Francisca Carla - 'A santa sem corpo' de Tianguá-CE. - anpuh
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Memórias e Histórias : <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong> - <strong>'A</strong> <strong>santa</strong> <strong>sem</strong> <strong>corpo'</strong> <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong>-<strong>CE</strong>.<br />
1. Cultura, religião e religiosida<strong>de</strong>.<br />
Joyce Mayara Aguiar <strong>de</strong> Carvalho 1<br />
Faz-se necessário uma <strong>de</strong>finição dos termos em <strong>de</strong>staque no tópico para que a<br />
compreensão do sincretismo religioso que acompanhou toda a história brasileira se<br />
torne mais clara nos dias <strong>de</strong> hoje, temos por <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> cultura:<br />
(...)a maneira diversa <strong>de</strong> registrar os vários modos <strong>de</strong> utilizar as coisas, <strong>de</strong><br />
trabalhar e exprimir, <strong>de</strong> praticar a religião e formar os costumes, <strong>de</strong><br />
esclarecer as leis e as instituições jurídicas, <strong>de</strong> favorecer as ciências e as<br />
artes e <strong>de</strong> cultivar o belo, surgem diversas condições <strong>de</strong> vida em comum e<br />
formas diversas <strong>de</strong> dispor os bens da vida. Assim, com estes costumes<br />
recebidos, constrói-se o patrimônio próprio <strong>de</strong> cada comunida<strong>de</strong> humana.<br />
( OLSON e TORRAN<strong>CE</strong>, 1997: 88)<br />
A cultura seria esse elemento que viabiliza a inserção <strong>de</strong> vários elementos, por vezes<br />
distintos em sua origem, que permeiam as relações <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um grupo social, a religião<br />
e a religiosida<strong>de</strong> estão inseridas nesse contexto cultural, montando e (re) montando a<br />
História, como afirma Sanchis, “Pois é, transmitindo-se, afirmando-se, confrontando-se.<br />
De qualquer modo e para todos, as culturas também estão na História.” ( SANCHIS,<br />
2008: 71).<br />
Não só as culturas, mas as culturas envoltas em todo um enredamento religioso, formam<br />
a religiosida<strong>de</strong> popular, corrente que se forma <strong>de</strong>ntro do catolicismo e que é foco da<br />
análise <strong>de</strong>sse trabalho.<br />
A religiosida<strong>de</strong> popular po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida como o anseio que as pessoas tem no mais<br />
profundo do seu ser <strong>de</strong> se relacionar com o sobrenatural, é algo inerente ao ser humano,<br />
essa busca pelo sagrado, esse apego ao ser superior, como ressalta Carvalho:<br />
Para amenizar as dificulda<strong>de</strong>s e as pelejas da vida do cotidiano, diversos<br />
sujeitos buscam nas crenças e na fé que <strong>de</strong>positam em seus queridos santos<br />
protetores um outro sentido, mais confortável, ou pelo menos mais<br />
animador e acalentador. Não obstante a tanta influência, como nos meios<br />
<strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa em que subtrai muitos dos valores cristãos,<br />
conservam muitos costumes do passado, embora incorporando aspectos<br />
novos, mantêm muitos elementos das raízes populares.<br />
(CARVALHO, 2007:64)<br />
Essa ramificação do catolicismo oficial, que está imbuída <strong>de</strong> cultura, chamamos <strong>de</strong><br />
catolicismo popular, que tem como premissa básica através <strong>de</strong> sua ritualística a<br />
1 Professora da re<strong>de</strong> estadual <strong>de</strong> ensino, atuando profissionalmente na re<strong>de</strong> privada e em Institutos <strong>de</strong><br />
nível superior. Graduada pela Universida<strong>de</strong> Estadual Vale do Acaraú – <strong>CE</strong> (2009), especialista em História<br />
do Brasil pelas Faculda<strong>de</strong>s INTA (2012)
satisfação das necessida<strong>de</strong>s pessoais do fiel através do <strong>de</strong>vocionário aos santos, sejam<br />
eles oficiais ou populares, tento trazer à luz nesse artigo a inter-relação entre esse<br />
catolicismo popular ou “religião do povo” como ressaltam Maciel e Magalhães 2 , que<br />
tratam a religiosida<strong>de</strong> popular como a expressão da religiosida<strong>de</strong> do povo na construção<br />
<strong>de</strong> uma fé in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> regras e dogmas e o catolicismo oficial, ou ‘catolicismo<br />
patriarcal” como alu<strong>de</strong> Hoonaert 3 em sua obra que trata sobre o catolicismo oficial e<br />
seus preceitos, sendo uma religiosida<strong>de</strong> imbuída <strong>de</strong> normas a serem cumpridas pelos<br />
seus fiéis, afirmação esta que vai <strong>de</strong> encontro à expressão <strong>de</strong> fé do povo que não se<br />
apega à normas, mas sim ao que seu coração pe<strong>de</strong>.<br />
Posso portanto, afirmar que os termos, religião, religiosida<strong>de</strong> e cultura estão<br />
interligados, sendo a cultura o elo <strong>de</strong> ligação e <strong>de</strong> afirmação dos outros dois, pois a<br />
religiosida<strong>de</strong> se afirma no território cultural e a religião oficial, sendo este “religare” 4 ,<br />
tem a função <strong>de</strong> ligar o povo ao sobrenatural, ficando no entremeio entre cultura e<br />
religiosida<strong>de</strong>, fazendo uma ponte, adaptando-se com o passar do tempo.<br />
2. Religião e religiosida<strong>de</strong> na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong> – <strong>CE</strong> no período romanizador.<br />
A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong> localizada na região Norte do Estado do Ceará, dista 325 km da<br />
capital Fortaleza, é palco <strong>de</strong> um embate entre religiosida<strong>de</strong> popular e religiosida<strong>de</strong><br />
oficial, e falar <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> popular é <strong>sem</strong>pre um <strong>de</strong>safio, pois é um terreno muito<br />
amplo para ser discutido, daí ser mais instigante ainda trabalhar com tal campo <strong>de</strong><br />
pesquisa, pois <strong>sem</strong>pre nos <strong>de</strong>paramos com um novo fato, com uma nova história <strong>de</strong><br />
contos maravilhosos, que envolvem muita fé e uma dose <strong>de</strong> imaginação do nosso povo,<br />
nunca se enquadrando em padrões estereotipados por <strong>de</strong>terminado grupo <strong>de</strong> pessoas ou<br />
instituição, como é o caso da religião enquanto meio oficial <strong>de</strong> manifestação <strong>de</strong> uma<br />
crença; há todo um conjunto <strong>de</strong> regras a serem seguidas, um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> fé a ser<br />
vivenciada pelos seus a<strong>de</strong>ptos, são conceitos diferentes que abarcam um mesmo<br />
sentimento.<br />
2<br />
Ver mais <strong>de</strong>talhes em MACIEL, Vilma e MAGALHÃES, Celma. Nor<strong>de</strong>ste Místico. Império da fé. UFC.<br />
Casa <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar. Programa editorial,1999. As autoras trabalham a questão da religiosida<strong>de</strong><br />
popular no Nor<strong>de</strong>ste e colocam essa nomenclatura <strong>de</strong> religião do povo da qual me aproprio neste<br />
trabalho, para fazer referência aos cultos populares.<br />
3<br />
O autor vem fazer um contraponto com a i<strong>de</strong>ia das autoras MACIEL e MAGALHÃES, abordando a<br />
questão da religiosida<strong>de</strong> oficial e seus preceitos. Ver mais <strong>de</strong>talhes na obra: HOORNAERT, Eduardo.<br />
Formação do catolicismo Brasileiro.1550-1800. 3ª ed. Petrópolis:Editora Vozes,1991.<br />
4<br />
Religare é um termo <strong>de</strong>rivado do latim que significa “religar”, daí vem a palavra religião que que<br />
traduzindo ao pé da letra , significa “religar”.
