o deus ex machina eo conceito de tyche na economia de ifigénia ...
o deus ex machina eo conceito de tyche na economia de ifigénia ...
o deus ex machina eo conceito de tyche na economia de ifigénia ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
HVMANITAS — Vol. XLVII (1995)<br />
ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra<br />
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE<br />
NA ECONOMIA DE IFIGÉNIA ENTRE OS TAUROS,<br />
À LUZ DA TEORIA ARISTOTÉLICA<br />
Segundo a classificação que Aristóteles faz das tragédias (Po. 1455b<br />
32sqq), po<strong>de</strong>ríamos enquadrar IT no grupo da tragédia TtsTtXeyu-evT) — a<br />
tragédia mais compl<strong>ex</strong>a — cujas características principais são a a<strong>na</strong>gnori<br />
se e a peripécia. Ora, a a<strong>na</strong>gnorise <strong>de</strong>sta peça é das mais famosas <strong>de</strong> toda<br />
a tragédia grega e em nenhuma das obras euripidia<strong>na</strong>s a caracterização, a<br />
culpa trágica, o pathos são relegados para segundo plano em <strong>de</strong>trimento<br />
do empenho <strong>de</strong>monstrado pela maestria e virtuosismo <strong>de</strong> Euripi<strong>de</strong>s <strong>na</strong><br />
condução da acção ' que culmi<strong>na</strong> com a intervenção <strong>de</strong> Ate<strong>na</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>.<br />
As intervenções divi<strong>na</strong>s ocorrem, <strong>na</strong> literatura grega, em vários géne<br />
ros literários, quer numa intervenção <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>, quer sob a forma mais<br />
generalizante <strong>de</strong> t<strong>eo</strong>fania. A t<strong>eo</strong>fania, a que Homero recorre constante<br />
mente, é um fenómeno sobre<strong>na</strong>tural: a manifestação <strong>de</strong> um <strong><strong>de</strong>us</strong> aos<br />
homens. Mas, embora o <strong><strong>de</strong>us</strong> homérico altere o rumo dos acontecimentos,<br />
não intervém para resolver uma situação difícil (uma áTtopía) ou o <strong>de</strong>sen<br />
lace da acção, isto é, a inversão radical da acção e <strong>de</strong>finitiva da <strong>tyche</strong>.<br />
O <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>, em sentido restrito, ocorre, <strong>na</strong> tragédia, quando a<br />
1 Cf. J. <strong>de</strong> Romilly, La mo<strong>de</strong>rnité d'Euripi<strong>de</strong>, Paris, 1986, p. 34: «...on trouve<br />
aussi <strong>de</strong>s pièces où cette combi<strong>na</strong>ison d'intrigues et <strong>de</strong> hasards comman<strong>de</strong>, en réalité,<br />
toute l'action. C'est le cas d'Iphigénie en Tauri<strong>de</strong>, ...»<br />
2 No caso <strong>de</strong> Electra são dois os <strong><strong>de</strong>us</strong>es que surgem <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>: os Dioscuros,<br />
mas, uma vez que Castor e Pólux são irmãos eter<strong>na</strong>mente inseparáveis, julgamos aceitável<br />
esta <strong>ex</strong>cepção única.
166 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
divinda<strong>de</strong> 2 , no fi<strong>na</strong>l da peça, se manifesta, <strong>de</strong>scendo do céu <strong>na</strong> iirj%avr]<br />
ou imóvel sobre o 6soXoysïov 3 , para resolver o <strong>de</strong>senlace da acção.<br />
O <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> não <strong>de</strong>via ser, portanto, sinónimo <strong>de</strong> toda a utilização<br />
que se faça da \vr\%avi\. Todavia, a <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> é um<br />
<strong>conceito</strong> que em alguns autores <strong>de</strong>nota uma acepção mais lata: os <strong><strong>de</strong>us</strong>es<br />
po<strong>de</strong>m utilizar a UT)%
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 167<br />
capazes <strong>de</strong> dizer mais e estão realmente atrapalhados com a acção, fazem<br />
erguer-se, como se fosse um <strong>de</strong>do, a mechane•(...)» 5 -<br />
"BneiQ' õxav (xrjSèv Súvcovx' eírtetv Ê'xt, KO|xtSf]t 5' àneipriKcoaiv<br />
èv xotç 5páp.aatv, aïpouaiv &>anep SóKXUXOV xrjv |j,r)xttvf)v<br />
No diálogo pseudo-platónico Clitofonte (407a) os ensi<strong>na</strong>mentos <strong>de</strong><br />
Sócrates são comparados aos <strong>de</strong> um <strong><strong>de</strong>us</strong> que surge <strong>na</strong> tragédia <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>:<br />
c&CTTcsp S7Ù |a,T)xavTÍç TpayiKTJç 9eòç úiavstç Xéyav "îlot (pépscGs,<br />
a>v9pamot; Kal àyvoetxe oûSsv xcõv Ssóvxcov Ttpáxxovxeç"...<br />
O <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> tem, neste passo, um valor fortemente parenético,<br />
semelhante à conclusão moralizante das fábulas {fabula docet). Uma das<br />
fi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s, se não única, do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> seria a parénese: a <strong>ex</strong>ortação<br />
aos espectadores para agirem <strong>de</strong> acordo com os preceitos divinos.<br />
Aristóteles {Po. 1454a 37 - 1454b 6) emite o seguinte parecer sobre<br />
a utilização do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>:<br />
9avepòv oôv oxt Kal xàç Xócstç tôv JIúGCDV èÇ aôtoC Set xoC<br />
(a.ú9ou creiafSaíveiv, Kal nf) ácicep sv TTíI Mí]Seíai â7tò iiT^xavíiç<br />
Kal èv TTj 'IXiáSi xà 7tepl TòV aizonXovv. âXXà |iTjxavTJt XP'no'téov<br />
STtl xà si^co xoC Spájxaxoç, f) oaa Ttpò xoî3 ysyovsv a oòx oióv<br />
XE âv9pco7Tov síSévai, fi õaa uaxepov, à Seîxai 7tpoayopeúaea)ç<br />
Kal ãyyslíaç- âitavxa yàp â7io5í8o|j.ev xotç Bsotç ópãv.<br />
Esta <strong>de</strong>finição encontra-se em consonância com a lei da unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
acção, antes enunciada pelo Estagirita {Po. 1450b 25), e com o princípio<br />
da verosimilhança (TO SíKóç), referido no passo imediatamente anterior<br />
{Po. 1454a 33-36) a propósito do comportamento coerente das perso<strong>na</strong><br />
gens, e que estabelece a ligação com este <strong>ex</strong>ame sobre o <strong>de</strong>senlace da<br />
peça. Um mau uso do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> <strong>de</strong>bilita, portanto, a unida<strong>de</strong> da<br />
peça, mas isso não significa que ele seja totalmente posto <strong>de</strong> parte por<br />
Aristóteles. Pelo contrário, ele aconselha a sua utilização para a <strong>na</strong>rração<br />
<strong>de</strong> acontecimentos <strong>ex</strong>teriores à intriga, tanto dos que a prece<strong>de</strong>m e que a<br />
audiência <strong>de</strong>sconhece, como dos que se seguem ao seu <strong>de</strong>senlace.<br />
Causa estranheza que o Estagirita aplique a <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong><br />
<strong>machi<strong>na</strong></strong> aos prólogos <strong>na</strong>rrados por perso<strong>na</strong>gens divi<strong>na</strong>s. Por outro lado,<br />
igualmente curiosa é a utilização <strong>de</strong>ste <strong>conceito</strong> para qualificar não só as<br />
3 Tradução <strong>de</strong> M. H. Rocha Pereira, Héla<strong>de</strong>. Antologia da Cultura Grega,<br />
Coimbra, 5 1990, p. 411.
168 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
intervenções divi<strong>na</strong>s no género dramático, mas também as da poesia<br />
épica. Quanto a nós, a noção <strong>de</strong> <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> já está, em Aristóteles,<br />
<strong>de</strong>stituída do seu sentido primitivo e teria assimilado um sentido mais<br />
abstracto e generalizante, abarcando todas as classes <strong>de</strong> t<strong>eo</strong>fanias. De<br />
outro modo, não faria sentido a utilização da \ír\%avi\ nos prólogos profe<br />
ridos por divinda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> que parece não haver qualquer indício. Tão-<br />
pouco seria admissível o absurdo da sua presença <strong>na</strong> poesia épica, on<strong>de</strong> a<br />
\ir\%avr\ estaria completamente <strong>de</strong>slocada, pois a épica e o drama obe<strong>de</strong><br />
cem a regras diferentes 6 .<br />
W. Schmidt 7 elaborou o seguinte esquema, que resume muito bem<br />
os princípios aristotélicos acerca do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>:<br />
a) Aristóteles constata duas funções essenciais <strong>de</strong>ste artifício literário:<br />
1) a Xócrxç Tou LIóBOO, o <strong>de</strong>senlace da acção dramática através<br />
<strong>de</strong> uma intervenção <strong>ex</strong>terior à intriga;<br />
2) a representação do tempo <strong>ex</strong>tracénico, isto é, a ligação da<br />
acção com o passado e com o futuro, com os acontecimentos<br />
mitológicos que a prece<strong>de</strong>ram ou se lhe seguem.<br />
b) Segundo Aristóteles, a lei da unida<strong>de</strong> e coerência aplica-se obri<br />
gatoriamente à tragédia; <strong>de</strong> acordo com a sua t<strong>eo</strong>ria, <strong>de</strong>ve ser<br />
rejeitada toda a utilização interventiva do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>, mas<br />
é, por outro lado, tolerada — e até incentivada — <strong>na</strong> <strong>de</strong>scrição do<br />
tempo <strong>ex</strong>tra-cénico.<br />
c) A crítica <strong>de</strong> Aristóteles à má utilização da u/n%avr) dirige-se tam<br />
bém <strong>ex</strong>pressamente contra Euripi<strong>de</strong>s.<br />
Po<strong>de</strong>mos dizer que Aristóteles recomenda a utilização do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong><br />
<strong>machi<strong>na</strong></strong>: é o meio privilegiado para transpor para a peça o tempo<br />
<strong>ex</strong>tracénico, isto é, para estabelecer uma relação íntima entre a intriga<br />
6 Aristóteles, é sabido, gostava <strong>de</strong> associar a tragédia à épica (cf. Po. 1449a<br />
5sqq, 1459b 8sqq e 1449b 9sqq). Em 1449a 6 <strong>de</strong>clara que estes dois géneros são os<br />
mais elevados, os mais nobres. Mais adiante (1449b 9-10) confirma que ambos apresentam<br />
factos (ou perso<strong>na</strong>gens) importantes. Afirma, além disso, que todos os elementos<br />
constituintes da epopeia se encontram <strong>na</strong> tragédia; o inverso não se verifica (1449b<br />
16-20). A classificação quadripartida, que Aristóteles aplica à tragédia, também a utiliza<br />
para a épica (1459b 8-12). A épica e a tragédia ape<strong>na</strong>s se distinguem uma da outra<br />
pela métrica e pela <strong>ex</strong>tensão (1449b 10-14 e 1459b 17sqq).<br />
7 W. Schmidt, Der Deus <strong>ex</strong> Machi<strong>na</strong> bei Euripi<strong>de</strong>s, Diss. Eberhard-Karls-<br />
-Universitát, Tiibingen, 1963, p. 13.
