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Opúsculos PETI · Passagem pelo PIEF

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<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong><br />

<strong>PIEF</strong><br />

<br />

<br />

10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL


O papel das<br />

Equipas Móveis<br />

Multidisciplinares<br />

Coordenação<br />

JOAQUINA CADETE E MANUEL LISBOA<br />

A medida <strong>PIEF</strong><br />

Coordenação<br />

MARIA DO CÉU ROLDÃO E ANTÓNIO SANTOS<br />

Piores formas de<br />

trabalho infantil<br />

Coordenação<br />

CLARA DIMAS E MARIA JOÃO LEOTE DE CARVALHO<br />

Colecção de opúsculos publicados no âmbito da obra comemorativa<br />

dos 10 anos do <strong>PETI</strong><br />

1. O papel das Equipas Móveis Multidisciplinares<br />

coord. de Joaquina Cadete e Manuel Lisboa<br />

2. A medida <strong>PIEF</strong><br />

coord. de Maria do Céu Roldão e António Santos<br />

3. <strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

coord. de Rui Jerónimo e Joana Malta<br />

4. Trabalho infantil por conta de outrem<br />

coord. de Fernando Coelho e Manuel Sarmento<br />

5. Trabalho familiar não remunerado<br />

coord. de Lurdes Pinto e Pedro Goulart<br />

6. Piores formas de trabalho infantil<br />

coord. de Clara Dimas e Maria João Leote de Carvalho<br />

7. A influência do género<br />

coord. de António Manuel Marques e Márcia Lacerda<br />

8. Minorias<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong><br />

<strong>PIEF</strong><br />

Coordenação<br />

RUI JERÓNIMO E JOANA MALTA<br />

A influência do<br />

género<br />

Coordenação<br />

ANTÓNIO MANUEL MARQUES E MÁRCIA LACERDA<br />

coord. de Maria José Casa-Nova e Paula Palmeira<br />

Trabalho infantil<br />

por conta de<br />

outrem<br />

Coordenação<br />

FERNANDO COELHO E MANUEL SARMENTO<br />

10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL 10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL 10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL 10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL<br />

Trabalho familiar<br />

não remunerado<br />

Coordenação<br />

LURDES PINTO E PEDRO GOULART<br />

Minorias<br />

Coordenação<br />

MARIA JOSÉ CASA-NOVA E PAULA PALMEIRA<br />

10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL 10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL 10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL 10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

2<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

Coordenação<br />

Rui Jerónimo<br />

Joana Malta<br />

Editor<br />

Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social<br />

Programa para Prevenção<br />

e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil (<strong>PETI</strong>)<br />

Av. Frei Miguel Contreiras, 54-5º<br />

1700 Lisboa<br />

Tel.: 21 843 75 80<br />

Fax: 21 843 75 89<br />

E-mail: peti@peti.gov.pt<br />

Site: www.peti.gov.pt<br />

Direcção<br />

Joaquina Cadete<br />

Coordenação Editorial<br />

Teresa Maia e Carmo<br />

Concepção e Produção<br />

Ideias Virtuais<br />

www.ideiasvirtuais.pt<br />

ISBN<br />

978-989-95739-0-1<br />

Depósito Legal<br />

278 943/08<br />

Tiragem<br />

1000 exemplares<br />

Lisboa, Junho de 2008<br />

Obra comemorativa dos 10 anos do <strong>PETI</strong><br />

Publicação co-financiada <strong>pelo</strong> FSE (Fundo Social Europeu)<br />

© Programa para Prevenção e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil, 2008<br />

Reservados todos os direitos


<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong><br />

<strong>PIEF</strong><br />

Coordenação<br />

RUI JERÓNIMO E JOANA MALTA<br />

10 ANOS DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL EM PORTUGAL


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

4<br />

Autores:<br />

Rui Moura Jerónimo - licenciado em Ciências Musicais e efectuou Pós-Graduação em Gestão<br />

e Administração Escolar. Exerceu funções técnico-pedagógicas na Direcção Regional de<br />

Educação do Algarve (1999/2004). Leccionou a disciplina de Educação Musical no <strong>PIEF</strong><br />

e desde 2005 que está requisitado no <strong>PETI</strong>, sendo nomeado em 2007 o Representante<br />

do <strong>PETI</strong> na Estrutura de Coordenação Regional do <strong>PIEF</strong> no Algarve.<br />

Joana Malta - desempenha actualmente funções de assistente de investigação no<br />

SociNova, Centro de Investigação em Sociologia Aplicada da Faculdade de Ciências<br />

Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É actualmente aluna do mestrado<br />

em Prospecção e Análise de Dados do Instituto para o Desenvolvimento da Gestão<br />

Empresarial (INDEG), pertencente ao Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da<br />

Empresa (ISCTE). Terminou em 2005 a Licenciatura em Sociologia <strong>pelo</strong> Instituto Superior<br />

das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE).


Introdução 13<br />

Capítulo I - Uma escola, tantas passagens: 17<br />

relações entre <strong>PIEF</strong> e alunos<br />

Joana Malta<br />

Capítulo II - Os destinatários 25<br />

1 - Um <strong>PIEF</strong> e três Cidades 25<br />

Ana Simas, Carla Silva, Carlos Freitas e Maria João Breia<br />

2 - Fobia à Escola 29<br />

Florbela Lopes<br />

3 - Problema para a escola 31<br />

Ana Fátima Santos<br />

4 - Escolher, Esperar, Querer e Ser mais… 36<br />

Patrícia Amorim<br />

A vida no presente 36<br />

O passado de abandono escolar e de trabalho infantil 37<br />

O início da mudança, a integração no <strong>PIEF</strong> 39<br />

O caminho percorrido depois do <strong>PIEF</strong> 40<br />

Lições e projectos para o futuro 42<br />

5 - Eu Sou Assim 43<br />

Helena Milheiro Almeida e Sandra Mendes<br />

índice<br />

6 - Uma ponte para o sucesso 45<br />

Rita Prata<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

5


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

6<br />

7 - Projecto Futuro 48<br />

Patrícia Inocêncio<br />

8 - Jogando o Futuro 51<br />

Carla Machado<br />

Entre a Bola e a Escola 51<br />

A passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> 53<br />

Epílogo 55<br />

9 - Longa estadia 55<br />

David Soares<br />

10 - Da rua para a escola 58<br />

Virgínia Simões, Luís Cavalheiro,<br />

Maria de Jesus Videira e Ana Paula Martins<br />

11 - Por detrás da normalidade… 59<br />

Elisabete Fonte e Sara Pimentel<br />

12 - A (re)descoberta da família 64<br />

Ana Fátima Santos<br />

13 - A força dos nossos Orlandos 68<br />

Mara Martins<br />

14 - Optei <strong>pelo</strong> melhor… 73<br />

Maria<br />

15 - Passa a mensagem 74<br />

Ricardo<br />

Escolaridade obrigatória 74<br />

16 - De repente um ano passa a correr... 76<br />

Aluno do <strong>PIEF</strong><br />

17 - A história de um jovem 77<br />

Francisco Costa<br />

18 - Aprender a crescer 79<br />

Eduarda Felício e Elisabete Nunes<br />

19 - Trabalho a quanto obrigas 81<br />

Eduarda Felício e Elisabete Nunes


20 - Uma nova oportunidade… 82<br />

Eduarda Felício e Elisabete Nunes<br />

21 - Continuar a estudar 84<br />

As técnicas encarregadas de educação do João<br />

22 - Gosto de sorrir 87<br />

Filomena<br />

23 - Francisco, mediador 89<br />

Cristina Maruta<br />

24 - Preguiça de vir à escola 91<br />

Célia<br />

25 - Sempre ao lado do namorado 92<br />

Inês Leão<br />

26 - Para mim o <strong>PIEF</strong> 96<br />

Joaquim<br />

27 - Devíamos ser nós 97<br />

Leopoldina Pina de Almeida<br />

28 - O terrível mauzão 100<br />

Salomé Paiva<br />

29 - Limpa e bem arranjada 102<br />

Isabel Garcias<br />

30 - Acho que melhorei 105<br />

Rafa<br />

31 - Como se fosse um rapaz normal 106<br />

Emídio<br />

32 - Sinto-me bem <strong>pelo</strong> apoio 107<br />

João<br />

33 - Somente com duas divisões 107<br />

Rita<br />

34 - De costas para a vida 108<br />

Susana Simões<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

7


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

8<br />

35 - Não sou pessoa fácil 110<br />

Célia<br />

36 - Red Bull 111<br />

Colectivo de turma <strong>PIEF</strong><br />

37 - Acreditam em nós 112<br />

Mário<br />

38 - Abri os olhos 114<br />

Alberto Silva<br />

39 - Ajuda imenso 114<br />

Aluno do <strong>PIEF</strong><br />

40 - Bem melhor 115<br />

Aluno do <strong>PIEF</strong><br />

41 - Noto mudanças 115<br />

Ricardo<br />

42 - Puxarem por nós 116<br />

Tiago<br />

Capítulo III - Os outros 117<br />

1 - Quando o sonho comanda uma vida... 117<br />

José Rocha<br />

A motivação 117<br />

A crença 119<br />

A desilusão/consolo 121<br />

2 - Fica por contar 122<br />

Luís Coutinho<br />

3 - Contra ventos e marés 125<br />

Antónia Ilhéu<br />

4 - Não sei o que seria 127<br />

Ana Fátima Santos<br />

5 - Trabalhar para saber 128<br />

Ana Fátima Santos


6 - Uma das nossas alegrias 130<br />

Maria da Conceição Queiroga Valério de Carvalho<br />

7 - Dada a esperança 132<br />

José Paulo Mendes Rico<br />

8 - Experiência inesquecível 134<br />

Faisal Aboobakar<br />

9 - Formação contínua 136<br />

Sandra Caeiro<br />

10 - O barco está para pôr no mar, há que o deixar navegar… 138<br />

Fátima Miranda<br />

11 - Aos Meninos do <strong>PIEF</strong> 142<br />

Helena Milheiro Almeida e Sandra Mendes<br />

12 - Pais que nunca desistiram 144<br />

Márcia Lacerda<br />

13 - Das partes ao todo 148<br />

Delfina Dias<br />

14 - Valeu a pena 151<br />

Ana Paula Guarda Martins Grosso<br />

15 - Estou aqui 153<br />

Ana Ferro<br />

16 - Passagens que marcam 154<br />

André Ferreira<br />

17 - Tarefa inglória 156<br />

Anabela Adrião dos Santos<br />

18 - Conhecer os seus sentimentos 159<br />

Paula Polainas<br />

19 - Grande desafio 161<br />

Alexandra Sofia C. Terrinca Silva<br />

20 - Uma certeza fica 162<br />

Maria José Ferreira<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

9


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

10<br />

21 - Apre(e)nder a Educação 164<br />

Marta Inácio<br />

22 - Luta por uma Causa 166<br />

Suzana Guerreiro<br />

23 - Uma escola de laços 170<br />

Sara Pimentel<br />

24 - Testemunho colectivo 175<br />

Os/as professores/as, monitora,<br />

psicóloga e conselho executivo<br />

25 - Várias funções e múltiplos papéis 178<br />

Ana Simas, Carla Silva, Carlos Freitas e Maria João Breia<br />

26 - Mulheres em casa 181<br />

Carmem Sofia Silva<br />

27 - Os «<strong>PIEF</strong>S» 184<br />

Sílvia Maria Reis Silva<br />

Acto I 184<br />

Acto II 187<br />

Acto III 189<br />

28 - Sorriso roubado 190<br />

Carmem Sofia Silva<br />

29 - Aceito! 191<br />

Helena Escravana<br />

30 - Segunda oportunidade… 192<br />

A equipa do «Incluir»<br />

31 - Acreditar… 195<br />

Célia Silva<br />

32 - A nossa «batalha» 196<br />

Maria Guiomar Paulo<br />

33 - Às vezes basta ouvir 199<br />

Anabela Rosa Marques


34 - Ligar a escola à vida 200<br />

Bruno Lima<br />

35 - Luz ao fundo do túnel 203<br />

36 - Primeira turma <strong>PIEF</strong> 204<br />

Emília Batista<br />

37 - Respeito e cumplicidade 206<br />

Lúcia Bandeira<br />

38 - Uma arma poderosa 208<br />

A.M.S.M.<br />

39 - Fiona 210<br />

Fátima Matos<br />

40 - Mais e melhor 213<br />

Alice Pedro<br />

41 - Muito valor 214<br />

Teresa Farinha<br />

42 - Uma vez achados 215<br />

Marcelo Formosinho<br />

43 - O <strong>PIEF</strong> de três mães 216<br />

44 - Receita 217<br />

Ingredientes 217<br />

Modo de preparação 217<br />

Índice remissivo 219<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

11


introdução


introdução<br />

A «passagem» <strong>pelo</strong> Programa Integrado de Educação e Formação (<strong>PIEF</strong>)<br />

tem sido experimentada e vivida por diversos intervenientes. Além de<br />

favorecer o cumprimento da escolaridade obrigatória aos seus destinatários,<br />

e a certificação escolar e profissional aos jovens a partir dos<br />

quinze anos de idade, tem favorecido simultaneamente um conjunto de<br />

experiências únicas aos outros intervenientes.<br />

Na impossibilidade de retratar a totalidade das vivências, apresentamos<br />

um significativo conjunto de situações. Pretendemos ilustrar a diversidade<br />

e complexidade de efeitos da intervenção efectuada ao longo<br />

dos últimos anos, bem como, as consequências directas para os jovens<br />

intervencionados, primeiros protagonistas da medida <strong>PIEF</strong>.<br />

Inicialmente, são apresentados os aspectos mais importantes que<br />

enquadram teoricamente os testemunhos seguintes. Serão brevemente<br />

referidas as dinâmicas de reprodução das várias desigualdades para se<br />

compreender como a inserção em percursos escolares alternativos, como<br />

o <strong>PIEF</strong>, podem induzir contextos mais favoráveis à alteração de determinadas<br />

expectativas de vida e, desse modo, condicionar positivamente<br />

a acção dos actores sociais mais desfavorecidos.<br />

Pela exposição de algumas assimetrias pertinentes, evidenciadas pela<br />

comparação de percursos de alunos inseridos em <strong>PIEF</strong> com os de<br />

alunos do ensino regular (ER), no âmbito do trabalho realizado pela<br />

equipa de investigação do «SociNova», são então lançadas algumas<br />

luzes relativamente aos factores, designadamente, a própria dimensão<br />

de obrigatoriedade da escolaridade nos seus modelos mais formais, que<br />

conduziram os jovens ao maior ou menor afastamento da escola e à<br />

sua posterior integração em <strong>PIEF</strong>.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

13


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

14<br />

Através de testemunhos autênticos, apresentados na primeira, segunda<br />

ou na terceira pessoa, são seguidamente ilustradas as facetas diversificadas<br />

das vivências que têm constituído o processo de implementação<br />

do <strong>PIEF</strong>. Como num «álbum» de ilustrações, são os próprios que apresentam<br />

a sua experiência, ou outros que as relatam. Por vezes, no<br />

entanto, o testemunho é apresentado por alguém que se dirige directamente<br />

àquele(a) que pretende retratar… São estórias como estas que<br />

fazem a história do <strong>PIEF</strong>.<br />

Assim, tendo por objectivo o conhecimento das experiências vividas no<br />

<strong>PIEF</strong>, desde 2000 à actualidade, através da expressão que delas fazem<br />

os próprios intervenientes, mas sendo impossível realizar exaustivamente<br />

tal levantamento, procurámos recolher somente testemunhos<br />

que evidenciem a diversidade e complexidade da intervenção efectuada.<br />

Por isso, estes retratos escritos têm diferentes formatos e conteúdos.<br />

Surgem testemunhos directos ao lado de uma «história de encantar -<br />

Fiona»; se há um grupo-turma de <strong>PIEF</strong> que faz o seu testemunho<br />

colectivo há, também, uma equipa de professores que expressa uma<br />

«receita» para fazer feliz um aluno de <strong>PIEF</strong>; expõe-se o texto de uma<br />

composição musical de «hip-hop», de um aluno do <strong>PIEF</strong> que ficou em<br />

primeiro lugar num concurso nacional e, em simultâneo, um número<br />

apreciável de intervenientes que viveram anonimamente as suas experiências;<br />

todas são um contributo valioso para uma narrativa da medida<br />

<strong>PIEF</strong>, porventura, uma modesta memória ilustrativa.<br />

No entanto, o <strong>PIEF</strong> tem solicitado e envolvido inúmeros outros agentes<br />

que contribuíram para o seu desenvolvimento. Se os jovens a quem se<br />

destinou, desde a primeira hora, foram os principais beneficiários do <strong>PIEF</strong>,<br />

os verdadeiros e legais destinatários na implementação da medida, também<br />

os/as técnicos/as da organização <strong>PETI</strong>, incluindo os/as técnicos/as<br />

de intervenção local nos grupos-turma, monitores/as, animadores/as e<br />

estagiários/as, se contam no significativo número de intervenientes.<br />

Contudo, os seus efeitos alargaram-se a outros envolvidos, os quais<br />

quiseram voluntariamente expressar também o seu testemunho.<br />

De modo geral, todos se revelam gratos, sobretudo, pela qualidade da<br />

experiência que tiveram oportunidade de realizar. Desde as famílias aos<br />

professores, particularmente os directores de turma e coordenadores<br />

de projecto, encontramos diferentes perspectivas que centram a sua


apreciação nas consequências directas da acção em benefício dos<br />

destinatários. Procurando ainda contar com os técnicos de entidades<br />

parceiras e outros técnicos, que pontualmente se cruzaram com a intervenção<br />

efectuada, é possível conhecer melhor o impacto da medida,<br />

sobretudo, obter uma perspectiva mais isenta sobre a sua eficácia.<br />

Os casos apresentados são valorizados pela autenticidade, tendo sido<br />

uma opção técnica manter o anonimato nos testemunhos. Optámos, no<br />

entanto, por organizar a apresentação em duas categorias.<br />

Em primeiro lugar, são desenvolvidos os casos que testemunham e<br />

reflectem os efeitos directos do <strong>PIEF</strong> nos destinatários, relatados <strong>pelo</strong>s<br />

próprios ou por interposta pessoa. Procurou dar-se relevo às situações<br />

vividas <strong>pelo</strong>s jovens na sua «passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong>», dando voz activa<br />

aos mesmos ou àqueles que observaram de perto o processo do seu<br />

desenvolvimento.<br />

Em seguida, são apresentados os testemunhos referentes aos efeitos<br />

colaterais da medida, as situações imprevistas resultantes da bondade<br />

do <strong>PIEF</strong>. Na verdade, embora legalmente dirigido aos jovens, o <strong>PIEF</strong> produziu<br />

simultaneamente noutros intervenientes, directos ou indirectos,<br />

no processo de integração desses destinatários, uma miríade de efeitos<br />

não previstos no quadro legal. Em ambas as categorias, os destinatários<br />

e os outros, optámos por sequenciar cronologicamente as apresentações.<br />

Por vezes, ocorrerá a descrição duma mesma situação por diferentes<br />

agentes intervenientes, apresentando-se assim diferentes<br />

«ângulos» de experiência e possibilitando uma melhor perspectiva<br />

dessa vivência.<br />

Os nomes das personagens são sempre fictícios mas, em alguns casos,<br />

os testemunhos são assinados. Em todo o caso, certamente, haverá<br />

quem se possa rever nos retratos de situações e personagens que são<br />

apresentados, sinal evidente de uma autenticidade da narrativa.<br />

Sempre que se fizer referência à actualidade, aos dias de hoje, reportar-se-á<br />

aos finais de 2007.<br />

Optámos ainda por utilizar parênteses rectos, naquelas observações ou<br />

comentários que ocorrem, por vezes, no decurso da voz activa expressa<br />

<strong>pelo</strong>s autores dos testemunhos ou pelas personagens relatadas.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

15


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

16<br />

Por comodidade da escrita e economia de recursos, pela constante utilização,<br />

serão usadas algumas siglas que seguidamente se apresentam:<br />

<strong>PIEF</strong> (Programa Integrado de Educação e Formação), PEETI (Plano para<br />

Prevenção e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil), <strong>PETI</strong> (Programa<br />

para Prevenção e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil),<br />

EMM (Equipa Móvel Multidisciplinar), CPCJ (Comissão de Protecção de<br />

Crianças e Jovens), TIL (Técnico/a de Intervenção Local), IPSS (Instituição<br />

Particular de Solidariedade Social), EB 2,3 (Escola Básica dos<br />

Segundo e Terceiro Ciclos).


«A ignorância tem isso de bom: que se desfaz aprendendo. A falsa<br />

instrução tem esta perfídia: não dá o ensino e inibe de o tomar»<br />

Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, As Farpas 2<br />

Capítulo I<br />

uma escola, tantas passagens:<br />

relações entre <strong>PIEF</strong> e alunos 1<br />

Joana Malta<br />

Investigadora, SociNova/CesNova, Centro de Estudos de Sociologia, UNL<br />

O Programa Integrado de Educação e Formação (<strong>PIEF</strong>) é o último recurso<br />

no sentido de levar (ou trazer) a escola de volta à vida de muitas<br />

crianças e jovens que dela se afastam, por uma multiplicidade de factores<br />

sociais, culturais ou económicos que condicionam os seus percursos<br />

e as suas infâncias.<br />

A complexidade das questões que se irão debater neste artigo é grande<br />

para resumir em tão poucas páginas. Referir-se-ão apenas alguns aspectos<br />

importantes, que permitem enquadrar e contextualizar os testemunhos<br />

que se apresentam.<br />

Dizer que as desigualdades sociais, culturais e económicas dos contextos<br />

de origem de jovens e crianças se transformam em desigualdades<br />

educativas não é certamente uma afirmação polémica. Estas desigualdades<br />

educativas reflectem-se posteriormente em novas desigualdades<br />

sociais, que transparecem não só na reprodução de baixos capitais<br />

1 Os dados apresentados neste capítulo resultam do trabalho realizado pela equipa de<br />

investigação do SociNova, elaborado no âmbito do projecto «Caracterização das Actividades<br />

Desenvolvidas Pelas Crianças e Jovens em Portugal», em parceria com o <strong>PETI</strong> e o INE, com<br />

coordenação científica do Prof. Doutor Manuel Lisboa;<br />

2 QUEIRÓS, Eça e ORTIGÃO, Ramalho (Ed. Organizada por Maria Filomena Mónica, 2004),<br />

As Farpas, S. João do Estoril, Principia, p. 210;<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

17


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

18<br />

escolares, mas também no desinvestimento dos jovens e das suas<br />

famílias nos processos educativos3 (Sarmento, Bandeira e Dores, 2000:<br />

pp. 45-46).<br />

Nesta dinâmica de reprodução da desigualdade, a escola acaba por<br />

desempenhar para alguns jovens e suas famílias uma função lateral (no<br />

entanto compulsiva) num processo onde um dos principais objectivos é<br />

tantas vezes a obtenção de um trabalho remunerado. O trabalho destas<br />

crianças e jovens não é na escola, mas antes a passagem pela escola<br />

é entendida muitas vezes como um entrave ao trabalho, um passo<br />

obrigatório mas indesejado, cujos reais reflexos nas suas vidas lhes<br />

parecem ténues, quase imperceptíveis.<br />

A inserção em programas educativos alternativos, com currículos escolares<br />

adaptados, pode ser a solução para uma reaproximação destes<br />

jovens às instituições escolares. Este é um dos argumentos que dá<br />

sentido a políticas como o <strong>PIEF</strong>.<br />

Sendo uma medida de «fim de linha», implementada quando mais<br />

nenhuma solução parece viável, os <strong>PIEF</strong> lidam com situações de total<br />

afastamento da vida escolar. Aliás, a intervenção não acontece apenas<br />

em situações onde o trabalho infantil existe de facto, mas também onde<br />

existe em potência. Situações de abandono escolar ou de forte absentismo<br />

são exemplos disso mesmo.<br />

É neste sentido que procurar detectar situações emergentes e analisar<br />

condicionantes sociais do trabalho infantil assume uma importância<br />

central. A possibilidade de comparar percursos de alunos agora inseridos<br />

em <strong>PIEF</strong> com os de alunos do Ensino Regular (ER) pode ajudar-nos<br />

a evidenciar algumas assimetrias importantes, que permitem lançar<br />

algumas luzes relativamente aos factores que provavelmente conduzem<br />

a um maior ou menor afastamento da escola.<br />

A importância atribuída à escolaridade nos meios sociais e culturais em<br />

que se inserem estes jovens e crianças é um elemento determinante do<br />

3 SARMENTO, Manuel, BANDEIRA, Alexandra, DORES, Raquel (2000), Trabalho Domiciliário<br />

Infantil: um estudo de caso no Vale do Ave, Lisboa, Ministério do Trabalho e da<br />

Solidariedade Social, Plano para Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil, p. 45-46.


grau de envolvimento dos alunos nos seus percursos escolares. Molda<br />

também a construção de expectativas de vida que, como sabemos,<br />

condicionam fortemente a acção dos actores sociais, estruturando-se<br />

em valores e atitudes. Estes funcionam como esquemas de leitura do<br />

real, marcando os seus comportamentos.<br />

Efectivamente, a baixa valorização que assumem os capitais educacionais<br />

formais nos meios envolventes pode ser observada através de indicadores<br />

como a baixa taxa de participação dos encarregados de educação<br />

e dos pais e familiares na escolaridade dos alunos de <strong>PIEF</strong>, percebida<br />

através da ausência nas reuniões de encarregados de educação ou no<br />

fraco apoio escolar em casa. Estas são características que sobressaem<br />

da comparação entre alunos de <strong>PIEF</strong> e alunos do ER. Neste aspecto, os<br />

baixos capitais escolares formais de pais de alunos de <strong>PIEF</strong> assumem<br />

uma importância decisiva.<br />

Por outro lado, esta baixa qualificação dos pais de alunos em <strong>PIEF</strong><br />

reflecte-se ainda nos grupos profissionais em que se inserem, predominando<br />

as profissões agrícolas e os trabalhos não qualificados.<br />

É também relevante que a inserção na vida escolar seja mais tardia em<br />

alunos de <strong>PIEF</strong>. De facto, estes alunos têm menor probabilidade de ter<br />

frequentado um infantário ou um jardim-de-infância, quando comparados<br />

com alunos dos currículos escolares regulares.<br />

Outro factor que aponta para uma assimetria nos dois grupos de alunos<br />

diz respeito à maior taxa de mobilidade geográfica em alunos inseridos<br />

nos programas <strong>PIEF</strong>. Trata-se de um elemento do contexto envolvente<br />

que nos indica a presença ou ausência de alguma estabilidade, nomeadamente<br />

no que respeita aos percursos escolares (uma maior mobilidade<br />

pode implicar a mudança de escola que, como se sabe, é um<br />

factor destabilizador na vida escolar dos jovens e crianças).<br />

É também curioso que, quando se analisam dados relativos às rotinas<br />

diárias, sejam os alunos inseridos nos grupos-turma <strong>PIEF</strong> aqueles com<br />

quotidianos mais irregulares, sem hora fixa para se deitarem, mas levantando-se<br />

mais cedo que alunos do ER.<br />

Para além da socialização na família, a utilização de indicadores relativos<br />

às redes de amizade é também importante para a problematização<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

19


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

20<br />

dos processos de produção e reprodução de práticas e representações<br />

sociais, que nos permitem enquadrar a análise dos percursos escolares<br />

e das expectativas de vida destes alunos.<br />

A este respeito, é sem dúvida relevante que mais de metade dos alunos<br />

que têm amigos da mesma idade que trabalham e são pagos por isso<br />

sejam alunos de <strong>PIEF</strong>.<br />

Por outro lado, e agora no que respeita à vida escolar destes alunos, o<br />

tempo que levam a chegar à escola pode ser um indicador relevante,<br />

apontando para diferentes graus de proximidade geográfica da escola.<br />

É curioso perceber que o tempo que os alunos demoram a chegar ao<br />

estabelecimento de ensino não é um factor independente do currículo<br />

escolar frequentado, e são os alunos de <strong>PIEF</strong> aqueles com maior probabilidade<br />

de demorar mais tempo a chegar à escola.<br />

Dois dos traços mais fortes dos percursos escolares dos alunos<br />

inseridos em programas <strong>PIEF</strong> são o insucesso e absentismo escolares.<br />

É significativo que mais de 97% dos alunos de <strong>PIEF</strong> tenha<br />

já tido uma ou mais retenções escolares. Por outro lado, faltar às<br />

aulas foi prática frequente de muitos destes alunos. Como nos dizem os<br />

testemunhos que agora se apresentam, alguns destes alunos tinham<br />

«Fobia à escola», ou dizem-nos que «… faltar [era] um vício!».<br />

Uma parte do insucesso escolar é uma antecipação da decisão de abandono,<br />

resultante muitas vezes, como já vimos, de baixas expectativas<br />

de alunos e famílias quanto à utilidade da escolaridade. O abandono<br />

escolar foi prática de um número considerável de alunos agora inseridos<br />

em <strong>PIEF</strong>, e este dado transparece também em muitos dos testemunhos.<br />

Lembramos que o abandono escolar efectivo corresponde a situações<br />

em que o aluno não só deixa de ir à escola, como não se matricula no<br />

ano escolar seguinte, e não integra nenhum outro currículo alternativo.<br />

Estas situações foram mais frequentes em alunos agora inseridos em<br />

<strong>PIEF</strong>, muito embora sejam ainda assim minoritárias. O abandono escolar<br />

não formalizado é, ainda assim, muito mais frequente. Efectivamente,<br />

a taxa de alunos que afirmou ter faltado à escola por longos períodos<br />

de tempo é reveladora da decisão prévia de abandono.


Todos estes são indicadores de um afastamento da instituição escolar<br />

da vida destes jovens e das suas famílias. E este afastamento tem<br />

implicações ao nível das expectativas de vida, que são também elas<br />

moldadas pela realidade envolvente.<br />

A sua análise é fundamental para compreender os comportamentos,<br />

tanto ao nível do investimento escolar, como na construção do futuro<br />

profissional. As expectativas destes alunos são globalmente baixas, e<br />

estão maioritariamente circunscritas ao universo do capital social e<br />

cultural da família de origem, tanto a nível escolar, como profissional.<br />

De facto, não só as ambições profissionais dos jovens em <strong>PIEF</strong> se<br />

circunscrevem quase na sua generalidade a profissões que não exigem<br />

níveis de qualificação superiores à escolaridade obrigatória, ou no<br />

máximo ao 12º ano, como uma grande maioria não pretende obter<br />

graus superiores de qualificação formal.<br />

Os testemunhos de alunos, pais e técnicos que se apresentam neste<br />

capítulo são ilustrativos dos impactes da medida <strong>PIEF</strong> a nível individual,<br />

proporcionando visões pontuais de vários agentes envolvidos. No<br />

entanto, porque a implementação de políticas é feita com base num<br />

diagnóstico das situações existentes, uma visão «de cima» permite<br />

olhar para os efeitos dos projectos <strong>PIEF</strong> de uma forma mais estruturada,<br />

contribuindo não só para a avaliação do percurso que foi feito até<br />

aqui, como também para o eventual reajustamento e implementação<br />

de novas estratégias.<br />

Por isto mesmo, medir de que forma a inserção neste programa altera<br />

as relações dos jovens e das suas famílias com a escola torna-se um<br />

elemento importante de avaliação de todo o trabalho desenvolvido.<br />

Esta avaliação é importante não só para técnicos, professores, decisores<br />

e outros agentes envolvidos, mas também, e acima de tudo, para os<br />

alunos.<br />

Efectivamente, a avaliação que os alunos fazem do seu envolvimento<br />

com a escola após a inserção no <strong>PIEF</strong> é globalmente muito positiva,<br />

como se atesta no seguinte gráfico.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

21


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

22<br />

Percepções dos alunos relativamente aos efeitos da sua inserção em <strong>PIEF</strong> (%).<br />

Tem menos brigas na escola<br />

Fala mais com os<br />

pais/pessoas com quem vive<br />

Ajuda mais a família/pessoas<br />

com que vive<br />

Está mais interessado(a) na escola<br />

Tem mais vontade de estudar<br />

Tem mais tempo livre<br />

Falta mais às aulas<br />

Tem melhores notas<br />

Sente que tem menos trabalho<br />

Aprende coisas práticas<br />

Tem mais obrigações escolares<br />

Acha que aprende mais<br />

Gosta mais de ir às aulas<br />

0 20 40 60 80 100<br />

Não influencia<br />

Não<br />

Sim<br />

FONTE: Inquérito aos alunos de <strong>PIEF</strong>, SociNova – FCSH-UNL/<strong>PETI</strong>/INE, 2007.<br />

Outro dado interessante, relativo ao envolvimento na vida escolar, diznos<br />

que muitos dos alunos de <strong>PIEF</strong> parecem ter agora uma disciplina<br />

da sua preferência, onde a educação física, mas também a matemática<br />

e o português tomam um lugar de destaque. Por outro lado, a redução<br />

das taxas de absentismo resultante da inserção dos alunos nestes<br />

programas é significativa. Aproximadamente 70% dos alunos em <strong>PIEF</strong><br />

parece faltar agora muito raramente ou nunca, apontando motivos<br />

como o gosto pelas aulas ou a vontade de terminar a escolaridade<br />

obrigatória.


