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O Profeta do Espanto - Edmilson cordeiro - Cia. Atelie das Artes

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O <strong>Profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>Espanto</strong><br />

<strong>Edmilson</strong> <strong>cordeiro</strong><br />

Personagem – O profeta <strong>do</strong> espanto<br />

Época – indefinida<br />

Local- escombros de um teatro<br />

Gênero - (Texto manifesto)<br />

Sinopse – Um assassino assume a identidade de um<br />

antigo e famoso artista de circo.<br />

COM O TEARO AINDA no ESCURO, SURGE UMA VOZ<br />

EM OFF:<br />

Voz _ Foi num desses dias que a gente sai por aí e<br />

sente um enorme buraco negro, onde não há início e<br />

fim. Um momento, que não encontramos senti<strong>do</strong> até na<br />

mais absoluta verdade que salta diante de nossos olhos,<br />

como formigas desabriga<strong>das</strong> e sem direção; _E assim,<br />

de súbito nos assalta uma <strong>do</strong>ce e terrível sensação<br />

desagradável de desesperança em nós e em tu<strong>do</strong> o que<br />

nos diz respeito... E, como em uma dessas imagens que<br />

nos refletem em superfícies cuida<strong>do</strong>samente poli<strong>das</strong> e<br />

espelha<strong>das</strong>, feitas para lembrarmos que somos<br />

anima<strong>do</strong>s com forma, movimento, cheiro, vontade... E<br />

outras tantas coisas mais. Ao me ver ali refleti<strong>do</strong>, me<br />

surpreendi com o que eu era... e o que era em reflexo.<br />

De repente foi como se alguém surgisse, se<br />

manifestasse concretamente na minha frente, a partir<br />

daquele momento, eu não estava mais só.<br />

Uma cortina se abre ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> palco revelan<strong>do</strong> uma<br />

enorme tela de projeção. Uma música circense acompanha to<strong>do</strong><br />

este acontecimento, prosseguin<strong>do</strong> com a projeção de micro<br />

organismos vivos e uma legenda com as seguintes palavras:<br />

Texto _Seres vivos são to<strong>do</strong>s aqueles que apresentam<br />

composição química complexa, a sua matéria está<br />

1


sempre no esta<strong>do</strong> coloidal, revelam organização celular,<br />

desenvolvem metabolismo constante, tem crescimento<br />

limita<strong>do</strong> e por intussuscepção, decorrem sempre de um<br />

processo simples ou complexo de reprodução,<br />

apresentam duração limitada, de acor<strong>do</strong> com a espécie<br />

e se mostram suscetíveis ao fenômeno de adaptação ao<br />

meio.<br />

A luz da projeção vem de algum lugar no fun<strong>do</strong> platéia<br />

passan<strong>do</strong> por sobre as cadeiras e iluminan<strong>do</strong> em penumbra<br />

alguns lugares ocupa<strong>do</strong>s por figuras humanas mumifica<strong>das</strong>.<br />

Ouve-se também o som de um rádio tocan<strong>do</strong> uma música<br />

agradável vinda <strong>do</strong> palco. Ao final da projeção tu<strong>do</strong> volta a ficar no<br />

escuro. A voz <strong>do</strong> ator surge dentre a escuridão:<br />

<strong>Profeta</strong> _ Desculpe a bagunça.<br />

Ele caminha lentamente até o proscênio. Um foco de luz<br />

desce sobre ele iluminan<strong>do</strong> o seu rosto maquia<strong>do</strong> de palhaço. O<br />

cenário é composto por um lustre gigantesco em forma circular,<br />

uma mesa com muitos papeis sobre ela, uma poltrona em<br />

proporções não convencionais, um pequeno piano, um enorme<br />

relógio na lateral esquerda <strong>do</strong> palco, várias molduras de quadros<br />

antigos, um carrinho de bebê e vários bonecos em tamanho<br />

natural, presos por linhas como marionetes. O ator continua sua<br />

cena:<br />

<strong>Profeta</strong> _ É que hoje eu dispensei a faxineira, e to<strong>do</strong>s os<br />

outros que de alguma maneira, pudessem atrapalhar<br />

este nosso encontro...<br />

Enquanto fala, em tom irônico, vai organizan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os<br />

papéis espalha<strong>do</strong>s sobre a mesa:<br />

<strong>Profeta</strong> _ Nem sempre queremos estar acompanha<strong>do</strong>s.<br />