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 169<br />
da peça e os factores <strong>ex</strong>ternos — anteriores ou posteriores — que lhe<br />
são subjacentes. Por outras palavras, e num sentido mais restrito,<br />
Aristóteles apoia o emprego da t<strong>eo</strong>fania fi<strong>na</strong>l quando o seu único objec<br />
tivo é meramente profético, como é o caso do cuxiov. Por outro lado, é<br />
certo que os <strong><strong>de</strong>us</strong>es, quando surgem no <strong>de</strong>senlace das peças euripidia-<br />
<strong>na</strong>s, fazem-no com a intenção <strong>de</strong> predizer o <strong>de</strong>stino das perso<strong>na</strong>gens ou<br />
<strong>de</strong> estabelecer as or<strong>de</strong>ns divi<strong>na</strong>s a serem cumpridas pelos mortais. No<br />
entanto, há peças em que essas funções são <strong>de</strong>sempenhadas por<br />
mortais 8 , don<strong>de</strong> se conclui que, em Euripi<strong>de</strong>s, estas razões não consti<br />
tuem por si só motivo suficiente para forçar a entrada do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong><br />
<strong>machi<strong>na</strong></strong>.<br />
Contrariamente às opiniões comentadas até agora, Luciano, em<br />
Philops. 29, bem como o escoliasta do mesmo passo, perspectiva este pro<br />
blema do ponto <strong>de</strong> vista das dramatis perso<strong>na</strong>e. Para eles, a intervenção<br />
fi<strong>na</strong>l do <strong><strong>de</strong>us</strong> representa a salvação ou o auxílio inesperados, numa situa<br />
ção <strong>ex</strong>tremamente difícil 9 . A sua manifestação repenti<strong>na</strong> e as <strong>de</strong>cisões que<br />
vinculam todas as perso<strong>na</strong>gens são as características principais. «Die<br />
Gõtter sind notwendig — conclui Wieland Schmidt, a propósito do t<strong>ex</strong>to<br />
do escoliasta 10 — um die gewûnschte Autoritãt zu verleihen, da die Lysis<br />
wegen ihrer mangeln<strong>de</strong>n Konsequenz sonst keine hinreichen<strong>de</strong><br />
Glaubwiirdigkeit besitzt». Só a divinda<strong>de</strong> tem po<strong>de</strong>r suficiente para resol<br />
ver situações dramáticas huma<strong>na</strong>mente insolúveis. É por isso que o <strong><strong>de</strong>us</strong><br />
se tor<strong>na</strong> imprescindível, e também porque só a sua autorida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> confe<br />
rir credibilida<strong>de</strong> a uma solução que é per se <strong>ex</strong>tremamente improvável,<br />
inverosímil.<br />
A Suda (s.v. ãnò \ir\%avr\q) acrescenta a este <strong>conceito</strong> uma ligeira<br />
cambiante: a função do <strong><strong>de</strong>us</strong> está no acompanhamento e reforço das ce<strong>na</strong>s<br />
do pathos, que <strong>de</strong>viam provocar sentimentos <strong>de</strong> compaixão e <strong>de</strong> ódio nos<br />
espectadores n .<br />
É o caso <strong>de</strong> Teseu em HF 1322 sqq, por <strong>ex</strong>emplo; Polimestor em Hécuba<br />
1259-1281; Euristeu em Heracl. 1026-1044.<br />
9 Conceito idêntico po<strong>de</strong> <strong>de</strong>duzir-se também da crítica <strong>de</strong> Aristófanes em As<br />
mulheres que celebram as Tesmofórias.<br />
10 W. Schmidt, Der Deus <strong>ex</strong> Machi<strong>na</strong> bei Euripi<strong>de</strong>s, Diss. Eberhard-Karls-<br />
-Universitãt, Tiibingen, 1963, p. 12.<br />
11 Id., ibid., p. 23. Este mesmo autor <strong>de</strong>senvolve ainda (pp. 15-21) outras interpretações<br />
menos importantes ou menos interessantes das funções ou fi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s do<br />
<strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> (como, por <strong>ex</strong>emplo, a salvação dos bons e o castigo dos maus).
170 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
Os vários valores do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> entre os autores antigos po<strong>de</strong>m<br />
ser esquematizados do seguinte modo 12 :<br />
1) Do ponto <strong>de</strong> vista cénico: impressio<strong>na</strong>nte, patético (Aristófanes).<br />
2) Significado para o poeta:<br />
Solução cómoda. Indícios <strong>de</strong> i<strong>na</strong>bilida<strong>de</strong> (Platão, Antífanes,<br />
Aristóteles, Cícero e outros).<br />
3) Significado para as dramatis perso<strong>na</strong>e:<br />
a) Salvação (Aristófanes, Luciano, schol. ad Philops. 29 <strong>de</strong><br />
Luciano).<br />
b) Castigo (Luciano).<br />
4) Significado para os espectadores:<br />
a) Função <strong>de</strong> pathos (Suda, Políbio).<br />
b) ITtOavóv {schol. ad Philops. 29 <strong>de</strong> Luciano).<br />
c) Parénese (Clitofonte).<br />
5) Significado para a acção:<br />
a) Função <strong>de</strong> Xócnç (Aristóteles, Horácio, schol. ad Philops. 29<br />
<strong>de</strong> Luciano)<br />
b) Função etiológica como ligação da intriga com a acção <strong>ex</strong>tracénica<br />
(Aristóteles).<br />
6) Apreciações:<br />
a) como solução para o poeta sair <strong>de</strong> uma dificulda<strong>de</strong>: sempre<br />
negativa (Platão, Antífanes, Aristóteles, Cícero e outros).<br />
b) o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> como AAJCTIç' negativa (Aristóteles) e positiva<br />
(Horácio).<br />
c) o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> com funções etiológicas: positiva<br />
(Aristóteles).<br />
A análise aristotélica foi <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>nte para conferir uma carga <strong>de</strong>preciativa<br />
à utilização do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>. Toda a crítica posterior, até aos<br />
nossos dias, foi fortemente influenciada pelas normas que o Estagirita<br />
estabeleceu para a tragédia. Do ponto <strong>de</strong> vista teórico, o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong><br />
Id., ibid., pp. 32-33.
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 171<br />
passou a ser consi<strong>de</strong>rado uma violação do princípio aristotélico da verosi<br />
milhança e coerência entre o <strong>de</strong>senvolvimento da intriga e o seu <strong>de</strong>senla<br />
ce. Só recentemente o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> tem vindo a ser reabilitado e reva<br />
lorizado, após a rejeição <strong>de</strong> antigos pre<strong>conceito</strong>s.<br />
Muitas têm sido as razões apontadas pelos críticos mo<strong>de</strong>rnos para a<br />
utilização do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a provocação <strong>de</strong> espectaculares efei<br />
tos cénicos a <strong>ex</strong>igências <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m dramática ou a reminiscências <strong>de</strong> tradi<br />
ções religiosas, relacio<strong>na</strong>das com os festivais e cultos em que as represen<br />
tações se integravam. Outros sustentam uma opinião <strong>de</strong>preciativa, como é<br />
o caso <strong>de</strong> Kitto 13 , que consi<strong>de</strong>ra o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> um artifício conven<br />
cio<strong>na</strong>l utilizado por Euripi<strong>de</strong>s para fi<strong>na</strong>lizar as peças que não queria ou<br />
era incapaz <strong>de</strong> concluir.<br />
Ora, das <strong>de</strong>z 14 peças, que chegaram até nós, em que Euripi<strong>de</strong>s utili<br />
zou o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>, só em duas <strong>de</strong>las — Orestes e Hipólito — o <strong><strong>de</strong>us</strong><br />
intervém, para resolver uma situação insolúvel 15 . Nas restantes tragédias,<br />
a intervenção divi<strong>na</strong> ocorre quando todos os problemas já se encontram<br />
efectivamente resolvidos, ou seja, após a conclusão real da peça.<br />
Mais artificial {unkunstlerisch, no dizer <strong>de</strong> Wilamowitz) será o <strong><strong>de</strong>us</strong><br />
<strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> do Filoctetes <strong>de</strong> Sófocles. Aí sim, po<strong>de</strong>mos dizer que o <strong><strong>de</strong>us</strong><br />
<strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> constitui um verda<strong>de</strong>iro áXoyov 16 .<br />
Ora, o fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> IT é completamente inesperado para a audiência, não<br />
só <strong>de</strong>vido às profundas alterações que Euripi<strong>de</strong>s introduziu no mito, mas<br />
também porque Euripi<strong>de</strong>s nunca levantou a ponta do véu para revelar o<br />
<strong>de</strong>senlace. A interrogação <strong>de</strong> todos os espectadores, que vinha já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
prólogo da peça, sobre o tipo <strong>de</strong> relação entre o ritual do <strong>de</strong>rramamento<br />
13 H.D.F. Kitto, Greek Tragedy, London, 3 1961, p. 226 sqq, 287 e 323.<br />
14 Excluindo o Rhesos, que lhe foi falsamente atribuído, as peças referidas são<br />
as seguintes: Hipólito, Andrómaca, As Suplicantes, Electra, Ifigénia entre os Tauros,<br />
Ion, Hele<strong>na</strong>, Orestes, As Bacantes e Ifigénia em Auli<strong>de</strong> (embora esta tragédia tenha<br />
ficado i<strong>na</strong>cabada, o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> está documentado com segurança). Conforme já<br />
ficou dito, em Me<strong>de</strong>ia, Hécuba, Héraclès e Os Heraclidas, essa função é <strong>de</strong>sempenhada<br />
por mortais e não por <strong><strong>de</strong>us</strong>es. Em Héraclès há que ressalvar um <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong><br />
protagonizado por duas divinda<strong>de</strong>s, íris e Lissa, a meio da peça (vv. 822 sqq).<br />
13 E mesmo nestas, afirma A. E. Haigh, The Tragic Drama of the Greeks,<br />
Oxford, 1896 (Reimpr. 1946), pp. 245 sq, o resultado alcançado com o recurso ao <strong><strong>de</strong>us</strong><br />
<strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> teria sido obtido através <strong>de</strong> técnicas mais simples: «The safety of Orestes<br />
might have been ensured by the success of his <strong>de</strong>sign on Hermione; and the truth about<br />
Hippolytus might have been revealed by the confessions of the nurse.»<br />
16 Segundo a terminologia <strong>de</strong> Aristóteles (Po. 1454b 6), áXoyov <strong>de</strong>sig<strong>na</strong> tudo o<br />
que é contrário a Tò eítcòç f\ Tò âvayicaïov, tudo o que vai contra a or<strong>de</strong>m <strong>na</strong>tural,<br />
lógica ou racio<strong>na</strong>l da acção.