Falámos já da valorização da aprendizagem escolar por parte dos alunos<br />

e suas famílias. A passagem para o currículo escolar dos <strong>PIEF</strong> parece<br />

alterar algumas das percepções relativamente à importância da escolaridade,<br />

nomeadamente no que respeita às perspectivas de futuro.<br />

É generalizado o desejo de completar o terceiro ciclo de escolaridade,<br />

satisfazendo as obrigações estabelecidas por lei.<br />

Estes factores só podem constituir um primeiro motivo de ânimo para<br />

os agentes envolvidos. No entanto, não são suficientes para deles retirarmos<br />

a ideia de que estas medidas solucionam os problemas relacionados<br />

com as desigualdades educativas de que falámos no início. Continua a<br />

ser significativo que muitos destes alunos não apercebam no processo<br />

educativo formal qualquer outra finalidade que não a de ultrapassar o<br />

último obstáculo na passagem para a vida adulta, permitindo-lhes, entre<br />

outras coisas, obter a carta de condução ou entrar de forma mais estável<br />

no mundo do trabalho (estes foram alguns dos factores mais referidos<br />

<strong>pelo</strong>s jovens entrevistados). O facto de considerarem importante a conclusão<br />

da escolaridade obrigatória não significa necessariamente que as<br />

representações acerca do papel da escola nas suas vidas se tenham<br />

alterado substancialmente. Parece-nos ser exactamente a sua dimensão<br />

de obrigatoriedade o grande factor explicativo. A consciencialização da<br />

importância atribuída à escolaridade obrigatória indica, sim, a tomada<br />

de consciência de que, sem a obtenção deste grau, a passagem para o<br />

mundo do trabalho se vê dificultada, por razões que não terão tanto a ver<br />

com a aquisição de competências, quanto com as dificuldades legais.<br />

Esta discussão não invalida o sucesso da medida <strong>PIEF</strong>. O objectivo de<br />

trazer estes jovens de volta à escola parece estar a ser atingido. Este<br />

deve ser um motivo de congratulação, mas também um incentivo para<br />

continuar a intervir no sentido de melhorar a vida dos jovens, proporcionando-lhes<br />

não só o acesso à educação, mas também o usufruto de<br />

um espaço neutro, onde possam sentir que estão de facto a caminhar<br />

para um futuro melhor, quebrando ciclos viciosos de reprodução de<br />

estilos de vida.<br />

Alguns dos testemunhos que se podem aqui conhecer mostram que há<br />

situações onde o impacte da medida <strong>PIEF</strong> não se limita à finalização da<br />

escolaridade obrigatória, mas estende-se à criação do espaço necessário<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

23


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

24<br />

para poderem optar por prolongar os seus estudos, dando-lhes competências<br />

para o futuro.<br />

O <strong>PIEF</strong> acaba por actuar também a outros níveis, que ultrapassam a<br />

sua função mais directa. Essa dimensão tem a ver com o envolvimento<br />

emocional de agentes e alunos, que não transparece tanto nos indicadores<br />

directos, mas sobretudo em alguns dos testemunhos, onde a<br />

importância da relação afectiva que se estabelece entre professores, técnicos<br />

ou outros agentes e os alunos e suas famílias se torna evidente.<br />

Procurou-se neste texto pôr em evidência a importância de medidas de<br />

inserção escolar, mais concretamente a medida <strong>PIEF</strong>. Perceber que os<br />

alunos não são iguais, que os seus contextos de origem condicionam<br />

fortemente o seu envolvimento, concretizado em diferentes graus de<br />

sucesso ou absentismo escolares, poderá ajudar a perceber que ainda<br />

hoje a escola não é um dado adquirido para todos os jovens e crianças.<br />

Este é um ciclo interminável, que parece começar e acabar no mesmo<br />

lugar para tantos alunos. Na constatação desta realidade está a força que<br />

move a medida <strong>PIEF</strong>. Que a deve fazer alargar a sua acção e reforçar a<br />

sua política. Que lhe deve conferir espaço e condições para intervir.<br />

Enfim, que lhe dá sentido último.<br />

Nota: Para preservar o anonimato dos jovens sinalizados ao <strong>PETI</strong>, todos os nomes que<br />

aparecem referenciados ao longo dos relatos são fictícios.


1 - UM <strong>PIEF</strong> E TRÊS CIDADES - Ana Simas, Carla Silva, Carlos Freitas e<br />

Maria João Breia (técnicos da EMM)<br />

Capítulo II<br />

os destinatários<br />

No ano 2000 o Álvaro foi sinalizado à EMM por um centro de emprego.<br />

Estava em abandono escolar e trabalhava na construção civil. Foi alvo<br />

de intervenção da EMM até 2003. Frequentou Pré–<strong>PIEF</strong> e <strong>PIEF</strong>, tendo<br />

posteriormente concluído a escolaridade obrigatória através de um CEF<br />

de pastelaria e panificação.<br />

O ano 2000 foi um marco importante no percurso e na história do<br />

PEETI/<strong>PETI</strong>. A criação das EMM e a implementação da medida <strong>PIEF</strong>,<br />

publicada no ano anterior, provocaram uma mudança de paradigma na<br />

intervenção, permitindo actuar sobre o fenómeno do trabalho infantil de<br />

forma mais planificada e articulada, e com um instrumento (o <strong>PIEF</strong>)<br />

especificamente desenhado para a população-alvo. Terminava assim a<br />

lógica de intervenção apenas concelhia e o recurso a respostas educativas<br />

e formativas já existentes e, em larga medida, ineficazes no que<br />

diz respeito à reintegração escolar dos jovens em situação de abandono<br />

escolar e trabalho infantil.<br />

Nesta região no litoral Norte do país, a EMM constituiu o primeiro <strong>PIEF</strong><br />

em 2000. A medida, regulamentada então <strong>pelo</strong> despacho-conjunto n.º<br />

822/99, permitiu dar resposta a um conjunto de jovens diagnosticados<br />

nos concelhos da área, construindo percursos ajustados às características<br />

e interesses individuais, de forma a atingir, como objectivo último,<br />

a conclusão da escolaridade obrigatória. O grupo era heterogéneo: provinha<br />

de concelhos diferentes, as habilitações variavam entre o quarto<br />

e o sétimo ano de escolaridade, os contextos e as histórias de vida<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

25


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

26<br />

eram diversificados. Também a medida <strong>PIEF</strong> era, de certa forma, experimental.<br />

O percurso inicialmente definido foi várias vezes reformulado.<br />

Teve períodos comuns para todo o grupo e teve momentos em que foi<br />

necessário dividi-lo em subgrupos e redesenhar as trajectórias de<br />

forma que permitisse alcançar os objectivos definidos. Foi um processo<br />

permanente de (re)construção, onde nem tudo correu bem, mas onde<br />

houve algumas histórias de sucesso. Uma delas foi a do Álvaro.<br />

O Álvaro foi sinalizado ao PEETI por um centro de emprego, tinha<br />

catorze anos. A sua história escolar revelava uma significativa perturbação<br />

nos últimos dois anos. Fez um percurso até ao sétimo ano sem<br />

retenções, numa EB 2,3 do concelho onde residia. Uma primeira retenção<br />

e, sobretudo, frequentes problemas comportamentais e disciplinares,<br />

levaram os pais a transferi-lo para um colégio privado noutro concelho.<br />

Aí, apesar de ter transitado de ano, não houve autorização para renovar<br />

a matrícula, devido à manifestação de comportamentos desajustados<br />

por parte dele, como pequenos furtos e episódios de descontrole emocional<br />

com alguma violência.<br />

Uma semana após o final desse ano lectivo o Álvaro foi trabalhar na<br />

construção civil, por iniciativa da mãe e com a sua concordância.<br />

Trabalhava entre as oito e as dezoito horas com a remuneração de<br />

dois mil escudos diários. Era um trabalho duro e a mãe reconhecia-o.<br />

Por esse motivo dirigiu-se ao centro de emprego local para inscrever o<br />

filho. Perante a impossibilidade óbvia de o fazer, e detectada a situação<br />

de trabalho ilegal, o caso foi-nos sinalizado. A proposta de encaminhamento<br />

para <strong>PIEF</strong> foi relutantemente aceite <strong>pelo</strong>s pais, sobretudo pela<br />

mãe, que manifestava abertamente uma mistura de preocupação excessiva<br />

com desconfiança e descrédito, causando nítido desconforto no filho.<br />

A resistência dos pais do Álvaro à integração no <strong>PIEF</strong> só foi quebrada após<br />

ser reiteradamente garantida a adequada supervisão no programa. O facto<br />

de o <strong>PIEF</strong> se realizar noutro concelho, distante da residência da família,<br />

acentuava a necessidade de vigilância sentida pela mãe.<br />

O Álvaro pareceu-nos no primeiro contacto um jovem afável e reservado.<br />

Tinha poucos amigos e dificuldades de socialização. O seu discurso era<br />

confuso e incoerente quanto aos comportamentos problemáticos evidenciados<br />

na escola. Sentia a ida para o colégio e a entrada no mundo


do trabalho como castigos impostos pela mãe devido à sua conduta,<br />

castigos que, curiosamente, sentia serem justos. Era acompanhado em<br />

pedopsiquiatria há cerca de um ano, estando medicado desde então.<br />

Acreditava que estava bem devido aos efeitos da medicação, manifestando<br />

uma crença absoluta nos seus efeitos e receando não a tomar.<br />

Aceitou com agrado frequentar o <strong>PIEF</strong>.<br />

A metodologia de constituição deste primeiro <strong>PIEF</strong> numa cidade daquele<br />

concelho obedeceu a uma lógica de urgência e experimentalismo.<br />

A heterogeneidade do grupo, a recente legislação do <strong>PIEF</strong> e a necessidade<br />

de dar resposta imediata ao extenso grupo de jovens que tínhamos<br />

em mãos, moldaram aquele que viria a ser o primeiro <strong>PIEF</strong> na região.<br />

Assim, numa fase inicial, foi constituído um Pré–<strong>PIEF</strong>, com o objectivo<br />

de aumentar a motivação para o reingresso no sistema de ensino,<br />

concretizar a avaliação diagnóstica de conhecimentos, iniciar um processo<br />

de exploração vocacional e recolher outras informações pertinentes<br />

com vista à implementação do <strong>PIEF</strong>, propriamente dito. Esta fase durou<br />

um mês e, em termos funcionais, consistiu num conjunto de actividades<br />

com objectivos a três níveis: ao nível escolar, com a avaliação diagnóstica<br />

de conhecimentos; ao nível psicossocial, com o treino e desenvolvimento<br />

de competências sociais e pessoais; ao nível lúdico-pedagógico,<br />

por exemplo, com actividades desportivas, visitas a centros de formação<br />

e sessões individuais e colectivas de despiste vocacional. Esta fase foi<br />

fundamental para aprofundar o conhecimento individual dos menores<br />

e, assim, melhor construir o seu percurso educativo e formativo.<br />

Após o Pré–<strong>PIEF</strong>, constituiu-se imediatamente o <strong>PIEF</strong>, entre Junho e<br />

Julho de 2000, com o objectivo de reforçar competências escolares, mas<br />

também pessoais e sociais, de forma a consolidar a motivação e atenuar<br />

as lacunas nos conhecimentos académicos que o tempo fora da escola<br />

havia produzido. Durante este período trabalhámos com um grupo único,<br />

independentemente da idade ou da escolaridade. A divisão iria ocorrer<br />

apenas no início do ano lectivo seguinte.<br />

Um dos percursos traçados na constituição do <strong>PIEF</strong>, aquele que iria dar<br />

resposta aos jovens já com o segundo ciclo concluído, implicava uma<br />

parceria estreita entre o <strong>PETI</strong>, o Centro de Emprego, algumas escolas<br />

do concelho e o Centro de Formação Profissional. O objectivo era per-<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

27


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

28<br />

mitir a dupla certificação, escolar e profissional, através de uma estrutura<br />

curricular baseada nos cursos de educação e formação (CEF), decorrendo<br />

as actividades lectivas alternadamente entre a escola e o Centro de<br />

Formação. Sendo aparentemente uma boa ideia, este modelo híbrido,<br />

contudo, neste caso não funcionou. A componente lectiva da responsabilidade<br />

da escola iniciou normalmente, decorrendo porém alguns<br />

meses até que as actividades no Centro de Formação tivessem início.<br />

Progressivamente, foi visível a dificuldade de conciliação das actividades<br />

e da sua gestão, o que bloqueou o processo. Esta bicefalia de atribuições<br />

e competências terminou no final do ano 2000.<br />

A partir de Janeiro de 2001 os jovens foram integrados num CEF de pastelaria<br />

e panificação, única área profissional que foi possível implementar,<br />

a funcionar exclusivamente no Centro de Formação na cidade capital de<br />

distrito e nos moldes habituais, que viria a terminar dois anos depois.<br />

Durante todo este período o Álvaro foi um aluno exemplar. Manteve as<br />

consultas de pedopsiquiatria, cada vez mais espaçadas, e rapidamente<br />

foi autorizado a largar a medicação. Nunca faltou a não ser por motivos<br />

de força maior, nem causou qualquer problema de comportamento ou<br />

disciplinar. Como residia numa freguesia distante, não tinha transporte<br />

público que assegurasse as deslocações necessárias à frequência do<br />

programa, primeiro numa cidade daquele concelho e, mais tarde, noutra<br />

ainda mais distante, noutro concelho. O transporte era garantido <strong>pelo</strong><br />

núcleo local da Cruz Vermelha Portuguesa, que transportava também<br />

outros alunos. Este facto obrigava-o a levantar-se muito cedo e a chegar<br />

já tarde a casa.<br />

Durante estes anos de <strong>PIEF</strong> mudou de escola e de área profissional,<br />

e terminou a escolaridade obrigatória num CEF de pastelaria<br />

e panificação, área para a qual nunca sonhou ter qualquer<br />

apetência e que aprendeu a gostar. No final auto-apelidava-se<br />

de «Álvaro Padeiro», com gosto.<br />

Se nem sempre a eficácia de um percurso educativo se mede pela planificação<br />

previsível e linear, este é um desses casos. Este <strong>PIEF</strong> começou<br />

por ser um Pré-<strong>PIEF</strong> itinerante, passou por objectivos e metodologias<br />

diversas, alternou entre a escola e o Centro de Formação e terminou<br />

como um CEF: foi para este jovem a resposta que lhe mudou a vida.


Se nem sempre o cadastro clínico, escolar ou comportamental reflecte<br />

o que são verdadeiramente os indivíduos, o Álvaro é um desses casos.<br />

Não o queriam em escola nenhuma, os pais não confiavam nele e expuseram-no,<br />

paradoxalmente, aos riscos do trabalho infantil para melhor<br />

o controlarem.<br />

Encontrou no <strong>PIEF</strong> um caminho que o levou de uma cidade para outra e<br />

daí para a capital do distrito. Queria ser electricista, tornou-se padeiro.<br />

E feliz.<br />

2 - FOBIA À ESCOLA - Florbela Lopes (técnica da EMM)<br />

O Miguel é hoje um «menino» de vinte e um anos… menino grande, o<br />

nosso Miguel…<br />

Foi dos primeiros jovens que acompanhei quando fiz parte da EMM do<br />

Alentejo… Um dos motivos da escolha deste caso, foi o facto de ter sido<br />

sinalizado com um relatório psicológico, quando tinha apenas<br />

catorze anos, que informava da sua fobia à escola…<br />

Mãe doméstica, pai trabalhador rural, tinha vivido sempre numa casa<br />

modesta, num local recôndito, de difícil acesso. Apenas com a indicação<br />

do local, é assim que o carteiro também lá vai. Foi a intuição quem me<br />

levou a lá voltar... Sítio bonito e verdadeiramente genuíno.<br />

E foi com genuinidade que, após seis anos, fui recebida de braços abertos<br />

por um pai que me reconheceu à distância, dizendo ao filho: «Olha-a!<br />

É a senhora que te tirou o medo da escola!».<br />

A primeira reacção do Miguel foi igualzinha à do menino de catorze<br />

anos. Encolheu os ombros e baixou a cabeça, onde tinha atarracado um<br />

boné verde (quase arrisco dizer que era o mesmo boné que ele usava),<br />

muito envergonhado, verdadeiramente apreensivo com a minha visita.<br />

Passou por entre as ovelhas e levantando ligeiramente os olhos com um<br />

sorrisinho nervoso, lá me disse: «Então o que faz por cá?»<br />

Eu, não menos feliz que ele, não resisti e abracei-o como se aquele<br />

homem que estava à minha frente, com vinte e um anos, fosse o nosso<br />

menino tímido de outrora. Fez-se silêncio neste reencontro e depois lá<br />

saiu em uníssono: «Faz tanto tempo…»<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

30<br />

A partir daí, foi uma conversa pegada, como se o tempo que tinha<br />

passado fosse do tamanho de um intervalo entre a aula de português<br />

e a de ciências… Queria anotar tudo o que foi dito mas perdi-me na<br />

conversa, pois o que retirei das gargalhadas e das expressões foi demasiado<br />

intenso: o Miguel recordava-se de todos os colegas da turma e de<br />

onde eles moravam; fez referência à escola onde decorreu o <strong>PIEF</strong>,<br />

comparando-a com a anterior onde sentia a tal fobia de que o psicólogo<br />

falava no relatório; lembrava-se de ir para a escola de autocarro e depois<br />

de carrinha, quem era o motorista, o que tinham visitado naquele ano,<br />

como era a sala de aula…<br />

O amigo, o melhor amigo até hoje, que mora ali perto, tinha estado<br />

com ele havia pouco tempo: vêem-se todos os dias. Este amigo, o Luís,<br />

também fez parte da mesma turma <strong>PIEF</strong>, em 2001-02, e concluíram<br />

juntos, o segundo ciclo do ensino básico. Foi o próprio Miguel quem nos<br />

sinalizou o Luís; era uma daquelas situações conhecidas por «terra de<br />

ninguém»: o Luís já tinha quinze anos e a escola considerou-o «fora da<br />

escolaridade obrigatória». Penso que o facto do Luís ter sido colega de<br />

turma do Miguel, contribuiu em muito, numa fase inicial, para que o<br />

Miguel se sentisse mais seguro na escola.<br />

Referiu ter encontrado «em tempos», um colega da turma <strong>PIEF</strong>, quando<br />

foi «ao dia da defesa nacional, penso que é assim que se chama», disse<br />

ele. Mas não chegou a ir à tropa «porque isto agora é tudo diferente».<br />

O Miguel era um menino franzino, muito frágil, com uns dizeres de<br />

pessoa adulta e pensamento cauteloso e maduro. Fazia criação de ratos<br />

e chegava a levá-los para a cidade para os vender numa loja do centro<br />

comercial. Um dia viu na televisão que havia uma doença que afectava<br />

os ratos. Então tomou uma decisão: largou os ratos num casebre que<br />

tem perto de casa, onde antes tinha colocado os gatos, apreciou atentamente<br />

a pega dos gatos aos ratos e até deu uma ajudinha… pegou na<br />

espingarda de pressão de ar e, pum! pum!… adiantou-se aos gatos.<br />

E era assim a cabeça do nosso menino franzino! Pensamentos práticos<br />

e pouco sentimentalistas… afinal, «não passavam de ratos e não podia<br />

deixar que o mal passasse à minha sobrinha».<br />

Agora trata do gado como fez sempre, com a diferença de que agora o<br />

gado é seu. Tem feito negócio e já adquiriu mais ovelhas com os ganhos.


Perguntei-lhe se achava importante, apesar de não ter concluído a<br />

escolaridade obrigatória, ter passado <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong>. A resposta não se fez<br />

esperar: «Foi importante porque gostei daquele ano, foi tudo diferente<br />

e conheci pessoas que não conhecia!... É os melhores tempos».<br />

Pessoalmente, acho que nesse ano e para a vida, o que foi mesmo<br />

relevante para este jovem, foi ter percebido que afinal não havia razão<br />

para ter medo. Recordo as pessoas que fizeram parte desta turma; como<br />

eram e continuam, provavelmente, a ser diferentes!<br />

Despedi-me do Miguel trocando contactos telefónicos e, de seguida, fui<br />

ter com o pai que me convidou para o almoço, com a mesma delicadeza,<br />

como fazia quando eu ia lá a casa, há seis anos atrás… «Apareça<br />

sempre!», disseram os dois, a acenar.<br />

«Foi bom revê-los!», pensei eu enquanto entrava no carro, depois de<br />

ter passado <strong>pelo</strong>s patos a correr.<br />

«Está um homem o nosso Miguel!!!»<br />

3 - PROBLEMA PARA A ESCOLA - Ana Fátima Santos (TIL)<br />

Actualmente com dezanove anos, o João fez parte da primeira turma<br />

<strong>PIEF</strong> num distrito do Alentejo. Dificilmente consigo pensar nele sem me<br />

lembrar do seu olhar desafiador e de menino traquina, quando o conheci.<br />

Ingressou na turma com o quinto ano de escolaridade e concluiu o nono<br />

ano em <strong>PIEF</strong>. Teve um percurso significativo a todos os níveis. Refere<br />

ainda hoje com muito orgulho que fez parte de uma turma <strong>PIEF</strong>.<br />

Após a conclusão do <strong>PIEF</strong>, no ano lectivo de 2004-05, deu continuidade<br />

ao seu percurso formativo. Actualmente, frequenta um curso profissional<br />

de nível III, numa escola profissional. É assíduo e tem bom aproveitamento<br />

escolar.<br />

Costumo dizer que o João foi um dos desafios que tive na minha vida<br />

profissional. Ao mesmo tempo, diz-me ele num jeito sorridente, desconhecendo-o<br />

eu no tempo em que o acompanhei, que um dos maiores<br />

desafios da sua vida «foi o <strong>PIEF</strong>».<br />

O João teve sempre dificuldade em falar de si. É de forma descontraída<br />

que hoje conversamos sobre a sua passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong>, ainda com<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

31


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

32<br />

poucas palavras (afinal o João continua a ser rapaz de poucas palavras).<br />

Sendo TIL na turma <strong>PIEF</strong> a que ele pertencia, recorda-me agora<br />

que já me chamava em tom de brincadeira «a inspectora da judiciária»<br />

porque «quer saber tudo da minha vida».<br />

A sinalização do João chegou ao <strong>PETI</strong> quando decorria o ano lectivo<br />

2001-02. Tratava-se de um jovem identificado como um «problema»<br />

para a escola. Eram frequentes os distúrbios que causava<br />

na escola, tanto com os seus pares como com professores ou<br />

funcionários. Em abandono escolar efectivo, então com catorze anos,<br />

declarava recusar voltar à escola, para desespero dos pais, e principalmente<br />

da mãe, que pareciam valorizar a componente educativa no filho.<br />

A família passava nessa altura por uma reestruturação difícil de aceitar<br />

<strong>pelo</strong> João. O seu pai tinha saído de casa, inesperadamente, segundo a<br />

sua mãe. O João continuava a estar todos os dias com o pai mas não<br />

conseguia aceitar que este tivesse deixado de partilhar o mesmo tecto<br />

com ele, a sua mãe e o seu irmão.<br />

Desde o primeiro contacto com os técnicos da EMM o João demonstrou<br />

sempre ser um jovem pouco colaborante. Foi também difícil envolver o<br />

seu pai no trabalho de diagnóstico; <strong>pelo</strong> contrário, a mãe, desde o<br />

primeiro momento pareceu ter considerado a EMM do <strong>PETI</strong> uma ajuda<br />

importante. Após o diagnóstico da situação, o encaminhamento para<br />

uma turma <strong>PIEF</strong> foi a resposta educativa encontrada para este jovem.<br />

Integrou uma turma <strong>PIEF</strong> já decorria o segundo período do ano lectivo<br />

2001-02. Durante os primeiros meses houve vários avanços e recuos<br />

no trabalho desenvolvido com o João, pela equipa técnico pedagógica.<br />

Tal como ele agora refere, «nessa altura passava-me da cabeça», «tiveram<br />

que me pôr na linha para poder estar a sério nas aulas». Adoptava<br />

um comportamento provocatório, com um estilo demarcado de liderança<br />

na relação com os seus pares e com facilidade pensava controlar tudo<br />

à sua volta. Quando sentia que não conseguia «explodia como um<br />

vulcão». Nessa altura era fundada a suspeita de que o João consumia<br />

haxixe que, segundo ele, o «acalmava». A proximidade a jovens que<br />

consumiam e que estavam referenciados a esse nível, na sua cidade de<br />

residência, trouxe preocupações acrescidas aos seus pais e aos técnicos<br />

que o acompanhavam, exigindo da parte destes uma reorganização do


plano de intervenção. Perante a situação de consumos a mãe adoptava<br />

sempre uma postura culpabilizante em relação à situação familiar para<br />

justificar os referidos consumos. Neste sentido, foi fundamental o trabalho<br />

também desenvolvido com a mãe.<br />

No <strong>PIEF</strong> focalizou-se essencialmente o desenvolvimento de competências<br />

pessoais e sociais. Não foi possível concluir o seu plano de educação e<br />

formação (PEF) ao nível das aquisições de competências definidas para<br />

conclusão do segundo ciclo.<br />

No seu segundo ano, no <strong>PIEF</strong> do segundo ciclo, eram notórias as suas<br />

evoluções a vários níveis. As relações estabelecidas com a equipa técnico<br />

pedagógica foram um porto seguro para as suas inquietações e a disponibilidade<br />

para a aprendizagem começou a ser outra. Sobressaía a sua<br />

facilidade de aprendizagem, o seu perfeccionismo e o seu empenho<br />

quando motivado para as actividades lectivas.<br />

Mantendo sempre um perfil de liderança na relação com os seus pares,<br />

e sendo isso valorizado pela equipa, conseguiu trabalhar-se o que de<br />

melhor tal lhe poderia trazer. O João passou a dar-se a conhecer e a<br />

deixar que o conhecessem; passou a colaborar para que os outros também<br />

conseguissem colaborar com ele.<br />

O João concluiu com sucesso o segundo ciclo no <strong>PIEF</strong> e mobilizou-se<br />

para convencer a equipa de que seria «muito importante» haver um<br />

<strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo. Ainda hoje relata a quem lhe fale em <strong>PIEF</strong> que,<br />

numa visita da directora do <strong>PETI</strong>, Joaquina Cadete, lhe pediu para que<br />

no ano lectivo seguinte houvesse uma turma de <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo<br />

na sua área de residência. É com orgulho que assume tal pedido como um<br />

desejo concedido: «só cá há <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo, porque eu na altura<br />

pedi à chefe», como se até hoje o nosso João quase se considerasse o<br />

«pai dos <strong>PIEF</strong>´s», de terceiro ciclo, nessa cidade alentejana.<br />

O João passou a assumir muito o <strong>PIEF</strong> como «seu» e sempre que podia<br />

ditava as regras e fazia as suas exigências. Ao seu jeito, o <strong>PIEF</strong> só<br />

poderia existir se desse resposta às suas necessidades, expressando de<br />

boa maneira que o <strong>PIEF</strong> existia porque ele existia.<br />

O início do ano lectivo em <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo foi atribulado. Na associação<br />

juvenil onde decorriam as actividades lectivas, havia também<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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aulas para uma turma <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo. A convivência não se<br />

revelou fácil e o João parecia ver o seu território invadido por aqueles<br />

a quem chamava «vândalos, vêm para aqui estragar o que é do <strong>PIEF</strong>».<br />

A adaptação à equipa técnico-pedagógica que acompanhava a sua<br />

turma também demorou um certo tempo pois queria ditar as regras e<br />

queria mostrar à equipa técnico-pedagógica o que era o <strong>PIEF</strong>, para ele.<br />

Desse ano lectivo, o João fala com saudades de várias actividades que<br />

desenvolveram no âmbito do projecto curricular de turma, cujo tema era<br />

o «Euro 2004», guardando com muita saudade a recordação de uma<br />

viagem de estudo que foi feita a vários estádios de futebol construídos<br />

nesse âmbito, tendo tido também oportunidade de ir ao Porto, cidade e<br />

zona do país completamente desconhecida para si.<br />

Recorda também com saudade os ateliers que experimentou no centro<br />

de formação profissional, onde descobriu que, afinal, não gostava de<br />

mecânica, como pensava, e descobriu o interesse pela área da restauração.<br />

No ano lectivo seguinte, encaminhado novamente para <strong>PIEF</strong> para poder<br />

concluir o seu PEF de terceiro ciclo, regressou à escola que frequentara<br />

e abandonara antes de ingressar no <strong>PIEF</strong>. A readaptação não foi fácil<br />

para o João, embora tivesse decorrido dentro da normalidade prevista<br />

quando se ingressa noutra escola. Aos seus olhos aquela escola que já<br />

havia sido sua, era nova, pois muito tinha mudado para ele e na sua<br />

relação com o mundo escolar.<br />

O facto de estar novamente numa escola com muitos mais alunos, voltou<br />

a permitir-lhe investir nas relações com os seus pares, principalmente<br />

com os pares do sexo oposto, o que foi então muito importante para ele.<br />

No decorrer do primeiro período, sempre que podia, ia à associação<br />

juvenil onde continuavam a decorrer as actividades lectivas de outros<br />

<strong>PIEF</strong>´s para «ver como está tudo a correr por lá», marcando a sua posição<br />

de poder e controlo nos <strong>PIEF</strong>´s que continuou sempre a achar<br />

pertencerem-lhe.<br />

Entretanto, a situação familiar agravou-se, uma vez que o João teve um<br />

meio-irmão da parte do pai, facto que fragilizou ainda mais a relação<br />

entre ambos e agravou o distanciamento, fazendo cair por terra a


idealização de que a qualquer momento o pai regressaria para casa. Foi<br />

muito importante o trabalho então desenvolvido pela equipa, tendo em<br />

conta esta nova realidade familiar.<br />

Nesse ano lectivo o João teve o seu primeiro contacto com experiências<br />

de exploração vocacional em contexto real de trabalho. Recorda o<br />

«estágio no hotel», um hotel muito conhecido na sua área de residência,<br />

onde desenvolveu actividades de exploração vocacional de acordo<br />

com o seu interesse na área de bar e mesa. É com uma gargalhada que<br />

fala dessa experiência: «íamos para lá todos aperaltados, até o sapatinho<br />

bem engraxado claro, acabei por ver que aquilo não era trabalho<br />

para mim a vida toda, talvez trabalho para de vez em quando».<br />

No âmbito da exploração vocacional, e na exploração de caminhos após<br />

o <strong>PIEF</strong>, o João descobriu um curso profissional de técnico de vídeo,<br />

audio-produção e pós-produção nível III, numa escola profissional local,<br />

que o motivou significativamente e no qual acabou por ingressar.<br />

Na reconstrução do seu percurso escolar foi importante o seu percurso<br />

em <strong>PIEF</strong>, tal como ele reconhece: «se não tivesse sido o <strong>PIEF</strong>, teria<br />

ficado uns anitos sem ir à escola, assim continuei e voltei a gostar<br />

de andar na escola». Quando questionado com o que encontrou de<br />

diferente no <strong>PIEF</strong> destaca: «as aulas não cansavam tanto, os professores<br />

eram mais porreiros e entendiam-nos melhor, fazíamos coisas<br />

muito engraçadas».<br />

Actualmente, o jovem refere que «sou muito bom naquilo que faço no<br />

curso», acrescentando que falta simplesmente um ano lectivo para concluir<br />

o curso que lhe dará também certificação do 12.º ano de escolaridade.<br />

Ainda não sabe o que fará depois; gostaria de trabalhar para<br />

ganhar dinheiro mas não coloca de parte a possibilidade de continuar a<br />

estudar. Vive actualmente com a sua namorada, a mãe e o irmão que<br />

refere «está tão grande que já nem o reconhece!»<br />

Quando lhe pergunto o que guarda do <strong>PIEF</strong> pousa o olhar no chão e diz<br />

simplesmente: «tudo, sei lá… e afinal conte lá como é que estão as<br />

turmas agora?»<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

36<br />

4 - ESCOLHER, ESPERAR, QUERER E SER MAIS… - Patrícia Amorim (EMM)<br />

A Raquel, actualmente com vinte e dois anos, residente numa cidade<br />

do Norte do país, à semelhança de tantos outros (certamente de um<br />

número maior do que todos gostaríamos), teve um percurso de vida<br />

marcado <strong>pelo</strong> abandono escolar e trabalho infantil. Felizmente, a mudança<br />

surgiu com uma passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong>, que contribuiu para a<br />

construção de um projecto educativo alternativo.<br />

Este é o testemunho da Raquel, em conversa a duas, como gosto de<br />

chamar a esta entrevista…<br />

A vida no presente<br />

«EMM - Olá Raquel, já passaram alguns anos desde que estiveste<br />

connosco no <strong>PIEF</strong>…<br />

Raquel - É verdade, para aí uns cinco anos… Você está diferente, antes<br />

tinha o cabelo mais escuro…<br />

E - Pois tinha, agora está pintado [sorrisos] e tu também estás diferente,<br />

estás mais crescida e bonita! Se não te importares, gostaria que<br />

me falasses um pouco da tua vida no presente: o que estás a fazer,<br />

quais as principais mudanças que ocorreram…<br />

R - Estou mais velha [sorrisos], já tenho vinte e dois anos. Estou a tirar<br />

um Curso EFA [Educação e Formação para Adultos] de Assistente<br />

Administrativa, que termina este mês e que me vai dar equivalência ao<br />

nono ano. Neste momento estou a fazer o estágio numa imobiliária.<br />

Entretanto também tive um bebé, faz nove meses. Continuo a viver<br />

com a minha mãe, o meu irmão mais velho e com a minha irmã mais<br />

nova que agora tem 16 anos e que está a tirar o 12.º ano.<br />

E - Então e o pai do teu bebé?<br />

R - Ele deixou-me quando eu estava grávida de dois meses… Reencontrou<br />

uma antiga namorada, e no espaço de uma semana disse que ia<br />

embora e foi para França […] o pior é que nem sequer reconheceu a<br />

paternidade e por isso o caso está em Tribunal.<br />

E - Não deve ter sido nada fácil…


R - Não, na altura sofri muito, fiquei muito magoada […] mas agora já<br />

ultrapassei. Para o sustento do meu filho estou à espera que o Tribunal<br />

tome alguma decisão, e entretanto com aquilo que recebo no curso,<br />

que é o subsídio de transporte, subsídio de alimentação e a bolsa, que<br />

ao todo dá mais ou menos 190 euros e, com a ajuda da minha mãe,<br />

vamos vivendo.»<br />

O passado de abandono escolar e de trabalho infantil<br />

«E - Recuando agora um pouco no tempo, até 2001, à época em que<br />

nos conhecemos…<br />

R - Vocês foram lá a minha casa…<br />

E - Pois foi, fomos a tua casa algumas vezes e também marcámos<br />

entrevistas no IPJ [Instituto Português da Juventude], porque tinhas<br />

abandonado a escola e o teu caso tinha sido sinalizado a esta equipa…<br />

Na altura falámos sobre os motivos que te tinham levado a essa situação,<br />

mas gostaria que me falasses um pouco da forma como vês isto,<br />

agora que olhas para trás…<br />

R - Quando vocês falaram comigo eu estava a trabalhar no restaurante<br />

há uns nove meses, porque tinha deixado a escola…<br />

E - Mas porque é que isso aconteceu?<br />

R - Quando andava na escola, no sétimo ano, já tinha reprovado<br />

algumas vezes por faltas e depois mudei de escola […], mas<br />

acabei por desistir porque sentia-me mal na turma, eram muito<br />

novos em relação a mim…<br />

E - Porque é que faltavas?<br />

R - Faltava por causa de uma professora que tratava toda a gente mal<br />

e eu detestava-a!<br />

E - Mas não faltavas só a essa disciplina…<br />

R - Não, porque faltar é um vício… Por isso é que eu agora digo sempre<br />

à minha irmã para nem começar!<br />

E - Ah é? Explica-me isso melhor…<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

38<br />

R - Começa-se a faltar a umas aulas e começam-se a fazer outras<br />

coisas, como ficar em casa ou estar com os amigos, e quando se dá por<br />

ela nunca mais se volta às aulas… E depois de estar em casa também<br />

tem de se encontrar uma solução, porque os pais começam a dizer: -<br />

«Isto não pode ser! Ou tens de estudar ou tens de trabalhar, não podes<br />

estar aqui sem fazer nada», e como eu também queria dinheiro para as<br />

minhas coisas, comecei a trabalhar.<br />

E - Mas começaste a trabalhar por questões financeiras?<br />

R - Não foi bem por necessidade, embora claro que, os meus pais<br />

estavam separados, e eu via a minha mãe sozinha com três filhos por<br />

criar e também queria ajudar. Acho que o meu pai dava uns quinze<br />

contos por mim e pela minha irmã… Por isso, na altura eu ganhava<br />

setenta e cinco contos, dava-lhe trinta e ficava com quarenta e cinco<br />

para as minhas despesas.<br />

E - Então e como era o trabalho?<br />

R - Ui… era muito mau! Eu servia à mesa e ao balcão e quando era<br />

preciso ainda ajudava na cozinha. Trabalhava todos os dias das nove às<br />

dezanove horas e só tinha uma folga ao Domingo que era rotativa. Mas<br />

o pior era o patrão que me tratava muito mal, quando vinha enervado<br />

era só palavrões, entrava aos pontapés, ia tudo à frente dele... Ele era<br />

empreiteiro de obras e quando as coisas lhe corriam mal ou se tinha<br />

problemas, pronto! Aliás mal o vi da primeira vez, tive logo vontade de<br />

vir embora porque ele tinha um aspecto assustador, era muito bronco<br />

[risos] mas depois começou a brincar comigo e o cozinheiro era pai de<br />

um amigo meu e fiquei.<br />

E - Falando agora um pouco acerca de ti… como te descreverias nessa<br />

altura, que tipo de jovem eras?<br />

R - Nunca fui rebelde… <strong>pelo</strong> menos não me considero assim. Na altura<br />

queria ser muito independente, sobretudo financeiramente. Acho também<br />

que tinha mais maturidade do que outros da minha idade, porque<br />

não estourava o dinheiro, ia guardando e só gastava no que precisava.»