E como eu sabia que iria recebê-lo, preferi então estar<br />

só durante o dia... Caso queira sair, ainda há tempo.<br />

Quanto à qualidade <strong>do</strong>s assentos... Sinto não poder<br />

acomodá-lo melhor. Sei que um encontro como este<br />

raríssima vezes acontece, e assim então, antecipo<br />

minhas desculpas... Nós pessoas de bem, quan<strong>do</strong> nos<br />

ocupamos em algo, nos entregamos inteiramente.<br />

2


Esquecemos até de nos atentar a detalhes que para<br />

alguns se tornam uma ofensa terrível. Mas, é tu<strong>do</strong> o que<br />

posso oferecer-lhe.<br />

Neste momento, ajoelha-se no centro <strong>do</strong> palco como um<br />

sacer<strong>do</strong>te, e diz em tom confessional:<br />

* _ Quero cantar a fidelidade, o direito e tocar para<br />

ti senhor! Quero progredir na integridade quan<strong>do</strong> vieres<br />

a mim. Em minha casa saberei conduzir-me com o<br />

coração integro. Não terei olhos para nada de funesto.<br />

Odiarei a apostasia, ela não terá poder sobre mim.<br />

Longe de mim o coração tortuoso, o mal não quero<br />

conhece-lo. Aquele que difama os outros em segre<strong>do</strong>,<br />

reduzi-lo-ei ao silêncio. O olhar orgulhoso, o coração<br />

ambicioso, não consigo tolerá-los. Distinguirei os<br />

homens retos da terra para que eles sentem ao meu<br />

la<strong>do</strong>. Aquele que tem uma conduta integra será o meu<br />

ministro. Não sentará em minha casa o homem hábil em<br />

enganar. O conta<strong>do</strong>r de mentiras não resistirá diante <strong>do</strong><br />

meu olhar. Cada manhã reduzirá ao silencio to<strong>do</strong>s os<br />

maus da terra, extirpan<strong>do</strong> da cidade <strong>do</strong> senhor to<strong>do</strong>s os<br />

maus feitores. (Livro de Davi)<br />

Agora, ele levanta-se assobian<strong>do</strong> uma canção antiga.<br />

Depois gargalha como um bufão:<br />

<strong>Profeta</strong> _ Isto é um jogo e como to<strong>do</strong> jogo, existem<br />

regras. E neste jogo quem dá as cartas sou eu: A única<br />

e definitiva regra é esta: _Não <strong>do</strong>u direito a réplicas.<br />

Mesmo saben<strong>do</strong> que estamos num território perigoso e<br />

cheio de meandros: _entra<strong>das</strong>, saí<strong>das</strong>, bifurcações,<br />

acontecimentos supra-renais e tu<strong>do</strong> que só mesmo a<br />

mais maravilhosa <strong>das</strong> faculdades humanas poderia<br />

conceber: – a imaginação. E, mesmo saben<strong>do</strong> agora,<br />

ser tu<strong>do</strong> uma farsa, desculpe-me, mas foi a maneira que<br />

encontrei de atraí-lo. Afinal, um mata<strong>do</strong>uro perfeito... Um<br />

teatro... Um santuário milenar: _lugar onde a palavra se<br />

transforma em carne. O tempo foi da<strong>do</strong>. Não foi nega<strong>do</strong>,<br />

portanto não há mais volta. Ninguém sairá daqui.<br />

3


Neste momento as portas <strong>do</strong> teatro se fecharem, baten<strong>do</strong>se<br />

uma a uma, nos mais diferentes pontos. E enquanto isto<br />

acontece, o ator observa o público e ao final estoura em nova<br />

gargalhada:<br />

<strong>Profeta</strong> _ Não há motivo para pânico, não existe razão<br />

para isso, uma vez que você está aqui de livre e<br />

espontânea vontade, e to<strong>do</strong>s nós somos pessoas de<br />

bem.<br />

Agora, Ele fala para toda a platéia de múmias entre o<br />

público:<br />

<strong>Profeta</strong> _Peço então que desliguem seus bips e<br />

celulares, pois não podemos ser interrompi<strong>do</strong>s, durante<br />

o processo de realização <strong>das</strong> tarefas que acontecerão<br />

esta noite. Devemos evitar atitudes constrange<strong>do</strong>ras:<br />

bocejos, ruí<strong>do</strong>s nos assentos e coisas <strong>do</strong> gênero. Não<br />