172 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
<strong>de</strong> sangue em Halas, a sacerdotisa Ifigénia, venerada em Bráuron, e a<br />
filha <strong>de</strong> Agamémnon, só no fi<strong>na</strong>l encontra a sua resolução. Ao contrário<br />
<strong>de</strong> outras peças, no prólogo <strong>de</strong> IT não são lançados os menores indícios<br />
sobre a conclusão fi<strong>na</strong>l. Isso é compreensível, pois, <strong>de</strong> outro modo, a peça<br />
per<strong>de</strong>ria muito em emotivida<strong>de</strong>. A acção é conduzida por entre alterações<br />
constantes da sorte, paralisando a assistência <strong>ex</strong>pectante <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong><br />
perante o perigo iminente.<br />
Após a célebre a<strong>na</strong>gnórise <strong>de</strong> IT, Ifigénia concebe um plano <strong>de</strong> fuga<br />
genial para salvar o irmão: ilu<strong>de</strong> o rei, convencendo-o da impureza da ima<br />
gem, contami<strong>na</strong>da pelos prisioneiros, réus <strong>de</strong> crimes <strong>de</strong> sangue, e da neces<br />
sida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os conduzir, juntamente com a estátua, até à praia, on<strong>de</strong> se<br />
encontrava fun<strong>de</strong>ado o barco <strong>de</strong> Orestes, para todos serem purificados pela<br />
água salgada, um dos modos <strong>de</strong> purificar objectos sagrados I7 . O Coro,<br />
arriscando a vida, promete encobrir a fuga dos irmãos. E assim faz, enga<br />
<strong>na</strong>ndo o mensageiro, que entra para advertir o rei do que se estava a pas<br />
sar, <strong>de</strong> modo a que os fugitivos possam ganhar tempo. Toas surge entre<br />
tanto em ce<strong>na</strong> e vem a saber pelo mensageiro que um dos dois prisioneiros<br />
era irmão <strong>de</strong> Ifigénia e que todos se puseram em fuga, levando consigo a<br />
imagem da <strong><strong>de</strong>us</strong>a. Ifigénia or<strong>de</strong>nou aos guardas que se afastassem, enquan<br />
to procedia às purificações necessárias. Quando dão conta, vêem a <strong>na</strong>u<br />
grega pronta para zarpar e os três jovens gregos a prepararem-se para o<br />
embarque. Os guardas tentam obstar à fuga dos prisioneiros, mas não resis<br />
tem ao pugilismo e à agilida<strong>de</strong> dos golpes com os pés, um género <strong>de</strong> luta<br />
que lhes era <strong>de</strong>sconhecido, e são forçados a bater em retirada.<br />
Todavia, não conseguem sair do porto. Um vento forte impe<strong>de</strong> a <strong>na</strong>u<br />
<strong>de</strong> se fazer ao largo, arremessando-a perigosamente contra os escolhos.<br />
Na opinião do mensageiro, este vento contrário <strong>de</strong>ve-se à acção <strong>de</strong><br />
Poséidon que conserva o seu ódio contra os Pelópidas por estes terem<br />
17 Importa aqui consi<strong>de</strong>rar a relevância da purificação <strong>de</strong> uma mácula — utóo-oç<br />
ou [líaayia — que po<strong>de</strong>ria ter sido contraída através <strong>de</strong> relações s<strong>ex</strong>uais, <strong>na</strong>scimento,<br />
morte e sobretudo homicídio (W. Burkert, Griechische Religion <strong>de</strong>r archaischen und<br />
klassischen Epoche, Stuttgart/Berlin/Kõln/Mainz, 1977, p. 133 e IT 381-3). Qualquer<br />
contacto com o sangue e a morte <strong>de</strong>ve ser evitado. E por isso que as virgens, porque<br />
ainda impolutas, assumem um papel importante em diversos cultos, <strong>de</strong>sempenhando as<br />
funções <strong>de</strong> sacerdotisas até atingirem a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> casar. A contami<strong>na</strong>ção atinge igualmente<br />
os santuários e as próprias imagens divi<strong>na</strong>s. São vários os <strong>ex</strong>emplos <strong>de</strong> purificações<br />
regulares <strong>de</strong> ídolos por meio da água, particularmente água salgada, sobretudo se<br />
a estátua esteve em contacto com cadáveres ou autores <strong>de</strong> crimes <strong>de</strong> sangue (vi<strong>de</strong><br />
<strong>ex</strong>emplos diversos em W. Burkert, ibid., pp. 134 sq e n. 44 e 45).
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 173<br />
causado a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Tróia. O rei promete empalar os fugitivos e castigar<br />
o Coro das cativas gregas pela sua cumplicida<strong>de</strong> <strong>na</strong> fuga dos Gregos.<br />
É neste cont<strong>ex</strong>to que surge o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>. A ce<strong>na</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> IT<br />
po<strong>de</strong> ser dividida em três partes: o discurso <strong>de</strong> Ate<strong>na</strong> (vv. 1435-1474), o<br />
breve diálogo entre a <strong><strong>de</strong>us</strong>a e Toas (vv. 1474-1486) e as palavras fi<strong>na</strong>is <strong>de</strong><br />
Ate<strong>na</strong> e do Coro (vv. 1487-1499).<br />
Ate<strong>na</strong> inicia a sua intervenção: or<strong>de</strong><strong>na</strong> a Toas (vv. 1435-1445) que<br />
cesse a sua perseguição, dado que o furto da imagem <strong>de</strong> Ártemis tinha o<br />
aval dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es. Poséidon já havia acalmado o mar a seu pedido. Depois<br />
dirige-se a Orestes (vv. 1446-1461) e or<strong>de</strong><strong>na</strong>The a instituição do culto <strong>de</strong><br />
Ártemis Taurópola em Halas. Volta-se para Ifigénia (vv. 1462-1467) e<br />
anuncia-lhe o seu futuro múnus em Bráuron, on<strong>de</strong> também há-<strong>de</strong> ser<br />
sepultada. De igual modo o Coro (vv. 1467-1469) é contemplado com a<br />
salvação e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regressar à Pátria, a merecida recompensa<br />
pelos seus préstimos no resgate <strong>de</strong> Ifigénia. Segue-se uma lacu<strong>na</strong>. Na opinião<br />
<strong>de</strong> Grégoire, Ate<strong>na</strong> daria instruções ao Coro (no verso 1494 as<br />
mulheres gregas confirmam que hão-<strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer às or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Ate<strong>na</strong>),<br />
provavelmente a prestação <strong>de</strong> serviços <strong>na</strong>lgum culto; England e Plat<strong>na</strong>uer<br />
consi<strong>de</strong>ram antes que o interlocutor seria Orestes e que o t<strong>eo</strong>r das suas<br />
palavras estaria em estreita relação com os versos que se seguem à lacu<strong>na</strong><br />
(1469-1474) — on<strong>de</strong> Ate<strong>na</strong> afirma que já o teria salvo uma vez, ao igualar<br />
a votação no Areópago, e <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> que a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> votos ilibará<br />
<strong>de</strong> ora em diante todo o réu. Seguidamente interpela Toas (v. 1474) e<br />
or<strong>de</strong><strong>na</strong>-lhe que não guar<strong>de</strong> ressentimentos. A resposta <strong>de</strong> Toas (vv. 1475-<br />
-1485) é a reacção típica <strong>de</strong> todos quantos se encontram <strong>na</strong> sua situação:<br />
conforma-se com a vonta<strong>de</strong> divi<strong>na</strong> 18 . «Não seria sensato (OòK ôpScoç<br />
çpoveí) <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer aos <strong><strong>de</strong>us</strong>es, diz ele (v. 1476); que há <strong>de</strong> belo em<br />
lutar contra os <strong><strong>de</strong>us</strong>es po<strong>de</strong>rosos (v. 1479)?» A <strong><strong>de</strong>us</strong>a louva a sua submissão<br />
e resig<strong>na</strong>ção (vv. 1475-1486). Fi<strong>na</strong>lmente, Ate<strong>na</strong> or<strong>de</strong><strong>na</strong> aos ventos<br />
que conduzam o filho <strong>de</strong> Agamémnon para Ate<strong>na</strong>s, enquanto ela os acompanhará,<br />
velando pela estátua da irmã (1487-1489). O Coro, por sua vez,<br />
dá largas à sua satisfação com o feliz <strong>de</strong>sfecho <strong>de</strong> toda a história para os<br />
18 A. Spira, Untersuchungen zum Deus <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> bei Sophocles und<br />
Euripi<strong>de</strong>s, Kallmiinz, 1969, <strong>de</strong>monstrou, <strong>na</strong> análise <strong>de</strong> Filoctetes e <strong>de</strong> Ion, que parte<br />
integrante das funções do <strong><strong>de</strong>us</strong> é também provocar uma alteração no coração (Ou^oç)<br />
das perso<strong>na</strong>gens. Ao manifestar-se assim, o <strong><strong>de</strong>us</strong> provoca uma conversão imediata da<br />
perso<strong>na</strong>gem a quem ele aparece. É o que acontece, por <strong>ex</strong>emplo, em IT e em Hele<strong>na</strong>,<br />
sua peça gémea, com Toas e T<strong>eo</strong>clímeno, respectivamente: aceitam piamente a vonta<strong>de</strong><br />
divi<strong>na</strong>, acreditam, ficam esclarecidos, conformados, transformados.