O início da mudança, a integração no <strong>PIEF</strong><br />

«E - Na sequência da nossa abordagem, optaste pela integração em<br />

<strong>PIEF</strong>. Era um projecto novo no Concelho e até no país esta experiência<br />

era recente… Lembras-te do que te levou a tomar esta decisão e a<br />

arriscar por algo que era desconhecido?<br />

R - Foi muito a situação em que estava no restaurante, fez-me ver que<br />

não deveria ter deixado de estudar tão cedo, porque se fosse mais velha<br />

e se tivesse mais qualificações, de certeza que me faziam descontos para<br />

a Segurança Social e não me tratavam assim… Além disso no <strong>PIEF</strong> não<br />

ia ter aquilo que não gostava na escola, que era sentir-me muito presa,<br />

com muitas disciplinas maçadoras e com colegas muito mais novos. Depois<br />

também havia a bolsa que ajudou, e a influência da minha mãe foi importante<br />

porque ela sempre achou que o melhor para mim era estudar.<br />

E - Estiveste integrada no <strong>PIEF</strong> desde Janeiro a Outubro de 2002, tendo<br />

concluído com sucesso o sétimo ano. Quais as recordações que guardas<br />

deste período?<br />

R - Sei lá… tanta coisa.<br />

E - Sim, mas o que foi mais importante para ti? O que correu bem e o<br />

que correu mal?<br />

R - O pior se calhar foi o que aconteceu […], quando o Diogo bateu num<br />

miúdo de lá da escola e depois veio o irmão tirar satisfações e bateu-lhe<br />

e apontou-lhe uma arma [...]. Nós estávamos cá fora e presenciámos<br />

aquilo tudo, lembro-me que estávamos todos com muito medo e a<br />

chorar. Mas depois com a polícia, os professores e as técnicas, resolveu-se<br />

tudo a bem. O mais importante acho que foram as pessoas, os<br />

professores, as doutoras do <strong>PETI</strong> e a monitora, que sempre nos trataram<br />

com respeito e com carinho. Se calhar, outras pessoas olhavam<br />

para nós como um bando de marginais e aqui não, acreditavam<br />

em nós! Lembro-me que adorava a professora de Português e a professora<br />

de Matemática, que era a directora de turma.<br />

E - Mas o teu percurso no <strong>PIEF</strong> não foi feito sem algumas dificuldades,<br />

nomeadamente recordo que tiveste alguns problemas de absentismo.<br />

Apesar disso não desististe e obtiveste sucesso. O que é que na tua<br />

opinião contribuiu para este resultado?<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

40<br />

R - Nem sei porque faltava […]. Lembro-me que às vezes me deixava<br />

ir abaixo sem ter assim um motivo especial, fechava-me, não me apetecia<br />

vir e depois faltava. Na altura cheguei a tomar uns comprimidos<br />

receitados pela médica de família, mas nem acabei a caixa, primeiro<br />

porque comecei a ver que em casa estava pior, só pensava em coisas<br />

que não devia, aqui estava com os colegas, distraía-me mais com as<br />

actividades [...] e a monitora e vocês conversavam muito comigo e<br />

ajudavam-me. Além disso a minha mãe também me dava na cabeça<br />

[sorrisos] quando telefonavam para ela ou marcavam alguma entrevista…<br />

mas acho que nem foi tanto isso, acho que não desistia porque<br />

me sentia bem no <strong>PIEF</strong>.»<br />

O caminho percorrido depois do <strong>PIEF</strong><br />

«E - A tua saída do <strong>PIEF</strong>, sem concluir o nono ano como estava inicialmente<br />

previsto, deveu-se a uma boa razão… é que o encaminhamento<br />

que tinha sido feito paralelamente para a formação profissional na área<br />

de Cabeleireira, conforme era do teu interesse, foi bem sucedido e foste<br />

seleccionada. Chegaste mesmo a participar numa reportagem que<br />

procurava dar a conhecer histórias de jovens que tinham conseguido<br />

reintegrar um percurso educativo-formativo apesar de terem tido problemas<br />

anteriormente com a escola. Mas não concluíste o curso… o que<br />

se passou?<br />

R - Saí passado para aí umas três semanas depois dessa reportagem e<br />

de ter lá andado um ano e meio… A formadora, não sei porquê, não<br />

gostava de mim, dizia que eu devia desistir, que não tinha perfil para<br />

cabeleireira [...] Nunca me elogiou um trabalho! [...] Ela pediu a outros<br />

formadores para me darem negativa, a coordenadora de turma é que<br />

me contou. [...] Ainda fui falar com a psicóloga […] e ela disse-me para<br />

não desistir porque <strong>pelo</strong> menos ficava com a equivalência ao nono ano,<br />

só que eu não quis. Quis fazer queixa, mas só me disse que infelizmente<br />

não era a primeira vez que isto acontecia com aquela formadora<br />

e que não ia ser a última. Então pedi-lhe para me rescindirem o contrato,<br />

porque se fosse eu a rescindir nunca mais poderia vir a entrar<br />

noutro curso no futuro, só que ela não fez isso e eu nunca mais voltei.<br />

Passadas umas semanas recebi uma carta a dizer que tinha terminado<br />

o contrato…


E - Então e como te sentes em relação a isto?<br />

R - Por um lado estou arrependida por ter saído assim, deveria ter<br />

insistido, foi o que me ensinaram no <strong>PIEF</strong> […]. Sinto-me injustiçada<br />

porque eu não era das melhores, mas também não era das piores e<br />

acho que ela começou a implicar mais comigo desde que viu uma<br />

reportagem no jornal quando fui dar o meu testemunho para o novo<br />

<strong>PIEF</strong>. Depois de eu sair começou a implicar com outras, que também<br />

saíram antes de acabarem o curso.<br />

E - E depois? Como surgiu o projecto de voltar a estudar? Que dificuldades<br />

se colocaram e como as ultrapassaste?<br />

R - Depois trabalhei num salão de cabeleireiro, mas era só aos Sábados,<br />

não tinha descontos e só me pagavam vinte euros […] Depois fui<br />

para uma loja de bordados, para o atendimento a clientes, mas só<br />

precisavam de mim durante a época do Natal. A seguir tive um contrato<br />

de três meses numa confecção. Estava na prensagem e quase todos os<br />

dias trabalhava duas e três horas a mais, porque as outras que estavam<br />

efectivas não queriam e como eu estava mais precária […] fiquei com<br />

estes três dedos paralisados uns tempos, de estar a segurar no ferro<br />

[mostra os dedos médio, anelar e mindinho] e com locas nas pernas de<br />

estar encostada à tábua…<br />

E - «Locas»?!<br />

R - Sim, locas, fiquei assim com a carne metida para dentro e as<br />

coisas só voltaram ao normal passados uns meses depois de ter<br />

saído. Fiquei também com problemas nas costas e ainda agora<br />

não consigo estar muito tempo com o meu filho ao colo […]<br />

Depois, fiquei desempregada e como não conseguia arranjar emprego<br />

andei a distribuir publicidade nas caixas do correio sempre que precisavam,<br />

durante quase dois anos […] Depois engravidei e para não estar<br />

em casa sem fazer nada, fui à UNIVA [Unidade de Inserção na Vida<br />

Activa] na minha Junta de Freguesia procurar trabalho, mas aconselharam-me<br />

formação e foi assim que eu vim para o curso de Assistente<br />

Administrativa.»<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

42<br />

Lições e projectos para o futuro<br />

«E - Há pouco, perguntei-te que tipo de jovem eras na altura em que<br />

te conhecemos. Agora gostaria de te perguntar como te vês no presente<br />

e de que forma o teu percurso te influenciou.<br />

R - Acho que não sou muito diferente, talvez mais madura porque as<br />

situações da vida fizeram com que crescesse e me tornasse mais<br />

responsável. Por exemplo, em relação à escolaridade, agora que tenho<br />

o meu filho, não queria que, um dia mais tarde, ele dissesse que a mãe<br />

é uma burrinha e que só tem o sétimo ano e por isso a minha ideia é<br />

tirar o nono ano e depois o décimo segundo para poder ter um emprego<br />

melhor! Além disso, se não tivesse entrado no <strong>PIEF</strong>, se calhar não<br />

pensava como penso agora. Se calhar, a escola era algo que<br />

nunca mais queria na vida, mas como fiz o sétimo ano, ficou a<br />

vontade de querer mais […] e também as pessoas me ajudaram<br />

a ver as coisas de outra maneira… fiquei muito triste quando saí<br />

daqui, quase chorei…<br />

E - Mas a vida tem de continuar, não é Raquel? E é assim que gostaria<br />

de finalizar a nossa conversa, perguntando-te o que esperas para o<br />

futuro, ainda que já tenhas referido a vontade de continuar a estudar…<br />

R - Sim, gostava de arranjar um bom trabalho, com mais segurança,<br />

sem ter de andar a mudar ao fim de meia dúzia de meses, para poder<br />

criar o meu filho sem ter de depender de outras pessoas […]. Para isso<br />

acho que é muito importante continuar a estudar e por isso vou tentar<br />

fazer o décimo segundo ano mas tem de ser através de um curso<br />

subsidiado, já me andei a informar, porque também preciso de ganhar<br />

algum dinheiro!»<br />

A conversa prolongou-se ainda durante algum tempo, evocando aqueles<br />

pequenos episódios (que agora fazem sorrir e que servem para<br />

matar um pouco das saudades que ficam), e entrando por caminhos<br />

mais pessoais cuja partilha não se destina a qualquer publicação, mas<br />

que reforçam a admiração por uma jovem que continua a lutar todos<br />

os dias para ser feliz, o que na essência, não diferirá de qualquer um<br />

de nós. Assim, a Raquel não é nem heroína, nem vítima (ou talvez seja<br />

um pouco de ambas) e na história da sua vida, o <strong>PIEF</strong> não foi por si «o»<br />

final feliz, nem poderia sê-lo, foi antes uma ponte, que num determi-


Índice<br />

nado momento, lhe permitiu atravessar um fosso e chegar a uma<br />

margem em que pôde «Escolher, Esperar, Querer e Ser mais…» e apesar<br />

da vida não ter ficado mais fácil, este ganho parece permanecer,<br />

impelindo-a na definição de novas metas e ajudando-a a descobrir ou<br />

a construir outras pontes para os novos obstáculos que venham a<br />

surgir. O <strong>PIEF</strong> cumpriu a sua missão!<br />

5 - EU SOU ASSIM - Helena Milheiro Almeida e Sandra Mendes (técnicas<br />

da EMM)<br />

Joana, nascida a 4 de Abril de 1987, frequentou o <strong>PIEF</strong> numa EB 2,3 do<br />

Norte do país, no ano lectivo 2002-03. Foi sinalizada à EMM pela sua<br />

escola de origem por se encontrar em abandono escolar desde 9 de<br />

Janeiro de 2001. Apresentava um percurso de forte absentismo, insucesso<br />

escolar (retenções sucessivas no sexto ano) e manifestava comportamentos<br />

disruptivos. A dinâmica familiar pautava-se por alguma<br />

disfuncionalidade e, no que diz respeito à jovem, era marcada pela<br />

negligência. Os pais demitiram-se do seu papel de encarregados de<br />

educação e delegaram essa função na avó. Por estes motivos, tinha<br />

processo de promoção e protecção na CPCJ local.<br />

A EMM, com o objectivo de aprofundar o diagnóstico da jovem, realizou<br />

uma visita domiciliária e verificou que a Joana se encontrava em situação<br />

de trabalho infantil. Era ela que assumia as tarefas domésticas tanto<br />

em casa dos pais como em casa da avó. Abordada pela equipa no<br />

sentido de regressar à escola, no âmbito da medida <strong>PIEF</strong>, aceitou de<br />

imediato. Em 1 de Outubro de 2002 iniciou a frequência do <strong>PIEF</strong> e concluiu<br />

a medida com sucesso a 31 de Julho de 2003. Em relatório final da<br />

equipa pedagógica, os professores verbalizaram que a Joana colaborou<br />

sempre em todas as actividades, demonstrando vontade em aprender.<br />

Quando obteve a certificação de sexto ano, integrada no <strong>PIEF</strong>, escreveu<br />

um poema, procurando transmitir os seus sentimentos em resultado de<br />

ter aceite abraçar esta oportunidade e ter dito «sim, vou por aí».<br />

«Eu sou assim…<br />

Toda sorridente, alegre, divertida...<br />

sempre com uma resposta na ponta da língua.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

43


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

44<br />

Mas antes era triste,<br />

vivia sozinha no meu mundo, onde tudo era ao contrário,<br />

o sol nascia de noite,<br />

as estrelas brilhavam de dia.<br />

Onde os peixes podiam voar,<br />

os pássaros mergulhar no mais profundo oceano.<br />

Onde as flores não nasciam,<br />

onde as horas não passavam,<br />

onde não havia Inverno nem Verão...<br />

Um mundo onde eu sofria a tristeza dos outros,<br />

Até ao dia em que percebi,<br />

que esse mundo era só meu e<br />

ninguém tinha o direito de o estragar.<br />

Então decidi que iria mudar tudo,<br />

tornar esse mundo ainda mais meu<br />

e encontrar a felicidade longe de todos.<br />

Foi então que fiquei sozinha...<br />

e sem poder imaginar, caí num buraco enorme,<br />

um buraco onde ninguém me podia ajudar.<br />

Não queria estudar, falar com os amigos. Nada.<br />

Queria simplesmente ficar sozinha.<br />

Cheia de pensamentos falsos, pensamentos esses que não eram meus.<br />

Só queria fazer asneiras, fumar, roubar... e nunca pensava no meu<br />

futuro, nem no desgosto que dava aos que me rodeavam e que<br />

gostavam de mim. Foi então que percebi o que andava a<br />

fazer e então... fugi desse mundo<br />

onde eu acho que não pertencia,<br />

e consegui com muito esforço voltar à terra<br />

para encontrar a felicidade que Eu encontrei.<br />

Agora tenho um mundo que compartilho<br />

com Todos.<br />

Onde só encontro Alegria,<br />

Felicidade,<br />

Onde as coisas que eu mais adoro são<br />

Todos os que eu sei que gostam<br />

De mim.»


A 8 de Setembro de 2003 foi encaminhada pela EMM para um Curso de<br />

Aprendizagem de Nível II na área de Cabeleireira no Centro de Emprego.<br />

Foi bem sucedida nas diferentes etapas do processo de selecção,<br />

iniciando o curso a 7 de Outubro de 2003.<br />

Comentando a passagem, bem sucedida, da Joana e de outros jovens<br />

<strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> a presidente do conselho executivo da EB 2,3 afirmou:<br />

«O programa integrado de educação e formação a que, abreviadamente,<br />

chamamos <strong>PIEF</strong> teve um papel relevante no acompanhamento dos<br />

alunos que tiveram a sorte de nele serem inscritos. A valorização dos<br />

pequenos êxitos, a promoção da auto-estima, a oportunidade de integração<br />

em actividades bem diversificadas e aliciantes e, acima de tudo,<br />

a possibilidade de frequentarem a escola sem estigmas […] fez deste<br />

projecto uma mais valia».<br />

Foi valorizando os pequenos êxitos, promovendo a auto-estima, a partilha<br />

e os afectos, que a Joana saiu «de um buraco», onde achava que<br />

ninguém a podia ajudar, para um mundo de encontro com o outro,<br />

alegria e felicidade.<br />

6 - UMA PONTE PARA O SUCESSO - Rita Prata (técnica da EMM)<br />

A Sofia abandonou a escola precocemente, na sequência de episódio<br />

conflituoso com a professora e alguns colegas, que conduziu à sua<br />

desmotivação e dificuldade de integração. No seguimento deste abandono<br />

iniciou uma actividade laboral na área da restauração. Após<br />

intervenção do PEETI, em articulação com parceiros locais, integrou o<br />

<strong>PIEF</strong> onde adquiriu uma perspectiva mais positiva da escola, tendo<br />

mesmo vindo a constituir um exemplo, a nível local, de intervenção<br />

com sucesso.<br />

Com catorze anos de idade, foi sinalizada a uma EMM do Norte do país<br />

<strong>pelo</strong>s serviços locais de acção social, por estar em situação de abandono<br />

escolar efectivo e trabalho infantil indiciado. Decorria o ano de 2001.<br />

Resultante da sua sinalização e tendo especial atenção à eventual situação<br />

de trabalho infantil, a equipa efectuou uma visita domiciliária para<br />

realização de um diagnóstico.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

45


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

46<br />

Quando procurámos pela sua residência, fomos informados que a mesma<br />

se localizava nas traseiras de um café, situado no centro da aldeia. Foi<br />

no mesmo café que a jovem, mais tarde, veio a confirmar ter desempenhado<br />

funções.<br />

A Sofia ocupa o último lugar em escala descendente de uma fratria de<br />

quatro. Apesar da situação económica desfavorável do agregado - o pai<br />

é surdo-mudo e aufere pensão de invalidez, enquanto a mãe desempenha<br />

actividade com carácter irregular, na realização de limpezas - tal<br />

não constituiu efectivo fundamento para o seu abandono escolar precoce<br />

e consequente trabalho infantil. No entanto, o rendimento que auferia<br />

representava um importante contributo para as despesas da família.<br />

Questionada quanto ao motivo que realmente esteve na origem do seu<br />

abandono escolar, a mesma referiu: «na altura, tive um desentendimento<br />

com uma stôra, porque me mandou para a rua e eu bati a porta<br />

com força. Isso até foi verdade […] depois ela acusou-me de difamação<br />

porque recebeu umas cartas anónimas e dizia que eram minhas […]<br />

chegou mesmo a pôr queixa em Tribunal […]. Foi injusta comigo, e eu<br />

fiquei com vergonha de voltar àquela escola, vergonha de encarar os<br />

meus colegas». Apesar de considerar ter sido um marcante episódio,<br />

disse mais tarde ter-se arrependido da decisão de abandonar a frequência<br />

escolar: «cheguei mesmo a pedir desculpa à stôra».<br />

Permaneceu nesta situação durante dois anos.<br />

Naquela data, constavam já duas retenções no quinto ano e uma no<br />

sexto, no seu currículo. Após diagnóstico da situação e com base no<br />

mesmo, propusemos à Sofia a sua integração em <strong>PIEF</strong>. Foi com convicção<br />

e entusiasmo que a mesma a aceitou. Os pais também manifestaram a<br />

sua aprovação, também, <strong>pelo</strong> facto de se perspectivar a atribuição de<br />

uma bolsa de formação.<br />

Em Outubro de 2001, a Sofia regressou à escola, a um espaço alternativo,<br />

integrando um <strong>PIEF</strong> para certificação do segundo ciclo.<br />

O facto de ter que se levantar todos os dias bastante cedo para apanhar<br />

os dois autocarros que a conduziam à escola (dada a sua localização),<br />

no extremo oposto do concelho, obrigando à realização de transbordo,<br />

não constituiu obstáculo à frequência assídua nas actividades.


Ainda durante o decurso do <strong>PIEF</strong>, com a duração de um ano lectivo, foi<br />

proposta a sua transição para uma turma do ensino regular, por muito<br />

positivamente se destacar dos restantes colegas no que respeitava às<br />

competências de base e bom ritmo de aprendizagem. Não obstante<br />

essa transição, continuou sob acompanhamento do PEETI.<br />

No mesmo ano obteve resultados que a posicionaram no quadro de<br />

honra da escola e ali continuou com o objectivo de concluir o nono ano.<br />

Integrou uma lista candidata à associação de estudantes, a qual saiu<br />

vencedora. Era notória a sua readaptação àquela escola, contrariando<br />

a perspectiva com que tinha abandonado a primeira.<br />

No ano lectivo 2004-05, o <strong>PETI</strong> voltou a desenvolver actividades em<br />

articulação com a mesma escola, implementando aí um <strong>PIEF</strong> para<br />

outros jovens poderem obter certificação do sexto ano. No início do<br />

ano, sendo aquela escola um espaço desconhecido para a maioria<br />

desses jovens que integraram a Medida, a Sofia assumiu o papel de<br />

anfitriã. Apresentou-lhes os diferentes espaços, explicou-lhes as regras<br />

de funcionamento e, no final, durante a refeição que com eles partilhou,<br />

falou-lhes da sua experiência no <strong>PIEF</strong>, incentivando-os a aproveitar da<br />

melhor forma, a oportunidade que lhes era proporcionada, tal como<br />

acontecera com ela.<br />

No mesmo ano a Sofia, por seu turno, estava prestes a concluir o<br />

terceiro ciclo no ensino regular.<br />

Entretanto, a situação económica da sua família agravara-se com uma<br />

mudança súbita de casa e, ainda no decurso desse ano lectivo, a Sofia<br />

viu-se obrigada a colaborar com os pais. Voltou ao café. «Trabalhava<br />

todos os dias desde as oito da noite à meia noite e meia. No dia<br />

seguinte tinha que me levantar antes das sete da manhã para ir para a<br />

escola. […] Andava sempre cansada».<br />

O cansaço que refere começou a vencê-la, com repercussões nos resultados<br />

escolares. Já não eram os mesmos que apresentava no início do<br />

seu percurso em <strong>PIEF</strong>. Acabou por ficar retida naquele ano. Depois sucederam-se<br />

outros azares. Tentou um ano depois realizar exames para obter<br />

equivalência ao nono ano. Na mesma altura, sofreu um acidente, resultando<br />

na fractura de uma perna. Mais uma vez o seu projecto fora adiado.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

47


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

48<br />

Hoje, a Sofia encontra-se desempregada: «O Café já não dava [...] as<br />

pessoas cá da terra foram todas para o estrangeiro e agora já só cá<br />

vêm nas férias grandes e no Natal». Actualmente com vinte anos,<br />

afirma não ter desistido de completar <strong>pelo</strong> menos o terceiro ciclo.<br />

Já depois de ter deixado a escola, a Sofia foi convidada a participar num<br />

Fórum sobre Abandono Escolar, promovido pela autarquia local e pela<br />

Rede Europeia Anti-Pobreza, onde o seu testemunho e o trabalho do<br />

<strong>PETI</strong> foram relevados, escola e restantes parceiros, apresentado como<br />

exemplo de boas-práticas no combate à pobreza e à exclusão social.<br />

Durante o mesmo evento, em entrevista facultada a um jornal, concluiu:<br />

«Sei que sem o nono ano não vou conseguir um trabalho em condições.<br />

Aqui só há confecções e eu não me dou com aquilo».<br />

7 - PROJECTO FUTURO - Patrícia Inocêncio (TIL)<br />

Rotulado na escola como um menino extremamente irrequieto, impulsivo,<br />

absentista e com um grande desejo de ser independente, o Hugo<br />

trabalhava em todos os «biscates» que apanhava, ganhando o seu<br />

dinheiro, mas tinha os seus objectivos bem definidos… Fez o segundo e<br />

terceiro ciclos em <strong>PIEF</strong>, num concelho do litoral alentejano. No âmbito<br />

da disciplina de exploração vocacional, encontrou a sua vocação e ainda<br />

hoje lá se encontra a desenvolver funções, agora profissionais, após a<br />

conclusão da escolaridade básica.<br />

Oriundo de um bairro situado na periferia da cidade, caracterizado por<br />

um capital social, cultural e literário muito baixo, sentiu na pele a<br />

dificuldade de inserção em várias dimensões de integração nos recursos<br />

sociais existentes: emprego, educação, saúde e habitação.<br />

O Hugo vivia então com os avós maternos que sentiam um grande<br />

desgosto por o neto nunca ter tido entusiasmo para terminar no mínimo<br />

o nono ano de escolaridade e poder ter um futuro melhor.<br />

Chegou ao <strong>PETI</strong> sinalizado pela escola como um menino com insucessos<br />

escolares regulares associados a um absentismo muito acentuado,<br />

também derivados do jovem não ter qualquer motivação para as aprendizagens<br />

pois qualquer estímulo exterior à escola se tornava mais ali-


ciante e entusiasmante que as próprias aprendizagens. Inclusive, em<br />

determinadas alturas, o Hugo ausentava-se por períodos mais longos:<br />

ia fazer aqueles trabalhos sazonais da região (especialmente a «apanha<br />

da pinha»).<br />

Na primeira intervenção do <strong>PETI</strong> mostrou alguma renitência quando<br />

apresentada a proposta para integrar uma turma «diferente». No<br />

entanto, depois de várias intervenções junto da família, que se mostrou<br />

sempre bastante colaboradora e disponível para contribuir para um<br />

melhor futuro, o jovem decidiu que esta poderia ser uma oportunidade<br />

de concluir <strong>pelo</strong> menos o sexto ano de escolaridade.<br />

No ano lectivo 2002-03 integrou o <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo. Nessa altura, a<br />

desmotivação pela escola ainda era a razão do seu grande absentismo,<br />

acabando por não atingir as competências básicas de ciclo. O trabalho<br />

a nível individual foi continuado e, no ano lectivo seguinte (2003-04),<br />

foi reintegrado na turma <strong>PIEF</strong> do mesmo ciclo que decorreu com normalidade<br />

e sucesso, mais até do que se fazia prever. Apesar de continuar<br />

com os seus momentos de irrequietude, o Hugo começou o ano<br />

lectivo. O entusiasmo e motivação pela escola foi-se evidenciando ao<br />

longo dos dias, revelando-se mais cooperativo e colaborador com os<br />

colegas e professores.<br />

Esse progresso, evidentemente, não se manifestou de uma forma<br />

abrupta mas ao longo do tempo, pois o Hugo foi-se identificando com<br />

a turma, com as aprendizagens e os métodos de ensino. Para que se<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

49


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

50<br />

pudessem evidenciar estes progressos na sua vida e despertar nele<br />

algum interesse, foi importante também um trabalho de «bastidores»,<br />

como o treino de competências pessoais e sociais, de forma a facilitar<br />

a sua integração na sociedade.<br />

No decorrer do ano lectivo, foram pensadas alternativas para que se<br />

motivasse a terminar a escolaridade mínima obrigatória, visto ser também<br />

um jovem com antecedentes de trabalho sazonal.<br />

Então, de forma a explorar os interesses do jovem, ao nível da formação<br />

vocacional efectuou-se um trabalho de despiste de interesses<br />

vocacionais e profissionais para que se integrasse numa entidade onde<br />

as actividades fossem do seu interesse. Esta foi uma das situações mais<br />

enriquecedoras no seu percurso no <strong>PIEF</strong>, pois descobriu uma aptidão e<br />

interesse na área profissional da mecânica. Na verdade, as suas áreas<br />

de interesse sempre tinham sido a mecânica de motos e as competições,<br />

chegando mesmo a adquirir uma «motocross» de competição<br />

sem ter carta de condução, ou autorização para circular com esta em<br />

terreno com tráfego (estas motos servem apenas para competição).<br />

E eis que então lhe foi possibilitada a hipótese de fazer a sua<br />

formação vocacional numa oficina, onde sempre cumpriu as<br />

regras e os horários, e para onde começou a ir «para ajudar» até nos<br />

fins-de-semana.<br />

Tudo se começou a compor pois conseguiram-se visitas domiciliárias e<br />

activação de parcerias, mesmo com um percurso bastante atribulado,<br />

para que o Hugo começasse a construir um projecto de vida futuro.<br />

Transitou então para o terceiro ciclo em 2004-05, dando continuidade<br />

ao seu percurso escolar e profissional durante dois anos, com sucesso,<br />

concluindo com aproveitamento o nono ano, em Julho de 2006. Essa<br />

continuidade foi fundamental para poder aprender na oficina e atingir o<br />

seu objectivo, uma vez que o proprietário da entidade que o acolheu,<br />

com quem foi sempre possível articular, colaborou no sentido de o<br />

pressionar para a necessidade de obter a escolaridade obrigatória.<br />

Passou então a ter como grande objectivo na sua vida terminar a escolaridade<br />

mínima obrigatória. Mais tarde, essa entidade que lhe promoveu<br />

a formação vocacional incentivou-o para que ali pudesse trabalhar<br />

como mecânico logo que concluísse o nono ano de escolaridade.