Oliveira vem trazer no seu trabalho, “500 anos <strong>de</strong> catolicismos e sincretismos no<br />
Brasil”, a origem <strong>de</strong>sta divisão que há na igreja católica, <strong>de</strong> um lado o povo e sua<br />
religiosida<strong>de</strong> popular, e do outro a igreja e os preceitos da religiosida<strong>de</strong> oficial, ambas<br />
compõem a religião católica no Brasil. Ela ressalta que:<br />
Segundo a autora o início da ruptura da força católica no país, <strong>de</strong>u-se com a expulsão<br />
dos jesuítas do território brasileiro em 1759, e ainda a extinção da inquisição em 1770,<br />
ambos eram braços muitos fortes da igreja, os primeiros foram responsáveis diretos pela<br />
catequização dos indígenas brasileiros, levando a fé católica às mais longínquas<br />
paragens, e a inquisição era a responsável por punir todos os casos <strong>de</strong> heresia que<br />
aconteces<strong>sem</strong> na colônia, e não foram poucos, os “<strong>de</strong>sobedientes” à nova fé seriam<br />
punidos exemplarmente pela inquisição.<br />
No seio da crise do catolicismo no século XIX no Brasil em que a Igreja se<br />
<strong>de</strong>bate abertamente com o Estado, ela volta-se contra as <strong>de</strong>turpações<br />
geradas nela própria, originando práticas religiosas espúrias, não mais<br />
reconhecidas pela Igreja oficial. Num exercício <strong>de</strong> autocrítica motivado<br />
pela vinda <strong>de</strong> religiosos estrangeiros para o Brasil, a Igreja rompeu com as<br />
formas “primitivas” do catolicismo que ela própria teria alimentado ao<br />
longo <strong>de</strong> todo o período colonial, passando a distinguir nitidamente duas<br />
vertentes do catolicismo: a popular e a institucional ou oficial.<br />
( ANDRADE, 2002:151)<br />
Com a saída dos jesuítas do país, o clero que aqui ficou não conseguiu suprir<br />
todas as lacunas <strong>de</strong>ixadas pelos expulsos, “... cada vez mais, mal preparado, viciado e<br />
inoperante, o clero tornou-se o alvo principal dos projetos <strong>de</strong> reforma postos em prática<br />
pela igreja através da abertura dos <strong>sem</strong>inários diocesanos...” ( ANDRADE, 2002: 126),<br />
além <strong>de</strong> o clero local não estar conseguindo aten<strong>de</strong>r à todo o povo católico, ainda estava<br />
imerso em práticas proibidas pela igreja romana, não raros eram os casos <strong>de</strong> padres que<br />
viviam maritalmente com mulheres e tinham até filhos, indo totalmente contra o que<br />
Roma pregava que é o celibato total dos sacerdotes.<br />
Depois o Estado vai tentar também se <strong>de</strong>sfazer da igreja, não totalmente como<br />
esta fez com os jesuítas, mas enfraquecê-la, pois os seus domínios estavam ficando fora<br />
do controle do Estado, principalmente economicamente falando, adotando a medida <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> culto, que foi promulgada na constituição <strong>de</strong> 1824, dando um golpe<br />
certeiro na hegemonia católica que até então era a única que po<strong>de</strong>ria ser abertamente<br />
praticada.<br />
A partir <strong>de</strong> então, igreja e estado digladiar-se-ão constantemente e abertamente, é nesse
período que surge a romanização, que vai trazer a i<strong>de</strong>ia da autorida<strong>de</strong> máxima do papa,<br />
até mesmo maior que a do estado, a Igreja vai se <strong>de</strong>svincular do Estado, alegando ter<br />
<strong>de</strong>veres apenas com Roma, como ressalta Andra<strong>de</strong>:<br />
A igreja já teria cumprido sua missão <strong>de</strong> catequese, porém ao tornar-se<br />
coadjuvante no processo <strong>de</strong> colonização veio a ser uma rival no campo das<br />
iniciativas privadas e governamentais <strong>de</strong> colonização. A aquisição <strong>de</strong> um<br />
patrimônio invejável por parte da igreja, possuidora <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s porções <strong>de</strong><br />
terra, fazendas e engenhos com milhares <strong>de</strong> escravos, para além <strong>de</strong> outros<br />
imóveis urbanos construídos, como igrejas, conventos, colégios, hospitais<br />
entre outros, que <strong>de</strong>spertaram a ganância do estado e a busca <strong>de</strong> artifícios<br />
para expropriá-la. ( ANDRADE, 2002: 138)<br />
Essa realida<strong>de</strong> era válida em todo o território brasileiro, mas se fez presente com mais<br />
força nas cida<strong>de</strong>s interioranas dos Estados on<strong>de</strong> a Igreja <strong>de</strong>tinha uma influência muito<br />
gran<strong>de</strong> entre os fiéis, Carvalho nos diz que:<br />
Essa ação dos bispos reformadores no campo religioso, também<br />
conhecida como catolicismo ultramontano, recheado <strong>de</strong><br />
autoritarismo, baseado na ortodoxia tri<strong>de</strong>ntina e romanizadora,<br />
assim se po<strong>de</strong> chamar porque contava com a autorida<strong>de</strong> maior<br />
do papa e em seguida dos bispos e padres e realmente penetrou<br />
com força em terras tianguaenses e se consolidou nas primeiras<br />
décadas do século XX com a implantação <strong>de</strong> associações e<br />
congregações <strong>de</strong> <strong>de</strong>voções em voga na Europa, como a criação<br />
das filhas <strong>de</strong> Maria, Sagrado coração <strong>de</strong> Jesus, Confraria da<br />
or<strong>de</strong>m terceira Nossa Senhora do Carmo, Associação da Obra<br />
Pontifica <strong>de</strong> Preparação da fé e Legião Operária Católica e<br />
entre outras, cuja finalida<strong>de</strong> era a <strong>de</strong> auxiliar o vigário no<br />
<strong>de</strong><strong>sem</strong>penho das ativida<strong>de</strong>s na igreja. ( CARVALHO, 2007: 35)<br />
Analisamos a partir da citação acima que o processo <strong>de</strong> romanização também chegou à<br />
<strong>Tianguá</strong>, porém um pouco mais tar<strong>de</strong> que o contexto nacional, nas primeiras décadas do<br />
século XX, a partir <strong>de</strong> então observamos este monopólio da Igreja católica como força<br />