174 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
dois irmãos, promete obe<strong>de</strong>cer às or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Ate<strong>na</strong> e <strong>ex</strong>alta a <strong>de</strong>cisão da<br />
<strong><strong>de</strong>us</strong>a que propiciou o regresso das mulheres gregas à Pátria, contra todas<br />
as <strong>ex</strong>pectativas (1490-1496) 19 .<br />
O <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> po<strong>de</strong> condicio<strong>na</strong>r a interpretação global da peça.<br />
Na opinião <strong>de</strong> alguns estudiosos, a IT era uma obra educativa, sob o<br />
ponto <strong>de</strong> vista religioso, e Euripi<strong>de</strong>s visava, com ela, criar boa impressão<br />
em círculos mais conservadores, redimindo-se das acusações <strong>de</strong> impieda<strong>de</strong><br />
que lhe eram apontadas <strong>na</strong>s suas obras. Segundo outros, o intuito do Poeta<br />
teria sido o <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar margem para uma interpretação ambivalente, conci<br />
liatória <strong>de</strong> um <strong>conceito</strong> mais tradicio<strong>na</strong>lista, mais ortodoxo da divinda<strong>de</strong><br />
com uma visão mais céptica do fenómeno divino. Todavia, parte <strong>de</strong>ssa<br />
ortodoxia podia ser atribuída à pr<strong>eo</strong>cupação <strong>de</strong> Euripi<strong>de</strong>s com a recepção<br />
da peça, que, por sua vez, estava condicio<strong>na</strong>da pelo tratamento do mito <strong>na</strong><br />
Or esteia esquilia<strong>na</strong> 20 .<br />
O <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> <strong>de</strong> IT não é utilizado para solucio<strong>na</strong>r uma<br />
UTiopía, nem para resolver o <strong>de</strong>senlace fi<strong>na</strong>l da intriga. Quando muito,<br />
inverte a situação difícil e comprometedora em que o Coro se encontrava.<br />
O que é <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do pela divinda<strong>de</strong> vem <strong>na</strong> sequência da evolução dos<br />
acontecimentos, pois a acção havia atingido o seu <strong>de</strong>senlace muito <strong>na</strong>tu<br />
ralmente, sem que a intervenção divi<strong>na</strong> para tal tivesse sido necessária.<br />
Por outras palavras, a peça podia termi<strong>na</strong>r antes do <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>. Este<br />
tem a função <strong>de</strong> <strong>ex</strong>por os acontecimentos mitológicos posteriores e sobre<br />
tudo a instituição <strong>de</strong> um aition, que permite a Euripi<strong>de</strong>s aumentar a vero<br />
similhança da intriga, uma vez que implica geralmente que o <strong><strong>de</strong>us</strong>, ao<br />
transmitir as predisposições divi<strong>na</strong>s, termine o seu discurso com a funda<br />
ção <strong>de</strong> um culto, como é o caso. O <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> tem aqui um signifi-<br />
19 Como agudamente observa K. Matthiessen, Elektra, Taurische Iphigenie und<br />
Hele<strong>na</strong>. Untersuchungen zur Chronologie und zur dramatischen Form im Spãtwerk <strong>de</strong>s<br />
Euripi<strong>de</strong>s, Gõttingen, 1964, p. 60, a ce<strong>na</strong> correspon<strong>de</strong>nte <strong>na</strong> Hele<strong>na</strong> não só é mais<br />
breve, como <strong>de</strong> mais simples construção, don<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r que Euripi<strong>de</strong>s terá<br />
composto IT antes <strong>de</strong> Hele<strong>na</strong>. Ao imitar, nesta última peça, o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> da primeira,<br />
o poeta simplificou bastante a sua estrutura e tornou-a mais transparente. Por<br />
outro lado, o discurso dos Dioscuros, em Hele<strong>na</strong>, é mais directo, mais bem organizado,<br />
mais escorreito. Não é tão <strong>de</strong>sorganizado como em IT, on<strong>de</strong> Ate<strong>na</strong> ora dirige a palavra a<br />
uma perso<strong>na</strong>gem, ora a outra, e, como se se tivesse esquecido <strong>de</strong> algo, volta novamente<br />
a dar instruções às que havia inicialmente interpelado ... Além disso, a função do <strong><strong>de</strong>us</strong><br />
<strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> no conjunto global da acção parece mais artificial, mais <strong>de</strong>senquadrado em<br />
Hele<strong>na</strong>. Por tudo isto, Matthiessen é levado a concluir que IT é anterior a Hele<strong>na</strong>.<br />
20 Cf. o nosso artigo «O contributo do mito <strong>de</strong> Ifigénia, <strong>na</strong> sua versão da<br />
Ifigénia entre os Tauros, para a interpretação da Oresteia», Humanitas 46 (1994)<br />
pp. 75-109, com particular relevância para as pp. 101-102.
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 175<br />
cado etiológico <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza mitológico-ritual. O fi<strong>na</strong>l da peça está, pois,<br />
em consonância com o que o Estagirita preconizava.<br />
Por outro lado, esta última inversão do ramo dos acontecimentos, clara<br />
mente artificial, para pret<strong>ex</strong>tar o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>, contradiz aparentemente a<br />
t<strong>eo</strong>ria aristotélica da divisão da tragédia, conforme veremos mais adiante.<br />
Quando a fuga <strong>de</strong>corria pelo melhor, o <strong>na</strong>vio é repelido para a praia<br />
por duas vagas. Ifigénia atribui o fenómeno à cólera <strong>de</strong> Artemis — terá<br />
Orestes interpretado mal a intenção da <strong><strong>de</strong>us</strong>a? —; o mensageiro, pelo con<br />
trário, atribui a autoria do acontecimento a Poséidon — não se enten<strong>de</strong>rão<br />
os <strong><strong>de</strong>us</strong>es entre si, transferindo as suas guerras do plano divino para o<br />
humano? Confirma-se, conforme ficara dito nos vv. 572-3, que é a confu<br />
são (rapayuóç) que impera tanto entre <strong><strong>de</strong>us</strong>es como entre mortais 21 ? que<br />
é a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e não o <strong>de</strong>stino quem <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> o rumo dos acontecimen<br />
tos? Ate<strong>na</strong>, salienta Burnett, não nos diz se se tratou <strong>de</strong> um simples fenó<br />
meno da <strong>na</strong>tureza ou se se ficou a <strong>de</strong>ver a Poséidon. Ape<strong>na</strong>s refere que<br />
interce<strong>de</strong>u junto <strong>de</strong> Poséidon para apaziguar as águas, don<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>rá<br />
concluir que a agitação marítima foi provocada por Poséidon 22 . Burnett<br />
infere daqui uma intenção poética favorável aos <strong><strong>de</strong>us</strong>es. Estes reger-se-<br />
-iam por um código <strong>de</strong> honra aristocrático, a <strong>ex</strong>emplo do que acontecia<br />
entre os mortais. O poeta teria tido a intenção <strong>de</strong> retratar os Olímpicos<br />
como uma família nobre, bem organizada, respeitadora da lei, interessada<br />
pelos mortais e bem informada dos planos <strong>de</strong> todos os membros 23 .<br />
21 Em Hec. 958-960, Polimestor diz que são os <strong><strong>de</strong>us</strong>es que provocam propositadamente<br />
essa confusão, para que os mortais, ignorantes da sua sorte futura, os adorem.<br />
22 A. P. Burnett, Catastrophe Survived, Oxford, 1971, p. 66. É falsa a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
a<strong>na</strong>rquia sobre<strong>na</strong>tural, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoor<strong>de</strong><strong>na</strong>ção ou <strong>de</strong> discórdia entre os <strong><strong>de</strong>us</strong>es, <strong>de</strong>ixada<br />
transparecer por U. Albini, «L'Ifigenia in Tauri<strong>de</strong> e la fine <strong>de</strong>i mito», Parola <strong>de</strong>i<br />
Passato 38 (1983), p. 112, como se os <strong><strong>de</strong>us</strong>es não se enten<strong>de</strong>ssem entre si. Não assim<br />
em Homero (vi<strong>de</strong> M. H. Rocha Pereira, Estudos <strong>de</strong> História da Cultura Clássica. I<br />
Volume. Cultura Grega. Lisboa, 6 1987, pp. 108-111): os concílios «tumultuosos e<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros», o «Dolo <strong>de</strong> Zeus», a dicotomia <strong><strong>de</strong>us</strong>es tutelares/ <strong><strong>de</strong>us</strong>es perseguidores a<br />
par das respectivas consequências nocivas para a harmonia divi<strong>na</strong> (por <strong>ex</strong>emplo, Ate<strong>na</strong><br />
e Poséidon em Od. 6. 325-331), etc., são bem o refl<strong>ex</strong>o da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e da discórdia<br />
que <strong>ex</strong>iste entre as divinda<strong>de</strong>s.<br />
23 Porém, esta característica nobre, responsável e civilizada dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es não se<br />
coadu<strong>na</strong> com a perspectiva <strong>de</strong> K. V. Hartigan («Salvation via <strong>de</strong>ceit. A new look at<br />
Iphigeneia at Tauris», Eranos 84 (1986), pp. 119-125). Este autor consi<strong>de</strong>ra que, sendo<br />
IT uma peça sobre sacrifício e salvação, esta é conseguida por meios reprováveis:<br />
matricídio, roubo, persuasão enga<strong>na</strong>dora e mentiras (ele remete para a palavra TS%VTJ<br />
nos versos 24, 89, 1032; ao
176 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
Nem sempre é possível encontrar uma <strong>ex</strong>plicação razoável e racio<strong>na</strong>l<br />
para todos os acontecimentos. Se algo — <strong>de</strong> bom ou <strong>de</strong> mau — não é<br />
coerentemente imputável nem a <strong><strong>de</strong>us</strong>es, nem a mortais, a que se ficará,<br />
então, a <strong>de</strong>ver? Nos vv. 895sqq Ifigénia faz a repartição dos responsáveis<br />
pelos fenómenos em três categorias:<br />
Tíç av ouv xáS' dv f) 9eòç f] ftpoTÒç r)<br />
XX TCÕV âSoicflTCOV<br />
jtópov â-Kopov è^avócaç<br />
Suoïv xoïv u.óvoiv 'Axpsíõaiv cpavsí<br />
KOKSV SKA,I>OT.V.<br />
Já Esquilo, em Pr. 116, havia sugerido a <strong>ex</strong>istência <strong>de</strong> um terceiro<br />
ser intermédio entre o humano e o divino. Prometeu interroga-se sobre a<br />
proveniência do som e do odor, absorvidos pelos seus sentidos. Põe a<br />
hipótese <strong>de</strong> provirem <strong>de</strong> um <strong><strong>de</strong>us</strong>, <strong>de</strong> um homem ou <strong>de</strong> uma mistura <strong>de</strong><br />
<strong><strong>de</strong>us</strong> e homem (KSKpapisvT]). Do mesmo modo, também em Hei. 1137-<br />
-1143, peça elaborada, conforme já ficou dito, à imagem <strong>de</strong> IT, Euripi<strong>de</strong>s<br />
apresenta o mesmo <strong>conceito</strong> <strong>de</strong> ser intermédio entre <strong><strong>de</strong>us</strong> e homem que<br />
escapa à compreensão huma<strong>na</strong>: ô xi 9eòç f\ \ir\ Geòç f\ xò piecrov.<br />
Para melhor compreen<strong>de</strong>rmos este po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sconhecido que nem<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es, nem dos humanos, <strong>de</strong>veremos ter em consi<strong>de</strong>ração<br />
um <strong>conceito</strong> que afecta directamente os mortais: a xó%rj, vocábulo que<br />
significava inicialmente «aquilo que se nos <strong>de</strong>para» 24 .<br />
profere é o <strong>de</strong> Pélops, ao qual está associada a utilização <strong>de</strong> meios ilícitos para obter a<br />
vitória sobre Enómao, bem como a morte <strong>de</strong>ste e do seu auriga Mírtilo por Pélops.<br />
Na Auli<strong>de</strong>, Agamémnon enganou Ifigénia para obter da divinda<strong>de</strong> os ventos<br />
necessários à partida das <strong>na</strong>us. Agamémnon mentiu, para atrair a filha ao altar <strong>de</strong> Artemis,<br />
pois chamou-a sob o pret<strong>ex</strong>to <strong>de</strong> ficar noiva <strong>de</strong> Aquiles. Orestes, por seu lado,<br />
<strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> alcançar a salvação, dirige-se à Táuri<strong>de</strong> para roubar a imagem <strong>de</strong> Ártemis.<br />
Ifigénia junta-se ao irmão para enga<strong>na</strong>rem o rei bárbaro e fugirem com a estátua. Após<br />
a ce<strong>na</strong> do reconhecimento, Ifigénia utiliza o pret<strong>ex</strong>to do crime <strong>de</strong> Orestes, que teria<br />
contami<strong>na</strong>do a estátua <strong>de</strong> Ártemis, para facilitar a fuga. Matricídio, mentira, engano,<br />
roubo são, portanto, os móbiles, para alcançarem o pretendido: a salvação.<br />
A utilização <strong>de</strong>sses meios encontra-se justificada pelos próprios <strong><strong>de</strong>us</strong>es. E Apolo<br />
que aconselha a Orestes o matricídio e o roubo da estátua. Ártemis também enganou os<br />
Gregos em Áuli<strong>de</strong>, quando substituiu Ifigénia por uma corça, levando-os a pensar que<br />
a jovem princesa tinha sido imolada. Este facto, por sua vez, conduziu, como numa<br />
reacção em ca<strong>de</strong>ia, aos enganos praticados <strong>na</strong> Táuri<strong>de</strong> e ao roubo da estátua.<br />
Por outro lado, Ate<strong>na</strong> ao surgir <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>, para confirmar a justeza dos oráculos<br />
divinos, <strong>de</strong>monstra apoiar as acções <strong>de</strong> Apolo e <strong>de</strong> Ártemis; por outras palavras, Ate<strong>na</strong><br />
consi<strong>de</strong>raria o roubo e o engano meios válidos para atingir um <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do fim.<br />
24 Vi<strong>de</strong> M. H. Rocha Pereira, «Tyche», in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira<br />
<strong>de</strong> Filosofia, vol. 5, Lisboa, 1993.