Foram quatro anos de actividade, com alguns percalços mas com um<br />

final de sucesso. Existia uma grande instabilidade, alguma desmotivação,<br />

saturação, mas algum empenho em conseguir desenvolver todas<br />

as competências e terminar com sucesso o nono ano.<br />

No dia em que se realizou a cerimónia de final de ciclo o Hugo encarou<br />

tudo aquilo como uma vitória, uma conquista, com muito orgulho e<br />

como um presente, também, para os avós.<br />

Actualmente, encontra-se a trabalhar com um contrato de trabalho na<br />

mesma entidade da formação vocacional.<br />

Ao nível académico, neste momento, não tem qualquer ambição. No<br />

entanto, futuramente, pensa ainda conseguir uma formação na área da<br />

sua actividade profissional (mecânica).<br />

Descreve a sua passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> como «a ajuda para a construção<br />

e realização do meu projecto futuro».<br />

8 - JOGANDO O FUTURO - Carla Machado (técnica da EMM)<br />

O sonho de ser jogador de futebol profissional comandava a vida do<br />

Tiago. Driblou os professores, chutou os livros, fartou-se de estar no<br />

banco e mudou de clube – abandonou a escola. A adrenalina do<br />

relvado, a praia e o mar chamavam por ele, para correr atrás da bola.<br />

Nos intervalos dos treinos ajudava a mãe na mercearia. Ao fim da tarde,<br />

juntava-se a «outros miúdos da beira da praia, que pareciam feitos<br />

de areia e sal, nos quais se notava a rudeza da vida do mar». Com o<br />

grupo, cometeu algumas infracções. A EMM entrou em campo para actuar.<br />

Entre a Bola e a Escola<br />

Decorria o ano de 2002, quando o Tiago foi sinalizado ao PEETI <strong>pelo</strong> então<br />

IRS (Instituto de Reinserção Social), que o acompanhava por incumprimento<br />

dos acordos no âmbito da medida de promoção e protecção,<br />

instituída pela CPCJ, e <strong>pelo</strong> facto de se ter envolvido em alguns delitos.<br />

Com efeito, o Tiago encontrava-se em situação de abandono escolar<br />

por não conseguir conciliar os treinos e os jogos de futebol, estando<br />

integrado numa equipa júnior, num clube local. Um dos aspectos «que<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

51


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

52<br />

incentiva o abandono da escola por parte dos candidatos a jogadores<br />

profissionais é a alta carga horária de treinos exigida <strong>pelo</strong>s clubes»<br />

(Nunes, 2004, in ComCiência – SBPC/Labjor).<br />

O seu percurso escolar foi pautado por insucessos sucessivos, tendo<br />

ficado retido três anos consecutivos no quinto ano, sendo que as avaliações<br />

eram, maioritariamente, constituídas por níveis um e alíneas, por<br />

falta de elementos, devido ao seu elevado absentismo.<br />

O Tiago manifestou sempre um forte desinteresse e desmotivação pela<br />

escola, reforçando o seu sonho de se tornar um jogador de futebol profissional,<br />

o que dificultou a sua integração no sistema regular de ensino.<br />

Sabemos que «os êxitos desportivos do futebol português criaram nos<br />

jovens uma apetência crescente para abraçarem a carreira de jogador<br />

de futebol… o que leva ao abandono ou à falta de aproveitamento<br />

escolar» (Sindicato dos jogadores profissionais de futebol, 2004).<br />

Aliado aos factores do mundo futebolístico estava o facto de sentir «vergonha<br />

ao pé dos miúdos do ciclo», devido à sua estatura física,<br />

que não se adequava àquele nível de ensino.<br />

Por outro lado, os encargos financeiros da família avolumavam-se, os<br />

recursos económicos escasseavam e as dívidas complementavam a<br />

situação caótica, de grande vulnerabilidade sócio-económica.<br />

O Tiago era «filho da pescaria». O pai, pescador, «ganhava o que o mar<br />

lhe dava»; a mãe, essa, fugiu do trabalho ligado à pesca, onde «o<br />

cheiro da morte, acompanha a vida das mulheres que reclamam a Deus<br />

<strong>pelo</strong> regresso dos seus, perante o mar bravo». Abriu um minimercado,<br />

no rés-do-chão da casa, onde trabalhava com a filha. Embora o Tiago<br />

ajudasse, as receitas diárias não bastavam para sustentar a família.<br />

Foi incentivado a seguir uma carreira no futebol porque «se o garoto<br />

tem talento, a família deposita nele toda a esperança de mudar a sua<br />

situação financeira e social. Nesses casos, é muito comum o jovem<br />

abandonar a escola para se dedicar exclusivamente ao futebol, com o<br />

consentimento da família» (Alvito, cit. por Nunes, 2004, in ComCiência<br />

– SBPC/Labjor). Desde cedo mostrou uma forte destreza e jeito para o<br />

futebol e sempre lhe disseram que «iria longe e com certeza chegaria<br />

a jogar num dos grandes clubes». Essa era a sua vocação.


A passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

«Os noventa por cento de reprovações e os mais de cinquenta por<br />

cento de abandono escolar entre os futebolistas que frequentam o<br />

ensino obrigatório só podem ser combatidos tendo em conta que se<br />

está perante uma população difícil de lidar» (Tavares, 2007, in O Jogo<br />

Online).<br />

Estávamos perante um desafio de grande envergadura. O Tiago não<br />

estava muito motivado para regressar à escola e largar a bola. Foi-lhe<br />

proposto integrar um <strong>PIEF</strong> e, embora contrafeito, disse-nos «vou experimentar<br />

e logo se verá, mas não pensem que vou ficar se não gostar».<br />

Integrou o <strong>PIEF</strong> no ano lectivo 2002-03. No início do projecto ainda<br />

revelava algum comportamento absentista e perturbador, falta de pontualidade<br />

e dificuldades no cumprimento de regras. Os obstáculos em<br />

termos de aprendizagem advinham, essencialmente, da sua falta de<br />

interesse, hábitos e tempo de estudo. Efectivamente, ao constatar os<br />

horários escolares de todos os escalões, para depois marcar os horários<br />

dos treinos, chegou à conclusão de como é difícil, para não dizer impossível<br />

conciliar com sucesso a escola (Naré, 2007, in Horários Escolares<br />

Versus Prática desporto).<br />

Ao longo do processo foram sendo trabalhadas e desenvolvidas competências<br />

pessoais e de relacionamento, de saber estar e fazer em sala de<br />

aula. Mas nunca gostou de passar muito tempo «enjaulado». Era um<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

54<br />

jovem irrequieto, frequentemente partilhava o «sofrimento que tinha<br />

em estar fechado na sala de aula», e «muitas vezes nem ouvia o que<br />

o professor dizia a pensar na satisfação que sentia quando estava com<br />

a bola nos pés».<br />

Inúmeras foram as visitas domiciliárias, outras tantas, as conversas<br />

que tivemos com o Tiago, para lhe incutir a importância do cumprimento<br />

da escolaridade obrigatória, bem como da formação, principalmente<br />

numa profissão em que a carreira termina muito cedo. O dilema estava<br />

instalado – a escola ou a bola.<br />

Já havíamos convencido os pais a libertá-lo do trabalho na mercearia,<br />

que entretanto fecharam, por se verem obrigados a emigrar para França,<br />

perante as dificuldades financeiras, entre outros problemas. O Tiago<br />

ficou, então, à guarda de uns tios, sendo que a tia, sua encarregada de<br />

educação, sempre se mostrou interessada, tendo acompanhado o<br />

processo educativo do sobrinho.<br />

A segunda etapa estava concluída com sucesso, faltava-nos a mais<br />

delicada – convencer o treinador a tornar o horário dos treinos compatível<br />

com o horário escolar. Foi uma tarefa árdua. «Os treinadores são<br />

teimosos». Em contrapartida, nós somos persistentes e fomos conhecendo<br />

a «arte de negociar».<br />

Ultrapassadas as principais resistências, e com recurso diário a estratégias,<br />

nomeadamente de regulação próxima, o jovem foi, paulatinamente,<br />

alterando o seu comportamento e atitudes em contexto escolar,<br />

tendo atingido as competências para a obtenção da certificação do<br />

sexto ano de escolaridade.<br />

Mas os nossos objectivos para o Tiago em termos académicos não se<br />

quedavam por aqui. Depois de terminado o seu percurso no <strong>PIEF</strong>, encaminhámo-lo<br />

para um Centro de Formação, tendo integrado um curso<br />

profissional, que lhe permitiria a dupla certificação – o nono ano de<br />

escolaridade e a qualificação profissional.<br />

Frequentou o curso durante algum tempo, até receber a proposta que tanto<br />

ansiava – um contrato profissional por parte do clube. O jovem desistiu<br />

de prosseguir os estudos. Não foi possível demovê-lo dos seus intentos.<br />

Antes de tudo o mais, o Tiago adorava jogar… O seu futuro estava em jogo.


Epílogo<br />

Encontrámo-lo há pouco. Concretizou o seu sonho – é titular num dos<br />

grandes clubes.<br />

Da passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> recorda «os grandes sermões» que o ajudaram<br />

a afastar-se das situações de risco, a afectividade, a disponibilidade e<br />

a perseverança de todos que teimaram em «que terminasse o sexto ano».<br />

«Ainda me lembro de toda a gente. Nunca esquecerei o que fizeram<br />

por mim e a paciência que tiveram comigo».<br />

Remata afirmando: «valeu a pena ter passado <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong>».<br />

REFERÊNCIAS<br />

http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=16&id=159&tipo=0<br />

http://www.ojogo.pt/23-290/artigo675262.asp<br />

http://www.sjpt.pt/upload/files/desafios_pos_euro2004.pdf<br />

http://nunoare.bloguedesporto.com/1282/Horarios-Escolares-Versus-Pratica-desporto<br />

9 - LONGA ESTADIA - David Soares (técnico da EMM)<br />

Com percurso <strong>PIEF</strong> de quatro anos, represento um caso social bastante<br />

problemático de negligência e exposição a consumo e tráfico de<br />

estupefacientes. Tenho dezasseis anos e uma longa estadia no <strong>PIEF</strong>.<br />

O meu nome é Zé, nasci no dia 10 de Novembro de 1991, completei<br />

dezasseis anos e estou no <strong>PIEF</strong> desde os treze anos de idade.<br />

A minha passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> tem sido muito conturbada, uma vez que<br />

este ano lectivo [2007-08] é o quarto ano consecutivo que faço parte<br />

desta turma de segundo ciclo no Alentejo.<br />

No que diz respeito à minha família, somos três irmãos, e eu sou o<br />

segundo mais velho da relação entre os meus pais. Depois do meu<br />

nascimento, vivemos todos em Cascais e em Lisboa, apresentando o<br />

meu pai, já na altura, comportamentos de risco, nomeadamente, o<br />

consumo e tráfico de estupefacientes. Sempre segui de perto esta<br />

situação, rusgas e detenções constantes, violência doméstica perma-<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

55


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

56<br />

nente e outras situações graves, que ficaram marcadas na minha<br />

memória até aos dias de hoje.<br />

Com o piorar da situação, os meus pais separaram-se, um pouco antes<br />

de o meu pai ter sido condenado à prisão por tráfico de droga.<br />

Eu e os meus irmãos ficámos à guarda da minha mãe, tendo vindo viver<br />

para uma localidade do Alentejo, onde a minha mãe explorava um bar.<br />

Eu e o meu irmão mais novo ficávamos na rua até às três e quatro<br />

horas da manhã, altura em que a minha mãe fechava e efectuava as<br />

limpezas no estabelecimento.<br />

Toda esta situação originou a que raramente fosse à Escola e quando ia<br />

era para dormir. Foi nesta fase que a minha mãe recebeu um forte<br />

apoio do serviço social da Câmara Municipal e do serviço local da<br />

Segurança Social e actualmente é funcionária do município.<br />

Frequentei o ensino pré-escolar na Santa Casa da Misericórdia, iniciei o<br />

meu percurso escolar numa escola básica de primeiro ciclo, onde reprovei<br />

no segundo e terceiro anos de escolaridade.<br />

Transitei para a EB 2,3 na mesma localidade no ano lectivo 2003-04 e,<br />

em Dezembro, fui transferido para a turma <strong>PIEF</strong>. Contudo, devido às<br />

muitas faltas não consegui atingir os objectivos e competências para a<br />

obtenção do segundo ciclo do ensino básico.<br />

Esta foi a minha primeira experiência no <strong>PIEF</strong>.<br />

No ano seguinte, a EMM reencaminhou-me e, mais uma vez integrado<br />

na turma, apenas completei algumas áreas disciplinares do meu PEF<br />

[plano de educação e formação], sendo reencaminhado para a turma<br />

<strong>PIEF</strong>. No ano lectivo 2006-07, faltava-me muito pouco para concluir o<br />

sexto ano de escolaridade, foram várias as chamadas de atenção por<br />

parte da Escola, onde recebi bons conselhos e orientações por parte dos<br />

professores da ETP [equipa técnica pedagógica] e pela TIL da turma<br />

<strong>PIEF</strong>. Também foram várias as vezes que falaram com a minha mãe,<br />

mas mesmo assim não concluí o sexto ano, e cá estou integrado no<br />

<strong>PIEF</strong> <strong>pelo</strong> quarto ano consecutivo.<br />

Todo este processo não é fruto do acaso. Primeiro, como referi anteriormente<br />

não gosto das aulas nem das matérias, sou muito resistente às


tarefas escolares que são muito metódicas e estruturadas, e depois<br />

tenho uma forma de viver bastante diferente da maioria dos meus<br />

colegas, com os quais me dou bastante bem.<br />

Sou um jovem cujas vivências e características pessoais me levaram a<br />

ter uma postura e linguagem bastante desenvolvidas para a idade,<br />

tenho uma relativa facilidade de relacionamento interpessoal com os<br />

colegas mas principalmente com os adultos. Este é o meu grande<br />

problema, pois convivo habitualmente com pessoas mais velhas, que<br />

estão ligadas ao consumo e tráfico de estupefacientes, embora queira<br />

fazer parecer que são meus amigos. Mas não estou, nem quero estar<br />

vinculado para sempre a esta forma de viver, que me é bastante familiar<br />

e com o qual sofri e sofro constantemente.<br />

É uma situação que não tem sido muito fácil de resolver.<br />

Os rendimentos familiares apenas provêm do baixo salário auferido<br />

pela minha mãe, e embora eu não queira fazer transparecer, temos<br />

bastantes dificuldades económicas.<br />

Mantenho um bom relacionamento com o meu irmão e com a minha<br />

mãe, no entanto assumo uma postura algo paternalista, o que origina<br />

uma inversão de papéis: é difícil à minha mãe exercer qualquer tipo de<br />

autoridade sobre mim.<br />

No início do ano lectivo 2007-08, o meu quarto ano <strong>PIEF</strong>, foi acordado<br />

que teria um plano de apoio diferente, ou seja, os professores<br />

voluntariamente e para além do horário já estipulado para eles,<br />

definiram-me um horário específico que eu decidi aceitar, para<br />

no final de 2007, terminar o meu PEF e ser encaminhado para o Centro<br />

de Formação Profissional.<br />

Penso que é desta que vou conseguir.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

57


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

58<br />

10 - DA RUA PARA A ESCOLA - Virgínia Simões, Luís Cavalheiro, Maria de<br />

Jesus Videira e Ana Paula Martins (técnicos de EMM e professoras de <strong>PIEF</strong>)<br />

Jovem em risco com quinze anos de idade, proveniente de bairro social<br />

numa cidade da região Centro Litoral e apenas com o quarto ano de<br />

escolaridade, encontrava-se em abandono escolar quando, em Maio de<br />

2003, foi encaminhado pela EMM para o <strong>PIEF</strong>. Mais tarde, em Abril de<br />

2006, a EMM voltou a encontrar em situação de risco o mesmo jovem<br />

e reencaminhou-o para nova resposta onde se encontra actualmente a<br />

concluir a escolaridade obrigatória.<br />

Em 2003, quando a EMM conheceu o Francisco, sinalizado por uma<br />

IPSS, possuía apenas um percurso escolar marcado por sucessivas<br />

retenções, aliado a uma grande desmotivação pelas aprendizagens.<br />

Provinha de uma família carenciada e habitava num bairro social<br />

problemático, onde o tráfico de estupefacientes, a prostituição e outras<br />

formas de marginalidade, imperam. O seu agregado familiar era constituído<br />

por um pai negligente (embora presente), uma mãe praticamente<br />

analfabeta, empregada de limpeza, e um irmão mais velho que já havia<br />

ingressado no mundo laboral.<br />

Foi encaminhado pela EMM para um <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo que decorreu<br />

no ano lectivo de 2004-05 numa EB 2,3. Apesar das suas dificuldades<br />

de aprendizagem e de comportamento, acabou por concluir com sucesso<br />

o sexto ano de escolaridade. Findo este percurso, foi encaminhado para<br />

um curso de educação e formação (CEF), que teve lugar nessa mesma<br />

escola, acabando por desistir devido à fraca assiduidade e à ausência<br />

do suporte logístico e humano.<br />

De novo em abandono escolar, o Francisco regressou às suas velhas<br />

práticas de delinquência (roubos, tráfico e consumo de estupefacientes),<br />

acabando por ser apanhado nas teias da justiça quando perfez os<br />

dezasseis anos de idade.<br />

A EMM voltou a encontrá-lo no terreno, e de novo lhe propôs um outro<br />

rumo para a sua vida. Encaminhou-o para um <strong>PIEF</strong>/CEF de terceiro ciclo<br />

que iria decorrer nos anos lectivos de 2006 a 2008, noutra escola.<br />

Inicialmente revelou-se um aluno muito problemático, acatava mal as<br />

orientações que lhe eram dadas, e tinha dificuldades em cumprir as regras


estabelecidas. Apresentava muitas dificuldades de aprendizagem (dificuldades<br />

de leitura e de escrita) o que o levava, por vezes, a recusar-se a<br />

trabalhar para não evidenciar essas mesmas dificuldades perante os outros.<br />

A sua relação com os professores era conflituosa e adoptava atitudes<br />

de desafio quando queria fazer valer o seu ponto de vista. Reagia de<br />

forma intempestiva se lhe falavam num tom de voz mais alto e não<br />

tinha interiorizado a ideia de que a escola lhe poderia trazer mais valias<br />

para o seu futuro.<br />

No decorrer desse ano lectivo conseguiu modificar o seu comportamento<br />

agressivo e perante situações de confronto com os professores<br />

ou com os colegas fazia um esforço por se controlar. A escola<br />

tornou-se um lugar significativo, onde gostava de estar em convívio<br />

com os colegas. Criou relações de empatia com alguns professores e<br />

também com o monitor do <strong>PIEF</strong>, mostrando-se agora receptivo aos conselhos<br />

que lhe são dados.<br />

Actualmente com dezoito anos de idade, encontra-se perto de concluir<br />

o nono ano de escolaridade mas sem a dupla certificação que lhe seria<br />

atribuída <strong>pelo</strong> percurso CEF. Embora tenha efectuado esforços significativos<br />

para superar as suas dificuldades, o jovem apenas completará a<br />

vertente académica (graças à filosofia do <strong>PIEF</strong> e ao apoio que lhe é<br />

disponibilizado nesta medida). Tem perspectivas de futuro e sonha<br />

concluir em breve o nono ano de escolaridade para poder ingressar no<br />

mundo de trabalho.<br />

11 - POR DETRÁS DA NORMALIDADE… - Elisabete Fonte (técnica da EMM)<br />

e Sara Pimentel (psicóloga)<br />

Júlia ingressou no <strong>PIEF</strong> muito embora não reunisse os requisitos habituais<br />

das populações abrangidas por esta medida. Oriunda de uma<br />

família aparentemente funcional veio a revelar, no entanto, uma outra<br />

realidade onde a intervenção realizada por parte dos projectos assumiu<br />

um papel fundamental. Permaneceu no <strong>PIEF</strong> três meses apenas.<br />

A EMM recebeu em 2003 a sinalização de abandono escolar da Júlia,<br />

então com 14 anos de idade, com o quinto ano concluído e com duas<br />

retenções no primeiro ciclo.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

59


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

60<br />

Como as sinalizações do concelho onde vivia eram inúmeras, e algumas<br />

por trabalho infantil, após um pré-diagnóstico das mesmas a EMM<br />

decidiu propor a implementação da medida <strong>PIEF</strong> para equivalência ao<br />

segundo ciclo, destinado a jovens somente com o primeiro ciclo.<br />

Quando as técnicas da EMM efectuaram a visita domiciliária, a 27 de<br />

Junho de 2003, depararam com uma jovem de cabelos escuros e óculos,<br />

magra, que contrastava com a mãe «gordinha». Após alguns minutos<br />

de conversa com ambas apurámos que a Júlia tinha abandonado a escola<br />

no mês anterior porque, já sabia que iria ficar retida, não querendo<br />

aguardar <strong>pelo</strong> final do ano lectivo. Para além disso, segundo a mãe, em<br />

breve iriam emigrar para França, <strong>pelo</strong> que não iria regressar à escola.<br />

A Júlia tinha uma irmã mais nova, com 10 anos de idade, que frequentava<br />

o terceiro ano do ensino básico. O pai trabalhava na construção<br />

civil e a mãe estava em casa; estava a tentar que um irmão seu lhe<br />

«arranjasse trabalho em França», para emigrar. A situação pareceu-nos<br />

resolvida. Contudo, ficámos com o contacto para depois confirmar a ida<br />

para França. Caso não fossem, a Júlia seria inserida na turma <strong>PIEF</strong> a<br />

arrancar em Setembro. Em meados de Julho ligámos à mãe para saber<br />

se sempre iriam para França, tendo-nos referido que para já não iria.<br />

Assim, propôs-se matricular a filha no <strong>PIEF</strong>, sendo que, caso a situação<br />

se alterasse, comunicar-nos-ia.<br />

Desta forma, a Júlia foi inserida na turma <strong>PIEF</strong>, ficando nós com a ideia<br />

concebida de que seria uma jovem com perfil um pouco diferente dos<br />

jovens normalmente inseridos em <strong>PIEF</strong>. Aparentemente, a família era<br />

estruturada, com hábitos de trabalho e meios de subsistência.<br />

Em meados de Setembro, o <strong>PIEF</strong> arrancou já com a equipa técnicopedagógica<br />

constituída <strong>pelo</strong>s professores da turma, por uma psicóloga<br />

e um monitor, estes dois colocados <strong>pelo</strong> financiamento do projecto por<br />

parte do <strong>PETI</strong>. Também integrou esta equipa, uma das técnicas da EMM.<br />

Só o trabalho diário com os jovens em <strong>PIEF</strong> permite um conhecimento<br />

gradual e bastante aprofundado da realidade de cada um. Foi neste<br />

âmbito, especialmente, no trabalho de gabinete efectuado pela psicóloga,<br />

que se nos afigurou uma realidade nova. Com efeito, do contacto<br />

diário com a Júlia, desenhou-se uma outra realidade, bem diferente da


inicialmente esperada. Tímida e insegura, de aspecto frágil e escondida<br />

atrás de uns grandes óculos, cedo revelou dificuldades em adaptar-se<br />

ao grupo turma. Com muita necessidade de atenção, diariamente<br />

procurava na figura da psicóloga a figura de referência com quem pretendia<br />

vincular-se e, protegida <strong>pelo</strong> setting terapêutico, permitiu-se<br />

falar de si e das suas vivências.<br />

Os laços de confiança levam o seu tempo a construir e a afirmar-se.<br />

Necessitam de um tempo próprio de crescimento, de amadurecimento<br />

e, tal como qualquer ser vivo, precisam de cuidados para se manterem<br />

firmes, fortes. Para poderem crescer.<br />

Depressa percebemos que seria necessário trazer a família à escola,<br />

para que se pudesse compreender a situação e avaliar a necessidade<br />

de intervir. Foi difícil trazer a mãe mas, quando veio, rapidamente nos<br />

apercebemos de uma situação marcada por alguma negligência e<br />

agressividade. Casada com um homem muito mais velho, e de quem já<br />

tinha sido enteada, vivia marcada <strong>pelo</strong> medo, pela insegurança e por<br />

um controlo discreto mas sempre presente. Sempre que vinha à escola,<br />

com hora marcada, era fácil perceber que o marido se mantinha à<br />

distância, aguardando e marcando o tempo que demorava. Eleita<br />

representante dos pais, como forma de se poderem justificar os contactos<br />

com a família, era, ainda assim, difícil de contactar. Na altura, o<br />

<strong>PIEF</strong> funcionava com um director de turma e, mesmo os contactos entre<br />

este e a mãe, eram vigiados e controlados pela figura paternal, cujos<br />

ciúmes o levavam a confrontar os docentes de forma rude e pouco<br />

educada, chegando a cair num tom de ameaça, ainda que velada.<br />

Na escola a Júlia manifestava comportamentos de alguma «viscosidade»,<br />

com uma necessidade permanente de atenção por parte das<br />

figuras de autoridade. Falava das «sovas» que apanhava e de como<br />

«voava» às mãos do pai, quando mais chateado. Mas, para ela a<br />

culpa era sempre sua, porque não tinha feito o que lhe fora mandado<br />

ou porque era «má e preguiçosa» sendo, por isso, merecedora dos<br />

«castigos». Ao mesmo tempo, um cheiro no ar de um outro tipo de<br />

abuso, mais secreto e calado, misturando momentos de festas e carícias<br />

que rapidamente eram negados e calados.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

61


62<br />

EM BAIXO<br />

Desenho realizado por José Carlos Fernandes Nunes, aluno de <strong>PIEF</strong>.


Rapidamente a CPCJ local foi alertada para esta situação, entrando em<br />

campo de imediato e passando a actuar em parceria. Concluiu-se que<br />

as crianças poderiam sair mais beneficiadas se permanecessem ligadas<br />

à mãe, desde que esta pudesse beneficiar de alguma monitorização.<br />

É de salientar que todos os parceiros tiveram um contributo essencial<br />

na tomada de decisão das estratégias a implementar nesta família.<br />

Reforçámos deste modo a importância do trabalho em rede, porque<br />

muitas vezes é impossível conseguir as alterações desejadas nos<br />

jovens, quando não se consegue nenhuma alteração no ambiente<br />

familiar, prolongando-se situações de grande sofrimento psíquico.<br />

Depois de ponderadas e avaliadas todas as possibilidades, decidiu-se<br />

enviar esta mãe e as duas filhas para uma instituição, para que pudessem<br />

permanecer juntas e sob monitorização técnica. As meninas foram<br />

inscritas numa nova escola e antes mesmo do término do primeiro<br />

período preparou-se a viagem. Tudo foi combinado com a mãe de modo<br />

a parecer uma deslocação para uma reunião na escola. À hora combinada<br />

a mãe chegou com a filha mais nova e, juntamente com a Júlia,<br />

seguiram viagem.<br />

Para protecção de todos e da própria família, não nos foi dado a conhecer<br />

o seu paradeiro. Mas, pouco tempo depois, a Júlia escreveu. Parecia<br />

satisfeita na sua nova vida mas, o afastamento dos amigos e dos<br />

restantes familiares, era muito penoso. Ao longo deste período as três<br />

estiveram sempre apoiadas na escola, no trabalho e na vida quotidiana.<br />

Durante algum tempo mantivemos contacto.<br />

A Júlia completou o sétimo ano de escolaridade e viveu dois anos institucionalizada.<br />

Durante esse período o pai foi várias vezes à escola e a<br />

outras instituições locais à procura da esposa. A mãe refez a vida e<br />

resolveu partir para o estrangeiro com um novo companheiro. A Júlia<br />

não a quis acompanhar. Ficou a viver com um namorado e quando pode<br />

vem visitar-nos.<br />

O processo continua a correr em tribunal e a Júlia parece decidida a não<br />

continuar ligada a nenhum elemento da sua família de origem.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

64<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

Azevedo, J. Inserção Precoce no Mercado de Trabalho, PEETI/MTS, 1999.<br />

Alves, R. (2004). Gaiolas ou asas. Porto: Edições Asa.<br />

Sá, E. (2002). Adolescentes somos nós. Fim de Século.<br />

12 - A (RE)DESCOBERTA DA FAMÍLIA - Ana Fátima Santos (técnica da EMM)<br />

A Maria fez um percurso significativo a todos os níveis. Actualmente<br />

com dezoito anos, ingressou numa turma de <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo no<br />

ano lectivo 2004-05. Concluiu no <strong>PIEF</strong> o nono ano, em 2005-06, tendo<br />

o seu percurso no <strong>PIEF</strong> sido fortemente condicionado pelas alterações<br />

que o agregado familiar sofreu. O trabalho da equipa técnico-pedagógica<br />

com os técnicos da segurança social foi fundamental para assegurar<br />

a estabilidade e bem-estar da jovem.<br />

Após a conclusão do <strong>PIEF</strong> deu continuidade ao seu percurso formativo.<br />

Frequenta um curso profissional no centro de formação profissional, é<br />

assídua e tem bom aproveitamento escolar.<br />

Foi no centro de formação, no qual a Maria frequenta actualmente um<br />

curso, que me fui encontrar com ela. É com alguma frequência que nos<br />

cruzamos na cidade alentejana onde residimos. Recorda-se da primeira<br />

vez que ouviu falar numa turma <strong>PIEF</strong>: «é aquela turma para onde vão<br />

os meninos que dão problemas na escola, lá vais ter outro apoio», foi<br />

assim que as religiosas do lar onde estava institucionalizada lhe falaram<br />

da turma <strong>PIEF</strong>.<br />

Segundo a Maria, na fase de diagnóstico da sua situação pela EMM do<br />

<strong>PETI</strong>, não percebeu muito bem como pretendiam as referidas técnicas<br />

ajudá-la a encontrar uma solução para o regresso à escola, pois era só<br />

isso que ela desejava.<br />

A escola onde frequentava pela segunda vez o sétimo ano não lhe dizia<br />

mais do que ser o sítio onde «me encontrava com o pessoal, onde podia<br />

estar com eles para ir dar uma volta». Faltava bastante, recusava-se<br />

a participar nas actividades propostas, e com frequência tinha<br />

problemas com colegas, que acabavam em agressões físicas.


Quando lhe foi comunicado que iria para outra escola, foi com surpresa<br />

que encarou a ideia de ter aulas numa associação juvenil que ela<br />

conhecia, uma vez que seria lá que decorreriam as actividades lectivas<br />

do <strong>PIEF</strong>.<br />

Recorda-se que logo no primeiro dia, achou tudo muito diferente da<br />

escola que tinha conhecido até então: «no primeiro dia fizemos montes<br />

de jogos para nos conhecermos e conhecermos os professores, foi<br />

super divertido e depois eu até ganhei o prémio que era um cd dos Da<br />

Weasel».<br />

Segundo a Maria «quase sem dar por isso» começou a ir mais às aulas:<br />

«no início ainda faltei algumas vezes porque ia ter com os meus amigos<br />

à escola, era a única altura que podia estar com eles, a carrinha do lar<br />

ia levar-me e buscar à associação, nem quase podia respirar».<br />

O trabalho no âmbito das relações interpessoais favoreceu o autoconhecimento<br />

e o domínio da agressividade, o que facilitou a gestão de<br />

conflitos com colegas e adultos.<br />

As relações estabelecidas com a equipa técnico-pedagógica parecem<br />

ter sido determinantes para que ela tivesse aderido às tarefas escolares<br />

e se tivesse empenhado em desenvolver o seu plano de educação<br />

formação (PEF), pois «os professores entendiam-me e tinham paciência<br />

era diferente (…) ajudaram-me muito». Surpreendentemente, é com<br />

um olhar triste que ela verbaliza tal ideia, acabando por explicar que<br />

«eles percebiam o terror em que eu vivia no lar, detestava lá estar. Foi<br />

muito fixe quando eu fugi para casa da minha mãe. As freiras ligavam<br />

para saber se eu ia às aulas, e as professoras diziam que ia e que<br />

estava tudo a correr muito bem».<br />

A Maria fala assim de mais uma fase difícil da sua vida, remetendo-nos<br />

para um fim-de-semana que foi passar a casa da sua mãe e no qual<br />

não regressou ao lar. Tratou-se de uma fase muito exigente em termos<br />

de intervenção empreendida pela equipa técnico-pedagógica, mas da<br />

qual resultou, em curto prazo, em articulação com os técnicos da<br />

segurança social, a revisão da sua medida de promoção e protecção.<br />

«Quando fiquei a viver com a minha mãe também não foi fácil, mas foi<br />

melhor para mim, acalmei bastante. Depois da escola eu fazia tudo lá<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

66<br />

em casa, ela não fazia absolutamente nada, na altura eu não reconhecia<br />

isso, agora sim». A Maria fala assim do período em que continuou a<br />

proteger a sua mãe, acabando aos poucos desfeita a idealização de<br />

mãe perfeita. O seu pai sempre foi uma figura ausente, a qual desejou<br />

algum tempo que a procurasse. As relações com os adultos de referência<br />

parecem ter oscilado sempre entre a ilusão de ser realmente<br />

desejada e merecedora dos cuidados e afectos dos outros e o desinvestimento<br />

e o abandono.<br />

A sua mãe, com sérios problemas a nível psiquiátrico e de alcoolismo,<br />

não conseguia dar resposta às necessidades da filha. No entanto, a Maria<br />

fazia um esforço enorme para demonstrar aos técnicos que a acompanhavam<br />

que em casa estava muito melhor. Tentava cumprir na escola,<br />

da melhor forma possível, era assídua às aulas e tinha melhor aproveitamento<br />

escolar. O TIL desdobrou-se em contactos com os técnicos do<br />

serviço local da segurança social e até a alimentação diária foi<br />

necessário assegurar naquela casa.<br />

Desse ano lectivo, a Maria recorda: «passei a ir sempre às aulas, e<br />

tinha boas notas, fazíamos coisas giras, lembro-me da dança,<br />

sempre gostei muito de dança». Parece assim, que uma vez<br />

valorizada e motivada para investir, as actividades conduziram-na<br />

de forma eficaz às suas aprendizagens.<br />

No ano lectivo seguinte, a jovem deu continuidade ao seu PEF com o<br />

objectivo de concluir o terceiro ciclo: «nessa altura lá em casa já me<br />

começava a zangar muitas vezes com a minha mãe, passava mais<br />

tempo em casa do meu namorado, os pais dele faziam-me sentir que<br />

tinha uma família a sério». Inevitavelmente, recordando-se desse ano<br />

lectivo, a Maria não consegue abstrair-se do quanto a sua situação<br />

familiar era novamente marcante: «as professoras sabiam tudo porque<br />

eu contava e elas ajudavam-me em tudo o que fosse possível, ajudaram-me<br />

a pensar no futuro o que até aí não conseguia».<br />

Ainda no decorrer desse ano lectivo a sua mãe foi detida: «tive muito<br />

medo que tivesse que voltar para o lar». Foi possível, no entanto, o TIL<br />

articular com os técnicos da equipa multidisciplinar de apoio aos tribunais<br />

e assegurar que o pai da sua irmã pudesse garantir os cuidados<br />

necessários à Maria e sua irmã, por essa altura já a viver com o pai.