dominante na cida<strong>de</strong>, as construções que foram edificadas como o Colégio IET (<br />
Instituto Educacional <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong>), em 1948, também o colégio Regina Coeli, no mesmo<br />
período <strong>de</strong> fundação do IET, este <strong>de</strong>stinado ao ensino primário das crianças <strong>de</strong> famílias<br />
mais abastadas da cida<strong>de</strong>, numa educação moral e religiosa, <strong>de</strong>ntro totalmente dos<br />
preceitos religiosos da época, e aquele <strong>de</strong>stinado aos jovens do ensino médio, também<br />
<strong>de</strong> famílias <strong>de</strong> posses, pois não era muito barato manter um filho em uma escola <strong>de</strong> tal<br />
nível em uma cida<strong>de</strong> que vivia basicamente dos engenhos e plantações, só quem tinha<br />
condições na época eram os gran<strong>de</strong>s proprietários <strong>de</strong> terras ou empresários.
Além das escolas, outras edificações foram construídas na cida<strong>de</strong> nesse período, como a<br />
gran<strong>de</strong> reforma da própria igreja matriz, que contou com a participação do grupo da<br />
legião operária católica. Um grupo <strong>de</strong> homens comuns, os leigos que se colocaram a<br />
serviço da Igreja nesse período pós-romanização, on<strong>de</strong> era missão da mesma juntar todo<br />
o povo para o trabalho pastoral, tirando-o dos “vícios” da religiosida<strong>de</strong> popular.<br />
Anali<strong>sem</strong>os na foto abaixo cedida gentilmente pelo arquivo da Casa da memória <strong>de</strong><br />
<strong>Tianguá</strong>, que foi tirada no ano <strong>de</strong> 1937, on<strong>de</strong> a antiga capelinha que era <strong>de</strong>dicada a<br />
Nossa Senhora Santana, que agora é padroeira da cida<strong>de</strong>, tornou-se pelas mãos <strong>de</strong>sses<br />
homens, uma imensa catedral, que <strong>sem</strong> receber nada em troca, trabalharam arduamente<br />
na construção da matriz da cida<strong>de</strong>.<br />
(Foto arquivo casa da memória,1937)<br />
Observemos através do que a imagem nos mostra que o grupo era bastante numeroso, a<br />
visão impressionista que temos da imagem é o ar <strong>de</strong> serieda<strong>de</strong> que tais pessoas<br />
transmitem na foto, lembremos que nesse contexto era comum as fotografias serem<br />
posadas e, por conseguinte os fotografados saírem com uma aparência sisuda,<br />
principalmente pela representativida<strong>de</strong> que a foto nos transmite, que é o caráter <strong>de</strong><br />
importância que estes homens, cidadãos tianguaenses, têm nesse contexto, a missão <strong>de</strong><br />
edificar a catedral da cida<strong>de</strong>, num período on<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r da Igreja era muito forte na vida<br />
das pessoas, daí a sensação que temos ao olhar a foto é o orgulho que tais homens<br />
<strong>de</strong>ixam transparecer em seus <strong>sem</strong>blantes e posturas, por estarem a serviço da Igreja.<br />
O livro <strong>de</strong> Tombo da paróquia faz referência à citada legião, com os seguintes dizeres:
No dia 12 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1931, na aula máxima da igreja matriz <strong>de</strong>sta<br />
paróchia, perante uma gran<strong>de</strong> multidão <strong>de</strong> operários e todas as<br />
principaes famílias da Villa, convocada por mim, fun<strong>de</strong>i sob a proteção<br />
do glorioso S. José, cujo altar lhe entreguei, a legião operária cattólica,<br />
havendo logo a inscripção <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> legionários. ( Livro <strong>de</strong> tombo<br />
da paróquia <strong>de</strong> Santana – Outubro <strong>de</strong> 1938)<br />
O fundador <strong>de</strong>ste movimento foi Monsenhor Aguiar que tomou posse <strong>de</strong>finitiva na<br />
paróquia <strong>de</strong> Santana no começo da década <strong>de</strong> 1930 e ficou até sua morte em 1957, ele<br />
foi o vigário contemporâneo da vida <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong> em <strong>Tianguá</strong>, sendo o<br />
responsável por aplicar os preceitos da romanização na cida<strong>de</strong>, encabeçando os<br />
movimentos <strong>de</strong> ampliação da catedral, e criação <strong>de</strong> irmanda<strong>de</strong>s, como a legião operária<br />
católica que já foi citada, além da grandiosa edificação da igreja matriz já na década <strong>de</strong><br />
1940, também foi construído o convento da congregação dos <strong>Francisca</strong>nos na cida<strong>de</strong><br />
neste mesmo período.<br />
Vale ressaltarmos que uma das ações da igreja no período pós-romanização foi<br />
aumentar as edificações <strong>de</strong> cunho religioso nas cida<strong>de</strong>s, principalmente conventos,<br />
or<strong>de</strong>ns missionárias, legiões operárias, todas essas foram medidas adotadas para<br />
centralizar em locais previamente estabelecidos pela igreja, os lugares do sagrado, e os<br />
locais on<strong>de</strong> o culto era permitido.<br />
Dessa forma, os cultos populares, os altares domésticos seriam dispensáveis, pois agora<br />
o povo teria uma catedral para participarem das missas, e prestarem culto a Deus e aos<br />
santos que a igreja consi<strong>de</strong>ra dignos <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção, <strong>de</strong> uma forma mo<strong>de</strong>rada, <strong>sem</strong> os<br />
exageros dos cultos populares, teriam agora também as congregações e associações para<br />
aglutinar os fiéis em um lugar on<strong>de</strong> a igreja <strong>de</strong>tinha controle total, porém, não foi bem<br />
assim que aconteceu, a religiosida<strong>de</strong> popular mostra sua resistência a tais mudanças e<br />
continua mesmo contra os preceitos da igreja oficial, é o que discutiremos<br />
posteriormente.<br />
3. A produção da memória: Imagens e lembranças <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong>.<br />
Segundo Augras: “De hagios, “santo”, “consagrado” (mas, eventualmente, “maldito”,<br />