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 177<br />
Entrámos, assim, no domínio da condição huma<strong>na</strong>, das incertezas e<br />
mistérios da vida, das dúvidas que se instalam numa mente domi<strong>na</strong>da, <strong>de</strong><br />
certo modo, pelo <strong>ex</strong>istencialismo. Como esses mistérios não encontram<br />
<strong>ex</strong>plicação nem no plano humano, nem <strong>na</strong>s intervenções divi<strong>na</strong>s, a condição<br />
huma<strong>na</strong> <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> atribuí-las à TU%T). Como M. H. Rocha Pereira salienta,<br />
«esta noção está em correlação com a da impotência, da i<strong>na</strong>nida<strong>de</strong> do<br />
esforço humano, da imprevisibilida<strong>de</strong> dos acontecimentos» que se manifesta,<br />
por vezes, <strong>na</strong> tragédia 25 . Por isso, o espectador <strong>de</strong> IT vê a problemática<br />
da sua própria <strong>ex</strong>istência reflectida no <strong>ex</strong>emplo edificante <strong>de</strong> Orestes e<br />
Ifigénia: a impotência huma<strong>na</strong> (a áur]%avía) perante os caprichos da sorte.<br />
Apesar <strong>de</strong> o Homem nunca conseguir domi<strong>na</strong>r a TO%TJ, tem <strong>na</strong> sua<br />
mão po<strong>de</strong>res para alterar o seu curso 26 . O po<strong>de</strong>r mais forte é a xsxvn que<br />
surge constantemente em antítese com a Tú%TJ. Em IT 89, Orestes admite<br />
a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se apo<strong>de</strong>rar da estátua por duas maneiras diferentes: í]<br />
T8%vatcnv 7] túxTji. Os vv. 907sqq lembram-nos que o homem pru<strong>de</strong>nte<br />
(cocpóç) sabe aproveitar a ocasião (Karpóç), para, através da TSXVT) (e da<br />
ajuda divi<strong>na</strong>), tentar alterar a xú%r).<br />
Se o Homem tem meios à sua disposição para modificar a sua sorte,<br />
maior po<strong>de</strong>r terá a divinda<strong>de</strong>. Embora a xó%rj seja um <strong>conceito</strong> distinto<br />
dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es, po<strong>de</strong>rá por eles ser controlada e alterada 27 . Porém, <strong>na</strong>lguns<br />
autores, como Píndaro, que, em Pyth. 8. 53, refere a zv%r) BSCDV, ela é<br />
associada à vonta<strong>de</strong> dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es e com eles confundida, a ponto <strong>de</strong> o <strong>conceito</strong><br />
abstracto se personificar numa divinda<strong>de</strong> individualizada 28 . Embora<br />
se diga que, <strong>de</strong> <strong>conceito</strong> abstracto que era, não tenha atingido em<br />
Euripi<strong>de</strong>s, nem a personificação, vulgarizada posteriormente, nem uma<br />
sistematização doutrinária, nele já estão esboçados os primeiros traços do<br />
25<br />
Id., «Fortu<strong>na</strong>», in Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira <strong>de</strong> Cultura, vol. 8,<br />
Lisboa, 1969.<br />
26<br />
A. Garzya, Pensiero e Técnica Drammatica in Euripi<strong>de</strong>, Napoli s.d., diz o<br />
seguinte, <strong>na</strong> p. 82: «L'uomo s'accinge a modificare secondo il suo disegno il corso<br />
<strong>de</strong>li'esistenza e in questa impresa può vincere o fallire, nella misura in cui riuscirà a<br />
ridurre il margine concesso aU'imprevisto.»<br />
27<br />
Assim o <strong>de</strong>monstra claramente Ion 67-68: Ao^íaç 5è TT]V ií%r)v èç<br />
TOUT' êXaúvsi.<br />
28<br />
Vi<strong>de</strong> M. H. Rocha Pereira, «Tyche», in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira<br />
<strong>de</strong> Filosofia, vol. 5, Lisboa, 1993.<br />
Cf.também K. Matthiessen, Elektra, Taurische Iphigenie und Hele<strong>na</strong>,<br />
Untersuchungen zur Chronologie und zur dramatischen Form im Spãtwerk <strong>de</strong>s<br />
Euripi<strong>de</strong>s, Gõttingen, 1964, p. 182, que apresenta, para este <strong>conceito</strong>, uma <strong>de</strong>finição<br />
condizente com a sua divinização: «TóXT) ist es, was <strong>de</strong>m Menschen von <strong>de</strong>n Gõttern<br />
wi<strong>de</strong>rfãhrt, und nicht zu vestehen gilt es sie, son<strong>de</strong>m zu ertragen».
178 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
<strong>na</strong>scimento <strong>de</strong> uma nova divinda<strong>de</strong>, que se irá impor paulati<strong>na</strong>mente no<br />
pensamento clássico 29 .<br />
Mas o Homem não consegue compreen<strong>de</strong>r as atitu<strong>de</strong>s dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es 30 .<br />
Orestes e Ifigénia queixam-se disso ao longo <strong>de</strong> toda a peça 31 . Ora fazem<br />
uma interpretação pessimista da atitu<strong>de</strong> da divinda<strong>de</strong>; ora tentam perscrutar<br />
boas intenções <strong>na</strong>s acções divi<strong>na</strong>s, com base numa interpretação optimista.<br />
Em qualquer dos casos, não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> cumprir piamente as instruções<br />
divi<strong>na</strong>s. E os <strong><strong>de</strong>us</strong>es recompensam-nos no fi<strong>na</strong>l alterando<br />
<strong>de</strong>finitivamente a xv%r}. Esta atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> observância das <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ções<br />
divi<strong>na</strong>s, apesar do infortúnio que daí lhes advinha, era muito instrutiva<br />
para a audiência, quase parenética.<br />
Demócrito e Tucídi<strong>de</strong>s, mais racio<strong>na</strong>listas, põem em causa o valor<br />
divino <strong>de</strong>ste <strong>conceito</strong>. Como <strong>ex</strong>plica Garzya, «in Tucidi<strong>de</strong> la realtà<br />
<strong>de</strong>U'incalcolabile <strong>de</strong>lia storia, che si indica col nome di Tó%T), non assurge<br />
mai a potenza divi<strong>na</strong> e, se rimane nella sfera <strong>de</strong>U'irrazio<strong>na</strong>le, non lo è mai<br />
su un piano metafísico, ma sempre entro i limiti <strong>de</strong>ll'azione uma<strong>na</strong> che,<br />
29 Cf. W. laeger, Pai<strong>de</strong>ia, Berlin, 3 1954, p. 444. Po<strong>de</strong>mos dizer que em Hec.<br />
865 já se <strong>de</strong>ixam adivinhar os contornos <strong>de</strong> uma Tú%T| personificada: f\ xpripáTcov<br />
yàp SoCXóç scTiv íj -cóxrjç. Numa peça bastante posterior a Hécuba, no Ion, essa<br />
personificação está praticamente realizada. Ion apostrofa a Fortu<strong>na</strong>, nos vv. 1512-1515.<br />
Curiosamente, o Ion é das peças com maior número <strong>de</strong> referências à Tò%T] — <strong>na</strong>da<br />
menos que 13 alusões <strong>ex</strong>plícitas — e só <strong>na</strong> última menção se regista a personificação<br />
da Fortu<strong>na</strong>.<br />
J. <strong>de</strong> Romilly, La mo<strong>de</strong>rnité d'Euripi<strong>de</strong>, Paris, 1986, pp. 30sq, aproveita este problema,<br />
para reforçar a sua tese com mais um traço característico da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Euripi<strong>de</strong>s: «la «fortune» est, on le sait, fort importante dans la pensée d'Épicure et<br />
dans celle <strong>de</strong>s stoïciens. Chez Euripi<strong>de</strong>, elle ne s'insère pas encore dans un système.<br />
Mais sa présence à tous les détours <strong>de</strong> l'œuvre constitue un témoig<strong>na</strong>ge sur le malaise<br />
du temps, d'autant plus probant qu'il n'est pas systématique. (...) Et le théâtre<br />
d'Euripi<strong>de</strong>, en faisant passer cette atmosphère nouvelle sur la scène, <strong>de</strong>vait alors sonner<br />
terriblement mo<strong>de</strong>rne — au sens relatif du terme.»<br />
30 Matthiessen, Elektra, Taurische Iphigenie und Hele<strong>na</strong>, Untersuchungen zur<br />
Chronologie und zur dramatischen Form im Spàtwerk <strong>de</strong>s Euripi<strong>de</strong>s, Gõttingen, 1964,<br />
p. 182, cita B. v. Wiese, Die <strong>de</strong>útsche Tragõdie von Lessing bis Hebbel, para <strong>de</strong>finir a<br />
essência da tragédia: «Ihre eigentliche Wurzel liegt dort wo die gõttliche Existenz<br />
abgrundig, rátselhaft, problematisch gewor<strong>de</strong>n ist, <strong>de</strong>r Mensch aber sein eigenes Dasein<br />
<strong>de</strong>nnoch in <strong>de</strong>r gewollten o<strong>de</strong>r ungewollten Abhãngigkeit von <strong>de</strong>n gõttlichen Mâchten<br />
erlebt». Embora estas palavras procurem <strong>de</strong>finir a particularida<strong>de</strong> da concepção trágica<br />
do Mundo em relação à cristã, conforme Matthiessen reconhece, este autor aplica-as à<br />
relação entre a Tragédia e a fé <strong>na</strong> Tyche. Há sempre a tentação — perigosa, diga-se —<br />
<strong>de</strong> interpretar factos da cultura grega à luz <strong>de</strong> pressupostos cristãos. No entanto, o estabelecimento<br />
<strong>de</strong>sse paralelo não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter aqui cabimento.<br />
31 As dúvidas <strong>ex</strong>pressas por Orestes relativamente ao oráculo <strong>de</strong> Apolo têm uma<br />
fi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> dramática: preparar e reforçar a peripécia.
