carlos goldenberg goldweb@sel.eesc.sc.usp.br
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p. 376 , 6 ª edição <strong>br</strong>asileira , Editora Nova Fronteira , 1978<<strong>br</strong> />
. . .<<strong>br</strong> />
Magro e louro , a fisionomia bondosa , e ar modesto , ele apresentou-se um dia com sua maleta<<strong>br</strong> />
diante das portas do reino da morte . Chamava-se Herbert Floss e era especialista em cremação<<strong>br</strong> />
de cadáveres . Autodidata , aperfeiçoara sua arte nos pequenos campos de interesse local para<<strong>br</strong> />
onde os azares do destino o haviam conduzido sucessivamente . Nunca estivera em Treblinka<<strong>br</strong> />
antes , mas conhecia o campo de reputação . Por essa época , Birkenau , o campo de extermínio<<strong>br</strong> />
de Au<strong>sc</strong>hwitz , ainda não estabelecera sua supremacia , e Treblinka continuava a ser o grande<<strong>br</strong> />
pólo de atração espiritual dos “técnicos” . Herbert Floss tinha con<strong>sc</strong>iência do que essa designação<<strong>br</strong> />
representava para ele : era uma promoção , uma verdadeira consagração . Não lhe haviam falado<<strong>br</strong> />
em muitas centenas de milhares de cadáveres ?<<strong>br</strong> />
Apresentou-se imediatamente ao Comandante administrativo do campo que , após desejar-lhe boa<<strong>br</strong> />
sorte , remeteu-o para “Lalka” . Enquanto conduzia o visitante ao aposento que lhe fora destinado ,<<strong>br</strong> />
este começou a explicar-lhe a situação . O “papa” dos “técnicos” ouviu tudo com atenção e ao final<<strong>br</strong> />
pediu para ser conduzido imediatamente ao local .<<strong>br</strong> />
Ali chegando , pediu explicação so<strong>br</strong>e a localização das fossas e seu conteúdo aproximado .<<strong>br</strong> />
Acima de tudo , parecia dedicar especial importância à idade dos cadáveres . A cada informação<<strong>br</strong> />
que recebia , respondia : “Tadellos” ( perfeito ) , com um pequeno sorriso de satisfação .<<strong>br</strong> />
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À tardinha daquele mesmo dia apresentou seu plano .<<strong>br</strong> />
Naquela noite , um grupo de prisioneiros do campo no. 1 , fortemente e<strong>sc</strong>oltados , foi encarregado<<strong>br</strong> />
de arrancar os trilhos de uma via férrea próxima e , na manhã seguinte , os pedreiros receberam<<strong>br</strong> />
ordem para construir , não muito afastado das fossas , quatro pilastras de cimento de setenta e<<strong>br</strong> />
cinco centímetros de altura , dispostas num retângulo de vinte metros de comprimento por um<<strong>br</strong> />
metro de largura . Gritava muito mas parecia incapaz de espancar um prisioneiro , tão desajeitado<<strong>br</strong> />
era . Correndo para todos os lados , gritando , explicando , gesticulando , tropeçou inúmeras<<strong>br</strong> />
vezes. Os prisioneiros não ousavam rir , mas gratificaram-no com dois apelidos : o “artista” e o<<strong>br</strong> />
“canhoto das duas mãos” . “Artista” devido ao seu ar inspirado e “canhoto das duas mãos” por<<strong>br</strong> />
causa da sua falta de jeito .<<strong>br</strong> />
Logo que o cimento das pilastras secou , Herbert Floss deu ordem para pousar so<strong>br</strong>e elas os<<strong>br</strong> />
trilhos , em altas vozes e insistentes recomendações de cuidado .<<strong>br</strong> />
A primeira fornalha foi preparada no dia imediato . Herbert Floss confiou então o seu segredo : a<<strong>br</strong> />
montagem da fornalha-padrão . Consoante explicou , os cadáveres não queimavam todos da<<strong>br</strong> />
mesma maneira : havia os bons cadáveres e os maus , os cadáveres refratários e os inflamáveis .<<strong>br</strong> />
O segredo consistia em servir-se dos bons para consumir os maus . De acordo com suas<<strong>br</strong> />
pesquisas – e , a julgar pelos resultados , estas foram bastante intensas – os cadáveres antigos<<strong>br</strong> />
queimavam melhor que os novos , os gordos melhor que os magros , as mulheres melhor que os<<strong>br</strong> />