devemos ceder tão facilmente aos prazeres da carne, já<br />

que a ela, não resta nada além da função de suporte,<br />

invólucro, vestimenta, embalagem... Em alguns casos<br />

frasco em outros contêineres...Em um caixilho que<br />

abrigam quadros medievais, outros, molduras para uma<br />

obra renascentista. E assim vai... Então... Um brinde,<br />

senhoras e senhores. Um brinde a mim e aos senhores.<br />

Um brinde a nós, por estarmos aqui hoje, hoje... Para<br />

vivermos o dia mais espetacular de nossas vi<strong>das</strong>. Hoje,<br />

um dia qualquer na história <strong>do</strong> tempo, que se perderá na<br />

memória como tantos outros. Sejam bem-vin<strong>do</strong>s ao<br />

maravilhoso mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> nada. Onde tu<strong>do</strong> pode acontecer:<br />

luzes piscarem... (As luzes piscam), o vento soprar...<br />

(O vento sopra), Sons surgirem de lugar nenhum...<br />

(Sons surgem), o tempo parar... (os ponteiros <strong>do</strong><br />

grande relógio param), objetos se moverem... (O<br />

carrinho de bebê anda livremente pelo palco).<br />

4


<strong>Profeta</strong> _ Óh!!! O que serão estas coisas além de<br />

truques previamente prepara<strong>do</strong>s e devidamente<br />

ensaia<strong>do</strong>s para que funcionem no momento exato e<br />

assim iludi-los. Não, não... Não tenho a intenção de<br />

entretê-los aqui com truques baratos, palavras suaves,<br />

pensamentos românticos. Até mesmo porque isto não é<br />

um consultório sentimental e tão pouco uma fábrica de<br />

encher lingüiça. O que acontecerá hoje aqui, será algo<br />

único, real e definitivo, pois jamais se repetirá durante<br />

toda a eternidade <strong>do</strong> tempo.<br />

O ator continua sua representação, coberta de gestos<br />

largos, de uma teatralidade empolgante e surpreendente:<br />

<strong>Profeta</strong> _Chega de simulacros. Portanto, cuida<strong>do</strong> com<br />

os artistas. São eles os mais perigosos: Senhores <strong>do</strong><br />

dever sublime... O dever de nos levar tocar as faces de<br />

Deus? Ou marionetes bem articula<strong>das</strong>, simpaticíssimas<br />

enquanto consomem nossos dias horas a fio com<br />

ilusões vazias, sem nenhum valor. Pois se valessem,<br />

não estaríamos nesse mar de lama e estupidez passiva,<br />

a qual herdamos e deixaremos de herança para os<br />

pobres miseráveis <strong>do</strong> futuro.<br />

Neste momento ator ele se posiciona ereto no centro <strong>do</strong><br />

palco com um revolver apontan<strong>do</strong> para sua cabeça. E continua a<br />

sua performance, enquanto o lustre circular desce sobre ele<br />

lentamente e o cerca, como num círculo de fogo.<br />

<strong>Profeta</strong> _O escorpião quan<strong>do</strong> encurrala<strong>do</strong> num círculo<br />

de fogo, <strong>do</strong>cemente ele volta o seu ferrão contra si<br />

mesmo, e com uma única e definitiva picada, põe fim a<br />

sua vida.<br />

Ele aperta o gatilho <strong>do</strong> revolver, mas não há balas no<br />

tambor, vai em direção ao público e diz quase num sussurro:<br />

<strong>Profeta</strong> _ Mais um truque... E se eu lhe disser que as<br />

múmias estão de volta. Sim elas estão voltan<strong>do</strong>! Que em<br />

pouco tempo elas <strong>do</strong>minarão o planeta e, onde para<br />

5


cada um de nós, há milhares delas espalha<strong>das</strong> por<br />

to<strong>do</strong>s os lugares esperan<strong>do</strong> o dia <strong>do</strong> juízo final.<br />

Agora, abrin<strong>do</strong> os braços para a platéia, ele fala como um<br />

prega<strong>do</strong>r inspira<strong>do</strong>:<br />

<strong>Profeta</strong> _Talvez, muitos de vocês estejam se<br />

perguntan<strong>do</strong> agora, neste momento; _Onde este sujeito<br />

quer chegar? Ou, o que eu estou fazen<strong>do</strong> aqui?<br />

Respon<strong>do</strong> então aos aflitos; Não quero chegar a lugar<br />

nenhum... Se eu quiser sento-me nesta cadeira, e fico,<br />

fico quieto. O tempo terá o tempo que eu quiser... O<br />

tempo tem o tempo necessário. Sento-me e fico... Fico.<br />

Neste momento o ator olha fixamente para alguém <strong>do</strong><br />

público.<br />

<strong>Profeta</strong> _Ficarei te olhan<strong>do</strong> até que me enten<strong>das</strong>.<br />