O trabalho efectuado no âmbito do desenvolvimento e formação vocacional<br />

foi determinante para a descoberta de caminhos futuros após o<br />

<strong>PIEF</strong>. «Vínhamos para este centro de formação, fiz cabeleireiro, bar e<br />

mesa e auxiliar de infância» - é assim que ela se refere às actividades<br />

de exploração vocacional desenvolvidas no centro de formação. «Gostava<br />

de muita coisa, não sabia bem o que gostaria de fazer no futuro,<br />

fui experimentando vários cursos».<br />

«Quando concluí o <strong>PIEF</strong> fiquei contente por ter passado do nono ano,<br />

até nos exames foi fixe como correu. Queria ir para um curso que me<br />

desse equivalência ao décimo segundo ano e com o qual pudesse<br />

começar a trabalhar se assim quisesse […]. Fiquei perdida, não havia<br />

quase nada cá. Gostava dos cursos numa escola, mas pagava-se<br />

noventa euros de inscrição e eu não tinha dinheiro, só havia depois este<br />

de mecatrónica industrial; por isso acabei por me inscrever e vir».<br />

Nessas férias de Verão, conta-me que trabalhou numa fábrica dedicada<br />

à produção de relés para a indústria automóvel, o que parece ter<br />

reforçado a ideia da jovem, de que se ingressasse neste curso teria<br />

posteriormente facilidade em arranjar trabalho. Quando lhe perguntei<br />

se não está a gostar do curso referiu: «isto não é para mim, não tem<br />

a ver comigo, é fixe porque vou ficar com o décimo segundo ano e<br />

posso começar a trabalhar, mas não me imagino a fazer isto». Parece<br />

ser com uma tristeza evidente que fala desta situação embora refira<br />

logo em seguida: «mas não se preocupe, claro que não vou desistir,<br />

tenho muito boas notas e não falto».<br />

A Maria é actualmente uma jovem muito calma e bem cuidada. A estabilidade<br />

emocional que encontrou junto da família do seu namorado, com<br />

quem vive actualmente, trouxe-lhe a paz desejada: «tenho o meu quarto,<br />

as minhas coisas, preocupam-se comigo, até pelas notas perguntam!<br />

Mas de resto com a minha mãe continua uma grande confusão, há dias em<br />

que a minha cabeça parece que vai explodir com tantos problemas».<br />

Pergunta-me por vários professores, referindo mesmo que ficou muito<br />

contente por a sua professora tutora em <strong>PIEF</strong> lhe ter enviado uma<br />

mensagem nos anos.<br />

A Maria considera actualmente que a componente escolar é fundamental<br />

para um percurso de vida com sucesso. Parece assim que o <strong>PIEF</strong><br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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lhe trouxe as bases de um caminho onde encontrou pessoas que a<br />

ensinaram a conhecer-se, a gostar de si e a valorizar a componente<br />

formativa para um futuro melhor.<br />

Terminámos o nosso encontro, que mais não passou de uma agradável<br />

conversa, concluindo que «se não tivesse sido o <strong>PIEF</strong> sei lá eu onde<br />

andava agora, às tantas ainda não tinha o sétimo ano; com o <strong>PIEF</strong><br />

atinei da cabeça».<br />

13 - A FORÇA DOS NOSSOS ORLANDOS - Mara Martins (TIL)<br />

Orlando é actualmente um jovem de dezoito anos, integrado no <strong>PIEF</strong> no<br />

Algarve entre 2004 e 2006, onde concluiu com sucesso o terceiro ciclo<br />

do ensino básico. O Orlando viveu momentos de grande angústia.<br />

Porém, o grupo a que pertencia tornou-se mais forte e unido, com o<br />

apoio duma comunidade escolar que se sentia impotente e desiludida<br />

face à situação do jovem.<br />

Um olhar azul, penetrante, um corpo franzino e um sorriso traquina…<br />

Orlando marcou aquele <strong>PIEF</strong> e marcou inevitavelmente a minha vida…<br />

Estava numa Instituição quando foi integrado na turma. Certo dia,<br />

informou-me que ia faltar às aulas, porque tinha uma audiência no<br />

tribunal, juntamente com a sua mãe e o director da Instituição onde<br />

estava inserido.<br />

No dia seguinte, informou-me que o tribunal decidira que passaria a<br />

residir com a sua mãe. Relatou que durante a audiência declarara que<br />

«preferia continuar na Instituição, <strong>pelo</strong> menos até terminar a escola,<br />

depois logo se via…». Esta sugestão foi recusada uma vez que aquela<br />

instituição já «não o queria», sendo decidida a integração na casa da<br />

sua mãe.<br />

Relativamente ao facto de voltar a residir com a sua mãe, refere: «Toda<br />

a mãe gosta de estar com o seu filho». Terminou o seu relato com uma<br />

expressão facial triste e esperançosa.<br />

O Orlando, desde o início das aulas, demonstrou ser um jovem muito<br />

assíduo, responsável, interessado, afável com os colegas, professores<br />

e a TIL. Mas, desde que foi residir com a sua mãe e com o


padrasto, as suas atitudes e comportamentos alteraram-se. Houve uma<br />

quebra no seu rendimento escolar e uma distância relacional com todos.<br />

Recordo, como se fosse hoje, o primeiro contacto que tive com a<br />

«família» do Orlando. A sua mãe esteve na primeira reunião como<br />

encarregada de educação, acompanhada <strong>pelo</strong> padrasto… No decorrer<br />

da reunião fiquei com a sensação, acreditei ou quis acreditar, que<br />

ambos estavam disponíveis para receber o Orlando, e que este malestar<br />

(que o jovem transmitia) era passageiro, uma fase de transição,<br />

que nos próximos dias iria desaparecer… e que o amor que o Orlando<br />

sentia pela sua mãe iria superar todas as barreiras. Acreditei sempre no<br />

amor. Acreditei que por mais que não se quisesse ou não existissem<br />

condições económicas para cuidar deste filho, aquele amor que o<br />

Orlando sentia, iria fazê-lo conseguir vencer. Contudo, o que mais me<br />

marcou na reunião foi o olhar e o beijo frio e distante que a mãe deu<br />

em resposta ao beijo amoroso e terno do seu filho.<br />

Estes meses foram sentidos e vividos com muita angústia, <strong>pelo</strong> próprio<br />

jovem, pela família, <strong>pelo</strong>s agentes educativos envolvidos no processo<br />

do Orlando, por mim, por toda a equipa do <strong>PETI</strong> e <strong>pelo</strong>s colegas da<br />

turma e da escola.<br />

Nos diversos atendimentos, nas várias conversas informais e formais,<br />

apesar do Orlando não ser um bom relator dos seus sentimentos,<br />

deixou transparecer pela sua postura e pelas suas poucas palavras, que<br />

tanto a sua mãe como o seu padrasto o rejeitavam, e que não era bem-<br />

-vindo naquela família. Ir de fim-de-semana, ou umas semanas durante<br />

as férias lectivas eram bem aceites, agora pertencer, viver e conviver<br />

diariamente… era muito mais do que estas pessoas estavam disponíveis<br />

para oferecer!<br />

Enquanto permaneceu na casa do seu padrasto, o Orlando verbalizou<br />

várias vezes ter sido ameaçado de ir para a rua. Relatou que a sua mãe<br />

nada podia fazer, visto não trabalhar, ter outro filho a seu cuidado e que<br />

outrora já tivera que escolher entre os dois.<br />

Segundo o jovem, a convivência com o padrasto era péssima, não<br />

suportava as ameaças, assim como toda a situação que estava a viver,<br />

reforçando sempre o facto de que preferia ter ficado na Instituição.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

70<br />

Ao relatar a sua vida antes de entrar e durante a sua permanência na<br />

Instituição, evidenciou-se que este jovem se sentia abandonado pela<br />

mãe e rejeitado <strong>pelo</strong> padrasto!<br />

Certo fim-de-semana o Orlando enviou uma mensagem à mãe a dizer<br />

que não ia dormir a casa, que ficava na casa de um amigo fora da<br />

cidade, episódio que foi sentido como muito desagradável pela família<br />

e que, segundo esta, agravou toda a situação. O jovem não podia fazer<br />

o que queria e como queria. As ameaças de exclusão daquela casa<br />

passaram a ser constantes, ao ponto do jovem não querer voltar mais.<br />

Numa postura de adolescente rebelde e magoado, o Orlando recusouse<br />

a voltar para casa, quis ficar na casa do amigo por mais um dia:<br />

«assim podia fugir a mais uma discussão».<br />

A sua mãe aceitou muito bem a birra de adolescente e foi entregar ao<br />

porteiro da escola, alguma roupa do jovem em sacos de lixo pretos!<br />

No dia seguinte, após vários atendimentos individuais, o jovem ponderou<br />

e reflectiu sobre as suas atitudes, acabando por voltar para casa.<br />

Na mesma noite o padrasto ligou-me para informar que o diálogo entre<br />

ambos não tinha corrido bem, que o Orlando apresentava uma postura<br />

nada humilde e se recusava a falar com ele. O Orlando voltara para a<br />

cidade, de boleia com o seu padrasto e um amigo do casal mas, depois,<br />

ficou na mata (local sombrio, frio, sem casas, frequentado por toxicodependentes<br />

e sem-abrigo…).<br />

Nessa noite, o Orlando dormiu no chão de um prédio, com algumas<br />

mantas que uma amiga lhe emprestou.<br />

Na noite seguinte, pronto para dormir onde fosse possível; surge um<br />

contacto com a «Linha 144», para tentar solucionar o problema.<br />

O padrasto ligou-me em pânico e informou que uma assistente social<br />

da «Linha 144» lhe ligara a dizer que o menor estava na rua, que tal<br />

não podia continuar e que o senhor tinha que o receber.<br />

A técnica da «Linha 144» levou o Orlando para casa da mãe. Contudo,<br />

o confronto entre o padrasto e o jovem não correu da forma desejada<br />

e o Orlando voltou para a rua. O padrasto ligou-me por voltas das duas


horas da madrugada, para me informar do sucedido, e que não sabia<br />

para onde o jovem ia, onde ia dormir, mas na sua casa não podia ficar.<br />

A partir destes episódios instalou-se a confusão ao redor do Orlando.<br />

Os colegas da turma e da escola não conseguiam aceitar que o jovem<br />

dormisse no chão e individualmente foram pedindo a autorização dos<br />

pais para ter o Orlando na sua casa; eles não aceitavam a situação do<br />

amigo, do colega, que para muitos até era um desconhecido e de<br />

repente passou a ser conhecido por toda a escola… os colegas, imploravam-me<br />

por tudo para eu fazer alguma coisa!<br />

Mas o quê?! Os contactos diários com a família, não tinham resultados…<br />

eles não queriam o Orlando, a mãe não queria este filho… a Instituição<br />

não o recebia… a segurança social sem ordem do tribunal nada podia<br />

fazer… As reuniões, os atendimentos, os contactos com a família e com<br />

a segurança social, passaram a ser diários… E nada… Nada surtia efeito<br />

imediato!!! Esperar – era a resposta obtida!<br />

Eu não podia trazê-lo para casa… Vontade não me faltou… Foram<br />

momentos bastante angustiantes, de incapacidade, de não saber o que<br />

poderia fazer?! Como posso ajudar?!... Não podia demonstrar ao Orlando,<br />

nem a ninguém… Mas eu não percebia o porquê de tanta incapacidade…<br />

O porquê de tanta espera… espera de algo… da segurança social, dos<br />

nossos tribunais… «Porquê?», «Como?», «Não sei!!!», passaram a ser<br />

as minhas questões diárias…<br />

A escola, o <strong>PETI</strong>, os professores, os amigos, os colegas passaram a ser<br />

a família do Orlando ao longo destes dias, que pareceram anos…<br />

A história, a vida do Orlando era de todos nós! Ninguém estava indiferente<br />

à vida deste adolescente. Não existia aula de português, inglês<br />

ou matemática, os colegas não permitiam, não aceitavam, eles queriam<br />

uma solução para o colega e amigo!!!<br />

A mãe da namorada do Orlando, com quatro filhos menores, uma<br />

enteada menor e bastantes dificuldades económicas, mas com AMOR<br />

para dar, não conseguiu assistir indiferente ao sofrimento do Orlando,<br />

nem da sua filha, nem aceitar ou perceber como e porquê se abandona<br />

um filho?! Assim o Orlando, foi passar um dia, e outro, e outro e não<br />

mais saiu da sua casa…<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

72<br />

Os dias do Orlando foram passados na escola, com o apoio de todos os<br />

que estavam ao seu redor. Todos tentaram de alguma forma contribuir<br />

para atenuar a situação do Orlando, uns emprestavam umas coisas,<br />

outros davam outras e, assim, o Orlando ia sobrevivendo. Nunca mais<br />

recebi um telefonema da mãe, nem do padrasto do Orlando, após o<br />

jovem ser «acolhido» pela nova família.<br />

Passámos a intervir e a apoiar directamente a nova família do Orlando,<br />

através de contactos diários, visitas domiciliárias, reuniões conjuntas<br />

com a segurança social, o tribunal, que passaram a ser frequentes no<br />

meu dia-a-dia.<br />

Legalmente o Orlando não pertencia a esta família… logo não se<br />

conseguia apoio económico e social.<br />

Em desespero, recorreram ao programa da TVI «Você na TV». Este dia<br />

foi vivido com muita intensidade por todos… A esperança de que a<br />

situação do Orlando desaparecesse era nítida na face dos colegas e do<br />

próprio Orlando… A esperança que a sua mãe, perante a exposição,<br />

reconsiderasse e o quisesse receber… Contudo não surtiu o efeito<br />

desejado.<br />

Ao fim de algum tempo, a família da mãe da namorada do Orlando<br />

obteve a tutela do jovem até aos dezoito anos.<br />

Com todos os percalços na sua estrutura familiar, o Orlando nunca<br />

colocou em causa o que sentia pela sua mãe, o desejo de a poder amar,<br />

o desejo de ter um abraço; o desejo de ter realmente a mãe. Desculpabilizava-a<br />

a todo o momento: «Ela não pode ficar comigo, teve que<br />

escolher… É o meu padrasto que trabalha…» – Frases que passaram a<br />

ser constantes no discurso do Orlando.<br />

Realmente, toda esta situação foi passageira para muitos dos que assistiram,<br />

uns em primeira fila, outros nos bastidores. Mas, para o Orlando<br />

e outros «Orlandos», não é uma situação passageira, não é mais um<br />

caso que por sorte ou por vontade de um estranho, tem um final feliz.<br />

É a sua vida, a sua história…<br />

Acredito que as respostas aos jovens que por este ou outro motivo<br />

estão em abandono, vão ter respostas mais rápidas e eficazes. Acredito<br />

nos finais felizes. Acredito na força dos nossos ORLANDOS!!!


14 - OPTEI PELO MELHOR… - Maria (aluna do <strong>PIEF</strong>)<br />

A Maria tem vinte anos e frequentou o <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo, entre 2004<br />

e 2006, numa cidade do Algarve. Foi merecedora de uma distinção no<br />

quadro de mérito e excelência na escola, nos dois anos em que pertenceu<br />

à turma <strong>PIEF</strong>. Actualmente está a trabalhar no mesmo cabeleireiro<br />

em que inicialmente desenvolveu as actividades no âmbito da área<br />

curricular de formação prática em contexto de trabalho.<br />

«Na minha adolescência tudo era maravilhoso, as amigas, os colegas<br />

de turma, as saídas à noite, tudo o que uma adolescente gosta de ter.<br />

Mas a vida dá muitas voltas, e com essas voltas por vezes tombamos<br />

uns para maus caminhos, outros para a violência, etc. No meu caso não<br />

aconteceu isso, sofri a perda de um familiar muito querido, autoritário,<br />

mas era um amor, o meu avô. O interesse pela escola foi-se esmorecendo<br />

pouco a pouco, primeiro o afastamento dos colegas, depois as<br />

notas a descer, até que por fim desisti da escola.<br />

Em casa era uma seca, as amigas eram uma seca, tudo para mim não<br />

tinha interesse. Mas superei, venci essa batalha, o gosto foi aparecendo,<br />

o interesse ressuscitou e entre estar em casa e a escola optei<br />

<strong>pelo</strong> melhor, terminar os meus estudos. Inscrevi-me em cursos mas<br />

nada, foi então que tive a oportunidade de conhecer o <strong>PIEF</strong>.<br />

Fiquei super contente, apesar de me terem dito certas coisas dos<br />

alunos do <strong>PIEF</strong>, mas enganam-se porque se não fosse o <strong>PIEF</strong><br />

não acabaria de completar a escolaridade obrigatória, nono ano,<br />

e estaria sei lá onde. Adorei todo o projecto, as professoras, os colegas<br />

e é claro a nossa TIL, Mara e a maravilhosa directora de turma, professora<br />

que foi uma luz para todos nós.<br />

Todo o projecto foi gratificante para mim. Estagiei com crianças (adoro-as),<br />

também tive a experiência de estagiar num salão de cabeleireiro onde<br />

fiquei a trabalhar após ter terminado o curso.<br />

Hoje estou a pensar em completar o décimo segundo ano, sei que é<br />

difícil estar a trabalhar e a estudar mas não é impossível, já ganhei uma<br />

batalha não perdi a guerra.<br />

Por isso quero agradecer ao <strong>PETI</strong>, a fantástica oportunidade que me<br />

deu de terminar os estudos, e graças a ele hoje sou uma pessoa mais<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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feliz e a trabalhar num sítio que adoro. Deixo esta mensagem a vocês,<br />

raparigas e rapazes, não deixem escapar esta oportunidade de conhecer<br />

estes projectos, nunca se sabe quando teremos uma segunda<br />

oportunidade».<br />

15 - PASSA A MENSAGEM - letra e música de aluno do <strong>PIEF</strong>, Ricardo<br />

Ricardo é um jovem com dezassete anos que frequenta um <strong>PIEF</strong> de<br />

terceiro ciclo na região do Algarve. Foi sinalizado pela CPCJ em 2004 e<br />

desde esse ano é acompanhado <strong>pelo</strong> <strong>PETI</strong>.<br />

Escreve e canta «hip-hop» e tem demonstrado grande potencialidade<br />

neste género musical. O seu nome artístico é «Japan Drum». O tema<br />

«Escolaridade obrigatória» foi escrito e tem sido cantado <strong>pelo</strong> próprio<br />

Ricardo em diversos eventos abertos à comunidade…<br />

Através desta composição tem conseguido expressar as suas vivências<br />

e comunicar a própria experiência, estimulando os interlocutores:<br />

«passa a mensagem… vem sempre arrependimento».<br />

Escolaridade obrigatória<br />

A vida de escola para putos é rotina<br />

O campo marca a página e o ponto é a cantina<br />

Acordam de manhã p’ra chegar e fazer zero<br />

E mesmo quando entram a cabeça ‘tá aéreo<br />

Fights no campo p’ra poder ver<br />

Que a lei do mais forte acaba sempre por vencer<br />

Ficam à toa perdidos na própria escola<br />

Não querem mais faltar mas os amigos dão de cola<br />

E p’ra ti a dica é vinda do além<br />

Acaba esta cena vê lá puto pensa bem<br />

E reflecte o que queres fazer da vida<br />

Não te quero ver entrar num beco sem saída<br />

(Refrão)<br />

Isto é o refrão em lição tipo oração<br />

Não te esqueças o futuro está na tua mão


Começa já a parar para pensar<br />

Escolaridade obrigatória já está quase a acabar<br />

Isto é o refrão em lição tipo oração<br />

Vai em frente não faças reclamação<br />

Esquece o passado dedica-te ao presente<br />

Abre as tuas portas o caminho é em frente<br />

Esquece esta xet mesmo liga ao que sentes<br />

Foge da mentira que a verdade é suficiente<br />

Edição e lição ainda não foi escrita<br />

Dizes que ‘tás farto e a escola já irrita<br />

Baldas para os brós a fumar até ficar tonto<br />

Mas as faltas vão-se acumulando até ficar tonto<br />

Dinheiro é a fonte com os lemas de alvorada<br />

Melhor mal acompanhados do que sozinhos sem nada<br />

Esquece o passado dedica-te ao presente<br />

Abre as tuas portas o caminho é em frente<br />

Se há dificuldade arranja um meio<br />

Mas tens que separar tua aula do recreio<br />

Vai até ao fim para te darem valor<br />

Esquece o MP3 na sala com o professor<br />

Se achas que estudar é problema estás errado<br />

Manda a bala ao peito com o teu significado<br />

Refrão…<br />

Intervalo precioso e na aula não há pacto<br />

A falta de vontade na escola é um facto<br />

Passa a mensagem que a ti já te passaram<br />

A água entrou no barco e muitos nele já entraram<br />

Não desistas para não perderem a esperança<br />

Vai em frente na escola forma aliança<br />

Chega a um ponto pensas que ninguém te ama<br />

As faltas são bués quem dá tripes é a dama<br />

Dedica-te ao futuro para o choro acabar<br />

Errar é humano e muitas vezes vais falhar<br />

Toda a gente erra mas vem sempre arrependimento<br />

Ha ya pois é vem sempre arrependimento<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

76<br />

Pior é se tu queres e teus amigos te controlam<br />

Repara bem no perigo que eles isolam<br />

Pensa porque a cabeça ‘tá aérea<br />

Esquece todo o mundo e actua na matéria<br />

Não tentes passar o ano aos teus profs a dar pena<br />

Tenta ser honesto ‘tás no teu tempo de antena<br />

Refrão…<br />

16 - DE REPENTE UM ANO PASSA A CORRER... - aluno do <strong>PIEF</strong><br />

Elegemos a escola<br />

Seguimos a estudar<br />

Orientamos as ideias «na sacola»<br />

Construímos uma vida para durar.<br />

Damos o que valemos.<br />

Esforçamo-nos para ficar.<br />

Para ter o que queremos,<br />

E a esperança alcançar.<br />

A Escola está do nosso lado<br />

para nos poder guiar.<br />

Recreios e convívios a ter,<br />

aprendemos como amigos fazer.<br />

Vale sempre acreditar.<br />

De repente um ano passa a correr,<br />

Seguros no futuro os <strong>PIEF</strong>’s vão ser,<br />

Unidos nesta escola querida<br />

Que nos levou electricistas a ser.


17 - A HISTÓRIA DE UM JOVEM - Francisco Costa (tutor do <strong>PIEF</strong>)<br />

Este é o depoimento de um professor-tutor de <strong>PIEF</strong> e inclui testemunhos<br />

de um jovem que relata a sua vivência na passagem <strong>pelo</strong> Programa.<br />

Descreve o seu percurso desde 2004 até à actualidade, da situação de<br />

abandono escolar à integração no <strong>PIEF</strong>, culminando com o reingresso<br />

no ensino regular.<br />

No mês de Novembro de 2004, uma EB 2,3 do litoral Norte do país<br />

acolheu um grupo-turma, composto por quinze alunos que tinham<br />

abandonado o sistema educativo, para iniciarem o <strong>PIEF</strong>. Eram jovens<br />

oriundos de diversas localidades do mesmo concelho e que não pertenciam<br />

à área geográfica da comunidade escolar, muitos deles residindo<br />

a cerca de trinta quilómetros da escola, utilizando transportes públicos<br />

e, alguns deles, tendo que seguir três carreiras/percursos para chegar<br />

ao estabelecimento de ensino. O Paulo, jovem de quem vou falar,<br />

residia numa cidade a cerca de dez quilómetros de distância.<br />

A integração destes jovens criou grande expectativa no seio da ainda<br />

nova comunidade educativa, situada em meio rural. Era enorme a<br />

curiosidade em saber como eram esses jovens. O receio também era<br />

claro, pois a integração dos mesmos iria provocar grandes expectativas<br />

quanto ao seu comportamento, atitudes e influência nos costumes da<br />

comunidade, e como poderia causar perturbação, devido à possibilidade<br />

de situações de indisciplina e de vícios sociais, tais como, tabaco,<br />

álcool e droga.<br />

Os jovens apareceram. Todos os olhares recaíram sobre eles. Os problemas<br />

surgiram. A escola era vista por eles como uma prisão, um<br />

colégio correccional, uma opressão… A equipa pedagógica e o conselho<br />

executivo acreditaram que era possível mudar as atitudes e o pensamento<br />

dos mesmos. Não desistiu; foi lutando. Nesta luta, os jovens<br />

começaram a perceber que a escola era amiga deles! E como eram lá<br />

felizes! Foi muito difícil, é verdade. Mas era a casa onde gostavam de<br />

estar!... Sentiam carinho, matavam a fome, tinham amigos… e sentiam-se<br />

felizes!... mesmo continuando a fazer asneiras…<br />

O Paulo era triste, tímido e desconfiado. Lá ia acompanhando os seus<br />

colegas, por imposição das regras de grupo, com um comportamento<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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mais discreto e reservado e, muitas vezes, até contrariado. Mas, pressionado<br />

e submisso, alinhava nas asneiras da turma… Fomos conhecendo<br />

o Paulo, então com catorze anos de idade que nos foi narrando<br />

a sua história: «Ora bem, tinha eu oito anos, andava na terceira classe,<br />

quando cometi um grande erro. Experimentei fumar. Nunca o deveria<br />

ter feito, mas aconteceu…e noto que estou com menos resistência...»<br />

Era um rapaz franzino sendo necessário insistir com ele para comer!<br />

Mas, pior que isso, o Paulo transmitia um olhar de tristeza e revolta. Foi<br />

preciso dialogar, até que nos contou: «Quando tinha onze anos os meus<br />

pais separaram-se, mas como eu não gosto muito dele, até não fez<br />

muita diferença, mas, enfim, a minha mãe arranjou um parceiro muito<br />

fixe, que por acaso aceitei... Estive um ano à espera, que me atrasou<br />

mais um pouco. Não estudei, ou seja, foi o terceiro ano de escola que<br />

perdi.»<br />

A partir daqui começámos a perceber o que se passava com o Paulo, o<br />

que nos ajudou imenso a melhorar a nossa relação afectiva com ele.<br />

Fomos conquistando a sua confiança. O Paulo começou a falar connosco,<br />

a desabafar, a sorrir… Muitas questões colocadas em relação ao<br />

jovem começaram a parecer diferentes!<br />

O Paulo começou a ganhar confiança, a ser cada vez mais feliz e a<br />

sentir-se com estima na comunidade escolar, como ele testemunha: «A<br />

maior parte das pessoas pensava que os <strong>PIEF</strong>’s não sabiam ser fixes,<br />

simpáticos, calmos, românticos e etc.., mas eu e a minha turma demonstrámos<br />

o contrário, fazendo grandes amizades com os alunos, os<br />

funcionários e, até mesmo, professores e, também, conquistando os<br />

corações de algumas “ninas”».<br />

Para este facto é de salientar a importância crucial dos afectos, da<br />

empatia e da disponibilidade dos professores e de outros elementos da<br />

comunidade escolar na relação com estes jovens. A relação estabelecida<br />

entre a escola (através do tutor, do director de turma e da equipa<br />

do <strong>PETI</strong>) e a família do Paulo foi preponderante para a integração do<br />

Paulo no seu percurso e sucesso escolar. Sempre que necessário, quando<br />

faltava, quando havia desvios de comportamento, por causas várias, o<br />

encarregado de educação era informado oportunamente, a fim de estabelecer<br />

estratégias de remediação, a fim de evitar conflitos relacionais.


O Paulo começou a ser responsável, a melhorar o seu aproveita-<br />

mento escolar e logo surgiram novos horizontes: «Dois anos no<br />

curso e disseram que achavam bem eu ir para uma turma do<br />

ensino normal. Eu achei que tinha potencial e segui esse conselho<br />

dado por dois homens que vão ficar no meu coração até morrer (…)<br />

[o director de turma e o padrasto]. Aconselharam-me a seguir até ao<br />

décimo segundo ano e eu acho que hoje em dia com o nono ano não<br />

se vai longe…»<br />

Não foi fácil ao Paulo, no ano escolar seguinte, deixar os seus colegas.<br />

Foi necessário paciência para se habituar a encarar a separação da turma,<br />

onde tinha criado alguns amigos, e integrar-se numa nova turma.<br />

No entanto, com o acompanhamento e compreensão por parte dos<br />

professores, o Paulo foi conseguindo ultrapassar essa dificuldade. Continuou<br />

a participar em algumas actividades programadas para a turma<br />

<strong>PIEF</strong> e a ter o apoio de toda a equipa responsável<br />

O Paulo é hoje um aluno exemplar e, essencialmente, um jovem feliz!<br />

Além disso, tem o dom de reconhecer e agradecer a todos aqueles que<br />

o ajudaram e continuam a fazê-lo: «O curso foi uma grande oportunidade<br />

para o meu futuro e agradeço a todos os meus professores,<br />

entre outros. Foram todos meus amigos, e continuarão a ser, porque<br />

me ajudaram a mudar o meu futuro para melhor.»<br />

Os colegas do Paulo que terminaram este projecto, também saíram do<br />

estabelecimento de ensino com saudades e felizes e, ainda hoje, não<br />

deixam de nos contactar.<br />

18 - APRENDER A CRESCER - Eduarda Felício e Elisabete Nunes<br />

(técnicas da EMM)<br />

A EMM do <strong>PETI</strong> teve conhecimento através do «projecto fio condutor»,<br />

criado no âmbito da prevenção das toxicodependências, da situação de<br />

abandono escolar da Manuela. A jovem engravidou com catorze anos,<br />

esteve envolvida no tráfico de droga, mas apesar destes acontecimentos<br />

marcantes conseguiu concluir a escolaridade obrigatória com sucesso.<br />

A Manuela frequentou o ensino básico tendo tido três retenções no<br />

sétimo ano. Abandonou a escola devido ao desinteresse e à vontade de<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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trabalhar. Na sua família nuclear, o pai era pedreiro na construção civil,<br />

a mãe empregada fabril e a irmã encontrava-se desempregada. Residiam<br />

numa habitação cedida pela avó.<br />

A integração na resposta <strong>PIEF</strong> aconteceu devido à sua desmotivação<br />

para o ensino regular. Assim, a jovem aceitou frequentar o <strong>PIEF</strong> para concluir<br />

o terceiro ciclo, tendo-lhe sido atribuída uma bolsa de formação.<br />

No início, embora em instalações fora da escola, o <strong>PIEF</strong> decorreu normalmente:<br />

a jovem frequentava as actividades de uma forma assídua<br />

e empenhada, tendo estabelecido uma relação afectiva com a técnica de<br />

intervenção local. Posteriormente, a situação alterou-se, pois a jovem<br />

começou a faltar, percebendo-se que esta mudança de comportamento<br />

estava relacionada com o início de consumos de estupefacientes. Informámos<br />

imediatamente a técnica do «projecto fio condutor» no sentido<br />

de intervir na situação.<br />

No início do segundo ano de <strong>PIEF</strong>, a jovem confidenciou à TIL encontrar-se<br />

grávida. A EMM alertou para a importância do acompanhamento<br />

médico, ficando a jovem a ser acompanhada nas consultas de obstetrícia<br />

do hospital, o que não pôs em causa a continuidade do seu percurso<br />

escolar, uma vez que a equipa pedagógica e o TIL a acompanharam de<br />

forma especial. Apesar do <strong>PIEF</strong> estar nesse ano a desenvolver-se no<br />

espaço da escola não surgiram grandes problemas de integração.<br />

No entanto, no mês de Fevereiro, a EMM tomou conhecimento de que<br />

a jovem se encontrava detida provisoriamente, por se ter envolvido<br />

num episódio de tráfico de droga.<br />

Informada e alertada a CPCJ para a situação de risco, uma vez que a<br />

jovem se encontrava grávida de sete meses de gestação, articulámos<br />

com o «projecto de incidência comunitária» da freguesia onde a<br />

Manuela residia, no sentido de apoiar e acompanhar a mesma.<br />

Após estes acontecimentos houve uma mudança de comportamento<br />

que se reflectiu numa maior responsabilização da vida e para com a<br />

nova vida. Não obstante todos estes constrangimentos a jovem foi<br />

certificada com o nono ano de escolaridade.<br />

Actualmente encontra-se a trabalhar legalmente e reside com o<br />

namorado e com o filho de dois anos de idade.


19 - TRABALHO A QUANTO OBRIGAS - Eduarda Felício e Elisabete<br />

Nunes (técnicas da EMM)<br />

Em Março de 2004, a EMM de uma região no litoral Norte do país<br />

recebeu a sinalização por parte da escola da Patrícia, nascida a 7 de<br />

Setembro de 1989, como estando em situação de abandono escolar<br />

e/ou exploração de trabalho infantil. A jovem encontrava-se a trabalhar<br />

ilegalmente, situação denunciada que foi intervencionada e muito<br />

acompanhada pela EMM.<br />

A EMM iniciou a intervenção na situação da Patrícia procedendo ao<br />

diagnóstico escolar. A jovem abandonara a escola no sétimo ano,<br />

com treze anos, após ter tido apenas uma retenção. A razão do<br />

abandono escolar inicialmente apontada foi a falta de motivação<br />

para escola, e a vontade de trabalhar.<br />

Após caracterização sócio-familiar, percebeu-se que se tratava de uma<br />

família monoparental, com graves carências económicas e com disfunções<br />

familiares a vários níveis, pais separados, violência doméstica.<br />

Requereram o rendimento social de inserção, uma vez que o pai era<br />

ausente e não contribuía para a economia doméstica e a mãe tinha um<br />

trabalho irregular, estando a maior parte das vezes desempregada.<br />

Este agregado familiar era apoiado por uma IPSS há vários anos.<br />

A família vivia numa habitação com precárias condições, não havendo<br />

muita estabilidade, uma vez que mudavam de residência com alguma<br />

frequência no intuito de encontrar a renda mais económica possível.<br />

Estavam inscritos para realojamento em habitação social há já algum<br />

tempo.<br />

Através do atendimento para propor o possível encaminhamento da<br />

jovem para resposta educativa-remediativa (<strong>PIEF</strong>) percebemos que<br />

tinha abandonado a escola não por iniciativa própria, mas porque a<br />

mãe a tinha obrigado e integrado no mercado de trabalho. Estava a<br />

trabalhar numa empresa de recolha de lixo onde fazia limpezas. A mãe<br />

referiu que voltar a estudar estava fora de questão, porque precisava<br />

do vencimento que a filha auferia porque neste momento estava<br />

desempregada.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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Após a intervenção da inspecção-geral do trabalho, a jovem foi despedida<br />

e automaticamente integrada no <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo onde<br />

recebia uma bolsa de formação.<br />

A Patrícia foi frequentando o <strong>PIEF</strong> no seu primeiro ano com alguns altos<br />

e baixos, sendo considerada pela equipa pedagógica uma aluna com<br />

muitas capacidades. No segundo ano do <strong>PIEF</strong> a falta de assiduidade<br />

começou a ser um problema e, apesar do acompanhamento do TIL e<br />

da EMM, a jovem acabou por abandonar.<br />

Após várias diligências efectuadas pela equipa, constatámos que a situação<br />

familiar se tinha degradado: a mãe não cumpriu com o programa de<br />

inserção <strong>pelo</strong> que o rendimento social de inserção foi cessado. Neste<br />

contexto a jovem ingressou novamente no mercado de trabalho como<br />

forma de apoiar a família.<br />

Apesar de todas as tentativas junto das entidades competentes no<br />

sentido de combater as carências económicas e depois de termos<br />

conseguido estes apoios, a jovem e sobretudo a mãe recusaram a reintegração<br />

em <strong>PIEF</strong>.<br />

Actualmente encontra-se a trabalhar numa Empresa de componentes<br />

para calçado com a situação profissional regularizada.<br />

O último contacto que tivemos foi no sentido de mais uma vez sensibilizar<br />

a jovem para o cumprimento da escolaridade obrigatória e para<br />

a sua importância futura. Ficou de ponderar a hipótese de frequentar o<br />

ensino recorrente.<br />

20 - UMA NOVA OPORTUNIDADE… - Eduarda Felício e Elisabete Nunes<br />

(técnicas da EMM)<br />

No ano de 2004 a EMM de uma região no litoral Norte do país, recebeu<br />

a sinalização de abandono escolar do Manuel: deixou a escola, estava<br />

desiludido e não lhe esperava outro futuro senão o trabalho. No<br />

entanto, é exemplo de como o empenho e o acompanhamento próximo<br />

ajudaram a aproveitar esta nova oportunidade.<br />

O Manuel abandonou a escola com catorze anos e concluiu apenas o<br />

quinto ano de escolaridade.