homens e as crianças menos bem que as mulheres , embora melhor que os homens . Deduzia-se<<strong>br</strong> />
daí que o cadáver ideal era um cadáver antigo de mulher gorda . Herbert Floss selecionou todos os<<strong>br</strong> />
desse tipo , procedendo em seguida à triagem dos homens e das crianças . Depois de ter<<strong>br</strong> />
desenterrado e separado parte de mil corpos , passou-se a carregar a fornalha , o bom<<strong>br</strong> />
combustível por baixo , o mau em cima . Floss recusou os galões de gasolina e ordenou que lhe<<strong>br</strong> />
trouxessem lenha . Sua demonstração teria de ser perfeita . A lenha foi disposta sob a grelha da<<strong>br</strong> />
fornalha em pequenos feixes que lem<strong>br</strong>avam fogueiras de acampamento . Soara a hora da<<strong>br</strong> />
verdade . Uma caixa de fósforos lhe foi apresentada com toda a solenidade ; ele de<strong>br</strong>uçou-se ,<<strong>br</strong> />
acendeu a primeira fogueira , depois as outras sucessivamente , e enquanto a madeira começava<<strong>br</strong> />
a arder , encaminhou-se , com seu passo esquisito , ao encontro do grupo de oficiais que esperava<<strong>br</strong> />
a alguma distância .<<strong>br</strong> />
As chamas , cada vez mais altas , começavam a lamber os cadáveres , relutantemente a princípio ,<<strong>br</strong> />
e depois com um impulso contínuo , como a chama de uma lâmpada de soldar . Todos prendiam a<<strong>br</strong> />
respiração , os alemães ansiosos e impacientes , os prisioneiros transtornados , assustados ,<<strong>br</strong> />
apavorados . Herbert Floss era o único a aparentar tranquilidade ; com ar indiferente ,<<strong>br</strong> />
perfeitamente seguro de si , murmurava ininterruptamente : “Tadellos , tadellos , ... ” A pira<<strong>br</strong> />
inflamou-se de uma só vez . Súbito , as chamas atiraram-se para o alto , soltando uma nuvem de<<strong>br</strong> />
fumaça ; um ronco surdo elevou-se , as fisionomias dos mortos contorceram-se e suas carnes<<strong>br</strong> />
estouraram . O espetáculo tinha qualquer coisa de infernal e os SS eles próprios quedaram-se por<<strong>br</strong> />
momentos impassíveis , contemplando o prodígio . Herbert Floss exultava . Aquele era o maior dia<<strong>br</strong> />
de sua vida .<<strong>br</strong> />
Quando se recuperaram do seu estupor , os alemães deixaram extravasar sua alegria e seu<<strong>br</strong> />
reconhecimento . Herbert Floss tornou-se um herói .<<strong>br</strong> />
Um acontecimento daquele porte teria de ser condignamente comemorado . Trouxeram-se mesas<<strong>br</strong> />
que foram armadas próximo à fogueira , recobertas de dezenas de garrafas de bebidas de todos<<strong>br</strong> />
os tipos .<<strong>br</strong> />
O dia morria aos poucos ; ao fulgor das altas labaredas correspondia ao longe , no limiar da<<strong>br</strong> />
planície , o clarão ru<strong>br</strong>o do sol que se despedia numa magnificiência de incêndio .<<strong>br</strong> />
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A um sinal de “Lalka” , as rolhas saltaram . Uma comemoração das mais extraordinárias teve então<<strong>br</strong> />
início . O primeiro <strong>br</strong>inde foi erguido ao Führer . A essa altura , os condutores das e<strong>sc</strong>avadeiras já<<strong>br</strong> />
haviam reassumido seus postos ao volante das máquinas . No instante que os SS levantaram suas<<strong>br</strong> />
taças numa saudação frenética , as e<strong>sc</strong>avadeiras pareceram animar-se , e repentinamente<<strong>br</strong> />
lançaram em direção o céu seu longo <strong>br</strong>aço articulado , num arremedo entusiástico e sacolejante<<strong>br</strong> />
da saudação hitlerista . Foi como que um sinal : por dez vezes os homens ergueram o <strong>br</strong>aço<<strong>br</strong> />
fazendo reboar de cada vez o “Heil Hitler” . As máquinas animadas devolviam a saudação aos<<strong>br</strong> />
homens-máquinas e a atmosfera vi<strong>br</strong>ava com os gritos de louvor ao Führer . A festa durou até que<<strong>br</strong> />