Porque temos a obsessiva necessidade de medirmos o<br />

tempo? Para Quê? _Para desperdiçarmos o mais<br />

rápi<strong>do</strong> que pudermos com atitudes mesquinhas,<br />

palavras hostis e sentimentos menores... _Deus fez o<br />

homem a sua imagem e semelhança... Será? Se o fez, e<br />

isto aconteceu realmente, ele talvez nunca havia olha<strong>do</strong>se<br />

num espelho.<br />

Agora in<strong>do</strong> até a mesa, apanha uma maquina fotográfica,<br />

volta novamente até o proscênio e fotografa um rosto no público.<br />

Logo depois volta para próximo da mesa, senta-se e retira a<br />

maquiagem <strong>do</strong> seu rosto enquanto fala:<br />

<strong>Profeta</strong> _ Mas, chega de truques... A partir desde<br />

momento serei, sério, sóbrio e verdadeiro... Esta<br />

preocupa<strong>do</strong>s com as múmias? Pois logo elas serão<br />

devora<strong>das</strong> pelos ratos que trafegam nos becos mais<br />

sórdi<strong>do</strong>s da natureza humana e desaparecerão como<br />

dinossauros. Então eu me pergunto. Afinal, o que<br />

estamos fazen<strong>do</strong> aqui? Qual a finalidade disso tu<strong>do</strong>?<br />

Passarmos o tempo? Nos enganarmos com um jogo<br />

inútil de gato e rato, que não ten<strong>do</strong> nada melhor a fazer,<br />

brincam de opressor e oprimi<strong>do</strong>. Voltar, refazer o<br />

6


caminho de volta? Não, não... Não é necessário. Porque<br />

até mesmo este, deixa de existir ao passarmos por ele.<br />

Pois a vida senhoras e senhores, não é como um<br />

eletro<strong>do</strong>méstico que ao adquirirmos vem junto um<br />

manual nos explican<strong>do</strong> como utilizá-la. A vida, senhoras<br />

e senhores, ela algo como um cavalo selvagem: _Tem<br />

suas leis seguras, sagra<strong>das</strong> e eternas. Leis estas, que<br />

não pertencem a nenhum congresso de idiotas<br />

_Facções de bem intenciona<strong>do</strong>s, que criam sistemas<br />

ideológicos e através de seus discursos convencem nós,<br />

pobres peca<strong>do</strong>res a seguirem suas palavras como se<br />

seguissem Jesus Cristo. Qual a finalidade de<br />

vasculharmos a natureza humana...? Decodificá-la em<br />

sua mais perfeita ordem e assim superarmos to<strong>do</strong>s os<br />

limites que nos separam de Deus... Subverter a ordem,<br />

ordenan<strong>do</strong> a vida para ser guardada como um brinque<strong>do</strong><br />

ou enfeites de geladeira? Um belo enfeite...Perfeito.<br />

Uma obra de arte? Não, não uma obra de arte... Mas,<br />

o que podemos fazer, se a nossa existência se resume,<br />

principio meio e fim, na ação? Mas, qual pior<br />

condenação teríamos, a de estarmos aprisiona<strong>do</strong>s a<br />

inação? A mesma, a mesma condenação que estão<br />

submeti<strong>das</strong> às múmias que falamos agora a pouco? O<br />

que nos diferencia daqueles que se apossam da vida,<br />

como um objeto particular, compra<strong>do</strong> e avalia<strong>do</strong> a preço<br />

de merca<strong>do</strong>...? Desculpem-me desapontá-lo meu<br />

grande rapaz: _Mas eu não sou o <strong>Profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>Espanto</strong> e,<br />

tão pouco sei onde ele está. Dizem que ele deixou de<br />

existir, quan<strong>do</strong>, o maior de to<strong>do</strong>s os palhaço <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

realizou o seu último espetáculo.<br />

Neste momento o ator pára de representar o seu estranho<br />

papel e fala com simplicidade, como se as suas palavras fossem<br />

reais e significassem a mais pura verdade. Ele aproxima-se mais<br />

<strong>do</strong> público continua o seu discurso em tom suave:<br />

<strong>Profeta</strong> _Em sua última apresentação num grande teatro<br />

aconteceu um fato que mudaria para sempre a sua<br />

vida... No número final; _O famoso número da caveira e<br />

o lenço. No desfecho, o grande momento em que toda a<br />

7


platéia se debruçava em gargalha<strong>das</strong> durante dez<br />

minutos segui<strong>do</strong>s, os dez minutos que o deixou famoso<br />

e o consagrou ainda jovem, como o maior palhaço <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>. Naquele dia algo aconteceu. De repente, sob<br />

aplausos, gargalha<strong>das</strong>, gritos e ovações grandiloqüentes<br />

para o bis. Ele percebeu, ao levar seus olhos para a<br />

terceira fila da platéia, que nela, se encontrava um<br />

homem. Um homem com o olhar mais triste <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>...<br />