pois todo po<strong>de</strong>r é ambivalente), e grápho, “escrevo”, a hagiografia tem por objeto o<br />
relato da vida dos santos.” ( AUGRAS, 2002:280).<br />
Para a igreja romana é muito importante essa hagiografia, até mesmo é obrigatório para<br />
a canonização <strong>de</strong> um santo saber toda a sua história, inclusive com relatos <strong>de</strong> pessoas<br />
que comprovem a santida<strong>de</strong>, e comprovando cientificamente os milagres relatados,<br />
como o padre Lusmar vigário da Paróquia <strong>de</strong> Santana, cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong>, disse em
entrevista: “... mas antes <strong>de</strong> a igreja oficializar cultos populares, ela precisa primeiro do<br />
reconhecimento público...” Como já foi citado acima, esse reconhecimento <strong>de</strong> que fala o<br />
religioso é o popular mesmo, primeiro é necessário haver uma santificação popular,<br />
on<strong>de</strong> as pessoas reconhecem que aquela pessoa é <strong>santa</strong>, e segundo o padre a igreja ao<br />
tomar consciência <strong>de</strong> um culto popular iria ao encontro da comunida<strong>de</strong> para investigar<br />
tais fatos, e levá-los à Roma, <strong>de</strong>pois retornando com a resposta para a população se<br />
aquela pessoa é “digna ou não dos altares. ”<br />
Na análise <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, teremos uma discussão sobre as três raízes fundamentais do<br />
catolicismo popular são elas:<br />
A primeira seria advinda <strong>de</strong> sua herança <strong>de</strong> crenças que chamaremos<br />
arcaicas, pois remontam aos sistemas <strong>de</strong> crenças dos indígenas e dos<br />
africanos num sincretismo com o catolicismo europeu; A segunda, é <strong>de</strong>finida<br />
como religiosida<strong>de</strong> ontocrática baseia-se no recurso a intermediários mais<br />
próximos e sensíveis, para estabelecer um contato com o sobrenatural ou o<br />
divino, po<strong>de</strong>ndo ser personificados ou simbólicos. Os primeiros sendo os<br />
santos e as almas e os segundos, imagens, fitas, medalhas, bentinhos,<br />
rosários, patuás, etc.; A terceira característica, seria resultante da ausência<br />
ou presença irregular do padre, <strong>de</strong> modo que as práticas constantes da<br />
religiosida<strong>de</strong> popular prescindiam do mesmo. Este sendo substituído pelos<br />
leigos, que se especializaram nas rezas, seja nas ladainhas e terços rezados<br />
diariamente, seja nas benzeções <strong>de</strong> imagens e medalhas, como também <strong>de</strong><br />
pessoas e medalhas para livra-los <strong>de</strong> doenças ou protege-los <strong>de</strong> males como<br />
o mau-olhado. ( ANDRADE, 2002: 154)<br />
Observamos, portanto, quantas foram as influências que o povo teve para praticar o<br />
catolicismo popular, várias são as vertentes que po<strong>de</strong>mos analisar, nós preferimos<br />
<strong>de</strong>stacar aqui a questão do apego aos santos, pois estes já foram humanos como nós<br />
somos, sentiram na pele todos os sofrimentos que nós sentimos, e se analisarmos a<br />
história <strong>de</strong> todos os santos, como foi ressaltado no segundo capítulo <strong>de</strong>ste trabalho, tem<br />
sofrimento envolvido, e muita resiliência em aceitar tal sofrimento, como ressalta<br />
Augras:<br />
...Por isso, necessitamos <strong>de</strong>les como mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> comportamento.<br />
Viveram exemplarmente: na <strong>de</strong>finição do santo, está incluída a<br />
dimensão do exemplo. Daí a importância do relato <strong>de</strong> sua vida. É<br />
preciso conhecer todos os <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> sua trajetória para po<strong>de</strong>r nela se<br />
inspirar. ( AUGRAS, 2002:280)<br />
É a questão do exemplo que o santo nos dá, que mais marca o povo sofrido, nós somos<br />
seres humanos fracos, suscetíveis ao pecado diariamente, temos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos<br />
apegarmos às forças do além para conseguirmos superar as dificulda<strong>de</strong>s, e na<br />
religiosida<strong>de</strong> popular a instância superior que está mais próxima dos homens seriam os
santos, por que já estiveram na condição <strong>de</strong> seres humanos também, e conseguiram<br />
passar por todos os suplícios com muita resignação, confiando na divina providência.<br />
<strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong> foi uma mulher muito pobre, segundo relatos coletados <strong>de</strong> alguns<br />
<strong>de</strong>poentes que conviveram com ela, ou que “ouviram falar”, po<strong>de</strong>mos tecer alguns<br />
apontamentos sobre sua História, temos também por subsídio o livro <strong>de</strong> um autor da<br />
terra, Luiz Gonzaga Bezerra, tianguaense por naturalida<strong>de</strong>, escritor, poeta, professor e<br />
amante da literatura e cultura popular. Embasada nessas fontes posso fazer um breve<br />
relato sobre sua vida e morte para que possamos analisar o motivo do <strong>de</strong>vocionário<br />
popular.<br />
Nascida no ano <strong>de</strong> 1910 na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ubajara, distante 15 km <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong>, sua mãe<br />
legítima chamava-se Ana Quirina e o pai ignorado, foi adotada aos 8 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> pelo<br />
casal Joaquim Carlos <strong>de</strong> Vasconcelos e Maria Rodrigues <strong>de</strong> Vasconcelos, que já eram<br />
seus padrinhos <strong>de</strong> batismo, e agora seus pais adotivos, por falta <strong>de</strong> condições financeiras<br />
da mãe legítima.<br />
Segundo Bezerra: “ A menina <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong> conhecida por ‘Chiquinha’, passou sua<br />
infância, adolescência e a fase adulta morando na casa do Sr. Adauto Damasceno,<br />
gran<strong>de</strong> empresário na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong> à época, tendo uma casa no sítio olho D’água<br />