a fogueira se houvesse consumido por completo . Aos <strong>br</strong>indes seguiram-se os cantos , selvagens e<<strong>br</strong> />
cruéis , cantos de ódio , cantos de ira , cantos de glorificação à Alemanha eterna . Treblinka ,<<strong>br</strong> />
entregue à insânia dos homens de outra idade , parecia ter-se tornado o santuário de terríveis ritos<<strong>br</strong> />
pagãos . Os “técnicos” haviam-se transformado em semideuses bárbaros e sanguinários ,<<strong>br</strong> />
egressos de alguma mitologia .<<strong>br</strong> />
No dia seguinte , os SS reintegraram-se no seu papel de ‘técnicos” con<strong>sc</strong>ienciosos , atarefados e<<strong>br</strong> />
meticulosos . A experiência fora proveitosa . Cumpria agora fazê-la passar do terreno experimental<<strong>br</strong> />
ao terreno industrial . Herbert Floss tratou de enfrentar o problema .<<strong>br</strong> />
Como se tratava de um espírito meticuloso , repartiu a dificuldade em duas partes : de um lado a<<strong>br</strong> />
combustão propriamente dita , de outro o abastecimento , sendo que este segundo item dividia-se<<strong>br</strong> />
em três partes : extração , transporte e carregamento . A combustão não era limitada senão pelo<<strong>br</strong> />
número de fogueiras , que podia ser aumentado à vontade . O número de produção passaria a<<strong>br</strong> />
depender portanto das possibilidades de extração , de transporte e de carregamento .<<strong>br</strong> />
A solução de todos esses problemas iria exigir um certo tempo .<<strong>br</strong> />
Primeira inovação : os cadáveres seriam extraídos por e<strong>sc</strong>avadoras que os depositariam numa<<strong>br</strong> />
pilha ao lado da fossa , onde os prisioneiros viriam bu<strong>sc</strong>á-los e os transportariam até as fogueiras ,<<strong>br</strong> />
à razão de dois prisioneiros para um corpo . Foi essa a primeira etapa . Herbert Floss capacitou-se<<strong>br</strong> />
então de que era difícil às três e<strong>sc</strong>avadoras despejar seu carregamento num só local , e que os<<strong>br</strong> />
prisioneiros acabavam por atrapalhar-se uns aos outros . Dividiu os prisioneiros em três equipes ,<<strong>br</strong> />
cada uma delas a serviço de uma máquina . Progresso . Mas aconteceu um engarrafamento junto<<strong>br</strong> />
à fornalha . Foram levantadas três . Progresso . Novo problema : a partir de um determinado nível ,<<strong>br</strong> />
os cadáveres extraídos apresentavam-se mutilados , e os prisioneiros transportavam-nos aos<<strong>br</strong> />
pedaços , uma perna debaixo de um <strong>br</strong>aço , e um tronco do outro . Resultado : transportavam um<<strong>br</strong> />
número muito menor . Herbert Floss repôs então em serviço as padiolas que serviam para<<strong>br</strong> />
transportar os cadáveres das câmaras de gás até as fossas . Progresso . Acontecia porém que um<<strong>br</strong> />
ou outro mem<strong>br</strong>o mutilado se perdesse no trajeto , já que o transporte era feito em ritmo acelerado.<<strong>br</strong> />
Modificaram-se as padiolas , substituindo a lona por um caixote . Progresso . Foi então que se<<strong>br</strong> />
percebeu que sob efeito do calor , os trilhos vergavam . Construíram-se novas pilastras de<<strong>br</strong> />
sustentação no centro do espaço livre . Progresso .<<strong>br</strong> />
O rendimento era então de mil cadáveres por dia . Uma noite , à hora da chamada , Herbert Floss<<strong>br</strong> />
veio fazer um apelo especial :<<strong>br</strong> />
- Queimamos hoje dois mil cadáveres . É um bom número , mas não devemos nos contentar com<<strong>br</strong> />
isso . Vamos estabelecer um objetivo e congregar nossos esforços para atingi-lo . Amanhã<<strong>br</strong> />
aumentaremos esse número para três mil , e depois de amanhã para quatro mil , depois cinco<<strong>br</strong> />
mil , seis mil , e assim por diante até chegar a dez mil . A cada dia que passa , assumiremos o<<strong>br</strong> />
compromisso de aumentar o rendimento de mil unidades . Conto com vocês para me ajudarem .<<strong>br</strong> />