Parecia que nada, nenhum truque, nenhuma gag,<br />

nenhum palhaço. Nem o mais genial <strong>do</strong>s palhaços,<br />

poderia mover um minúsculo músculo daquela feição<br />

que insistia em repousar para sempre numa tristeza<br />

eterna... Nenhum virtuoso, genial e surpreendente artista<br />

poderia salvá-lo daquele abismo sem esperança. Nada<br />

por mais ingênuo ou bem articula<strong>do</strong>. Nada mais incrível<br />

ou mesmo divino que acontecesse diante daqueles<br />

olhos, poderia salvá-los <strong>do</strong> imenso vazio em que eles se<br />

encontravam. Continuou olhan<strong>do</strong> para aquele homem<br />

entre o público. A luz <strong>do</strong> palco, o som da platéia, que<br />

continuaria o aplaudin<strong>do</strong>...Tu<strong>do</strong> foi silencian<strong>do</strong> até que<br />

restaram apenas o palhaço e rapaz Como se naquele<br />

momento o tempo deixasse de existir, como se agora, o<br />

mun<strong>do</strong> que antes existia palpável a sua volta, se<br />

dissolvesse. O tempo se distendeu em infinitas<br />

partículas que se multiplicaram em outras dezenas de<br />

infinitas, fazen<strong>do</strong> com que ele se esquecesse ali, ven<strong>do</strong><br />

através <strong>do</strong>s olhos de alguém toda a tristeza humana. E<br />

assim de artista, o palhaço passou a ser especta<strong>do</strong>r. E<br />

não sabia mais quem ele era, se um palhaço ou, o rapaz<br />

que assistia o palhaço. E ficaram ali... Foi quan<strong>do</strong> os<br />

seus olhos desfocaram; _Por um segun<strong>do</strong> então ele<br />

pode perceber novamente a platéia, que depois <strong>do</strong>s dez<br />

minutos parou de aplaudi-lo e agora apenas o olhava em<br />

silêncio, esperan<strong>do</strong> a repetição <strong>do</strong> último número. Ele<br />

então, olhou to<strong>do</strong>s a sua frente, virou-se, e saiu<br />

lentamente <strong>do</strong> palco para nunca mais voltar. Ainda no<br />

camarim, sentou-se diante <strong>do</strong> espelho e perguntou a si<br />

mesmo: _Por que o maior palhaço <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não<br />

conseguiu fazer aquele homem sorrir? Anos depois, o<br />

palhaço formou-se em medicina. Nunca mais voltou a<br />

8


um palco com uma mascara no rosto. Deixou de ser<br />

palhaço. O palco para ele ganhou uma dimensão real de<br />

paredes e tábuas, não mais o universo de to<strong>das</strong> as<br />

possibilidades. Viajou por muitos países, conheceu<br />

diversas culturas... Fazen<strong>do</strong> palestras em<br />

universidades, em lugares distantes <strong>do</strong>s grandes centros<br />

urbanos, vilarejos... Investigan<strong>do</strong> sempre uma forma de<br />

melhorar a qualidade... Discutin<strong>do</strong> sempre uma maneira<br />

de ponderarmos avanços tecnológicos através <strong>do</strong><br />

equilíbrio <strong>do</strong> nosso mo<strong>do</strong> de vida. O <strong>Profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>Espanto</strong><br />

tentou compartilhar com o mun<strong>do</strong>, um pensamento<br />

humanista e livre de qualquer forma de discriminação<br />

étnica, social, cultural e econômica, seu objetivo maior<br />

era o de fazer <strong>do</strong> tempo que lhe restava de vida, algo<br />

significativo. O profeta <strong>do</strong> espanto contou que em uma<br />

de suas viagens, a lugares perdi<strong>do</strong>s e distantes <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>, conheceu uma outra estranha história; A historia<br />

de um de um outro homem, que viveu durante longos<br />

anos, numa gruta, no alto de uma montanha, porque<br />

disseram a ele, que o mesmo havia nasci<strong>do</strong> com um<br />

estranho mau. Nunca souberam definir-lhe o mau o qual<br />

ele havia nasci<strong>do</strong>, mas to<strong>do</strong>s diziam que era nocivo aos<br />