na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong>.” ( BEZERRA, 2007: 57), lá os pais adotivos <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong><br />
residiam e trabalhavam como meeiros, e <strong>Francisca</strong> ajudava nos serviços da casa<br />
eventualmente, quando havia necessida<strong>de</strong>.<br />
Não era a empregada doméstica da casa, mas ajudava por prazer, por gostar realmente<br />
dos ofícios do lar, no <strong>de</strong>poimento da senhora Estrela, irmã da Senhora Julity, resi<strong>de</strong>nte<br />
também na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong>, que era esposa do Sr. Raimundo Damasceno, irmão <strong>de</strong><br />
Adauto Damasceno, disse em entrevista gravada:<br />
Minha irmã Julity viu a garotinha bem <strong>de</strong> perto, quando chegou na<br />
casa do Adauto, aos 08 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, foi criada com muita<br />
simplicida<strong>de</strong> pelos seus pais adotivos, mas com muito amor, todos na<br />
redon<strong>de</strong>za queriam ver a menina que se chamava <strong>Francisca</strong>,<br />
Chiquinha! Era morena, seus cabelos bem pretos, volumosos, <strong>sem</strong>pre<br />
feito um cocó segurado pelo um pentinho <strong>de</strong> chifre, Só tinha uma coisa<br />
estranha na pequena garota, que ia crescendo e se modificando, mas<br />
<strong>sem</strong>pre trazia uns paninhos amarrando as pontas dos <strong>de</strong>dos dos pés.<br />
Nunca ela se interessou por nenhum homem, vivia para as coisas do<br />
lar e para as orações, tinha até vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir para o convento, mas as<br />
condições da sua família não permitiam. ( Entrevista gravada em<br />
15/05/2009 às 14:00 hs)<br />
Uma menina pobre, mas cresceu em meio a muito carinho, sendo chamada <strong>de</strong>
Chiquinha, Dona Julity que conviveu com ela <strong>de</strong> perto, através dos relatos <strong>de</strong> sua irmã,<br />
nos confirma a sua vida humil<strong>de</strong> e simples, e chama atenção para um fato interessante,<br />
os “paninhos”, que a menina Chiquinha, <strong>sem</strong>pre trazia amarrados às pontas dos seus<br />
<strong>de</strong>dos, talvez já indícios da doença, pois sabe-se que a doença primeiro atinge as pontas<br />
dos <strong>de</strong>dos dos pés e das mãos e <strong>de</strong>pois vai se espalhando pelo corpo, po<strong>de</strong> estar aí,<br />
portanto, o inicio da doença que po<strong>de</strong> ter lhe acompanhado a vida toda.<br />
Bezerra na sua obra nos relata um <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Dona Julity on<strong>de</strong> ela diz como foi no<br />
dia do famoso almoço:<br />
Dona Julity conta que lá pelas tantas com o almoço bem em andamento,<br />
o médico foi observando a Chiquinha da cabeça aos pés, pediu uma<br />
agulha ou alfinete da casa e aproximou-se <strong>de</strong>la, consultando-a, sobre<br />
toques na pele, extremida<strong>de</strong>s do corpo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ste exame que fez foi<br />
dizendo: “Esta criatura é portadora <strong>de</strong> Hanseníase (Lepra)”. Houve<br />
tumulto entre os presentes apontado pelo notório estado <strong>de</strong> pânico<br />
aterrador. ( BEZERRA, 2007: 92)<br />
A partir <strong>de</strong> então a vida <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong> mudaria completamente, poucos dias <strong>de</strong>pois<br />
do dito almoço, <strong>Francisca</strong> vai ser isolada do convívio social, tendo em vista que naquela<br />
época era muito caro manter uma pessoa em um leprosário, e o mais próximo ficava em<br />
Fortaleza, a solução mais viável seria mantê-la ali mesmo por perto, <strong>de</strong> maneira que não<br />
corresse o risco <strong>de</strong> transmitir sua doença a ninguém.<br />
A Senhora Dalgiza Araújo <strong>de</strong> Sá, aposentada, 72 anos, nos relata também que:<br />
... no dia do almoço dizem que foi uma confusão muito gran<strong>de</strong>, porque<br />
um médico lá, <strong>de</strong>scobriu que a Chiquinha tinha uma doença que podia<br />
passar ‘pras’ pessoa, foi poucos dias <strong>de</strong>pois e a doente <strong>de</strong>sapareceu<br />
da casa do Seu Adauto, só <strong>de</strong>pois é que agente ouviu o comentário que<br />
ela tava lá cabana na ‘beira’ da estrada. ( Entrevista gravada em<br />
10/03/2009 às 15:00 hs)<br />
E assim aconteceu, sua sentença foi proferida rapidamente, sendo levada para os fundos<br />
da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma senhora chamada Dona Salú, vizinha as terras do Sr Adauto<br />
Damasceno, assim a doente ficaria próxima <strong>de</strong> sua família, porém por interpelação da<br />
filha da senhora Salú que residia nesta época em Fortaleza, a doente teve que ser<br />
afastada <strong>de</strong>sta proprieda<strong>de</strong>, sendo que a filha da Dona Salú temia pela saú<strong>de</strong> da mãe,<br />
então a doente foi banida.<br />
Receberia uma segunda morada agora nas terras do Sr. Silvério Fi<strong>de</strong>les, ali ela viveria<br />
até o último dia <strong>de</strong> vida, teria mais uma cabana, tendo em vista que a segunda se<br />
<strong>de</strong>sgastou por conta da ação das intempéries da natureza, esta terceira cabaninha teria
sido feita por uma senhora <strong>de</strong> Frecheirinha que disse ter alcançado uma graça com<br />
<strong>Francisca</strong> ainda em vida, também já citada neste trabalho na entrevista do Sr. Silvério ao<br />
Jornal.<br />
A vida <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> durante os cinco anos <strong>de</strong> abandono na mata, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ano <strong>de</strong> 1948<br />
até o dia 21 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1953, tendo neste ano <strong>de</strong> 2009 completado 56 anos <strong>de</strong> sua<br />
morte, foi muito difícil como já vimos nos relatos aqui <strong>de</strong>stacados, o medo e a solidão<br />
foram seus únicos companheiros durante sua estada nas cabanas em que vivera em meio<br />
à mata do Sitio Olho D’água.<br />