Afável e modesto , Herbert Floss , incapaz de esbofetear um subalterno , falando como um diretor<<strong>br</strong> />
de fá<strong>br</strong>ica a seus operários , arrematou sua arenga mandando distribuir uma ração suplementar de<<strong>br</strong> />
pão a cada prisioneiro .<<strong>br</strong> />
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Os aperfeiçoamentos continuaram . Como os prisioneiros perdessem tempo carregando e<<strong>br</strong> />
de<strong>sc</strong>arregando as padiolas , as turmas foram novamente divididas em três : uma turma de<<strong>br</strong> />
carregadores , uma de transportadores e uma terceira de incineradores , que recebeu a<<strong>br</strong> />
denominação de comando do fogo . Progresso . Mas o limite de dez mil não fora ainda atingido .<<strong>br</strong> />
Os fornos crematórios eram carregados durante o dia e acesos à noite , estendendo-se agora por<<strong>br</strong> />
uma distância de mais de cinquenta metros . Havia possibilidade de multiplicar o seu número , mas<<strong>br</strong> />
o abastecimento atingira o seu ponto de saturação . Era ali que ocorria o engarrafamento . Herbert<<strong>br</strong> />
Floss introduziu então uma nova modificação . Os carregadores , quando chegavam junto à pilha<<strong>br</strong> />
de cadáveres , paravam o tempo de ser carregada a padiola e aproveitavam para de<strong>sc</strong>ansar . Isso<<strong>br</strong> />
representava uma grande perda de tempo . Para remediar o inconveniente , determinou-se às<<strong>br</strong> />
e<strong>sc</strong>avadeiras que depositassem os cadáveres , não mais num amontoado compacto , e sim em<<strong>br</strong> />
arco de círculo . Os carregadores foram dispostos ao longo desse arco e o pessoal do transporte<<strong>br</strong> />
recebeu ordem de caminhar em fila acompanhando a formação dos carregadores . Herbert Floss<<strong>br</strong> />
rede<strong>sc</strong>o<strong>br</strong>ira o princípio do trabalho em cadeia . Os carregadores não eram mais responsáveis<<strong>br</strong> />
cada um por um caixote ; lançavam , simplesmente , um pedaço de cadáver em cada caixote que<<strong>br</strong> />
desfilava à sua frente .<<strong>br</strong> />
Foi então que os prisioneiros reagiram . Três deles estavam encarregados da contagem dos<<strong>br</strong> />
cadáveres . Seus camaradas , sentindo que acabariam morrendo de esgotamento , rogaram-lhes<<strong>br</strong> />
que os poupassem , ao mesmo tempo que contentavam o “artista” , forjando o ansiado total de dez<<strong>br</strong> />
mil . No dia imediato , Herbert Floss , informado de que o objetivo máximo fora atingido , fez<<strong>br</strong> />
questão de agradecer aos prisioneiros o ardor e a dedicação com que haviam dado conta de sua<<strong>br</strong> />
tarefa .<<strong>br</strong> />
Certa vez , uma e<strong>sc</strong>avadora parou por falta de gasolina . Enquanto se providenciava o<<strong>br</strong> />
reabastecimento , os prisioneiros aproveitaram para respirar um pouco . Os prisioneiros , que ,<<strong>br</strong> />
sabendo que ele não costumava espancá-los , não o temiam particularmente , explicaram-lhe que<<strong>br</strong> />
esperavam que a máquina fosse reabastecida .<<strong>br</strong> />
- Quanto tempo levará isso ? – quis saber Floss .<<strong>br</strong> />
- Três ou quatro minutos – responderam ao acaso .<<strong>br</strong> />
- Quatro minutos ? É justamente o tempo necessário para fazerem uma viagem com a e<strong>sc</strong>avadeira<<strong>br</strong> />
vizinha .<<strong>br</strong> />
Explicaram-lhe que , para fazer isso , perderiam mais tempo do que esperando ali mesmo .<<strong>br</strong> />
Floss , então , saiu-se com esta :<<strong>br</strong> />
- Será uma viagem especial , apenas para provarem a si mesmos que não são preguiçosos .<<strong>br</strong> />
Poderemos chamá-la a viagem de honra .<<strong>br</strong> />
Herbert Floss enlouquecera .<<strong>br</strong> />
...<<strong>br</strong> />
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