seus semelhantes. Então, este menino, isolou-se em<br />

uma montanha e lá viveu durante longos anos. Quan<strong>do</strong><br />

um dia então, ele desceu a montanha. Pois de tanto ficar<br />

só, sentiu solidão. De tanto ficar em silêncio, teve<br />

vontade de falar. E de tanto ficar ocioso, teve vontade de<br />

reconstruir o mun<strong>do</strong>... De tanto pensar teve vontade de<br />

agir. Ao descer da montanha, a primeira coisa que fez,<br />

foi procurar sua família e ao chegar na casa que deixou<br />

ainda menino, não encontrou ninguém, to<strong>do</strong>s já haviam<br />

morri<strong>do</strong>. Ele então foi até a praça da cidade. Sentou-se<br />

num banco e tentou encontrar algum amigo de infância<br />

ou parente próximo que ainda vivesse... Nada,<br />

ninguém... Apenas lhe dava atenção um palhaço que<br />

insistia em lhe apresentar um número curioso,<br />

enigmático e diferente, que lhe repetia diversas vezes<br />

em busca de uma moeda qualquer...<br />

9


O ator volta até a mesa, retira uma caveira e um lenço de<br />

dentro <strong>do</strong> pequeno baú e reproduz o número/ Música:<br />

<strong>Profeta</strong> _Enquanto o palhaço representava o seu curioso<br />

número, aquele homem pensava consigo mesmo: _Não<br />

lembravam mais quem ele era. Não tinham nenhuma<br />

afeição por ele. Ele era ali apenas mais um, como<br />

qualquer outro, senta<strong>do</strong> em um banco de praça. Este<br />

sujeito então olhou a cidade com suas pessoas e coisas,<br />

olhou a montanha. Sentiu um imenso vazio e chorou.<br />

Mas num determina<strong>do</strong> momento, tu<strong>do</strong> em si<br />

paralisou, quan<strong>do</strong> percebeu que <strong>do</strong>s seus olhos não<br />

saiam lágrimas... Finalmente ele compreendeu.<br />

Levantou-se serenamente, um livro, o único bem que<br />

possuía, subiu novamente a montanha e nunca mais<br />

voltou. Dizem que lá, dedicou seus últimos anos de vida<br />

a construir um templo esculpi<strong>do</strong> de pedra... Um templo<br />

gigantesco... Maravilhoso templo feito de pedra.<br />

Depois de ficar no mais absoluto silêncio, o ator, numa<br />

atitude repentina, volta para centro <strong>do</strong> palco e retoma a sua<br />

representação.<br />

<strong>Profeta</strong> _ Meus amigos a realidade urge lá fora...<br />

Neste instante, to<strong>das</strong> as portas que haviam se fecha<strong>do</strong> são<br />

abertas novamente. E os mais diversos sons invadem aquele<br />

lugar.<br />

<strong>Profeta</strong> _O mun<strong>do</strong> gira. Carros, aviões, trens circulam de<br />

um la<strong>do</strong> ao outro, carregan<strong>do</strong> múmias e pessoas e<br />

coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de pessoas que giram num movimento<br />

discordante... Pessoas que vivem correm, amam, gritam,<br />

matam, vencem, perdem, sonham, dançam. E como<br />

uma dança, a vida dança numa imensa ciranda a sua<br />

eterna dança. Dança que jamais se repete. E esse balé<br />

infinito invade também esta sala e sem percebermos,<br />

nos conduz no seu movimento intrigante, pois também<br />

somos parte dele.<br />

10


O ator aponta para a tela de projeção, onde agora, surgem<br />

imagens de pessoas comuns em seu cotidiano. Tu<strong>do</strong> é<br />

acompanha<strong>do</strong> por uma música grandiosa. Mesmo antes que a<br />

projeção termine, o ator grita com entusiasmo:<br />

<strong>Profeta</strong> _ Uma salva palmas senhores! Uma salva de<br />

palmas para a vida!! Vida que nos convida a sua eterna<br />

dança. E enquanto dançamos, vivemos nossas vida.<br />

Sen<strong>do</strong> assim, conclamo a to<strong>do</strong>s a exercerem este direito<br />

consciente, que nos foi da<strong>do</strong> e nada é cobra<strong>do</strong> por isso,<br />

apenas o dever de exerce-lo. Viver! Viver e aprender a<br />

ser, a cada dia, um aluno exemplar... Na primeira e<br />

definitiva matéria da vida: - viver. Viver, iluminar nossos<br />

olhos como <strong>do</strong>is faróis aponta<strong>do</strong>s no futuro para<br />