No inicio da intervenção procedemos à caracterização escolar, percebendo<br />

assim que era apoiado <strong>pelo</strong> Ensino Especial, e que no seu percurso<br />

escolar contava com duas retenções, nomeadamente no quinto e sexto<br />

anos.<br />

O abandono escolar surgiu devido à falta de motivação e às dificuldades<br />

de aprendizagem, tendo referido que se sentia «farto<br />

da escola».<br />

Após caracterização sócio-familiar, percebemos que se tratava<br />

de uma família com dois filhos e com algumas carências económicas,<br />

uma vez que a mãe recebia pensão social de invalidez e<br />

que, quer o pai quer a irmã, se encontravam desempregados.<br />

Conseguimos perceber que não se tratava de um mero abandono<br />

escolar, pois o jovem apresentava sinais de trabalhar.<br />

Através de atendimento social, e após caracterização do jovem e do<br />

agregado familiar propusemos a integração em <strong>PIEF</strong>, que foi logo<br />

aceite.<br />

O jovem iniciou o <strong>PIEF</strong> para a certificação do segundo ciclo no ano<br />

lectivo de 2004-05 com direito a uma bolsa de formação.<br />

Durante este ano de <strong>PIEF</strong>, o jovem mostrou-se sempre assíduo, empenhado<br />

e interessado na conclusão do sexto ano, não dando qualquer<br />

problema de comportamento.<br />

É de referir que durante esta integração, e pelas características especiais<br />

quer do jovem quer da medida (através do ensino individualizado),<br />

conseguiu-se o envolvimento e a conclusão com sucesso do <strong>PIEF</strong>.<br />

Assim foi certificado com o segundo ciclo e encaminhado para o centro<br />

de emprego com o objectivo de frequentar uma formação profissional<br />

que lhe outorgasse a dupla certificação.<br />

Por problemas relacionados com o transporte para a frequência do<br />

curso, uma vez que iria funcionar num concelho vizinho, desistiu da<br />

formação e preferiu integrar o <strong>PIEF</strong> para certificação do terceiro ciclo.<br />

O jovem iniciou este <strong>PIEF</strong> com normalidade. Entretanto surgiram alguns<br />

problemas neste agregado, relacionados com violência doméstica, e<br />

que fez com que faltasse algum tempo às actividades.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

83


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

84<br />

Após intervenção da EMM, o jovem retomou o seu percurso, concluindo<br />

com sucesso o <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo.<br />

Actualmente temos conhecimento de que se encontra a trabalhar.<br />

21 - CONTINUAR A ESTUDAR - as técnicas encarregadas de educação<br />

do João, pela IPSS que o acolhe<br />

Quando em Abril de 2005 o João foi recebido nesta IPSS que acolhe<br />

crianças e jovens em risco, chegou-nos um menino de treze anos,<br />

triste, com fraca auto-estima, desmotivado e revoltado com a situação<br />

familiar vivida (sem suporte parental, integrado no agregado familiar<br />

de um tio paterno), para quem o futuro não passava pela escola.<br />

Encontrava-se no sexto ano de escolaridade, com insucesso escolar,<br />

absentismo e falta de investimento em si próprio e nas relações com os<br />

outros. No final desse ano lectivo, não transitou.<br />

No ano seguinte (2005-06), o João voltou a frequentar o sexto ano sem<br />

sucesso e com o mesmo padrão comportamental, agravado com a<br />

desadequação entre a sua idade (catorze anos) e a da maioria dos<br />

colegas (mais novos) da turma em que estava inserido. Ao longo do<br />

ano, o absentismo foi muito elevado e o seu insucesso escolar evidente,<br />

tendo abandonado no terceiro período.<br />

No início do ano lectivo 2006-07, confrontámo-nos com o facto dele ter<br />

completado quinze anos e estar fora da idade escolar, <strong>pelo</strong> que,<br />

não foi incluído nas listas da escola. O conselho executivo informou-nos<br />

que sinalizara o caso do João ao <strong>PETI</strong> e contactara aquela<br />

equipa, a qual informou que realizaria uma visita domiciliária à instituição<br />

para conhecimento do caso e para possível encaminhamento/despiste.<br />

Paralelamente, deslocámo-nos às restantes escolas nesta cidade capital<br />

de distrito no Alentejo, as quais não aceitaram a matrícula do João,<br />

alegando que a escola da área de residência é que o deveria aceitar.<br />

Também contactámos as várias escolas profissionais do distrito e o<br />

IEFP, não existindo resposta adequada à escolaridade do menor.<br />

Contactada a equipa do <strong>PETI</strong> para sabermos qual o resultado do<br />

encaminhamento e quando seria realizada a visita domiciliária, fomos


informados que o <strong>PIEF</strong> já iniciara e o João não fora seleccionado por ter<br />

sido dada prioridade a situações de trabalho infantil; todavia, seria<br />

realizada uma visita para conhecimento do caso, o que foi efectuado.<br />

Perante a situação de um jovem com quinze anos, sem qualquer tipo<br />

de enquadramento escolar, ter uma só alternativa possível que era o<br />

encaminhamento para o ensino recorrente nocturno, assim fizemos.<br />

Contudo, não nos parecia ser a resposta mais adequada para o João,<br />

para quem a comunidade educativa era um caminho sem saída, e que<br />

afirmava frequentemente que não conseguia e que queria trabalhar. De<br />

facto, ao longo do primeiro período, pouco frequentou as aulas e não<br />

obteve qualquer resultado positivo.<br />

Nos finais de 2006 fomos contactados pela equipa do <strong>PETI</strong>, informando<br />

que surgira a possibilidade de inserção do João no <strong>PIEF</strong>, caso continuássemos<br />

interessados nessa estratégia. Após a nossa concordância,<br />

aquela equipa encontrou-se com ele no sentido de auscultar o seu<br />

interesse, transmitindo-lhe a necessidade de «agarrar» a oportunidade<br />

por existirem mais jovens interessados.<br />

Em Janeiro de 2007 o João foi integrado na turma <strong>PIEF</strong>. Adaptou-se<br />

facilmente à turma e aos professores, embora o processo de motivação<br />

e empenhamento nas aprendizagens escolares tenha ocorrido de forma<br />

gradual e progressiva: teve «altos e baixos», avanços e recuos, mas<br />

com resultado final positivo.<br />

É nossa convicção que a evolução conseguida por ele, ao nível escolar<br />

e pessoal (amadurecimento interno, objectivos para o futuro, empenho<br />

e motivação), se deve, em grande parte, ao trabalho desenvolvido <strong>pelo</strong><br />

grupo de profissionais (professores, TIL e tutora) que diariamente<br />

partilharam com ele matérias, disciplinas mas também emoções e<br />

problemas do quotidiano. São pessoas com formações distintas mas<br />

com um interesse comum: ajudar jovens com percursos de vida problemáticos<br />

na transmissão do gosto por aprender, por evoluir, mostrando-lhes<br />

outros caminhos e facilitando-lhes o desenvolvimento da<br />

auto-estima e da auto-confiança.<br />

Também o encarregado de educação se sente mais confiante e tranquilo<br />

na certeza de que o acompanhamento efectuado ao seu educando<br />

é próximo, sistemático e «cerrado»; a troca de informação com aquele<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

85


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

86<br />

é constante, acertando estratégias e metodologias comuns para a<br />

resolução dos problemas do seu educando.<br />

Enquanto técnicas de um lar de crianças e jovens, sentimos que este<br />

tipo de programas constitui a resposta mais adequada para a maioria<br />

dos adolescentes que nos chegam. De facto, é cada vez mais evidente<br />

nos nossos jovens, a escassa valorização dada por estes e pelas suas<br />

famílias de origem, à educação no sentido da formação académica<br />

(importância de frequentar a escola), do respeito <strong>pelo</strong> próximo, da<br />

aceitação da diferença, da tolerância aos constrangimentos do dia-a-<br />

-dia, o que se traduz numa postura desajustada, agressiva e inadequada<br />

na relação estabelecida com pares e com adultos nos vários contextos<br />

em que se inserem.<br />

Resolvemos pedir ao João o seu testemunho. Não só aceitou como se<br />

mostrou entusiasmado e feliz por ter oportunidade de exprimir o seu<br />

«agradecimento».<br />

Aqui fica:<br />

«O <strong>PIEF</strong> ajudou-me a ver a vida com outros olhos. No <strong>PIEF</strong> consegui<br />

fazer aquilo que não fiz na escola, foi muito importante para mim<br />

porque fiz o sexto ano e conheci novas pessoas que ainda hoje se<br />

mantêm meus amigos, não falo só dos meus colegas mas também dos<br />

meus professores. Com a ajuda que o <strong>PIEF</strong> me deu posso continuar a<br />

estudar. O <strong>PIEF</strong> foi a luz do meu caminho quando eu só pensava<br />

em desistir. Termino o meu discurso mandando beijinhos e abraços a<br />

todos os meus professores e agradeço muito a ajuda que me deram e<br />

muitos cumprimentos para os meus colegas».<br />

É nossa convicção que, há cerca de um ano atrás, provavelmente, não<br />

seria possível obter um testemunho escrito, feito de imediato, com um<br />

sorriso e um brilhozinho nos olhos…<br />

O João de hoje é um adolescente de dezasseis anos, meigo, com<br />

facilidade nas relações sociais, embora tímido, com sentido de justiça,<br />

prestável, responsável e com perspectivas de futuro. Em Novembro de<br />

2007, está a iniciar o curso de ciências informáticas de nível dois, no<br />

IEFP.


22 - GOSTO DE SORRIR - Filomena (aluna do <strong>PIEF</strong>)<br />

Eu sou a Filomena e tenho dezasseis anos. Estou aqui para contar a<br />

minha experiência de vida. Nasci no dia 5 de Novembro em Luanda,<br />

que é a capital de Angola. A minha infância foi normal. Aos oito anos<br />

de idade, viajei para Portugal para ter oportunidades na vida. Fui viver<br />

na casa da sogra da minha madrinha, uma senhora que já tinha uma<br />

certa idade.<br />

No início, não gostei de lá estar mas depois tive de me acostumar.<br />

Comecei a estudar na escola [do primeiro ciclo numa localidade da área<br />

metropolitana de Lisboa] onde fui para o segundo ano de escolaridade,<br />

mas não sabia ler nem escrever. Tive uma ajuda da parte de todos os<br />

profissionais daquela escola, principalmente da minha professora. No<br />

meu quinto ano passei para a escola [EB 2,3], onde só fiquei o primeiro<br />

período, porque nessa altura a minha mãe tinha vindo para Portugal, e<br />

fui viver com ela, em Lisboa e, por isso, tive de mudar de escola. Fui<br />

estudar [noutra escola] no quinto ano onde comecei a andar com más<br />

companhias e a ser rebelde. Comecei a não ir à escola, tinha muitas<br />

faltas, mentia em casa para não descobrirem nada, coisa de que não<br />

me orgulho agora muito. Pelo contrário, me envergonho delas. Roubei,<br />

menti, faltei à escola, perdi a confiança que as pessoas tinham em mim,<br />

fumei, tive muitos problemas e a minha mãe já não sabia o que fazer<br />

comigo.<br />

Não é para justificar tudo o que fiz mas o meu ambiente familiar não<br />

era agradável. O meu padrasto era bêbado, não gostava de nós e<br />

quando bebia fazia confusão. Vivíamos eu, a minha mãe e ele num<br />

quarto. Ele não deixava a minha mãe trabalhar.<br />

Por tudo isso voltei para a minha madrinha onde tinha estabilidade,<br />

mas o ano lectivo acabou e reprovei. Um dia a minha mãe aparece, de<br />

manhã bem cedo, perto das aulas começarem, a dizer que apareceu<br />

uma nova oportunidade, um curso chamado <strong>PIEF</strong> que me daria equivalência<br />

ao sexto ano de escolaridade na antiga escola, em 2004. Por ser<br />

tão longe, a minha madrinha ficou com medo por eu ser jovem, andar<br />

de comboio sozinha e chegar a casa às 18h30 ou 19h. Por isso voltei<br />

para a minha mãe até o ano lectivo acabar. Gostei logo do <strong>PIEF</strong> pela<br />

maneira como os professores ensinavam. Éramos só quinze alunos<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

88<br />

numa sala e em cada aula tínhamos dois professores. Os problemas em<br />

casa da minha mãe ainda existiam. No <strong>PIEF</strong> comecei a faltar muito<br />

menos, comecei a gostar da escola.<br />

Mas o meu padrasto continuava a mesma pessoa, eu saía da escola<br />

mas não ia para casa. Preferia ficar na escola do que ir para casa. Ele<br />

começou a dar-me castigos cruéis, eu dormia na cozinha numa cadeira<br />

com a cabeça na mesa, batia-me, só me dava pão e água para comer,<br />

chamava-me nomes, dizia que a minha vida era andar na «putaria»,<br />

não era virgem e que era girada por muitos homens, cortou-me o cabelo<br />

para os homens não gostarem de mim, etc. A minha mãe não fazia<br />

nada contra isso porque estava grávida e estava ilegal em Portugal, não<br />

tinha para onde ir viver e eu não dizia nada do que se passava a<br />

ninguém. Até ao dia em que ele chegou a casa bêbado e começou a<br />

discutir connosco, me jogou na cama eu estava de saia e disse «vou te<br />

mostrar quem é homem» e despiu-se. Aí a minha mãe agiu, eu também<br />

o empurrei e saí do quarto. Fui para a cozinha. No dia seguinte contei<br />

tudo à psicóloga do <strong>PIEF</strong>. Ela tirou fotografia ao meu cabelo e escreveu<br />

tudo o que eu contei.<br />

Voltei para casa da minha madrinha e fiquei o ano lectivo de 2005-06<br />

sem estudar porque era difícil colocar-me noutro curso e eu também<br />

tinha processo. Quem estava a tratar do meu caso era a doutora […]<br />

que é muito minha amiga.<br />

Por sorte minha apareceu um <strong>PIEF</strong> perto de casa. Quando eu entrei o<br />

ano lectivo já tinha começado mas fui muito bem recebida. Quando saio<br />

de casa não penso: «vou para escola». Penso: «estava a sair de casa<br />

para ir para casa», porque lá todos somos uma família, não existe um<br />

distanciamento entre professores, TIL, equipa móvel e alunos. Nesse<br />

<strong>PIEF</strong> já vi muitas coisas e descobri que gosto de psicologia. No <strong>PIEF</strong><br />

todos temos problemas e todos já passámos por coisas difíceis. Há uma<br />

frase que eu gosto muito de dizer. As pessoas dizem que estou sempre<br />

a sorrir. Eu gosto de sorrir mesmo com problemas, não adianta chorar,<br />

pois não é por isso que os problemas desaparecem. No nosso grupo há<br />

certos problemas, pois nem tudo é perfeito. Uns fumam, não só cigarro<br />

mas outras coisas também. Eu não fumo e gostava que eles também<br />

não o fizessem. Há pessoas com falta de personalidade, mentirosas,<br />

com problemas em casa e na rua, problemas psicológicos. Somos uma


família um pouco complicada mas nada que não se resolva com a ajuda<br />

da nossa técnica e dos nossos professores […]. Os nossos professores<br />

todos têm alcunha posta por nós (Fantasia, Loira, Actionman, Bolinha,<br />

Baixinha, Bonitão). Também temos a equipa móvel […], que eu trato<br />

por doutora Fofa. Agora estou grávida e o meu filho nasce em Agosto.<br />

Vivo com o pai do meu filho e tenho mais juízo, responsabilidade e<br />

amigos de verdade, principalmente a minha mana emprestada, […] e o<br />

mais importante: agora posso dizer que sou feliz e amada…<br />

23 - FRANCISCO, MEDIADOR - Cristina Maruta (TIL)<br />

O Francisco foi sinalizado pela escola por abandono escolar. Não<br />

obstante, quando integrou o <strong>PIEF</strong>, esta não era a sua única problemática<br />

e as causas do insucesso remontavam a períodos anteriores da<br />

sua vida.<br />

O jovem nasceu no Alentejo e residiu aí até aos onze anos. Durante<br />

esta fase vivia com o agregado familiar de origem, composto <strong>pelo</strong>s pais<br />

e por dois irmãos mais velhos. Relata este período como um dos mais<br />

difíceis, sobretudo devido aos maus-tratos infligidos <strong>pelo</strong> progenitor.<br />

Foi no início da adolescência que os pais se separaram e o jovem foi<br />

viver para a Beira Alta com a mãe. Frequentava a escola enquanto a<br />

mãe trabalhava durante todo o dia para sustentar a família. O mau<br />

comportamento na escola e as condições precárias de trabalho da<br />

progenitora, fizeram com que se mudassem novamente, desta vez para<br />

a Noruega.<br />

Foram dois anos que passou, onde aprendeu uma nova língua e uma<br />

nova cultura, sem que o seu comportamento melhorasse. A inadaptação<br />

e insatisfação ditaram o regresso a Portugal, onde se instalaram<br />

até hoje.<br />

Procurando contrariar toda esta instabilidade a que foi sujeito, a mãe,<br />

sempre tentou inclui-lo na escola e incentivá-lo para o sucesso, mostrando-se<br />

preocupada com o jovem e o seu percurso escolar. No entanto,<br />

o horário de trabalho alargado diminuía cada vez mais o contacto entre<br />

ambos, ao que, para chamar a atenção, o jovem respondia com comportamentos<br />

desajustados.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

90<br />

Quando entrou para o <strong>PIEF</strong> já se destacava dos restantes, apresentando<br />

competências sócio-cognitivas acima da média. Contudo, a sua integração<br />

não foi fácil.<br />

Um dia, numa das primeiras semanas de aulas, a mãe apareceu na<br />

escola, desorganizada, sem saber o que fazer, porque o Francisco tinha<br />

sido apanhado pela polícia com outros jovens que estavam a roubar.<br />

A TIL deslocou-se a casa para falar com ele e procurar saber o que se<br />

tinha passado. A partir desse dia o jovem não voltou a faltar às aulas,<br />

embora o seu comportamento se continuasse a agravar.<br />

Após as férias do Natal, decidiu-se em reunião de equipa técnico-pedagógica<br />

e EMM, adoptar-se uma estratégia inovadora, isto é, diferente<br />

de tudo o que até ao momento, não tinha sido suficiente: «Vai-te ser<br />

dada uma nova oportunidade, mas se aceitares, terás uma grande<br />

responsabilidade a teu cargo», foram os primeiros comentários<br />

que ouviu relativamente à sua nova função de mediador.<br />

O amadurecimento interno em conjunto com esta nova etapa da sua<br />

vida, mais estruturada e com maior nível de responsabilidade, fizeram<br />

do Francisco o exemplo de aluno e o modelo de <strong>PIEF</strong>.<br />

Concluiu com sucesso o nono ano, através de <strong>PETI</strong>-Empresa, como<br />

mediador. Globalmente considerou-se um aluno muito bom e na síntese<br />

descritiva da sua avaliação pode ler-se que «revelou um empenho<br />

excepcional desenvolvendo de forma muito positiva o percurso no <strong>PIEF</strong>.<br />

Parabéns!».<br />

Estabeleceu ao longo do ano inúmeras relações com todos os elementos<br />

da escola (técnicas, professores, funcionários) e é acarinhado por<br />

todos. Ainda que mantenha o sonho da sua vida, ser um bom e reconhecido<br />

jogador de futebol, hoje sabe que terá sempre uma alternativa<br />

profissional enquanto mediador, e o apoio de todos os que acompanharam<br />

de perto o seu brilhante percurso em <strong>PIEF</strong>.


24 - PREGUIÇA DE VIR À ESCOLA - Célia (aluna do <strong>PIEF</strong>)<br />

Olá, chamo-me Célia, tenho dezasseis anos e odeio a escola, melhor,<br />

odiava!<br />

Fiz o primeiro ciclo em quatro anos. Até aqui tudo bem.<br />

Nova escola (EB 2,3), novos amigos, novos professores e aqui começaram<br />

os problemas: três anos no quinto ano e lá consegui! Um ano no<br />

sexto, reprovada! Mas porquê? Pensando bem até sei a resposta: falta<br />

de assiduidade, testes entregues em branco, desculpas para ir para<br />

casa (doenças inventadas), falta de atenção dos professores, preguiça<br />

de vir à escola...<br />

Isto tudo porquê? Talvez porque saía pouco de casa e trabalhava bastante:<br />

ajudava a minha mãe no trabalho, ia buscar os meus irmãos à<br />

escola, cuidava deles e ainda fazia todas as tarefas domésticas...!<br />

Nova tentativa e eis que certo dia a minha directora de turma me fala<br />

no <strong>PIEF</strong>.<br />

O meu pai mostrou-se muito interessado mas a decisão foi minha:<br />

achava que não tinha hipóteses de completar o sexto ano no currículo<br />

normal e «quem não arrisca não petisca»! Não queria deixar de estudar<br />

e assim entrei no <strong>PIEF</strong> no dia 3 de Outubro de 2005.<br />

Seis meses e sexto ano acabado! CERTIFICADA!<br />

Neste tempo aprendi a gostar de matemática, dos professores e<br />

da escola, senti que acreditam, motivam-nos e puxam por nós.<br />

Também gostei da experiência da formação vocacional e do voluntariado;<br />

estive num cabeleireiro, num centro de informática e num infantário!<br />

Tive ainda apoio no planeamento familiar, se não fosse o <strong>PIEF</strong> nunca<br />

teria ido sozinha!<br />

Só não consegui gostar de educação física, mas em compensação adorei<br />

os passeios, principalmente os da praia e aquele do «Independentemente».<br />

Mantive-me na turma mais três meses, até às férias.<br />

Neste momento frequento o curso de práticas administrativas na cidade,<br />

que está a correr muito bem! Espero concluir o nono ano em Julho de<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

91


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

92<br />

2008, tirar o décimo segundo ano, ter emprego fixo e ganhar um bom<br />

ordenado.<br />

Foi uma óptima oportunidade, que fiz bem em agarrar. Sim, recomendo<br />

o <strong>PIEF</strong>!<br />

25 - SEMPRE AO LADO DO NAMORADO - Inês Leão (técnica da EMM)<br />

A situação da Sara chegou ao conhecimento do <strong>PETI</strong> através de uma<br />

sinalização anónima, por a jovem se encontrar envolvida num grupo de<br />

risco e não frequentar as aulas desde o final do primeiro período.<br />

Passou a apresentar algumas fragilidades, começou a revelar problemas<br />

alimentares, deixou de frequentar as aulas, apresentando atestado<br />

médico por motivos de saúde (problemas alimentares). Na sinalização,<br />

era referida a escola onde estava matriculada e o contacto dos<br />

progenitores.<br />

A Sara era uma jovem de catorze anos com um percurso escolar relativamente<br />

brilhante, quer em termos de aprendizagens (foi aluna de<br />

nível quatro até ao primeiro período do nono ano), quer pela relação<br />

harmoniosa que mantinha com a comunidade escolar. Segundo a directora<br />

de turma, ela apresentava elevadas capacidades de aprendizagem,<br />

era empenhada e participativa, sendo muito cooperativa com os colegas<br />

e com os professores.<br />

Tinha iniciado o seu percurso escolar num colégio particular onde concluíra<br />

o primeiro ciclo do ensino básico com sucesso. De seguida<br />

frequentou a escola oficial até ao sétimo ano, também com êxito. Não<br />

existiam problemas significativos de ordem económica na família.<br />

Embora, segundo a mãe, a Sara apresentasse desde pequena problemas<br />

de ordem emocional, era uma criança muito irrequieta tendo suspeitado<br />

que seria hiperactiva; contudo não foi feita nenhuma avaliação<br />

pois o pediatra não considerara que houvesse qualquer indício de<br />

hiperactividade. Referiu que sempre considerou que a Sara deveria ter<br />

sido acompanhada por um psicólogo, o que não se efectivou porque o<br />

pai se opôs, por desvalorizar o problema e por questões financeiras<br />

pontuais. Ao contrário da irmã, a Sara terá sido uma filha que sempre<br />

a preocupou dado a sua instabilidade emocional.


Desde o divórcio dos pais, a Sara vivia com a mãe e a irmã também<br />

menor. A dinâmica familiar destas crianças apresentava uma disfuncionalidade,<br />

onde as relações eram marcadas por graves conflitos, sendo<br />

a comunicação entre os seus membros muito agressiva. Os progenitores<br />

estavam separados, estando a decorrer um divórcio litigioso. Embora a<br />

relação entre eles fosse muito conflituosa foi decretado em tribunal de<br />

família e menores a guarda conjunta relativa às suas duas filhas menores.<br />

Contudo, no momento do diagnóstico, a Sara já se encontrava a<br />

viver com o namorado e com a família deste. Tendo engravidado,<br />

deixou de ir à escola e foi viver com o namorado, de catorze anos,<br />

o qual apresentou sempre grandes problemas escolares, quer ao nível<br />

das aprendizagens, com algumas retenções, quer ao nível comportamental,<br />

tendo sido alvo de várias suspensões; abandonara a escola<br />

após várias suspensões e encontrava-se envolvido num grupo de risco.<br />

A família opôs-se inicialmente à decisão da Sara mas não conseguiu<br />

demovê-la. A Sara vivia com este namorado, com a autorização da mãe<br />

dela que se sentia incapaz de controlar as fugas constantes de casa.<br />

Assim, a jovem recusou-se a ficar longe do namorado, mesmo que por<br />

breves momentos.<br />

Em Dezembro, oficialmente, deixou de frequentar a escola por motivos<br />

de doença de ordem psicológica. Foi medicada e passou a ter, assim<br />

como os seus progenitores, sessões quinzenais de acompanhamento<br />

psicoterapêutico. Contudo, continuou a viver na casa do namorado.<br />

O pai mantinha uma relação conflituosa quer com a filha, quer com a<br />

mãe da jovem. Por isso, existia um processo ao nível do cível relativo<br />

à regulação do poder paternal. Havia também um processo na CPCJ a<br />

pedido do progenitor.<br />

Em Fevereiro desse ano, pressionada pela família, fez um aborto, acontecimento<br />

com um impacto interno tão grande que levou a uma desorganização<br />

emocional grave.<br />

Numa reunião com a Sara, feita inicialmente com a presença da progenitora<br />

e do namorado, por se recusar a falar sozinha com o <strong>PETI</strong>,<br />

revelou uma grande insegurança, solicitando sempre o apoio da mãe ou<br />

do namorado, dando conta de uma baixa auto-estima e de uma elevada<br />

dependência do namorado. Ao nível do discurso oral a Sara balanceou<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

93


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

94<br />

entre um discurso desadequado à sua idade, com uma «voz de bebé»<br />

e de organização primária, e um discurso maduro, fluente, rico em<br />

vocabulário, dando conta de uma grande fragilidade emocional. Ao nível<br />

do discurso escrito revelou bastante maturidade, apresentado um<br />

discurso coeso e rico. Não conseguia pensar e perspectivar a sua vida<br />

futura. Contudo, parecia meiga e educada, a necessitar constantemente<br />

de apoio e afecto.<br />

Segundo ela, a alteração da vida escolar e pessoal (ir viver com o<br />

namorado) deveu-se a problemas de ordem emocional. Desde o abandono<br />

escolar que se encontrava desocupada, não tendo encontrado<br />

qualquer outra actividade do seu interesse, passando os dias sempre ao<br />

lado dele, também sem ocupação. Não apresentou interesses adequados<br />

à sua idade, tendo referido que não tinha como passar os seus<br />

tempos livres, reduzindo-se a estar com o namorado, ver TV e jogar<br />

computador. Não apresentou escolhas profissionais e referiu apenas o<br />

interesse em terminar o nono ano e começar a trabalhar.<br />

Após o diagnóstico, a equipa propôs a integração da Sara no <strong>PIEF</strong> com<br />

o objectivo de concluir o nono ano e prepará-la para o percurso subsequente.<br />

Uma vez que o namorado também se encontrava em abandono<br />

escolar, tendo como escolaridade apenas o sexto ano, e por se encontrar<br />

envolvido com um grupo de risco, foi também alvo de integração<br />

em <strong>PIEF</strong>. Ao nível familiar e social considerou-se fundamental uma<br />

intervenção junto das famílias de ambos e junto das instituições<br />

envolvidas para uma intervenção concertada e articulada.<br />

Assim, a Sara só aceitou integrar o <strong>PIEF</strong> <strong>pelo</strong> facto do namorado também<br />

ter sido integrado, recusando a separação nem que fosse por<br />

alguns minutos. Havendo necessidade de compreender melhor esta<br />

situação e encontrar estratégias adequadas para lidar com a Sara, foi<br />

efectuada reunião com o coordenador da equipa de pedopsiquiatria e<br />

técnico que acompanhava a família. Segundo este especialista, a família<br />

apresentava um grave distúrbio relacional, revelando bastantes dificuldades<br />

de encontrar estratégias para os conflitos. A Sara apresentava<br />

um surto psicótico grave, mas passageiro. Contudo os seus recursos<br />

internos eram ainda frágeis, necessitando de um acompanhamento ao<br />

nível da psicoterapia.


Assim, a primeira prioridade da equipa técnico-pedagógica foi alargar o<br />

espectro emocional da Sara, uma vez que a dependência que desenvolveu<br />

não permitia qualquer outro tipo de intervenção. Da observação<br />

feita, a Sara manifestava bastante interesse face às actividades propostas.<br />

Como tal, foram criadas estratégias pedagógicas, desafiando-a<br />

a participar e que implicavam que se fosse relacionando pouco a pouco<br />

com o resto da turma, conseguindo-se desta forma o afastamento<br />

progressivo do namorado.<br />

A Sara foi ganhando cada vez mais confiança nesta «independência»<br />

enquanto ele manifestava interesse e aptidão pela mecânica. A pedido<br />

do <strong>PETI</strong>, o centro de emprego fez a avaliação vocacional e profissional<br />

e integrou o jovem num curso de mecânica de nível II, um mês depois,<br />

enquanto ela continuou o seu percurso no <strong>PIEF</strong>. Começou então, pela<br />

primeira vez, a manifestar interesse no percurso subsequente – ir para<br />

o décimo ano no ensino regular.<br />

A equipa técnico pedagógica reorientou a intervenção junto da Sara –<br />

paralelamente ao trabalho para a certificação. Assim, a Sara passou a ter<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

96<br />

então um apoio individualizado com as professoras de português<br />

e de matemática, preparando-se para os exames de nono ano.<br />

Foi certificada e fez os exames de nono ano com bons resultados.<br />

Simultaneamente fez os testes de orientação escolar e vocacional com<br />

a psicóloga da escola.<br />

Integrou o décimo ano numa turma regular.<br />

26 - PARA MIM O <strong>PIEF</strong> - Joaquim (aluno do <strong>PIEF</strong>)<br />

Este texto apresenta o depoimento de um jovem a frequentar o <strong>PIEF</strong>.<br />

Foi recolhido em 2006 com o objectivo de integrar uma exposição para<br />

a comunidade escolar.<br />

O Joaquim foi sinalizado em 2005 à EMM no litoral Norte do país, por<br />

uma IPSS do concelho. Tinha dezassete anos e apenas o quinto ano de<br />

escolaridade concluído. Era o único sustento da família, composta pela<br />

mãe e uma irmã, com quatro anos de idade.<br />

Trabalhou desde os catorze anos: na indústria do calçado, na venda<br />

ambulante, a lavar carros e como operador de caixa. A situação era<br />

dramática. A família não tinha como suportar as despesas com a<br />

alimentação e a renda de casa. Em conjunto com as instituições locais<br />

competentes foram assegurados os apoios financeiros e materiais<br />

necessários à sobrevivência da família.<br />

O Joaquim integrou e concluiu com sucesso um <strong>PIEF</strong> para certificação<br />

de sexto ano e foi posteriormente encaminhado para um curso de<br />

educação formação de mecânica automóvel. Este é o seu testemunho.<br />

«O que é para mim o <strong>PIEF</strong>? Para mim o <strong>PIEF</strong> foi uma oportunidade que<br />

me surgiu para melhorar a minha vida em termos de escolaridade.<br />

Durante três anos estive sem estudar, porque nessa altura a minha avó,<br />

com quem eu vivia, faleceu e eu tive que pôr mãos à obra e deixei de<br />

estudar. Passado esse tempo fui viver com a minha mãe e aí trabalhei<br />

num posto de gasolina para sustentar a casa até que um dia a minha<br />

mãe foi ao Centro de Emprego e lhe indicaram o <strong>PETI</strong>. Foi nesse mesmo<br />

dia que me retiraram do posto de gasolina e me deram a oportunidade<br />

de concluir o sexto ano.