Segundo um <strong>de</strong>poimento constante no livro <strong>de</strong> Bezerra:<br />
Segundo este <strong>de</strong>poimento da Sra. Maria do Socorro dos Santos, 75 anos e<br />
integrante da família <strong>de</strong> um grupo musical, ela filha <strong>de</strong> seu Neco Bastião,<br />
e acompanhando-os em que vinham todos animados comentando a festa,<br />
logo em seguida, se prontificaram para executarem a música pedida. E<br />
no momento em que iam pela meta<strong>de</strong> da interpretação <strong>de</strong>sses acor<strong>de</strong>s<br />
melodiosos, <strong>Francisca</strong> que estava sentada diante da porta, começou a<br />
chorar copiosamente! Nesse instante o grupo musical foi tomado pelo<br />
impacto <strong>de</strong> uma forte emoção, em que todos parando o instrumental<br />
choraram ao mesmo tempo. ( BEZERRA, 2007: 105)<br />
Po<strong>de</strong>-se perceber com esse <strong>de</strong>poimento que <strong>Francisca</strong> guardava uma imensa tristeza em<br />
seu coração, mas segurava com gran<strong>de</strong> resistência, porém, em um raro momento que<br />
<strong>de</strong>monstrou fraqueza e aflição, chora copiosamente frente a um grupo que toca uma<br />
valsa que ela pedira ao ouvir passar aquele barulho <strong>de</strong> pessoas do lado <strong>de</strong> fora <strong>de</strong> sua<br />
barraca, assim como também pedia a outros passantes um feixe <strong>de</strong> lenha, ou qualquer<br />
outra coisa <strong>de</strong> que estivesse precisando.<br />
Po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sta citação, portanto, que <strong>Francisca</strong> mesmo sendo a mulher<br />
forte que fora, sofrendo com resiliência os pavores da solidão e o medo das madrugadas<br />
sombrias da mata do chapadão Ibiapabano, também teve seus momentos <strong>de</strong> fraqueza<br />
que são inerentes ao ser humano.<br />
Passou os últimos anos <strong>de</strong> sua vida lá abandonada, recebendo o auxílio mínimo <strong>de</strong><br />
algumas almas caridosas, que se compa<strong>de</strong>ciam da sua situação, a ajuda vinha <strong>de</strong> forma<br />
material, ou espiritual, com orações ou até mesmo os mais corajosos que se arriscavam<br />
a conversar com a mesma a distância quando passavam pela estrada.<br />
O ano <strong>de</strong> 1953 marcou o fim da passagem <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> pela sua vida terrena, foi<br />
enterrada ali mesmo no local <strong>de</strong> sua última cabaninha, algumas pessoas da comunida<strong>de</strong><br />
mesmo, como o próprio Sr. Silvério, dono da proprieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> ela vivia, uma senhora<br />
chamada Antonia Xavier, e outros resi<strong>de</strong>ntes no sítio Dona Alba, Seu Bené e outras
pessoas citadas na obra <strong>de</strong> Bezerra, se dispuseram a inumar o corpo já em estado <strong>de</strong><br />
putrefação, e enterrá-la em uma cova simples ao lado da cabaninha.<br />
A senhora Dalgiza ainda em <strong>de</strong>poimento nos relata que:<br />
... era ela mesma quem fazia sua comida, tem uma história que o povo<br />
conta que num dia <strong>de</strong> festa num sitio próximo on<strong>de</strong> ela estava, um<br />
homem escapou <strong>de</strong> uma briga e foi pedir refúgio atrás da barraquinha<br />
<strong>de</strong> <strong>Francisca</strong>, passou uma noite toda lá, <strong>Francisca</strong> foi solidária com<br />
ele e <strong>de</strong>u até comida para ele, era um peixe que foram <strong>de</strong>ixar lá para<br />
ela comer, mas em <strong>de</strong>corrência da doença <strong>de</strong>la, inflamava muito suas<br />
feridas, eu passava lá com meu irmão, e ela pedia uns “pauzinho <strong>de</strong><br />
lenha”, aí eu ia “caçar” lenha mais o Vicente, ela era conformada,<br />
nunca agente nunca ouvia ela se reclamar <strong>de</strong> nada. ( Entrevista<br />
gravada em 10/03/2009 às 15:00 hs)<br />
A <strong>de</strong>poente diz que viu por algumas vezes uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da cabana, “ pra mim que eu<br />
“tô” vendo a redinha lá <strong>de</strong>ntro”, e que as pessoas da comunida<strong>de</strong> rezavam<br />
constantemente por ela, tiravam o terço pela saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>la, nessa época a <strong>de</strong>poente tinha 16<br />
anos, e lembra que lá tinha uma mata muito fechada, só tinha uma estradinha que as<br />
pessoas passavam <strong>sem</strong>pre perto da sua cabana, mas era muito raro ver o rosto <strong>de</strong>la.<br />
Po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>stes <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> pessoas que tiveram esse contato com<br />
ela, que a sua vida foi muito sofrida, principalmente <strong>de</strong>pois do seu isolamento na mata<br />
do sitio Olho D’água, o seu medo e a sua solidão lhe consumiam dia após dia, talvez<br />
fosse até um alento para sua alma quando ouvia vozes passar pelo caminho, mas não<br />
tinha coragem <strong>de</strong> sair e falar com as pessoas <strong>de</strong> perto por medo <strong>de</strong> contagiá-las com sua<br />
doença, enfim, observamos em todos os <strong>de</strong>poimentos a insistência da doente, em sofrer<br />
sozinha suas amarguras.<br />
E é assim, basicamente através <strong>de</strong> registros orais, que está sendo produzida a história e<br />
memória <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong> a Santa dos aflitos, necessitados, doentes, da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Tianguá</strong>, os <strong>de</strong>votos são recorrentes em seus relatos quando dizem que foi o sofrimento<br />
que santificou <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong>, e que o fato <strong>de</strong> ela ter sido ‘gente como a gente’<br />
aproxima os fieis da <strong>santa</strong> popular, se ela que foi ser humano e sentiu na pele todas as<br />
augruras da vida e da morte.<br />
Agora passaremos para uma discussão sobre a relação entre os <strong>de</strong>votos e sua <strong>santa</strong>, todos os<br />