seguirmos o caminho real que está sob nossos pés. Nos<br />

deixan<strong>do</strong> envolver e fazen<strong>do</strong> com que ele seja nosso<br />

maior guia. Neste sopro fugaz e misterioso que é a vida:<br />

_que começa quan<strong>do</strong> damos o primeiro passo e se<br />

desfaz ao tirarmos o pé <strong>do</strong> chão para darmos o<br />

segun<strong>do</strong>... Pois o moinho que gira com o vento não é<br />

mais o mesmo que gira com o mun<strong>do</strong>... Agora posso<br />

ouvir o vento...E ele vem ao meu encontro, e não mais<br />

me assusto. Olho para cima, bem perto, um pouco<br />

acima <strong>do</strong>s meus olhos e vejo uma pluma e ela flutua... (<br />

Uma pluma imaginária que o ator faz flutuar sobre a<br />

platéia/música ) E flutua porque pode flutuar... _Porque<br />

esquece ser apenas uma pluma. E ela vai, suave...Vai...<br />

Enquanto flutua, a<strong>do</strong>rmece e sonha ser uma pluma, e<br />

por isso flutua. Enquanto sonha, ela volta a<strong>do</strong>rmecer e<br />

em seu sonho, ela sonha novamente, e neste sonho<br />

dentro <strong>do</strong> sonho, não é nem pluma nem o que pensou<br />

ser: _ ela é o vento. E o vento sopra... E embala<strong>do</strong> pelo<br />

seu sopro ele vai, e também a<strong>do</strong>rmece, e sonha, sonha<br />

em ser apenas um sopro... Um pequeno sopro, o<br />

mesmo que antes era o vento e na forma de vento,<br />

conduz a pluma, que sonha...E enquanto sonha, é<br />

levada pelo vento que sonha ser sopro. _E a pluma vai...<br />

Vai planan<strong>do</strong>, planan<strong>do</strong> sobre vales, montanhas, rios,<br />

cidades... Vai... Vai além...Além de to<strong>das</strong> as coisas...<br />

Chegan<strong>do</strong> a lugares longínquos para dentro de si.<br />

11


Avança mais e mais... Vai além de to<strong>das</strong> as fronteiras,<br />

supera qualquer limite além...Vai... Navega, no sonho de<br />

viver como uma pluma, que sonha ser vento, que sonha<br />

ser apenas um sopro...Trafega em ro<strong>do</strong>pios<br />

maravilhosamente belos... Silencia no fluxo afável <strong>do</strong><br />

vento e a<strong>do</strong>rmece com ele para continuar sonhan<strong>do</strong> em<br />

ser sopro... Embala-se no mais puro e sincero<br />

balançar... Vai...Delica<strong>do</strong>, e sonha que tem vida, e com<br />

a vida se encanta e se apaixona, pluma, vento, sopro:<br />

_O sopro sonha<strong>do</strong> pelo vento, sonha<strong>do</strong> pela pluma, que<br />

se esquece ser pluma... Vai além, a to<strong>do</strong>s os lugares,<br />

navega... Mesmo saben<strong>do</strong> que o sopro, não é sopro _ é<br />

vento... Mesmo saben<strong>do</strong> que o vento não vento, é<br />

pluma... Apenas uma pluma. Olha tu<strong>do</strong> com olhares<br />

mais amenos, sem rigidez, mais ternos...Flutua em<br />

velocidade lenta e ritmada, com a sensação de que tu<strong>do</strong><br />

é sonho e, neste maravilhoso sonho, vive a possibilidade<br />

de ser simplesmente um sopro trazi<strong>do</strong> pelo vento<br />

sonha<strong>do</strong> pela pluma. Olha o mun<strong>do</strong> como ele realmente<br />

é: _Vasto e singular, sem amarras, leve, suave,<br />

contraditório, irregular, incerto. _Vai... Ora ou outra mais<br />

serena, de vez enquanto mais veloz e quase sempre<br />

dura<strong>do</strong>uro. Paira sobre o tempo, ele já não existe.<br />

Avança sobre a imensidão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, pois ele é incerto:<br />