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 179<br />
anche se guidata da ragione, si proietta sempre nel futuro con un margine<br />
notevole di incertezza e di rischio» 32 .<br />
Todavia, esta projecção no futuro não significa que Tó%T] (sorte, for<br />
tu<strong>na</strong>, acaso) seja idêntica a fxoipa ou aíaa (<strong>de</strong>stino, fado). Estas duas<br />
i<strong>de</strong>ias não <strong>de</strong>vem ser confundidas, embora Arquíloco consi<strong>de</strong>re a primeira<br />
irmã da segunda, o que, como M. H. Rocha Pereira <strong>ex</strong>plica, «é uma<br />
maneira <strong>de</strong> equiparar os dois <strong>conceito</strong>s basicamente opostos, uma vez que<br />
esta pressupõe a pré-<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ção e aquela <strong>de</strong>sig<strong>na</strong> o inesperado, o con<br />
tingente» 33 . Portanto, apesar <strong>de</strong> estarmos perante duas i<strong>de</strong>ias antagónicas,<br />
elas complementam-se uma à outra. Píndaro, <strong>na</strong> II- O<strong>de</strong> Olímpica (35sqq),<br />
<strong>de</strong>ixa pressupor a sorte como parte integrante da umpa. Assim, por mais<br />
voltas que aquela dê, o Destino está fatal e inevitavelmente traçado. Só no<br />
<strong>de</strong>correr da vida, após a ocorrência <strong>de</strong> boas e más marés, este se clarifica<br />
rá, e quanto mais avançada for a ida<strong>de</strong>, mais claro ele se há-<strong>de</strong> tor<strong>na</strong>r.<br />
A palavra (xoípa significa a «parte» que cabe a cada um <strong>na</strong> vida.<br />
Esta permanece i<strong>na</strong>lterável, ao passo que a TO^T) tem um po<strong>de</strong>r múltiplo e<br />
versátil, pois não é fixa e po<strong>de</strong> ser alterada a todo o momento 34 . Os <strong>de</strong>u<br />
ses não têm, em princípio, qualquer po<strong>de</strong>r sobre a (xoïpa, apesar <strong>de</strong>, no<br />
canto 16 da Ilíada (441-443), uma <strong>ex</strong>clamação <strong>de</strong> Hera <strong>de</strong>ixar entrever<br />
essa possibilida<strong>de</strong> 35 , tal como Apolo altera o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Admeto, no<br />
drama Alceste <strong>de</strong> Euripi<strong>de</strong>s, embora, para isso, tivesse que iludir as<br />
Moiras ou Parcas: Moípaç So^cocraç {Ale. 12). No entanto, além da<br />
32 A. Garzya, Pensiero e Técnica Drammatica in Euripi<strong>de</strong>, Napoli s.d., p. 72.<br />
33 M. H. Rocha Pereira, «Tyche», in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira <strong>de</strong><br />
Filosofia, vol. 5, Lisboa, 1993.<br />
34 A. Garzya, ibid., <strong>de</strong>fine como vb%r\ «tutto il molteplice insieme di speranze<br />
mancate e di eventi falliti, di ignoto che cangia in letizia e di miracoloso e di incredibile,<br />
che va incontro all'uomo sulla sua strada e lo abbatte o lo i<strong>na</strong>lza secondo un gioco<br />
imprevedibile, un avvicendarsi misterioso e sconcertante di eventi».<br />
Recor<strong>de</strong>mos a metáfora da roda da Fortu<strong>na</strong>: a roda gira e não está fixa, tanto<br />
assim que tão <strong>de</strong>pressa está em movimento ascen<strong>de</strong>nte, como se move em sentido inverso.<br />
Esta imagem já se encontra presente em Heródoto 1. 207, quando Creso adverte<br />
Ciro da instabilida<strong>de</strong> das coisas huma<strong>na</strong>s e da inconstância da fortu<strong>na</strong> (SKSïVO TtpSxov<br />
páBs ã>ç KÓKXOç TSV àvôpamrjícov serti rcpriypaxcov, Ttepitpepópsvoç 8s OúK<br />
èãi aísi TOIç aô-couç sí>TU%éeiv). Simóni<strong>de</strong>s <strong>de</strong> C<strong>eo</strong>s (fr. 16 Page) compara a instabilida<strong>de</strong><br />
da sorte ao volver <strong>de</strong> asas <strong>de</strong> uma mosca. Em Or. 981, Electra diz que toda a<br />
vida dos mortais é instável, mas não se refere especificamente à sorte.<br />
Relativamente à uoîpa, Homero não admite que ela possa ser alterada, nem<br />
mesmo pelos próprios <strong><strong>de</strong>us</strong>es (//. 6. 487-9 e Od. 3. 236-8). Cf. M. H. Rocha Pereira,<br />
«Moira», in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira <strong>de</strong> Filosofia, vol. 3, Lisboa, 1991.<br />
35 Cf. M. H. Rocha Pereira, Estudos <strong>de</strong> História da Cultura Clássica. 1 Volume.<br />
Cultura Grega. Lisboa, 6 1987, pp. 120-22.
180 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
xó%T), também a jaoïpa po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma «ema<strong>na</strong>ção do divino, e<br />
como tal atribuída à vonta<strong>de</strong> dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es« 36 , nomeadamente <strong>de</strong> Zeus. Em<br />
//. 9. 608, há uma alusão à aíaa do pai dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es, como sendo por ele<br />
<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da. M. H. Rocha Pereira <strong>ex</strong>plica que «esta flutuação po<strong>de</strong> signi<br />
ficar que se trata <strong>de</strong> duas interpretações in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes dos acontecimen<br />
tos, uma que os atribui a algo que suce<strong>de</strong> por si e que pertence a uma<br />
or<strong>de</strong>m prevista e outra à actuação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res superiores» 37 . Esta acepção<br />
já se <strong>de</strong>senha <strong>na</strong> <strong>ex</strong>pressão umpct Oscõv, que ocorre em Od. 3. 269 e 22.<br />
413 e ainda em Sólon, fr. 13.30 West.<br />
Enquanto Esquilo e Sófocles põem em <strong>de</strong>staque a Moira, Euripi<strong>de</strong>s<br />
privilegia a Fortu<strong>na</strong>. No caso <strong>de</strong> IT, por <strong>ex</strong>emplo, Albini põe em causa as<br />
intervenções e os <strong>de</strong>sígnios divinos dos quatro <strong><strong>de</strong>us</strong>es aí mencio<strong>na</strong>dos<br />
(Artemis, Apolo, Poséidon e Ate<strong>na</strong>), como se as suas intenções e acções<br />
colidissem entre si, e conclui do seguinte modo: «Non si riesce piú ad<br />
interpretare la legge <strong>de</strong>i <strong>de</strong>stino, a illumi<strong>na</strong>re ciò che sta dietro le cose» 38 .<br />
O que está em causa, em nossa opinião, é o <strong>conceito</strong> <strong>de</strong> Tú^T) e não <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>stino 39 . O <strong>de</strong>stino só se compreen<strong>de</strong>rá no fi<strong>na</strong>l da vida <strong>de</strong> cada ser<br />
humano. Quando Heitor se <strong>de</strong>spedia <strong>de</strong> Andrómaca, sua mulher, para ir<br />
36<br />
M. H. Rocha Pereira, «Tyche», in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira <strong>de</strong><br />
Filosofia, vol. 5, Lisboa, 1993.<br />
37<br />
M. H. Rocha Pereira, «Moira», in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira <strong>de</strong><br />
Filosofia, vol. 3, Lisboa, 1991, e in Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira <strong>de</strong> Cultura,<br />
vol. 13, Lisboa, 1972.<br />
38<br />
U. Albini, «L'Ifigenia in Tauri<strong>de</strong> e la fine <strong>de</strong>i mito», Parola <strong>de</strong>i Passato 38<br />
(1983), p. 112.<br />
39<br />
Não há lugar a qualquer dissensão entre os <strong><strong>de</strong>us</strong>es. O fi<strong>na</strong>l da peça <strong>de</strong>monstra<br />
claramente o consenso e a coor<strong>de</strong><strong>na</strong>ção que norteiam as suas atitu<strong>de</strong>s. Estas é que são<br />
muitas vezes mal interpretadas pelos mortais, pois os <strong><strong>de</strong>us</strong>es colocam o Homem perante<br />
duas possibilida<strong>de</strong>s: salvação ou perdição. Compete a este escolher. Se, em IT,<br />
Orestes se recusasse a cumprir as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Apolo, por consi<strong>de</strong>rar que o <strong><strong>de</strong>us</strong> pretendia<br />
a sua perdição, o <strong>de</strong>sfecho não seria tão feliz. Mas cumpriu piamente todas as indicações<br />
da divinda<strong>de</strong> e foi recompensado.<br />
M. O. Pulquério, «De novo o párodo do Agamemnon», Humanitas 37-38 (1985-<br />
-1986), p. 8, afirma, a propósito do Agamémnon <strong>de</strong> Esquilo: «Artemis e Zeus limitam-<br />
-se a criar as condições em que o Atrida terá que se <strong>de</strong>finir face ao <strong>de</strong>stino.» Noutro<br />
artigo («O problema do sacrifício <strong>de</strong> Ifigénia no Agamémnon <strong>de</strong> Esquilo», Humanitas<br />
21-22 (1969-1970), p. 376), o mesmo especialista já havia afirmado: «Zeus oferece-lhe<br />
(a Agamémnon) a salvação e a perdição, a um tempo (...) E, se Zeus põe no caminho<br />
<strong>de</strong> Agamémnon esta <strong>de</strong>cisão para o per<strong>de</strong>r, esse factor não parece intervir <strong>na</strong> <strong>de</strong>cisão<br />
que Agamémnon toma com inteira liberda<strong>de</strong>.» Também daqui se <strong>de</strong>duz que os <strong><strong>de</strong>us</strong>es<br />
não têm po<strong>de</strong>res para alterar o <strong>de</strong>stino. Po<strong>de</strong>m alterar o <strong>de</strong>curso da TúXTJ e disponibilizar<br />
ou suprimir parte dos meios que o Homem tem à sua disposição para aumentar ou<br />
reduzir a «margem concedida ao imprevisto», mas é a este que cabe a última palavra.
