, durante o qual o cria<strong>do</strong>r não está<br />
presente como ele mesmo.<br />
Somente o espírito deve estar presente, numa espécie<br />
de vigília que prescinde <strong>do</strong> eu mesmo e que pervade to<strong>do</strong>s os<br />
espaços, todas as profundezas, com olhos que ouvem e<br />
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