A turma <strong>PIEF</strong> é uma turma fora do normal mas onde estou a sentir-me<br />

muito bem, porque tenho um objectivo que é o de passar de ano e de<br />

ter um bom futuro. Fazer parte da turma <strong>PIEF</strong> foi gratificante porque se<br />

estivesse inserido noutra escola não me iria integrar com facilidade<br />

porque as disciplinas iriam ser mais rigorosas e difíceis, não iria ter o<br />

acompanhamento que tenho no <strong>PIEF</strong> e noutra escola estaria numa<br />

turma com alunos muito mais novos do que eu e isso iria fazer com que<br />

eu me sentisse desmotivado e seria prejudicial para o meu futuro.<br />

Com a turma <strong>PIEF</strong> já aprendi muitas coisas e a minha vida mudou!!!»<br />

27 - DEVÍAMOS SER NÓS - Leopoldina Pina de Almeida (técnica da EMM)<br />

Foi o Filipe que veio até nós, quando ouviu falar do <strong>PETI</strong>. Ele considerou,<br />

e muito bem, que o caso dele era mesmo de exploração de trabalho<br />

infantil, na verdadeira acepção da expressão. É que apesar de trabalhar<br />

há cerca de oito meses, de sol a sol, a cuidar de gado numa propriedade<br />

no Alentejo, há dois meses que o patrão não lhe pagava, alegando<br />

sempre que pagaria «para a semana». Mas vamos começar <strong>pelo</strong> início…<br />

Era um daqueles dias já quentes no Alentejo, apesar de ainda não ter<br />

chegado o Verão. Ao entrarmos na associação de desenvolvimento local que<br />

nos sinalizou a situação do Filipe, passámos por um rapaz alto e magro,<br />

de olhos morenos e tristes que mais tarde nos iria dizer – «eu pensei<br />

logo que deviam ser vocês, quando passaram por mim há pedaço».<br />

O Filipe tinha tido conhecimento do <strong>PETI</strong> através de uma técnica que<br />

acompanhava a sua família naquela localidade, e pediu-lhe se poderíamos<br />

marcar uma entrevista com ele. Estávamos em Maio de 2006.<br />

O primeiro encontro da EMM foi ainda nesse mês e desde o início se<br />

criou uma forte relação de respeito e empatia por aquele jovem que<br />

começou a ser adulto demasiado cedo, não perdendo contudo o seu<br />

sorriso infantil e um olhar meigo e triste.<br />

O Filipe, que tinha dezasseis anos quando o conhecemos, teve um<br />

percurso de vida bastante difícil. Nasceu em Lisboa, onde viveu até aos<br />

seis anos de idade, inicialmente com ambos os pais mas depois já só<br />

com a mãe e o irmão mais velho. A situação em casa fragilizou-se, a<br />

mãe teve outros filhos, o que tornou insustentável a permanência de<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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todos com ela. O Filipe acabou por ser institucionalizado. Foi numa<br />

cidade alentejana que frequentou o primeiro ciclo do ensino básico.<br />

Ainda iniciou, em contexto de institucionalização, o quinto ano, mas<br />

entretanto voltou para Lisboa para ir viver com o pai.<br />

O Filipe recorda com saudade este tempo em que ele e o irmão viveram<br />

com o pai, com o qual tinham perdido quase por completo o contacto.<br />

Estiveram em sua casa durante três anos, até 2001, mas infelizmente o<br />

pai adoeceu e veio a falecer de cancro. Como a relação com a companheira<br />

do pai não era a melhor, os dois irmãos decidiram ir-se embora,<br />

sem saberem muito bem para onde. A mãe tinha entretanto emigrado<br />

para França e a sua vida não se compatibilizava com a presença dos<br />

filhos mais velhos. Tinham outros irmãos mais pequenos, que nem<br />

sequer conheciam, e a mãe não tinha quaisquer condições económicas<br />

e emocionais para estar com eles.<br />

Foi nessa altura que uma irmã mais nova da mãe, que vivia numa pequena<br />

cidade alentejana, se disponibilizou para ficar com eles, durante<br />

um tempo. Mas a presença dos jovens começou a tornar-se pesada<br />

para uma família igualmente com poucos recursos. A mãe do Filipe<br />

pouco ajudava nas despesas, como tinha ficado estabelecido inicialmente,<br />

e os dois rapazes foram para França viver com a mãe, embora<br />

de ambos os lados esta não fosse uma situação desejável.<br />

O Filipe não se aguentou lá muito tempo. Não se conseguiu adaptar a<br />

nada – nem ao país, nem à «nova família», nem ao tipo de vida da mãe,<br />

que quase se tornara uma desconhecida para ele. Depois de alguma<br />

negociação novamente com a irmã mais nova da sua mãe, o Filipe voltou<br />

para o Alentejo. Foi nesse período que teve que começar a trabalhar, de<br />

forma a poder sustentar a sua estadia na casa da tia. Tinha na altura<br />

catorze anos e uma vida já cheia de experiências variadas, sem dúvida,<br />

mas onde o sentimento de rejeição e abandono eram uma constante.<br />

Trabalhou então durante dois anos em várias actividades, designadamente,<br />

na agricultura e na construção civil, até ter surgido esta situação<br />

de não pagamento que começou a complicar as relações familiares. Foi<br />

nessa altura que ele decidiu pedir ajuda e foi então que tivemos<br />

conhecimento da sua estória. Ele ainda não tinha concluído o segundo<br />

ciclo de escolaridade, e o <strong>PIEF</strong> mais perto da casa da tia que iria abrir


nesse ano lectivo era de terceiro ciclo. Mas na capital de distrito iria<br />

iniciar uma turma <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo. Ainda equacionámos a deslocação<br />

diária do Filipe para frequentar o curso, mas a distância entre as<br />

duas localidades feita em transportes públicos e com um horário<br />

sempre difícil de compatibilizar com o horário escolar, fez-nos tentar<br />

encontrar outra alternativa para um miúdo já tão penalizado <strong>pelo</strong> seu<br />

percurso de vida. Mobilizámos então a nossa parceria com o serviço<br />

local de segurança social, que se responsabilizou em pagar a mensalidade<br />

na residência de estudantes em que o Filipe iria ficar durante a<br />

semana, indo apenas aos fins-de-semana para casa da tia. Aliás, esta<br />

era a melhor opção para todos, pois se ele deixaria de ajudar nas<br />

despesas, também seria melhor diminuir os gastos.<br />

E começou então o percurso do Filipe no <strong>PIEF</strong>. Tal como nos tinha<br />

conquistado a nós, também conquistou o coração dos colegas e professores.<br />

Foi eleito delegado de turma, foi um dos melhores alunos, intervinha<br />

sempre de forma assertiva na resolução dos conflitos, participava<br />

activamente em todas as actividades extra lectivas. Tudo isto, apesar<br />

dos seus problemas pessoais não terem terminado – nesse mesmo ano<br />

foi expulso da casa da tia e foi pressionado de forma muito agressiva<br />

pela mãe para retirar a irmãzinha mais nova de uma instituição de<br />

modo a poder «dá-la» a um casal que provavelmente já teria adiantado<br />

alguma «recompensa» pela menina de três anos.<br />

Ao terminar o <strong>PIEF</strong> em Junho de 2007, o Filipe foi encaminhado para o<br />

curso de bar e mesa do Instituto de Emprego e Formação Profissional<br />

(IEFP). É daqueles miúdos que passaram <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> e deixaram a sua<br />

marca. E temos a certeza que essa passagem também foi estruturante<br />

no seu percurso de vida. Para além das competências escolares adquiridas,<br />

encontrou uma equipa de pessoas que se preocupou com ele, que<br />

ouviu as suas angústias, que interveio nos momentos certos.<br />

E esta é até ao momento a estória de uma criança/adulto que continua<br />

a lutar na sua maneira silenciosa <strong>pelo</strong> seu espaço, tirando<br />

sempre partido daquilo que a vida, por vezes da pior forma, lhe<br />

ensinou, com um sorriso meigo nos lábios e os mesmos olhos<br />

negros e tristes que lhe vimos no primeiro dia em que ele também<br />

achou que «devíamos ser nós».<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

100<br />

28 - O TERRÍVEL MAUZÃO - Salomé Paiva (TIL)<br />

O António concluiu o <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo em Março de 2007. O<br />

trabalho com ele foi muito difícil, pelas condições sócio familiares,<br />

acabando por concretizar-se num percurso de sucesso. O <strong>PIEF</strong> foi o<br />

ponto de viragem na sua vida quando já se julgava esquecido e sem<br />

objectivos. Embora com uma maturidade adquirida pela idade, tudo é<br />

posto de parte quando procura na equipa que o acompanhou o apoio e<br />

carinho que ainda necessita e fazem dele uma criança grande!<br />

Integrou a turma <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo numa EB 2,3 no Alentejo, no<br />

ano lectivo 2006-07. Não frequentava a escola havia dois anos. Durante<br />

esse período, existem indícios de trabalho infantil associado às piores<br />

formas e evidente risco social. Não tem suporte familiar vivendo apenas<br />

com o avô materno, com quem tem uma relação conflituosa. No seu<br />

processo há registos de comportamento emocional instável. Na escola<br />

ainda todos (professores e auxiliares) se lembravam do «terrível» que<br />

era. Apresentou-se no primeiro dia de aulas de cabeça baixa e recusou<br />

sentar-se durante todo o tempo que durou a reunião de recepção e<br />

acolhimento aos pais e jovens.<br />

Nas primeiras semanas o António olhava os professores mantendo<br />

sempre a cabeça baixa, evitando o olhar directo. Contudo, ora era prestável<br />

para os professores, ora adoptava condutas agressivas na comunidade<br />

escolar. Apresentava grande dificuldade no respeito pelas regras,<br />

mas nunca faltou às aulas. Ao mesmo tempo procurava desesperadamente<br />

uma «mãe» por entre as professoras, já que a sua o havia<br />

abandonado aos nove meses de idade e a sua avó, enquanto família de<br />

acolhimento, havia falecido há cerca de um ano. Acabou por encontrá-la<br />

na figura da professora tutora.<br />

Paradoxalmente, com os colegas assumia-se como o líder «mauzão»<br />

que não tinha medo de nada nem de ninguém, inventando histórias<br />

fantasiosas onde assumia sempre protagonismo de herói. No primeiro<br />

dia de aulas do segundo período apareceu na escola com a cara inchada<br />

dizendo que lhe doíam os dentes. Nessa tarde a tutora acompanhou-o<br />

ao hospital, às consultas de urgência, às quais se junta a TIL. Segundo<br />

os médicos o diagnóstico era reservado, havendo risco de uma infecção<br />

generalizada. Após algumas horas, é transferido para o Hospital de S.


José em Lisboa para a unidade maxilo-facial. Visivelmente assustado,<br />

acaba por ter de ir sozinho numa ambulância para Lisboa, visto já ter<br />

atingido a maioridade. No início da noite a tutora e a TIL conseguem<br />

localizar o avô do jovem e informá-lo dos últimos acontecimentos. O<br />

avô mostra-se apenas preocupado com os possíveis custos do seu<br />

internamento e refere que não o devíamos «ter levado ao hospital pois<br />

não existe dinheiro para as despesas».<br />

No fim-de-semana seguinte a professora tutora, a TIL e a técnica da<br />

EMM do <strong>PETI</strong> decidem ir visitar o jovem a Lisboa. Levam-lhe roupa<br />

(solicitada à família) e alimentos. Contente por receber visitas fica<br />

visivelmente entristecido por ter já passado uma semana de internamento<br />

e não ter aparecido mais ninguém. Não tinha ninguém<br />

mas, disfarçadamente, acabou por desculpabilizar a família. Estava<br />

a ser medicado com o intuito de controlar a infecção. Os médicos do<br />

hospital decidiram que a melhor alternativa para o jovem seria a extracção<br />

de todos os dentes cariados ou em risco de cárie, e a desinfecção<br />

do abcesso que entretanto criara. O resultado foi a extracção de oito<br />

dentes, entre os quais, os dois primeiros incisivos superiores.<br />

Finalmente, ao cabo de nove dias de internamento, teve alta médica.<br />

A família mais próxima nunca o foi visitar ou manteve contacto. Mais<br />

uma vez foram a professora tutora e a TIL quem o esperou na paragem<br />

do transporte. Chegou por volta da uma da manhã. Depois de lhe terem<br />

comprado a medicação acompanharam-no a casa onde ninguém o<br />

esperava com os cuidados que necessitava, nomeadamente, ao nível da<br />

alimentação (cuidada e líquida) e higiene oral.<br />

O regresso à escola fez-se alguns dias antes do recomendável, mas<br />

como ele dizia, «já estou farto de estar em casa». Culpa a professora<br />

tutora e a TIL pela sua condição de «desdentado», embora no fundo<br />

compreenda que estas «quase» lhe salvaram a vida.<br />

O resto do ano assumiu o seu comportamento de sempre: instável e<br />

inconstante. Solicitou-se uma prótese dentária à segurança social que,<br />

até hoje, um ano após o incidente, ainda está a diligenciar a situação.<br />

Concluiu o seu PEF (Plano de Educação e Formação) com dezoito anos,<br />

antes de terminar o ano lectivo (Março de 2007). O passo seguinte foi<br />

a inscrição no centro de emprego uma vez que estava prestes a iniciar-<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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se um curso de canalização, «mesmo o que gostava». Contudo, ao<br />

perceber que a recompensa económica seria bastante reduzida (cerca<br />

de vinte euros por mês), desistiu antes de o iniciar. A tutora decidiu<br />

acompanhá-lo a uma empresa de trabalho temporário na cidade e,<br />

nesse mesmo dia, conseguiram um trabalho numa empresa industrial.<br />

Participou num projecto de férias da turma <strong>PIEF</strong> numa cidade do litoral<br />

algarvio: para ele, a par dos professores, «foi o melhor de tudo». Quanto<br />

ao pior, nem hesita, foi a estadia no hospital e a extracção dos dentes.<br />

Após a conclusão do ano lectivo continuou a manter um contacto estreito<br />

com a sua tutora que o continuou a apoiar na procura de emprego, uma<br />

vez que não conseguiu manter o seu trabalho que considerava «duro e<br />

cansativo». A tutora continua também os contactos com a segurança<br />

social para que esta emita o mais rapidamente possível um parecer/<br />

decisão de acompanhamento e o jovem finalmente possa sorrir sem<br />

constrangimentos.<br />

Sabemos e sentimos que se esforça para não dar «parte fraca», porque<br />

«não pode» não ser capaz nem ter medos, tornando-se um adulto à<br />

força. Nós sabemos que na realidade o António não é assim e é por isso<br />

que continuaremos sempre aqui…<br />

29 - LIMPA E BEM ARRANJADA - Isabel Garcias (técnica da EMM)<br />

O Zé foi sinalizado ao <strong>PETI</strong> pela escola; há muito que faltava às aulas<br />

e poucos o conheciam. Numa cidade do Algarve, esquecido por todos e<br />

com vergonha de estar vivo, só a sua irmã mais velha era conhecida,<br />

pois frequentara a escola. Quanto à família, faziam-se comentários de<br />

que «passava necessidades».<br />

Nos tempos que correm, não se consegue entender situação tão paradoxal.<br />

É uma crueldade… Quando dizemos a qualquer criança que tem<br />

de ir à escola, pensamos que é fácil, queremos que vá limpa e bem<br />

arranjada… mas não é nada fácil. Esta criança sobrevive em condições<br />

desumanas, rodeada de lixo e coisas velhas, onde os ratos e as cobras<br />

são companhias diárias…


Aquando do diagnóstico, realizado em conjunto com a CPCJ, apercebemo-nos<br />

da complexidade da situação mas, naquele contexto, decidimos<br />

que tinha que ser resolvido na hora a questão da escola; o resto pouco<br />

ou nada interessava naquele momento.<br />

Para a CPCJ, conhecedora da situação, o mais fácil era ir à escola. A<br />

questão pertinente e prioritária não estava ainda a ser resolvida: esta<br />

família vivia numa roulotte, sem o mínimo de condições físicas e humanamente<br />

aceitáveis, sem água, esgotos ou electricidade…<br />

Se aparentemente parecia tudo resolvido, o mais difícil ficaria para mais<br />

tarde. Procurámos junto da CPCJ compreender o facto desta família não<br />

ter sido ainda realojada e da possibilidade do seu realojamento <strong>pelo</strong><br />

sector de habitação social do município. Nada podia ser feito, uma vez<br />

que a autarquia não tinha meios para a realojar; já tinha sido tentada<br />

uma resposta mas fora negativa. Esta família também era acompanhada<br />

pela segurança social no âmbito do rendimento social de inserção.<br />

A EMM fez contacto com a técnica que acompanha o caso e efectuou-se<br />

uma reunião. Percebemos que há muito era conhecido, muitos foram os<br />

técnicos que já tinham insistido com a autarquia e que desde 1997<br />

estava a ser acompanhada no âmbito do realojamento, num projecto-<br />

-piloto em parceria com a segurança social. Mas não havia muita<br />

esperança em relação a essa questão, pois o que se tinha de alterar era<br />

a situação de abandono escolar.<br />

Foram feitas bastantes visitas domiciliárias e, em muitas delas, nem foi<br />

possível falar com alguém. Noutras falámos com familiares e noutras<br />

ainda, foi possível falar com os próprios. O cenário era arrepiante: uma<br />

roullote tapada com plásticos e coisas velhas; nem a porta se via.<br />

Acompanhados por oito cães viviam ali um jovem de catorze anos, a<br />

sua irmã de onze e a mãe: comiam conservas, ou grelhados, quando<br />

não chovia!<br />

Estávamos ali para resolver imediatamente a questão da escola. Assim,<br />

tanto o Zé como a sua mãe ficaram cientes que ele teria de voltar para<br />

a escola, pois estavam a ser garantidas novas condições para a<br />

frequência das aulas, uma vez que o <strong>PIEF</strong>, entre outras especificidades,<br />

lhe garantiria mais apoio, transporte, alimentação e material.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

104<br />

Sentimos que aquela família, apesar de muitos e longos anos de espera,<br />

ainda tinha uma pontinha de esperança. Para aquelas crianças era<br />

«normal» viver naquelas condições, mas sentiam medo durante<br />

a noite… havia ratos e cobras que os visitavam e os amedrontavam pelas<br />

noites fora.<br />

O Zé foi integrado em <strong>PIEF</strong> mas, a sua assiduidade, foi um problema.<br />

Sendo difícil a reintegração escolar, pois era gozado <strong>pelo</strong>s colegas, cheirava<br />

mal e todos se afastavam. Ao longo do ano lectivo 2006-07 não foi<br />

fácil manter o Zé na escola. Era raro o dia que o Técnico de Intervenção<br />

Local (TIL) não fazia visitas domiciliárias. Por vezes não se conseguia<br />

falar com o jovem e sua mãe. A timidez é a principal inimiga: a vergonha<br />

de viver naquelas condições é notória. O Zé vive em permanente<br />

receio que os colegas possam vir a saber o lugar onde mora…<br />

Quando ia à escola, algumas vezes apresentava um cheiro bastante<br />

intenso e desagradável. Era pouco aceite dentro da sala de aula pela<br />

maioria dos colegas, devido à falta de higiene. Sentimos que ele não<br />

percebia muito bem porque lhe estávamos a tentar dar condições para<br />

tratar da sua higiene pessoal; dizia que tinha condições e que «dava<br />

muitas vezes banhos». Mas, as confirmações não tardaram. Provavelmente,<br />

nunca tinha tomado efectivamente um banho normal. Depois de<br />

uma aula de educação física saiu do balneário sem ter tomado um<br />

banho completo… ninguém o tinha ensinado como fazer. Apercebemo-nos<br />

da grave lacuna: fora-lhe dado champô, gel de banho mas ninguém<br />

antes lhe tinha explicado como se utilizavam.<br />

No recreio, continua a isolar-se bastante e raras vezes participa nas<br />

brincadeiras dos colegas. O Zé tem um comportamento «muito bemeducado»<br />

e respeitador das normas vigentes. Nunca dá motivos para<br />

que alguém se aborreça com ele. É uma criança humilde e bem comportada<br />

que realiza todas as actividades que lhe são propostas sem<br />

protestar e, depois de vencida a vergonha inicial, começou a solicitar a<br />

ajuda do professor, sempre que sentia alguma dificuldade na realização<br />

dos trabalhos. É um aluno com capacidades, que aprende facilmente, é<br />

interessado e trabalhador mas é prejudicado no seu desempenho devido<br />

à sua assiduidade irregular. No intuito de solucionar este problema, a mãe<br />

foi contactada diversas vezes mas a situação permaneceu inalterável.


Quando está na escola, prefere desenvolver individualmente as actividades,<br />

pois quando são propostos trabalhos de grupo é rejeitado <strong>pelo</strong>s<br />

colegas. Apesar de revelar uma manifesta timidez, quando solicitado é<br />

comunicativo e participativo. Na aula está sossegado e atento. Esforça-se<br />

por entender as tarefas e procura desenvolvê-las. No entanto, a única<br />

área em que se revela perfeitamente empenhado é na formação prática<br />

em contexto de trabalho.<br />

No final do ano lectivo, decidiu-se que seria mais vantajoso a continuidade<br />

do Zé em <strong>PIEF</strong>, para se promover um acompanhamento na<br />

proximidade e desenvolver a intervenção nas suas diversas vertentes.<br />

O Zé passa os tempos livres sem objectivos, estímulos, sem nada de<br />

concreto para fazer, sendo a sua única distracção o seu telemóvel. Em<br />

«casa», ou melhor, onde sobrevive, vai falando com o tio. Este também<br />

não estudou, acabando por sobreviver no mundo da marginalidade,<br />

sendo a única referência de adulto para o Zé.<br />

Continuando actualmente em <strong>PIEF</strong>, foi reformulado o plano de educação<br />

e formação (PEF), ampliando a carga horária na área de formação<br />

prática em contexto de trabalho e estamos a acompanhá-lo e a investir<br />

na sua assiduidade. No entanto, sentimo-nos limitados para resolver a<br />

questão da habitabilidade, que continua sem resposta... é agora o foco<br />

da nossa intervenção.<br />

30 - ACHO QUE MELHOREI - Rafa (aluno do <strong>PIEF</strong>)<br />

O Rafa é um jovem com dezasseis anos que vive na região Centro e<br />

respira o ar da serra. É o mais novo de quatro irmãos e actualmente<br />

vive com os pais e dois irmãos com quem partilha o quarto. O pai<br />

trabalha como operário têxtil e a mãe é doméstica. O seu percurso<br />

escolar foi um pouco difícil. Tem reprovações no sexto e sétimo anos do<br />

ensino básico que hoje reconhece que foram por falta de estudo, más<br />

companhias e faltas de comportamento. A EMM foi alertada pela escola<br />

que este jovem brevemente iria entrar em abandono escolar porque o<br />

seu desinteresse era grande e certamente iria optar pela apanha de<br />

fruta, actividade que praticava sazonalmente. Existia na escola o <strong>PIEF</strong><br />

de terceiro ciclo. Estávamos a iniciar o ano lectivo 2006-07 e precisá-<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

106<br />

vamos de actuar como medida preventiva. Então a resposta dependia<br />

da família que aceitou de bom grado porque sentiu esta oportunidade<br />

como «tábua de salvação». O filho não tinha idade para trabalhar e<br />

sendo o mais novo gostariam que obtivesse mais qualificação escolar.<br />

O jovem teve dificuldade de integração na turma <strong>PIEF</strong>, como se pode<br />

verificar no testemunho recolhido ao próprio.<br />

«Na minha vida houve muita coisa que mudou neste último ano 2006.<br />

Inscrevi-me no curso <strong>PIEF</strong> porque os meus pais insistiram que eu<br />

continuasse a estudar, <strong>pelo</strong> menos até terminar o nono ano. No início<br />

não estava muito disposto por ser um curso <strong>PIEF</strong>, mas fui-me habituando<br />

à ideia. No ensino regular eu era um aluno irrequieto, faltava às<br />

aulas e era mal-educado com os funcionários. Assim acabei por<br />

chumbar sempre por faltas. Após ter reflectido muito cheguei à conclusão<br />

que a minha vida não podia ser assim e que tinha de mudar a<br />

minha atitude e ser responsável. Então entrei para este curso. A minha<br />

vida começou a melhorar. Senti que estava mais responsável e que não<br />

era o mal-educado que era nos anos anteriores. No ensino normal só<br />

tirava más notas porque não ligava nenhuma mas agora as minhas<br />

notas melhoraram porque estou mais atento. Acho que melhorei, o que<br />

é muito positivo para mim. Este ano consegui estar a um bom nível mas<br />

poderia estar no nível máximo se conseguisse ainda estar com mais<br />

atenção e se às vezes não fosse resmungão com os professores. Em<br />

algumas disciplinas estive muito próximo de ter nota quatro».<br />

31 - COMO SE FOSSE UM RAPAZ NORMAL - Emídio (aluno do <strong>PIEF</strong>)<br />

Emídio, catorze anos de idade, com o quarto ano concluído, sucessivos<br />

abandonos no segundo ciclo do ensino básico, vive com os pais e uma<br />

irmã mais nova, numa localidade da região Centro. Apresentava comportamentos<br />

delinquentes! Família beneficiária de rendimento social de<br />

inserção, de etnia cigana.<br />

«Desde o primeiro dia de aulas que eu comecei a vir às aulas, coisa que<br />

nunca tinha feito na minha vida de estudante. Durante estes primeiros<br />

dias de aulas, eu era muito mau e só arranjava problemas, andava<br />

sempre a bater nos outros, mas tive duas pessoas que me ajudaram a<br />

ser um rapaz fixe e hoje porto-me muito bem. Graças ao meu monitor


e ao meu director de turma que me ajudaram muito, hoje sou outro<br />

rapaz. Venho às aulas e porto-me muito bem.<br />

Gostei deste ano lectivo que acabou muito depressa, parece que ainda<br />

ontem começámos.<br />

Agradeço aos meus professores, eu senti-me muito bem porque sou<br />

cigano e todos me trataram como se fosse um rapaz normal.<br />

Agradeço a todos a confiança que me deram também.<br />

Obrigado por me terem ajudado. Viva o <strong>PIEF</strong>!»<br />

32 - SINTO-ME BEM PELO APOIO - João (aluno do <strong>PIEF</strong>)<br />

João, quinze anos de idade, com o quarto ano concluído, algumas<br />

retenções no primeiro ciclo do ensino básico e várias no quinto ano.<br />

Encontrava-se em abandono escolar, a trabalhar num café, quando foi<br />

detectado pela inspecção-geral do trabalho na região Centro. Tem três<br />

irmãos e a mãe estava em processo de separação litigiosa depois de ter<br />

fugido com os filhos para outro concelho, processo este, com apoio<br />

jurídico da segurança social.<br />

«Vim para o <strong>PIEF</strong> porque queria continuar a estudar. Sinto-me muito feliz<br />

pela oportunidade que tive em vir para esta turma. Fiz alguns amigos e os<br />

professores ajudaram-me a ultrapassar muitas dificuldades que eu sentia.<br />

Gostava de ter entrado para esta turma no início do ano lectivo para ter<br />

aprendido mais. No entanto, sinto-me bem <strong>pelo</strong> apoio que todos me têm<br />

dado. Valeu a pena o sacrifício de me levantar tão cedo para vir às aulas.»<br />

33 - SOMENTE COM DUAS DIVISÕES - Rita (aluna do <strong>PIEF</strong>)<br />

Rita, quinze anos de idade, com o quinto ano concluído, duas retenções<br />

no primeiro ciclo do ensino básico, estava em abandono escolar e<br />

encontrava-se a tomar conta de sobrinhos. Vive com a mãe, avó,<br />

irmãos mais novos, tios, tias e sobrinhos num total de catorze pessoas,<br />

numa localidade da região Centro interior, na mesma casa somente com<br />

duas divisões! Pai desconhecido, mãe beneficiária de rendimento social<br />

de inserção, com suspeita de comportamentos de risco.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

107


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

108<br />

«A minha passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> foi uma experiência espectacular.<br />

Conheci muitas pessoas e reencontrei alguns antigos colegas. Mas<br />

também há a parte má, que foi com os colegas da minha turma.<br />

Custou-me muito integrar-me numa turma onde a maioria dos colegas<br />

eram ciganos. Ainda houve algumas chatices que quase me levaram a<br />

abandonar a escola pela segunda vez, e a não acabar o sexto ano, mas<br />

alguns professores e a psicóloga, de quem gosto muito, conseguiram<br />

impedir isso.<br />

Passados todos estes meses, alguns colegas foram saindo e a turma foi<br />

ficando mais pequena. Agora estou muito mais integrada na turma com<br />

colegas que ainda restam. Adoro alguns dos meus professores e<br />

também alguns professores de outras turmas. Gosto de quase todas as<br />

disciplinas.<br />

Por tudo isto, a minha passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> foi muito boa!»<br />

34 - DE COSTAS PARA A VIDA - Susana Simões (professora)<br />

A integração no <strong>PIEF</strong> mudou a vida do Ruben. Saiu da solidão, do<br />

isolamento, das quatro paredes fechadas do seu quarto, para uma vida<br />

nova, com objectivos e iluminada pelas amizades que construiu.<br />

O Ruben é um jovem de dezasseis anos de idade, residente num bairro.<br />

Vive com algumas dificuldades económicas na companhia dos pais, um<br />

irmão e um sobrinho. O pai, o sustento da família, é alcoólico, comportamento<br />

que muito tem interferido na vida pessoal, económica e social<br />

de toda a família. O jovem cresceu testemunhando de forma impotente<br />

as agressões físicas e psicológicas perpetradas sobre a sua mãe.<br />

O seu percurso escolar foi marcado <strong>pelo</strong> insucesso e <strong>pelo</strong> abandono.<br />

Após quatro retenções, duas no quarto ano e duas no quinto, desistiu<br />

da escola e abandonou os estudos. Voltou as costas à vida isolando-se<br />

em casa, onde passava os dias fechado no quarto, não convivendo com<br />

ninguém, evitando qualquer tipo de contacto com o exterior.<br />

A psicóloga escolar, ciente dos motivos que conduziram ao abandono,<br />

e da situação em que se encontrava, encaminhou-o para a Santa Casa<br />

da Misericórdia para aí frequentar um curso de formação profissional.