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 181<br />
para a guerra (//. 6. 487-489), acalmava-a, assegurando-lhe que não iria<br />
morrer se essa não fosse a vonta<strong>de</strong> do <strong>de</strong>stino. Nesta peça, po<strong>de</strong>ríamos<br />
dizer que o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Ifigénia, por <strong>ex</strong>emplo, era ser resgatada pelo irmão<br />
e regressar à Pátria, o que aconteceu, apesar <strong>de</strong> todas as contrarieda<strong>de</strong>s<br />
criadas, não pelo mesmo <strong>de</strong>stino, mas pela fortu<strong>na</strong>.<br />
A Tú%T) é, pois, um <strong>conceito</strong> muito caro a Euripi<strong>de</strong>s 40 , que, como<br />
Jaeger salienta, gosta <strong>de</strong> organizar a acção por meio <strong>de</strong> complicadas intrigas<br />
e fazer-nos seguir com íntima tensão a luta da astúcia e da habilida<strong>de</strong><br />
huma<strong>na</strong>s contra a nuvem das flechas <strong>de</strong> Tyche» 41 . Assim acontece em IT,<br />
conforme refere Burnett: «This play (IT) takes the role of acci<strong>de</strong>nt in<br />
human life more seriously than any other Euripi<strong>de</strong>an tragedy does» 42 .<br />
E para comprovar tal afirmação, faz o levantamento <strong>de</strong> várias referências,<br />
<strong>ex</strong>plícitas e implícitas, à Tó%TJ:<br />
— A captura <strong>de</strong> Orestes e Píla<strong>de</strong>s ficou a <strong>de</strong>ver-se a um infortúnio:<br />
por que motivo haviam <strong>de</strong> estar os pastores <strong>na</strong> praia?<br />
— O reconhecimento imediato <strong>de</strong> Orestes por Ifigénia não se verificou<br />
por acaso: o mensageiro só ouviu ser proferido o nome <strong>de</strong><br />
Píla<strong>de</strong>s, que Ifigénia <strong>de</strong>sconhecia; não ouviu o <strong>de</strong> Orestes.<br />
— Após o anúncio da captura dos jovens gregos, o Coro questionou-se<br />
sobre a origem daqueles jovens que a fortu<strong>na</strong> conduzira<br />
àquelas praias e admirou-se como eles conseguiram superar tantos<br />
e tão difíceis obstáculos para ali chegarem. Só com muita<br />
sorte escaparam a uma morte certa — embora não o dizendo, é o<br />
que fica implícito.<br />
— Ifigénia partilha essa visão <strong>de</strong> um universo dirigido pela sorte.<br />
A palavra Tó/TJ é proferida duas vezes por Ifigénia — vv. 475sqq<br />
e 501 —, mas tem mais <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> espiritual no primeiro caso 43 .<br />
— Orestes reconhece encontrar-se domi<strong>na</strong>do pela <strong>de</strong>sdita. A resposta<br />
que dá à irmã, quando esta lhe pergunta pelo nome, reflecte<br />
40 Outros autores, porém, discordam profundamente <strong>de</strong>sta i<strong>de</strong>ia. Por <strong>ex</strong>emplo,<br />
A. Spira, Untersuchungen zum Deus <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> bei Sophocles und Euripi<strong>de</strong>s,<br />
Kallmíinz, 1969, pp. 132sqq, diz o seguinte: «...<strong>de</strong>r Zuschauer, <strong>de</strong>r <strong>de</strong>n Plan <strong>de</strong>r<br />
Gottheit vom Prolog her kennt und <strong>de</strong>r daher die Blindheit nicht <strong>de</strong>s Zufalls, son<strong>de</strong>m<br />
<strong>de</strong>r Personen verfolgt, weiss die ganze Zeit fiber, gleichsam aus <strong>de</strong>r Perspektive eines<br />
Gottes, wie diese xi>%ai zustan<strong>de</strong> kommen; aus <strong>de</strong>m Zusammenwirken von gõttlichem<br />
Plan námlich und menschlicher Blindheit.»<br />
41 Id., ibid., p. 380.<br />
42 A. P. Burnett, Catastrophe Survived, Oxford, 1971, p. 67.<br />
43 «Quem po<strong>de</strong>rá prever a quem tocam as sortes? Os <strong>de</strong>sígnios dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es progri<strong>de</strong>m<br />
no oculto e ninguém está a par do seu infortúnio.»
182 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
esse estado <strong>de</strong> espírito: «Eu, em boa verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>veria chamar-me<br />
Desventurado (= AuaTu%rjç)».<br />
— Orestes está ple<strong>na</strong>mente conformado com o po<strong>de</strong>rio da sua má<br />
fortu<strong>na</strong> (v. 489): «Força é <strong>de</strong>ixar a fortu<strong>na</strong> seguir o seu curso».<br />
— Píla<strong>de</strong>s não se conforma e tenta encorajar Orestes, dizendo-lhe<br />
que, apesar <strong>de</strong> estar muito próximo da morte, muitas vezes a má<br />
si<strong>na</strong> em <strong>ex</strong>cesso po<strong>de</strong> levar repenti<strong>na</strong>mente uma reviravolta (v.<br />
721sq) 44 .<br />
— Após o reconhecimento, Ifigénia verifica que esteve prestes a<br />
sacrificar o irmão. Tal só não aconteceu por mero acaso. E o<br />
acaso, aqui, é conduzido por um <strong><strong>de</strong>us</strong>: «Por capricho (Tó%TJ) <strong>de</strong><br />
um <strong><strong>de</strong>us</strong>, <strong>de</strong> uns crimes surgem outros» (v. 865-67).<br />
— Orestes (vv. 909-911) vê <strong>na</strong> Tó%T) um aspecto subordi<strong>na</strong>do à<br />
intenção divi<strong>na</strong>: «Creio que a nossa salvação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> tanto da<br />
sorte (xó%7]) como <strong>de</strong> nós mesmos; e todo aquele, que com zelo<br />
o seu papel <strong>de</strong>sempenhe, tem o Céu (Tò Oeíov) <strong>de</strong>claradamente<br />
do seu lado.» Conforme se <strong>de</strong>duz das palavras <strong>de</strong> Orestes, compete<br />
ao Homem, em colaboração com a divinda<strong>de</strong>, contrariar a<br />
TO%T] adversa, mas é a ele que cabe tomar a iniciativa 43 . É curioso<br />
que nestes versos a iv%r\ equivale a Tò Geiov. Hartigan confirma<br />
esta i<strong>de</strong>ia concluindo que a salvação trazida por Ate<strong>na</strong> <strong>ex</strong><br />
<strong>machi<strong>na</strong></strong> tem ape<strong>na</strong>s por fim <strong>de</strong>monstrar que toda a acção huma<strong>na</strong><br />
está <strong>de</strong>sti<strong>na</strong>da à frustração e ao insucesso sem o auxílio<br />
divino 46 .<br />
44 Tal como em Ag. 750sqq se admite o inverso: o <strong>ex</strong>cesso <strong>de</strong> ventura atrai a<br />
<strong>de</strong>sgraça. Cf. M. H. Rocha Pereira, Estudos <strong>de</strong> História da Cultura Clássica. I Volume.<br />
Cultura Grega. Lisboa, 6 1987, pp. 394-5. Esta mesma i<strong>de</strong>ia encontra-se <strong>na</strong> // O<strong>de</strong><br />
Olímpica <strong>de</strong> Píndaro: o Homem não sabe domi<strong>na</strong>r a sua fortu<strong>na</strong> em <strong>ex</strong>cesso.<br />
45 No fundo, é o que é <strong>ex</strong>presso pelos provérbios fortu<strong>na</strong> fortes adiuuat, audaces<br />
fortu<strong>na</strong> iuuat, «põe tu a mão e Deus te ajudará».<br />
46 K. V. Hartigan, «Salvation via <strong>de</strong>ceit. A new look at Iphigeneia at Tauris»,<br />
Eranos 84 (1986), pp. 119sq.<br />
K. Matthiessen, Elektra, Taurische Iphigenie und Hele<strong>na</strong>, Untersuchungen zur<br />
Chronologie und zur dramatischen Form im Spátwerk <strong>de</strong>s Euripi<strong>de</strong>s, Gõttingen, 1964,<br />
p. 183, <strong>na</strong> análise <strong>de</strong> Hele<strong>na</strong>, faz <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r esse auxílio do comportamento ético das<br />
perso<strong>na</strong>gens «Nicht von <strong>de</strong>n Gõttern soil man <strong>de</strong>n Sinn im menschlichen Leben erwarten,<br />
son<strong>de</strong>rn umgekehrt: wer rechtschaffen lebt und auf dièse Weise sein Leben sinnvoll<br />
ordnet, kann hoffen (mehr nicht!), daB ihm die Gõtter ihren Beistand nicht versagen<br />
wer<strong>de</strong>n. An die Stelle <strong>de</strong>r Th<strong>eo</strong>dizee tritt die Ethik». Pouco antes, Matthiessen já<br />
havia dito que os mortais <strong>de</strong>viam tentar granjear as boas graças da divinda<strong>de</strong> por meio<br />
<strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s pru<strong>de</strong>ntes, piedosas e justas. Quanto ao resto, <strong>de</strong>viam dar-se por felizes com<br />
a TO%T] que os <strong><strong>de</strong>us</strong>es lhes reservavam.