embates que estão se gerando em torno da figura <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong>, quais os fatores que os <strong>de</strong>votos<br />
atribuem para a santificação da mesma e a disputa entre fiéis e igreja em torno dos restos<br />
mortais <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong>.<br />
O senhor Vicente Araújo nos relata em <strong>de</strong>poimento que: “Depois que ela foi enterrada,
o povo conta que via á noite ainda a cabaninha <strong>de</strong>la lá no mesmo lugar , perto do<br />
túmulo,mesmo ela tendo sido queimada no mesmo dia da morte <strong>de</strong>la.” ( Entrevista<br />
realizada em 15/03/2009 às 16:00hs), são histórias do maravilhoso mundo da<br />
religiosida<strong>de</strong> popular que as pessoas contam para dar um toque <strong>de</strong> encanto à história da<br />
<strong>santa</strong> popular da cida<strong>de</strong>.<br />
Uma senhora chamada Justiniana Olivindo, 58 anos, <strong>de</strong>clarou em <strong>de</strong>poimento à Bezerra<br />
que:<br />
Em 1980 vinte e sete anos <strong>de</strong>pois da morte da <strong>Francisca</strong>, eu sentia uma<br />
dor muito gran<strong>de</strong> na cabeça e já tinha ido em todo médico e nenhum<br />
tinha resolvido meu problema, aí foi que eu lembrei da <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong>,<br />
ainda não tinha feito nenhuma promessa com santo e esta foi: se ficasse<br />
boa da dor, ia lá rezar todo dia durante um mês. Depois <strong>de</strong> alguns meses<br />
fiquei boa e nunca mais parei <strong>de</strong> visitar o local on<strong>de</strong> ela foi enterrada. (<br />
BEZERRA, 2007: 116)<br />
Não só o caso <strong>de</strong> Dona Justiniana, mas muitos outros são constatados todos os dias,<br />
po<strong>de</strong>mos ratificar essa afirmação com a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ex-votos que encontramos na sua<br />
capelinha, todas são graças alcançadas, e as muitas fotos que também tem lá <strong>de</strong>ntro da<br />
capelinha, com imagens <strong>de</strong> pessoas operadas, com crianças pequenas, com cortes <strong>de</strong><br />
cirurgias, também vem nos comprovar a resposta do povo que foi agraciado por<br />
<strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong>.<br />
Além dos ca<strong>de</strong>rnos com muitos pedidos, as fotos e ex-votos comprovando as graças<br />
recebidas, outro fato nos chama muita atenção, as muitas imagens <strong>de</strong> santos que há<br />
<strong>de</strong>ntro da capelinha <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong>, <strong>de</strong> vários tipos e tamanhos, terços, santinhos, e muitos<br />
outros elementos simbólicos do catolicismo oficial. Observe a imagem a seguir:<br />
(Foto <strong>de</strong> arquivo pessoal da autora tirada em: 31/05/2009)
Na imagem observamos muitas imagens <strong>de</strong> santos em um altar improvisado, bem<br />
próximo a uma cruz no chão on<strong>de</strong> estavam enterrados os restos mortais <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong>, o<br />
que mais nos chama atenção é que mesmo sendo uma <strong>de</strong>voção popular, observamos<br />
esse sincretismo entre oficial e popular, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma capelinha <strong>de</strong>dicada à uma <strong>santa</strong><br />
não canonizada, muitas imagens <strong>de</strong> santos oficiais, e a cruz, o maior símbolo do<br />
catolicismo oficial, para <strong>de</strong>marcar o lugar exato on<strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> foi sepultada.<br />
E também muitas fitinhas <strong>de</strong> São Francisco envoltas nas imagens, terços, elementos<br />
esses que são simbologias da religião oficial, eis os embates que são gerados em torno<br />
da <strong>santa</strong>, essa mesclagem da religiosida<strong>de</strong> oficial que já está presente na vida <strong>de</strong>ssas<br />
pessoas assim como também a popular, ao terem <strong>de</strong>voção a uma <strong>santa</strong> popular. Daí<br />
po<strong>de</strong>rmos também ressaltar neste trabalho, o embate que se gerou entre a igreja e os<br />
<strong>de</strong>votos, a partir do momento que os restos mortais <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> no dia 01 <strong>de</strong> Novembro<br />
<strong>de</strong> 1999, foram transladados, da capelinha que marcava o lugar on<strong>de</strong> ela viveu os<br />
últimos anos <strong>de</strong> sua vida e faleceu, para o novo cemitério que recebeu a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong><br />
Cemitério <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong>, esse fato gerou uma gran<strong>de</strong> polêmica na cida<strong>de</strong>, pois os<br />
<strong>de</strong>votos sentiram-se lesados, com a perda do corpo <strong>de</strong> sua <strong>santa</strong>.<br />
O Senhor José Silvério em entrevista nos relata que: “... eu sou contra o que a igreja fez,<br />
o corpo da ‘<strong>santa</strong>’ tinha era que ficar lá mesmo, porque foi lá que ela morreu, é lá que<br />
ela tem que ficar...” (Entrevista realizada em 15/05/2009 às 17:00 hs), po<strong>de</strong>mos<br />
compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>poimento a insatisfação do <strong>de</strong>poente, em não concordar com o ato<br />
da igreja em realizar o traslado.<br />
Na entrevista feita ao vigário da cida<strong>de</strong>, foi indagado ainda sobre o translado dos restos<br />
mortais <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> para o novo cemitério, on<strong>de</strong> ele respon<strong>de</strong>u:<br />
A nossa cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um tempo para cá tornou-se muito insegura, a<br />
violência está crescendo bastante e muito rapidamente, e se nós aqui no<br />
centro da cida<strong>de</strong> nos sentimos inseguros, imagine lá no sítio, longe do<br />
meio urbano, em meio a uma mata fechada, é bem mais perigoso que<br />
essas pessoas fiquem se <strong>de</strong>slocando até lá, esse seria um primeiro motivo<br />
do translado dos restos mortais <strong>de</strong> lá para o cemitério novo, e um outro<br />