_o melhor lugar para se planar. Qualquer ponto é,<br />

partida e chegada, qualquer lugar pode se estar... Vai,<br />

como combustível de si mesma...Mais e mais...Com<br />

to<strong>das</strong> as possibilidades de apenas estar e ser, ser por<br />

inteiro uma pluma, _ vento e sopro... Um pequeno sopro,<br />

mesmo sen<strong>do</strong> sonha<strong>do</strong> por um vento: uma pequena<br />

pluma que esquece ser pluma. Vai... Vai além, além<br />

<strong>do</strong> tempo: _ Enquanto acreditar no vento que vira sopro,<br />

enquanto esquecer que é apenas uma pluma...( Pausa )<br />

Aos Deuses a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>s que habitam nosso ser e nos<br />

desperta para o mun<strong>do</strong>. Nele nos entregamos e<br />

percebemos, ao mesmo tempo, como ele é belo. Belo<br />

em cores, formas, cheiros, sabores... Ao vislumbrarmos<br />

sua beleza... Descobrimos o quão ele é simples... Feito<br />

de desejos, contradições, sonhos... Sonhos... E são<br />

esses sonhos que nos acompanham durante toda a<br />

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vida... Nos alimenta sempre, para ato de viver.. Viver o<br />

ser ou não ser. Viver, viver a vida que se vive, se vive e<br />

se divide nos mesmo sonhos, nos mesmos rostos, <strong>do</strong>s<br />

mesmos sonhos... Sonhos, matéria prima que nos deu<br />

origem...Portanto enquanto restar humanidade, lá<br />

também estarão os sonhos... Senhoras e senhores:<br />

realizarei então agora, o meu único número, neste<br />

maravilhoso mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> nada, onde tu<strong>do</strong> pode<br />

acontecer... Até mesmo a possibilidade de existir ou não<br />

existir! Talvez a única questão! _*O que será mais nobre<br />

para o espírito: sofre os golpes de um humilhante<br />

destino, ou lutar contra o mar de calamidades para por<br />

fim resistin<strong>do</strong>? Morrer... Dormir: nada mais! E com o<br />

sono da morte, dizem, terminamos o pesar <strong>do</strong> coração e<br />

os mil conflitos que constituem a herança da carne. Que<br />

fim poderia ser mais devotadamente deseja<strong>do</strong>? Morrer...<br />

Dormir, <strong>do</strong>rmir... Talvez sonhar! Sim, eis aí a dificuldade!<br />

Porque, é inevitável que nos detenhamos a considerar<br />

que os sonhos possam acontecer durante o sono da<br />

morte, quan<strong>do</strong> nos tenhamos liberta<strong>do</strong> da confusão<br />

desta vida. Aí está a reflexão que torna a vida assim tão<br />

longa! Porque, senão, quem suportaria as ofensas e o<br />

desprezo <strong>do</strong> tempo, a injúria <strong>do</strong> opressor, a afronta <strong>do</strong><br />

soberbo, as angustias <strong>do</strong> amor despreza<strong>do</strong>, morosidade<br />

da lei, a estupidez <strong>do</strong> poder e a humilhação que o<br />

grande sofre<strong>do</strong>r recebe <strong>do</strong> homem desprezível, quan<strong>do</strong><br />

ele próprio pudesse encontrar paz com um simples<br />

estilete? Quem suportaria tão duras cargas, gemen<strong>do</strong> e<br />

suan<strong>do</strong> embaixo de uma vida difícil, se não fosse o<br />

temor de alguma coisa depois da morte; região<br />

misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou,<br />

confundin<strong>do</strong>, então nossos desejos e estimulan<strong>do</strong>-nos a<br />

suportar to<strong>do</strong>s os males que nos atormentam, ao invés<br />

de nos lançar a outros que desconhecemos? E assim a<br />

consciência nos transforma em covardes e, é assim que<br />

o primitivo senhor de nossas resoluções enfraquece na<br />

arrebata<strong>do</strong>ra sombra de nossos pensamentos e, é assim<br />

que nosso propósito de maior entusiasmo e importância<br />

desvia seu curso e deixa de ter o nome de ação...<br />

13


A luz <strong>do</strong> palco vai sumin<strong>do</strong> lentamente até voltar logo<br />

depois em penumbra, iluminan<strong>do</strong> os bonecos que um a um vão<br />

ganhan<strong>do</strong> vida: _ movimentos que são articula<strong>do</strong>s através <strong>das</strong><br />

linhas presas a eles. Uma música suave acompanha a cena até o<br />

seu final, enfim, a luz cai vagarosamente até tu<strong>do</strong> desaparecer na<br />

escuridão.<br />

To<strong>do</strong>s os direitos reserva<strong>do</strong>s.<br />

FIM<br />

Copyright 2002 by - <strong>Edmilson</strong> Cordeiro<br />

O <strong>Profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>Espanto</strong> – teatro<br />

Rua Frei Caneca, 144 ap. 01<br />

Bela Vista – SP – CEP: 01307-000<br />

E-mail – Oxcord@Hotmail.com<br />

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