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 183<br />
E Burnett conclui que «the verbal teaching of the play seems to be<br />
that the autonomous power of <strong>tyche</strong> is merely an appearance, while the<br />
power of heaven is reality. The teaching of the plot is the same, though<br />
the action, in or<strong>de</strong>r to assert this truth, has to give a prominent place to<br />
chance; it offers a <strong>de</strong>monstration first of the power of that force, and then<br />
of the ease with which it can be subdued by god.» 47 .<br />
Na opinião <strong>de</strong>sta autora, o revés fi<strong>na</strong>l, provocado pelas vagas marítimas,<br />
serviu para <strong>de</strong>monstrar o po<strong>de</strong>r dos <strong><strong>de</strong>us</strong>es. Tudo quanto os mortais<br />
haviam obtido através da fortu<strong>na</strong> foi <strong>de</strong>struído por essa mesma força.<br />
Ate<strong>na</strong> contraria a Tú%II e repõe o <strong>de</strong>curso feliz da intriga, subitamente<br />
interrompido pela má fortu<strong>na</strong>, impondo a chancela divi<strong>na</strong> no <strong>de</strong>senlace<br />
<strong>de</strong>finitivo.<br />
Matthiessen confirma o protagonismo da divinda<strong>de</strong> no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da TO^T): «Nicht m%r) wirkt in <strong>de</strong>r Welt, son<strong>de</strong>m die Gõtter. Ihr<br />
Wille und ihre Macht, schlieBlich alies zum Guten zu lenken, offenbaren<br />
sich immer wie<strong>de</strong>r. Nur solange die Menschen noch nicht das Ziel <strong>de</strong>s<br />
gõttlichen Han<strong>de</strong>lns erkannt haben, meinen sie Tú%T) (Iph. 475-478, Ion<br />
1512-1518) und xapayuóç (Iph. 572) beherrschten die Welt» 48 . Na opinião<br />
<strong>de</strong>ste autor, o <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> reflecte isso mesmo: como se, nesta<br />
peça, Euripi<strong>de</strong>s tivesse recuperado a confiança esquilia<strong>na</strong> <strong>na</strong> divinda<strong>de</strong> 49 .<br />
No fi<strong>na</strong>l da peça (vv. 1490-91), <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Ate<strong>na</strong> <strong>de</strong>svendar o futuro<br />
das perso<strong>na</strong>gens, é que estas verificam que a condição <strong>de</strong> sò5aíu.oveç<br />
era o <strong>de</strong>stino que lhes estava reservado pelos <strong><strong>de</strong>us</strong>es:<br />
"IT' en' eUTu%íai TTJç crcûiÇopévTjç<br />
jxoípaç eò5aíu,ovsç ôvxeç.<br />
A reposição <strong>de</strong>finitiva da boa sorte, juntamente com a salvação constituem<br />
a parte essencial que integra e <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> a sô8aip,ovia.<br />
Depois <strong>de</strong>sta digressão regressamos à opinião <strong>de</strong> Aristóteles que concilia<br />
a t<strong>eo</strong>ria literária, respeitante à tragédia, com o <strong>conceito</strong> <strong>de</strong> xó%r), a<br />
47 A. P. Burnett, Catastrophe Survived, Oxford, 1971, p. 68.<br />
48 K. Matthiessen, Elektra, Taurische Iphigenie und Hele<strong>na</strong>. Untersuchungen<br />
zur Chronologie und zur dramatischen Form im Spãtwerk <strong>de</strong>s Euripi<strong>de</strong>s, Gõttingen,<br />
1964, p. 181.<br />
49 Ibid., p. 180: «Es hat also <strong>de</strong>n Anschein, ais wenn <strong>de</strong>r Dichter in diesen<br />
Dramen das aischyleische Vertrauen zu <strong>de</strong>n Gõttern wie<strong>de</strong>rgewonnen hâtte.»<br />
Mais adiante (p. 183) <strong>de</strong>fine em que consistia essa confiança: «Am Anfang <strong>de</strong>r<br />
groBen Tragõdie <strong>de</strong>s fíinften Jahrhun<strong>de</strong>rts stand das Vertrauen <strong>de</strong>s Aischylos darauf,<br />
daB sich das Weltgeschehen trotz alien Lei<strong>de</strong>s und trotz aller Disso<strong>na</strong>nzen ais sinnvoll<br />
verstehen lasse.»
184 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
que ele dá gran<strong>de</strong> relevância, mais propriamente ao seu papel <strong>de</strong> agente<br />
<strong>ex</strong>terno e à sua acção sobre o Homem, dividirido-o nos dois estados em<br />
que ele se manifesta: et>xv%ía (prosperida<strong>de</strong>, boa sorte) e Suoruxía ou<br />
áxu%ía (adversida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sventura). A acção trágica caracteriza-se pela interacção<br />
constante entre estes dois <strong>conceito</strong>s, como afirma Halliwell:<br />
«Prosperity and adversity, good fortune and misfortune, are the poles between<br />
which the action of tragedy moves» 50 . A transformação da euTu%ia<br />
em SuoTU%ia e vice-versa dá Aristóteles a <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> usxapaaiç 51 .<br />
Consi<strong>de</strong>ra ele (Po. 1452b-1453a) quatro situações <strong>de</strong> Lis-uópamç em função<br />
da imitação <strong>de</strong> factos que causem temor e comiseração:<br />
a) «é evi<strong>de</strong>nte, em primeiro lugar, que se não <strong>de</strong>vem representar os<br />
homens bons a passar da felicida<strong>de</strong> para a <strong>de</strong>sgraça, pois tal passagem<br />
não suscita temor nem comiseração, mas repulsa;»<br />
b) «nem os maus a passar da infelicida<strong>de</strong> para o bem-estar, porque<br />
tal situação é a mais contrária <strong>de</strong> todas ao trágico (...) e não suscita<br />
benevolência, nem comiseração, nem temor;»<br />
c) «tão-pouco os muito perversos a resvalar da fortu<strong>na</strong> para a fatalida<strong>de</strong>;<br />
uma composição <strong>de</strong>ssas po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>spertar a benevolência,<br />
mas não a comiseração nem o temor (...)».<br />
d) «Resta-nos então o herói que se situa no meio <strong>de</strong>stes. Esse herói<br />
é tal que se não distingue nem pela sua virtu<strong>de</strong> nem pela justiça;<br />
tão-pouco cai no infortúnio <strong>de</strong>vido à sua malda<strong>de</strong> e perversida<strong>de</strong>,<br />
mas por efeito <strong>de</strong> qualquer erro (áuapxía) (...)>;<br />
)» 52 .<br />
30 S. Halliwell, Aristotle's Poetics, London, 1986, p. 204. Este autor estabelece,<br />
<strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s 205-207, a distinção entre sòzvxia e eòScupovíct (felicida<strong>de</strong>) em<br />
Aristóteles. Porém, Aristóteles, <strong>na</strong> Retórica (1360b), consi<strong>de</strong>ra que a sòiv/ia é parte<br />
integrante da só5aip.ovía, a par da riqueza, honra, fama, virtu<strong>de</strong>, qualida<strong>de</strong>s físicas, etc.<br />
M São as seguintes as palavras utilizadas por Aristóteles para <strong>ex</strong>primir esta transição:<br />
p.sTa|3áXXstv, nsxaPoXi*), p.sTapaívsiv, nsrápaaiç e Hsxa7iÍ7iTeiv.<br />
Respiguemos ape<strong>na</strong>s alguns <strong>ex</strong>emplos: em 1451al3-14 (eiç súruxíav SK SUOTUXíCIç<br />
t) sE, EÙTUxittç siç Sucrcuxíav yisTafiaXXsiv) ou em 1452b34sqq (7tpcÕTov psv<br />
SrjXov ôTI oôte TOÒç STUSIKSíç áv8paç Ssí. ustafiáXXovTaç tpaívecrOcu si;<br />
sÒTuxíaç síç hx>axv%{av) ou ainda em 1453a9 (nsrafláXXa>v Eíç xr\v<br />
8ucrcu%ía v )--- Cf. também D. W. Lucas, Poetics - Introd., comm. and app. by ...,<br />
Oxford, 1968, comm. ad 1453al3, e Stephen Halliwell, Aristotle's Poetics, London,<br />
1986, p. 204sqq, particularmente a nota 7, <strong>na</strong> p. 206.<br />
Ora, acontece que Euripi<strong>de</strong>s, em Ion 1512-13, logo antes <strong>de</strong> Ion apostrofar a<br />
Fortu<strong>na</strong>, utiliza precisamente um dos verbos acima mencio<strong>na</strong>dos seguido imediatamente<br />
<strong>de</strong> um outro verbo <strong>de</strong>rivado do substantivo SUCTTUXíCT ^£2 nsrafíaXovaa u.up{ouç<br />
fj8r] PPOTCSV Kal 8v0TV%ri
O DEUS EX MACHINA E O CONCEITO DE TYCHE NA ECONOMIA 185<br />
Conforme ficou acima dito, a xú%r) <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, muitas vezes, da acção<br />
huma<strong>na</strong>, consciente ou inconscientemente praticada. Aristóteles dá prefe<br />
rência às p.sTa(3áasiç <strong>de</strong> evxv%ía em 8uo-i;vj%ía causadas por<br />
àuapTÍa 53 , como é o caso <strong>de</strong> Édipo.<br />
Por outro lado, o Estagirita preconiza uma <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da <strong>ex</strong>tensão para<br />
a tragédia (Po. 1450b e 1451a). Esta <strong>de</strong>verá ser constituída por um princí<br />
pio, meio e fim. Ao princípio segue-se uma <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
segmentos, sistemática, harmoniosa e coerentemente enca<strong>de</strong>ados uns nos<br />
outros, após os quais ocorre o fim. A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> secções, que constitu<br />
irão o meio, varia <strong>de</strong> peça para peça. Aristóteles recomenda para o meio<br />
da peça uma amplitu<strong>de</strong> 54 que permita a modificação da xó%r] — para<br />
melhor ou para pior —, <strong>de</strong> acordo com o princípio da necessida<strong>de</strong> (xò<br />
ávayKaiov) ou da verosimilhança (iò SíKóç). Por outras palavras, todas<br />
as partes da tragédia <strong>de</strong>verão <strong>de</strong>correr no âmbito da organização e unida<strong>de</strong><br />
da acção.<br />
Mais adiante (1455b) Aristóteles faz uma bipartição da tragédia, ao<br />
reduzir as suas partes constituintes a dois elementos: enredo (f) Sécriç) e<br />
<strong>de</strong>senlace (fj Xòaiq). Para o Estagirita, o enredo abrange o início da<br />
peça até à parte que prece<strong>de</strong> imediatamente a tistapaaiç que conduz à<br />
sôtuxía ou à
186 ANTONIO MANUEL RIBEIRO REBELO<br />
precisam <strong>de</strong> ser preditos e anunciados. Pois aos <strong><strong>de</strong>us</strong>es reconhecemos o<br />
dom <strong>de</strong> ver tudo.» 55<br />
Aplicando à nossa peça o que aqui ficou dito, o <strong>de</strong>senlace (f) Xóaiç)<br />
não coinci<strong>de</strong> com o momento posterior ao <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong>, uma vez que,<br />
nesta peça, a intervenção <strong>de</strong> Ate<strong>na</strong> está em perfeito acordo com o que<br />
Aristóteles afirma. O <strong><strong>de</strong>us</strong> <strong>ex</strong> <strong>machi<strong>na</strong></strong> é aqui utilizado para fazer conhecer<br />
ao homem «actos <strong>ex</strong>teriores e posteriores ao drama, que precisam <strong>de</strong><br />
ser preditos e anunciados». A verda<strong>de</strong>ira u.<strong>ex</strong>á(3ao-iç, isto é, a transformação<br />
<strong>de</strong> 5oaru%ía (ou áxu%ía, no caso <strong>de</strong> Ifigénia) em EÒivyía, já estava<br />
consumada quando os protagonistas <strong>na</strong>vegavam em direcção ao alto mar.<br />
À luz da t<strong>eo</strong>ria aristotélica acabada <strong>de</strong> a<strong>na</strong>lisar, nunca a inversão <strong>de</strong>finitiva<br />
da TO%7) por intermédio <strong>de</strong> Ate<strong>na</strong> po<strong>de</strong>rá constituir o início da Xóaiç.<br />
O contratempo das vagas, que fizeram retroce<strong>de</strong>r o <strong>na</strong>vio para a costa táurica,<br />
não passa <strong>de</strong> uma falsa u,<strong>ex</strong>á(3a