motivo seria a aproximação dos restos mortais <strong>de</strong>la com a população da<br />
cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> algumas pessoas idosas não tinham condições <strong>de</strong> fazer a<br />
caminhada <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma hora até o sitio que é muito exaustante. (<br />
Entrevista realizada em 04/06/2009 às 16:20)<br />
Observemos que o padre enquanto representante do catolicismo oficial da cida<strong>de</strong>, diz<br />
que os motivos principais do traslado são a insegurança do local, mesmo até hoje não<br />
tendo sido constatado nenhum caso <strong>de</strong> violência na região on<strong>de</strong> se encontra a capelinha,
só pelo fato <strong>de</strong> ser isolado, e assim atrair usuários <strong>de</strong> drogas, po<strong>de</strong>ndo vir a acontecer<br />
uma fatalida<strong>de</strong> com os fiéis que vão até o local pagar suas promessas e ainda ressaltou<br />
também a questão da distância que separa a capelinha no sitio ate a se<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>, que<br />
<strong>de</strong>sprestigia os idosos da cida<strong>de</strong> que não po<strong>de</strong>m se locomover até o sitio a pé.<br />
Po<strong>de</strong>mos pensar que essa foi a forma que a Igreja encontrou <strong>de</strong> trazer os <strong>de</strong>votos <strong>de</strong><br />
<strong>Francisca</strong> para mais perto do seu olhar, sendo uma aproximação com intenção <strong>de</strong> vigiar<br />
os atos dos fiéis que vão visitar o túmulo da sua ‘<strong>santa</strong>’, observamos assim, um embate<br />
entre a igreja e os <strong>de</strong>votos, em torno do corpo <strong>de</strong> <strong>Francisca</strong>, a igreja acredita que<br />
<strong>de</strong>tendo o po<strong>de</strong>r sobre o corpo da mesma, vai <strong>de</strong>ter controle sobre a <strong>de</strong>voção à <strong>santa</strong>.<br />
Seria inviável cogitarmos tal possibilida<strong>de</strong>, pois as pessoas continuam fazendo romarias<br />
para o local on<strong>de</strong> <strong>Francisca</strong> faleceu e foi enterrada, pois como o Senhor José Silvério<br />
ressaltou, “foi lá que ela morreu”, lá que aconteceu sua história, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
estiverem seus restos mortais, já está imbuído na religiosida<strong>de</strong> das pessoas que elas tem<br />
que pagar a promessa, indo a pé até a capelinha lá no sítio Olho D’água.<br />
Quanto ao discurso do padre em ressaltar a questão da distância, do acesso à capelinha<br />
<strong>de</strong> <strong>Francisca</strong>, como empecilho do contato dos <strong>de</strong>votos com a mesma, po<strong>de</strong>mos<br />
consi<strong>de</strong>rar como apenas mais uma maneira <strong>de</strong> tentar justificar o ato do translado, pois<br />
como ressalta Ramos, “Os missionários <strong>de</strong>ixaram no catolicismo sertanejo um claro<br />
sentido para o sofrimento (...) Nessa perspectiva, o trabalho, a doença ou a fome<br />
assumem o sentido <strong>de</strong> sofrimento para o corpo e não para o espírito...” ( RAMOS,<br />
1998:32), na religiosida<strong>de</strong> dos sertões ficou muito imbuído no sentimento das pessoas<br />
que é necessário o sofrimento para expurgar os pecados.<br />
Para o penitente, a promessa a ser paga só tem valida<strong>de</strong> se tiver algum sacrifício, como<br />
as romarias, aon<strong>de</strong> as pessoas vão a pé até o santuário do seu santo, e alguns ainda<br />
achando pouco o sacrifício, levam pedras na cabeça ou andam ajoelhados os últimos<br />
metros antes <strong>de</strong> findar o percurso.<br />
Cai no vão, portanto o levantamento do padre, pois o que vale para o perdão dos<br />
pecados não é a comodida<strong>de</strong> <strong>de</strong> visitar um túmulo <strong>de</strong>ntro da cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> você po<strong>de</strong> ir<br />
até <strong>de</strong> carro, mas sim a penitência <strong>de</strong> ir a pé, rezando no caminho, agra<strong>de</strong>cendo a <strong>santa</strong> a<br />
graça alcançada, e <strong>de</strong>pois voltar o mesmo percurso, bem mais aliviado, por ter pagado a<br />
promessa.<br />
Acredito, portanto, que outras soluções po<strong>de</strong>riam ser tomadas, o translado não po<strong>de</strong> ser<br />
justificado por nenhum motivo, seja a violência ou a distância do local, a intenção que<br />
nos <strong>de</strong>ixa transparecer essa atitu<strong>de</strong> da Igreja, é <strong>de</strong> receio, <strong>de</strong> que a culto à <strong>Francisca</strong>
saísse totalmente do controle, para que isso não acontecesse os restos mortais <strong>de</strong>la são<br />
trazidos para <strong>de</strong>ntro dos muros da igreja oficial, bem <strong>de</strong>baixo das vistas da mesma.<br />
Finalizo essa análise dizendo que mesmo com a Igreja tentando suprimir os atos da<br />
religiosida<strong>de</strong> popular, muito difícil será a missão <strong>de</strong> conseguir extingui-la, pois ela já<br />
está enraizada nos costumes do povo da cida<strong>de</strong>, em suas vidas, <strong>de</strong>veria sim ter uma<br />
aproximação maior da igreja com os fiéis, pois as mesmas pessoas que têm <strong>de</strong>voção aos<br />
santos populares também são católicos que vão à missa, e praticam os sacramentos, pelo<br />
menos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s, se houvesse uma união <strong>de</strong>ssas duas realida<strong>de</strong>s, na<br />
criação <strong>de</strong> um santuário à <strong>Francisca</strong>, por exemplo, e a iniciativa <strong>de</strong> canonização oficial<br />
da <strong>santa</strong> popular <strong>de</strong> <strong>Tianguá</strong> - <strong>Francisca</strong> <strong>Carla</strong> “ A <strong>santa</strong> <strong>sem</strong> corpo” - , acreditamos que<br />
todos sairiam mais satisfeitos <strong>de</strong> toda essa história que envolve muito mais do que uma<br />
religião oficial e uma popular, envolve sentimento.<br />
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