Esta instituição sinalizou-o ao <strong>PETI</strong> e integrou-o na pré-profissionalização<br />

do programa de promoção social dos ciganos (PPSC), enquanto<br />

aguardava o ingresso numa turma de <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo.<br />

A sua adaptação ao programa foi lenta, contudo satisfatória. Revelou-se<br />

assíduo, responsável pelas tarefas que lhe eram conferidas, embora<br />

muito introvertido e pouco comunicativo. No que diz respeito à formação<br />

profissional, desde cedo demonstrou interesse pela área da pastelaria,<br />

aprendendo com facilidade as técnicas ministradas e executando<br />

com perfeição e responsabilidade as tarefas que lhe eram confiadas.<br />

Integrou o <strong>PIEF</strong> em Outubro de 2006. Apesar do bom desempenho<br />

revelado, manteve uma postura de aluno observador, não estabelecendo<br />

qualquer tipo de intimidade com os seus parceiros, nem mesmo nos<br />

intervalos lectivos. Foi um aluno autónomo, assíduo, responsável, tímido<br />

e discreto, tanto em contexto escolar, como na vertente profissional, no<br />

curso que frequentava de pastelaria e panificação. Não revelou grandes<br />

dificuldades do ponto de vista cognitivo: apresentava um raciocínio<br />

lógico-matemático dentro dos padrões exigidos para o nível e tipo de<br />

ensino em que estava inserido e apresentava conhecimentos satisfatórios<br />

no domínio da língua materna.<br />

Por ter concluído com aproveitamento as competências do segundo<br />

ciclo ingressou num <strong>PIEF</strong> para obtenção da titularidade do terceiro ciclo<br />

do ensino básico.<br />

A sua performance no novo grupo revelou-se diferente da que até então<br />

demonstrara. Integrou-se muito bem na turma e foi de imediato aceite<br />

<strong>pelo</strong>s colegas, alguns dos quais já conhecia da formação profissional.<br />

Mostrou-se mais confiante, mais participativo e mais à vontade perante os<br />

pares. Demonstrou igualmente vontade de se relacionar com os outros,<br />

partilhando com eles os intervalos e a hora da refeição. Foi voluntário<br />

para participar num projecto de teatro implementado na turma, o qual<br />

contribuiu para aumentar a sua auto-confiança e auto-estima.<br />

No que diz respeito ao desempenho escolar, o jovem acompanhou bem<br />

as tarefas propostas, obtendo resultados bastante satisfatórios nas diferentes<br />

áreas disciplinares. Revelou-se sociável e, em algumas situações,<br />

demonstrava até sentido de humor, revelando um progresso notável no<br />

domínio da socialização.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

110<br />

Por ter desenvolvido as competências definidas, obteve a certificação<br />

do terceiro ciclo, ainda em 2007, e integrou o mundo laboral numa<br />

fábrica de bolos na qual pôde aplicar as aprendizagens adquiridas no<br />

curso de pastelaria e panificação.<br />

Após uma breve passagem pela fábrica de bolos, surgiu o convite para<br />

fazer um curso de alta cozinha ministrado por um conceituado chefe<br />

português. O Ruben está bastante interessado e satisfeito com as<br />

portas que este curso poderá abrir.<br />

35 - NÃO SOU PESSOA FÁCIL - Célia (aluna do <strong>PIEF</strong>)<br />

Eu sou a Célia, tenho quinze anos e estou aqui para contar a minha<br />

experiência de vida.<br />

Tenho uma vida um pouco complicada. A vida fez-me crescer demasiado<br />

depressa. Fui obrigada tornar-me adulta enquanto deveria estar<br />

a brincar com bonecas. Sabem, quando as pessoas querem voltar a ser<br />

bebés e não ter de se preocupar?<br />

Vou começar a contar a minha história de vida. Nasci no dia 9 de Junho<br />

no hospital em Lisboa.<br />

No meu primeiro ano de vida vivi com os meus pais, que se separaram.<br />

Fui obrigada a partir com a minha mãe e deixar o meu irmão mais velho<br />

para trás. Fui viver com a minha avó [numa localidade] e a minha mãe<br />

[noutra]. Ficámos separadas. Até hoje não sei ao certo o porquê da<br />

separação, porque cada um relata a sua versão dos factos...<br />

Bom, a minha primeira escola foi [… perto da residência]. Estive lá dois<br />

anos, reprovei no meu segundo ano e nesse mesmo ano a minha mãe<br />

foi-me buscar para viver com ela e o meu padrasto, que é o pai do meu<br />

mano de dez anos […]. Aí sim, a minha vida deu uma reviravolta. Os<br />

anos foram passando e os meus problemas começaram a surgir, pois já<br />

tinha outro padrasto, que me batia. Quando a minha mãe estava,<br />

impedia-me de comer...<br />

Nessa época, passei para o quinto ano e entrei […noutra escola]. Nessa<br />

escola comecei a conhecer gente nova, entrei para um grupo, do qual<br />

o meu namorado fazia parte, que tinha o nome K.D.R (K:100 Damas


Rebeldes) e K.P.R (K:100 Putos Rebeldes). Aí começaram as minhas<br />

faltas... A minha vida entrou num caminho obscuro...<br />

Passei por muita coisa, que nem às paredes confesso, para não me<br />

envergonhar cada vez que olhar para elas... Presenciei muitas perdas.<br />

Só eu sei onde ficaram, e a quem custou.<br />

Entretanto começaram as fugas de casa... A meio do ano a minha mãe<br />

mandou-me para Espanha, para Saragoça. Fui obrigada a separar-me<br />

do meu namorado que já mantínhamos uma relação de ano e meio. No<br />

início custou-me muito, contava as horas, os segundos, dias e os meses<br />

que faltavam para voltar para junto dele! E quando isso aconteceu<br />

infelizmente ele já estava preso longe, de novo...<br />

O ano lectivo começou e lá fui eu para escola. Foi aí que recebi a<br />

novidade: ia entrar num curso de <strong>PIEF</strong> […].<br />

Estou nesse curso desde o início. Somos muito diferentes uns dos<br />

outros, temos problemas de variadas origens, mas sempre unidos,<br />

somos como uma família...<br />

Eu até hoje não me esqueço das palavras da minha primeira stora de<br />

educação artística: «Nós somos a base de tudo, o que vem depois<br />

somos nós que construímos»... Passei por muita coisa, até hoje.<br />

Hoje em dia estou integrada no <strong>PIEF</strong> para tirar o nono ano. A minha<br />

vida continua conturbada, pois tive muitas perdas recentemente!!! Do<br />

fundo do coração agradeço a todos - professores, técnicas, ao <strong>PETI</strong>,<br />

colegas, funcionários - <strong>pelo</strong> apoio e compreensão, carinhos... Porque eu<br />

sei que não sou uma pessoa fácil...<br />

36 - «RED BULL» - colectivo de turma <strong>PIEF</strong><br />

No mês de Outubro de 2006, um grupo de alunos preparava-se para<br />

dar início ao ano lectivo numa turma <strong>PIEF</strong>. Alguns de nós éramos velhos<br />

conhecidos do bairro e dos corredores da escola. Já tínhamos reunido<br />

com a equipa móvel que nos informou sobre <strong>PIEF</strong> e seu funcionamento.<br />

Este agradou-nos e levou-nos a assinar um contrato, no qual nos<br />

comprometemos a cumprir as normas que nos levam à certificação.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

111


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

112<br />

Nas duas primeiras semanas, desenvolvemos actividades de «quebragelo»<br />

para ficarmos a conhecer melhor o grupo e nos aproximarmos<br />

mais dos nossos professores. Estes pareceram-nos fixes e prontos a<br />

ajudar-nos nas dificuldades.<br />

No início, foi um pouco complicado adaptarmo-nos a novas áreas e<br />

novo horário por ser uma novidade para nós. Na sala de aula, as coisas<br />

nem sempre correm bem porque há alunos a faltar, outros que não são<br />

pontuais e mais aqueles que ainda não sabem estar, prejudicando os<br />

colegas que querem aprender. Apesar disto, já tivemos três alunos<br />

certificados e dois deles vão começar um curso. No dia da certificação, a<br />

turma organizou uma festa surpresa que foi «bué» divertida e gostosa.<br />

Comemos e bebemos, jogámos e dançámos com «stores» à mistura.<br />

Temos realizado várias actividades que nos têm agradado muito, entre as<br />

quais visitas de estudo ligadas aos projectos que temos desenvolvido.<br />

O tempo tomou «Red Bull»!! As férias da Páscoa estão a chegar para<br />

descansarmos, pormos as ideias em ordem e ganhar muita «pica» para<br />

sermos CERTIFICADOS!!!!<br />

37 - ACREDITAM EM NÓS - Mário (aluno do <strong>PIEF</strong>)<br />

Olá, chamo-me Mário, tenho quinze anos e o meu comportamento na<br />

escola, era péssimo, ia nas palhaçadas com os outros e faltava muito<br />

para ir jogar playstation.<br />

Desde que me lembro sempre fui «desligado»! Demorei seis anos<br />

a fazer o primeiro ciclo e dois no quinto ano, sem o terminar!<br />

Era aluno numa EB 2,3. Estava matriculado mas não frequentava. A falta<br />

de atenção dos professores e a matéria difícil, junto com o mau comportamento<br />

e as faltas, faziam com que eu chumbasse. Só gostava do<br />

desporto escolar, do atletismo e da companhia dos colegas.<br />

Fora da escola trabalhava com o meu irmão no ramo da hotelaria, gosto<br />

muito desta área. Passava os tempos livres a jogar playstation e a<br />

passear.<br />

Soube do <strong>PIEF</strong> através do conselho executivo e como tinha estado um<br />

ano fora e queria voltar para a escola, pareceu-me uma forma mais


fácil de tirar o sexto ano. Entrei no dia 11 de Janeiro de 2007 e quatro<br />

meses depois tinha o sexto ano! Nunca pensei que conseguisse em tão<br />

pouco tempo!<br />

Mais professores dentro da sala de aula e menos alunos na turma,<br />

professores que acreditam em nós e nos motivam, levou a que eu<br />

alterasse o meu comportamento, a assiduidade e a relação com os<br />

mesmos.<br />

Aprendi a gostar de matemática, dos professores e da formação vocacional<br />

no restaurante; foram actividades super interessantes. Gostei<br />

também bastante das visitas de estudo, principalmente daquela «vem<br />

inventar a música para um filme» na fundação Calouste Gulbenkian; do<br />

estádio do Sporting e do passeio à praia da Adraga.<br />

Gostava de concluir o nono ano numa cláusula de formação e seguir o<br />

ramo da hotelaria.<br />

Valeu a pena, aconselho aos amigos.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

113


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

114<br />

38 - ABRI OS OLHOS - Alberto Silva (dezasseis anos, aluno do <strong>PIEF</strong>)<br />

Antes de estar em <strong>PIEF</strong> não ligava às aulas, tinha más companhias e só<br />

agora é que abri os olhos. Sinto-me melhor, aprendi coisas novas e fiz<br />

novas amizades. Eu acho que foi muito diferente dos anos em que<br />

estive nas outras turmas, estive mais calmo. A relação com os professores<br />

foi boa, antes não estava tão bem. Senti-me bem, basicamente.<br />

Estar em <strong>PIEF</strong> é completamente diferente, é como se fosse uma família.<br />

39 - AJUDA IMENSO - aluno do <strong>PIEF</strong><br />

Este texto livre foi escrito por um aluno de <strong>PIEF</strong> no âmbito da disciplina<br />

de «viver em português».<br />

«O <strong>PIEF</strong>, para quem não sabe, quer dizer projecto integrado de<br />

educação e formação.<br />

É um curso que nos ajuda imenso, mas há alguns alunos que não o<br />

sabem aproveitar.<br />

No <strong>PIEF</strong>, os professores têm muito mais atenção para connosco e<br />

sabem explicar as coisas de forma a que os alunos consigam perceber.<br />

As aulas aqui são muito mais divertidas, porque dá para brincar<br />

e estudar ao mesmo tempo.<br />

A parte menos boa é que há muitas regras. São muito rigorosos, mas<br />

é para o nosso bem. Pelo menos é o que os «stores» dizem…<br />

O <strong>PIEF</strong> começou há dois meses, e já foram dois alunos suspensos, e<br />

acho que já não voltam tão cedo…<br />

Eu estou a aproveitar o curso ao máximo, porque se eu não conseguir<br />

fazer o sexto, ou talvez, o nono ano aqui, não vou conseguir em mais<br />

lado nenhum.<br />

Eu já andei no ensino regular e, para tirar o quinto ano, andei lá três<br />

anos. É muito chato andar em turminhas de quinto ano, com putos aos<br />

gritos e aos pinotes.<br />

Bem, agora vou tentar fazer o sexto ano.<br />

Fiquem bem!»


40 - BEM MELHOR - aluno do <strong>PIEF</strong><br />

Eu já tinha ideia do que era uma turma <strong>PIEF</strong> porque a minha irmã e os<br />

meus amigos frequentaram uma turma parecida, mas fiquei muito<br />

surpreendido porque afinal estar em <strong>PIEF</strong> é bem melhor do que estava<br />

à espera.<br />

Os professores são nossos amigos, dão-nos muita atenção e têm muita<br />

paciência connosco. As matérias são mais fáceis, as aulas são diferentes<br />

e já não são uma seca.<br />

Gostei muito dos meus colegas; até mesmo aqueles que no início do<br />

ano não se davam bem com o grupo, acabaram por se tornar grandes<br />

amigos.<br />

A TIL mostrou-se sempre preocupada connosco e ajudou-nos sempre<br />

que precisámos.<br />

Para melhorar, devíamos confraternizar mais em sala de aula, deveríamos<br />

organizar mais saídas, ir a colónias de férias e ter jogos e um ou<br />

dois computadores em sala de aula.<br />

Hoje, estou muito diferente do Luís do início do ano. Tornei-me melhor<br />

aluno, melhorei o comportamento, o relacionamento e a assiduidade.<br />

41 - NOTO MUDANÇAS - Ricardo (aluno do <strong>PIEF</strong>)<br />

Olá! Sou o Ricardo e tenho dezasseis anos.<br />

Nunca fui bom aluno! Andei sete anos no primeiro ciclo e dois no<br />

quinto ano. Neste último ano já nem frequentava a escola. Não<br />

gostava do ambiente nem dos colegas, mandavam muitas bocas e optei<br />

por faltar.<br />

Soube do <strong>PIEF</strong> através do meu vizinho. Ele andava no <strong>PIEF</strong> e estava a<br />

gostar. A minha mãe contactou a escola e reunimos com a TIL.<br />

Achei a ideia interessante porque é importante continuar a estudar e<br />

porque os meus pais me chateavam de estar em casa sem fazer nada<br />

e insistiam para voltar à escola.<br />

Entrei a 10 de Abril de 2007. Ainda não fui certificado, mas estou a<br />

gostar. Já noto mudanças: melhorei o comportamento, a assiduidade e<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

115


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

116<br />

a relação com os professores e colegas. Tudo isto, porque na minha<br />

opinião os professores acreditam, motivam e puxam por nós. Haver<br />

mais professores dentro de sala de aula e menos alunos facilita as<br />

coisas.<br />

Quero acabar o sexto ano aqui e talvez fazer o nono ano.<br />

42 - PUXAREM POR NÓS - Tiago (aluno do <strong>PIEF</strong>)<br />

Olá, sou o Tiago, sou brasileiro e tenho dezasseis anos.<br />

Nunca gostei da escola, não gosto de estar fechado numa sala<br />

muito tempo. Não queria estudar, apenas brincar, andar de mota e<br />

passear; a mudança de cidade, escola e amigos levou a uma necessidade<br />

de integração pela negativa. Gostava «di bagunçá», queria ser igual<br />

a eles, não queria ser diferente. Fiz o primeiro ciclo em quatro anos,<br />

depois é que tudo mudou. Frequentei o quinto ano durante quatro anos:<br />

dois no Brasil e um e meio cá.<br />

O <strong>PETI</strong> contactou a minha mãe, que se mostrou muito interessada e eu<br />

gostei da ideia, seria uma oportunidade de voltar a estudar e de concluir<br />

o sexto ano.<br />

Entrei no <strong>PIEF</strong> a 10 de Abril de 2007 e mentalizei-me que era capaz, fui<br />

certificado a 4 de Junho.<br />

O facto dos professores acreditarem em nós, motivarem-nos e<br />

puxarem por nós, fez com que eu mudasse. As matérias são mais<br />

fáceis, porque os professores deste <strong>PIEF</strong> estão sempre «em cima» dando<br />

explicações, é bom porque se aprende mais!<br />

O meu sonho é fazer o nono ano. Talvez numa cláusula de formação,<br />

trabalhar num supermercado como repositor ou na área da educação.<br />

Agora estou de férias, trabalho em part-time na área da publicidade (no<br />

máximo dez horas semanais), ganho uns trocos para mim.<br />

Os meus pais voltaram a acreditar em mim, sinto-me feliz por isso.


1 - QUANDO O SONHO COMANDA UMA VIDA... - José Rocha (coorde-<br />

nador do PEETI/<strong>PETI</strong> na região norte)<br />

O combate ao trabalho infantil foi desde o primeiro momento para José<br />

Rocha mais do que um trabalho, uma causa, que abraçou com a<br />

vontade de romper com cumplicidades e complacências, de mudar<br />

práticas institucionais e de contribuir para devolver a infância a quem<br />

a deve viver. Em suma, abraçou-a com o inconformismo de quem sonha<br />

mudar o mundo. Homem da educação, há algum tempo fora da escola<br />

e do papel de professor, coordenou o PEETI/<strong>PETI</strong> na região norte desde<br />

1999 até 2004. Tendo encontrado um terreno propício para acalmar a<br />

sua «motivação» e «crença», plantou muitas sementes, das quais algumas<br />

perduraram e se transformaram em frutos de mudança, servindo<br />

como «consolo» face à sua partida deste projecto para iniciar outros...<br />

Assim, o modo que escolheu para expressar a sua passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

assume a forma de poesia.<br />

«A motivação<br />

Menino de cara marcada<br />

Criança que não pudeste ser<br />

Caminhas sozinho na estrada<br />

Antes mesmo do sol nascer.<br />

Percorres quilómetros a fio<br />

Distância medida em tempo<br />

Ao sol, à chuva, ao frio<br />

Até chegares ao tormento.<br />

Capítulo III<br />

os outros<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

117


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

118<br />

Chegas e toca a sineta<br />

Capataz que te manda entrar<br />

Em breve terás a cara preta<br />

Do óleo que teima<br />

Em espirrar.<br />

Não tentes passar o farrapo<br />

Pelos olhos salpicados<br />

Ficarias tu num trapo<br />

Com os membros decepados.<br />

A máquina certeira e impiedosa<br />

Não sabe o que é parar<br />

Na sua canseira laboriosa<br />

Não te consente um pestanejar.<br />

Ora carregando no botão<br />

Ora pressionando o pedal<br />

Ganhas calo na mão<br />

Mexes-te num vendaval.<br />

Quando, enfim, volta a soar<br />

O tão ansiado retinir<br />

Corres para te poderes lavar<br />

E, de seguida, algo engolir.<br />

Abres a tua saquita<br />

Onde trazes o almoço<br />

Pões ao lume a marmita<br />

Limpas o suor do pescoço.<br />

Comes um mísero caldo<br />

De couves, massa e grão<br />

Embora haja caldos em saldo<br />

Quem lhe chega é o patrão.<br />

Toca de novo impetuosa<br />

A que te manda trabalhar<br />

Lamentas a sorte desditosa<br />

Que te não deixou estudar.<br />

Trocavas de boa vontade<br />

Este toque <strong>pelo</strong> da escola<br />

Então já sentirias vaidade


Na tua outra sacola.<br />

Imaginas-te em correrias<br />

Por amplos corredores<br />

Assaltam-te as alegrias<br />

Das notas dadas <strong>pelo</strong>s professores.<br />

Sonhas com o jogar à bola<br />

Em campo de verde relvado<br />

E, na corda ou na argola,<br />

Vês-te em acrobacia pendurado.<br />

E aqueles lápis e marcadores<br />

Que te deixariam pintar<br />

Um mundo de vivas cores<br />

Com que gostas de sonhar.<br />

As cores do teu mundo real<br />

São, sem dúvida, mais tristes<br />

Desde aquele funeral<br />

Que, de perto, tu seguiste.<br />

Nos teus doze anos saltitantes<br />

Assumiste a paternidade<br />

De mais dois órfãos infantes<br />

Pequeninos, de tenra idade.»<br />

«A crença<br />

Da frescura e fecundidade do vento de mudança<br />

colho o pólen deslizante das palavras<br />

palavras “novas” coloridas pela esperança<br />

de não serem só palavras<br />

E da palavra à palavra-acção<br />

há um trilho novo a percorrer<br />

caminho de reflexão sobre ideias em ebulição<br />

que é preciso deixar ferver e arrefecer<br />

para amadurecer<br />

e assim algo de novo erigir<br />

Mas não há paciência para o preceito cumprir<br />

a intervenção sofre de urgência<br />

é imperioso rapidamente agir<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

119


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

120<br />

com serenidade e inteligência<br />

temperadas com a esperança no devir<br />

Cimento as palavras sistematizo ideias<br />

desenho em torno de cada ideia<br />

um projecto a construir<br />

e das mil construções esboçadas<br />

assumo que todas se hão-de cumprir<br />

Ah! mas que desilusão... que frustração<br />

causadas por um pueril esquecimento<br />

do projecto não resulta construção<br />

se não houver areia tijolo ferro e cimento<br />

e ainda o mais importante<br />

operários e técnicos com vontade<br />

com empenhamento<br />

com disponibilidade<br />

e em comunhão de pensamento<br />

quanto à construção a levar por diante<br />

Tantos castelos de areia construídos<br />

em estado de êxtase ... de miragem<br />

tantos sonhos desiludidos<br />

tantos sonos mal dormidos<br />

tantos passos em vão percorridos<br />

tanta gente fora da carruagem<br />

Quantas palavras bonitas ouvi<br />

quantas promessas escutei<br />

quanto empenhamento li<br />

em muitos que contactei?<br />

Francamente não sei<br />

Mas sei e nisso teimo em acreditar<br />

que “o sonho comanda a vida”<br />

e quero continuar a sonhar<br />

pois nesta vida-corrida<br />

só a utopia nos faz avançar.»


«A desilusão/consolo<br />

Parto ... mas fico<br />

vou ... mas estou<br />

p‘lo que me mantenho,<br />

pois não consigo ser<br />

negando aquilo que sou.<br />

A realidade<br />

só virtualmente real<br />

é o estado<br />

percepcionado<br />

é transitoriedade<br />

dizível p‘las expressões:<br />

o provisoriamente absoluto<br />

o absolutamente provisório.<br />

O estar<br />

é um ser presente<br />

é determinação<br />

expressa num intenso querer<br />

de sentido orientado<br />

é uma disposição pr‘a fazer ...<br />

até cumprir o querer<br />

e ficar desinquietado<br />

pela formulação d‘outro querer.<br />

Assim ...<br />

Partida<br />

obviamente<br />

sem despedida<br />

pois a presença<br />

a manutenção<br />

não é só p‘lo coração<br />

é também <strong>pelo</strong> legado<br />

no que da realização da crença<br />

foi alcançado.<br />

A todos os crentes<br />

a todos os resistentes<br />

o meu reconhecimento<br />

e o meu: Muito obrigado!»<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

121


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

122<br />

2 - FICA POR CONTAR - Luís Coutinho<br />

Com vinte e seis anos, licenciado em sociologia, actualmente encontro-me<br />

a trabalhar como técnico de reconhecimento, validação e certificação de<br />

competências profissionais, num centro «Novas Oportunidades».<br />

O primeiro contacto com o PEETI surgiu no ano 2000, durante os meses<br />

de Julho e Agosto, enquanto desempenhei funções de monitor de informática<br />

num atelier de ocupação de tempos livres, para jovens entre os<br />

seis e os dezasseis anos, promovido <strong>pelo</strong> município numa localidade de<br />

um concelho no Alentejo. Na altura, era um miúdo de dezanove anos.<br />

O que inicialmente se supunha um trabalho individual cingido à promoção<br />

de um primeiro contacto entre a informática e os jovens, transformou-se<br />

num trabalho de parceria entre a equipa de monitores do<br />

espaço de ocupação de tempos livres e as equipas de monitores do<br />

PEETI. Confesso que até àquele momento desconhecia, por completo,<br />

o que era o PEETI, em que consistia, quais os seus objectivos, o que os<br />

movia.<br />

Foi inevitável o envolvimento nas actividades lúdicas mas pontuadas<br />

por uma enorme pedagogia e promoção de comportamentos saudáveis,<br />

promovidas pelas equipas de monitores/animadores do PEETI. Associado<br />

a esse envolvimento surgiu ainda um crescente interesse pela<br />

problemática do trabalho infantil em Portugal e a forma como esta<br />

determinava o percurso de vida de um número considerável de crianças<br />

e adolescentes, retirando-lhes a hipótese de uma educação e formação<br />

que era sua por direito, tal como, também, todas as oportunidades a<br />

elas inerentes.<br />

O PEETI iria marcar os anos seguintes da minha vida, no meu percurso<br />

académico, enquanto estudante de sociologia, nas experiências profissionais<br />

que desenvolvi e, mais importante que tudo, na minha vida<br />

pessoal.<br />

Após este primeiro contacto surgiu, no ano seguinte, a possibilidade de<br />

integração das equipas de monitores/animadores de campos de férias,<br />

designados mais tarde «Campos Aventura». Durante o período de 2000<br />

a 2004, frequentei várias formações de preparação para o trabalho com<br />

os grupos <strong>PIEF</strong>, participando depois como monitor/animador de campos


de férias e pausas lectivas com grupos <strong>PIEF</strong> por quase todo o país,<br />

tendo um contacto directo com realidades muito distintas de Norte a<br />

Sul de Portugal. Foram algumas centenas de jovens provenientes das<br />

mais diversas realidades e contextos sociais, vincados <strong>pelo</strong>s vários<br />

problemas e comportamentos negativos associados às muitas formas<br />

de exploração do trabalho infantil. Todos eles tinham uma história diferente<br />

mas marcada por um ponto comum: o fim precoce de uma<br />

«meninice» de brincadeiras e falta do direito à educação.<br />

O monitor/animador tinha responsabilidades acrescidas às equipas<br />

móveis do PEETI que trabalhavam com os grupos <strong>PIEF</strong> durante todo o<br />

ano lectivo. Era da sua responsabilidade promover a continuidade de<br />

comportamentos assertivos desenvolvidos <strong>pelo</strong>s técnicos da equipa<br />

móvel mas, ao mesmo tempo, proporcionar actividades de recreio e<br />

divertimento em contextos totalmente desconhecidos para muitos dos<br />

jovens. O principal objectivo era retirá-los do seu espaço natural, muitas<br />

vezes, associado a comportamentos menos positivos, directa e indirectamente<br />

ligados ao trabalho infantil, transportando-os literalmente,<br />

para contextos totalmente diferentes onde poderiam desenvolver um<br />

«sem fim» de actividades de recreio, sempre pontuadas pela promoção<br />

de comportamentos saudáveis de trabalho em equipa e respeito pelas<br />

diferenças existentes entre muitos deles.<br />

Mentiria se dissesse que era apenas um trabalho onde me limitava a<br />

cumprir um programa de horários e tarefas. Era muito mais que isso…<br />

Durante o curto espaço de tempo em que estávamos juntos, monitor/<br />

animador e jovens, inevitavelmente desenvolviam-se relações de amizade,<br />

companheirismo e uma posição paternalista, inclusive em relação<br />

a alguns jovens desprovidos dessa figura na sua vida ou dos comportamentos<br />

a ela associados. Não podia mudar o seu mundo, não podia<br />

prometer-lhes que a sua vida seria melhor ou sem dificuldades, não<br />

lhes podia prometer um mundo perfeito mas, durante o tempo em que<br />

estávamos juntos, podia mostrar-lhes alternativas e ensinar-lhes os<br />

passos a dar para melhorarem o seu mundo.<br />

Dificuldades? Muitas! Destaco aquela contra a qual eu e todos os outros<br />

monitores/animadores lutaram, umas vezes com sucesso, outras nem<br />

por isso: a falta de um conhecimento mais profundo sobre os jovens,<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

123


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

124<br />

por parte dos monitores/animadores. Nem sempre foi possível o conhecimento<br />

prévio dos jovens no início do trabalho com os mesmos. Esta<br />

situação causava um enorme transtorno na dinâmica de trabalho, já<br />

que limitava em muitos aspectos o trabalho directo com os jovens. Não<br />

conhecendo o seu percurso era necessário um trabalho «extra» de<br />

conhecimento do jovem e criação de estratégias de trabalho e acompanhamento<br />

para a resolução de problemas que, muitas vezes, passavam<br />

por problemas de exclusão/inclusão, violência ou consumos ilícitos.<br />

Com apenas quinze dias para resolver e ou contornar estas situações,<br />

além de cumprir os objectivos pedagógicos anteriormente mencionados,<br />

tínhamos de operar autênticos «milagres». Infelizmente, nem<br />

sempre foram possíveis. A política do «desenrasca» foi um pilar neste<br />

tipo de actividades mas, nem sempre, foi a solução mais adequada.<br />

Uma maior fluência da informação entre as equipas e respectivos<br />

técnicos, que acompanhavam os jovens durante o ano lectivo, e as<br />

equipas de trabalho durante os campos de férias teria sido uma forma<br />

eficaz para poupar tempo e resolver toda a imensidão de problemas.<br />

Fica mais uma vez a sugestão.<br />

Foram muitas as dificuldades, foi um facto. Era um trabalho ingrato, com<br />

enorme desgaste físico e psicológico mas, o esforço conjunto de todas<br />

as pessoas envolvidas (técnicos, monitores/animadores, colaboradores),<br />

foi responsável pela criação de mundos que não eram perfeitos mas<br />

onde despontavam sorrisos, em jovens que tinham esquecido ou já não<br />

se recordavam como se sorria ou brincava. Entravam «adultos à força»,<br />

reaprendiam a sorrir e a brincar, e voltavam para o seu mundo<br />

com uma lágrima teimosa a correr-lhes o rosto, como crianças e<br />

adolescentes que eram.<br />

Em 2004 fiz o meu último trabalho como monitor/animador de grupos<br />

<strong>PIEF</strong>. Um grupo misto com jovens do <strong>PIEF</strong> de dois concelhos do Alentejo,<br />

«velhos conhecidos» com os quais já tinha trabalhado noutros<br />

anos. Cessei nesse ano o meu trabalho directo com os grupos <strong>PIEF</strong> mas<br />

nunca cortei o «cordão umbilical» de ligação ao (agora) <strong>PETI</strong>.<br />

Em 2006, na recta final para a conclusão da licenciatura em sociologia,<br />

realizei o meu trabalho de seminário temático sobre a importância da<br />

sinalização de situações de trabalho infantil, focando essencialmente o


caso específico da região Alentejo. A colaboração do <strong>PETI</strong> e a disponibilidade<br />

apresentada pela EMM foi uma mais valia para a realização de<br />

tal estudo e a conclusão da licenciatura.<br />

Fica por contar um infindável número de histórias, acontecimentos e<br />

situações, mas a consciência da facilidade que tenho para cair em divagações,<br />

leva-me a ficar por aqui. Não, sem antes reconhecer a importância<br />

que teve este projecto na minha vida profissional e pessoal, como<br />

também, um instrumento precioso na luta e erradicação do fenómeno<br />

do trabalho infantil em Portugal.<br />

3 - CONTRA VENTOS E MARÉS - Antónia Ilhéu (presidente do conselho<br />

executivo duma EB 2,3)<br />

Quando em 2001 a direcção regional de educação do Alentejo e o PEETI<br />

desafiaram esta EB 2,3 a acolher no ano lectivo de 2001-02 uma turma<br />

<strong>PIEF</strong>, ficámos perplexos com o desafio mas, ao mesmo tempo, pensámos<br />

que tínhamos obrigação de dar o nosso contributo na procura de<br />

soluções para problemas tão graves como os que afectam os jovens<br />

propostos para <strong>PIEF</strong>.<br />

Tínhamos pela nossa frente uma «montanha» de problemas para resolver.<br />

«Tudo» era novo: falta de espaço para instalar a turma; um grupo de<br />

jovens marcados por histórias de vida complexas, para os quais a escola<br />

tinha deixado de fazer sentido; professores que não estavam habituados<br />

a trabalhar com uma turma em que todos os alunos eram problemáticos;<br />

programas para construir; manuais que não existiam; actividades<br />

a desenvolver e estratégias de actuação que tinham que motivar os<br />

jovens para permanecerem na escola e fazerem aprendizagens; professores<br />

«apanhados de surpresa» com o serviço que lhes fora distribuído…<br />

Foi preciso (e continua a ser) vontade e coragem para vencer preconceitos<br />

e levar pela frente a aventura em que nos lançámos. A escola<br />

tem responsabilidades que não pode escamotear: todos os alunos <strong>PIEF</strong><br />

abandonaram o sistema educativo sem terem completado a escolaridade<br />

básica. A escola é responsável por este falhanço dos jovens? O que<br />

fez para o evitar? É nossa convicção que, nos casos dos jovens que têm<br />

passado pela medida <strong>PIEF</strong> na nossa escola, a principal causa de aban-<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

125


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

126<br />

dono escolar é exterior a esta. Os jovens com quem temos trabalhado<br />

são provenientes de famílias complexas e desestruturadas em que as<br />

necessidades básicas não estão, muitas vezes, satisfeitas, as competências<br />

sociais não estão desenvolvidas e como tal as aprendizagens<br />

escolares não são uma prioridade.<br />

Assim sendo, e uma vez que os jovens voltaram à escola, é preciso<br />

«agarrá-los», ajudá-los a crescer e a caminhar para que as aprendizagens<br />

aconteçam e a escolaridade básica se complete. É uma aposta que<br />

exige um trabalho de uma equipa multidisciplinar em que cada jovem<br />

é o centro das atenções mas em que a sua família também não é<br />

esquecida. Em primeiro lugar é preciso «trabalhar a pessoa», ajudá-la<br />

a conhecer-se, a interagir com os outros, a saber estar em comunidade.<br />

Este é um dos aspectos que nem sempre é compreendido por alguns<br />

elementos da comunidade escolar e que se traduz em frases como:<br />

«são uns malcriados, não querem fazer nada e dão-lhes tudo»; «estes<br />

alunos dão mau ambiente à escola e afastam os bons alunos».<br />

É verdade que criam problemas na escola mas também é verdade<br />

que o <strong>PIEF</strong> tem sido a janela que se abre para alunos que estavam<br />

irremediavelmente perdidos para o sistema educativo e quem<br />

sabe se não estariam também perdidos para a sociedade. Aqui<br />

aprenderam a dar a volta ao percurso que lhes estava traçado prosseguindo<br />

alguns deles os seus estudos, e outros inserindo-se no mundo<br />

do trabalho com a escolaridade básica cumprida, podendo assim ingressar<br />

em profissões que de outra forma lhes estavam vedadas.<br />

Porque entendemos que a escola básica tem de contribuir para a formação<br />

de todos os jovens, temos abraçado esta causa, contra ventos e<br />

marés, procurando ajudar estes jovens a crescerem saudavelmente e a<br />

completarem a escolaridade básica. Entendemos que todos temos os<br />

mesmos direitos e à escola compete atenuar as diferenças que muitas<br />

vezes a sociedade não consegue esbater. Porque temos esta convicção,<br />

é que um grupo louvável de professores escolheu integrar uma equipa<br />

técnico-pedagógica que trabalha diariamente com estes jovens e se<br />

dedica abnegadamente a eles ajudando-os a trilhar um caminho que se<br />

faz de pequenos avanços e grandes recuos mas no qual depositam<br />

grandes esperanças.


4 - NÃO SEI O QUE SERIA - Ana Fátima Santos (TIL)<br />

Encarregada de educação de um jovem integrado numa turma <strong>PIEF</strong>, a<br />

D. Maria mostrou-se sempre colaborante no processo de acompanhamento<br />

do seu filho, o qual concluiu o terceiro ciclo no final do ano<br />

lectivo 2004-05. Considera que a integração do filho numa turma <strong>PIEF</strong><br />

alterou, no bom sentido, o rumo da sua vida.<br />

Ainda hoje mantém contactos com a TIL que conheceu numa altura de<br />

reestruturação familiar difícil. O pai do jovem tinha saído de casa inesperadamente.<br />

Ela, extremamente vulnerável na altura, sentia-se culpabilizada<br />

pela situação e justificava o abandono escolar do filho com esta<br />

situação. Talvez por isso, considerou a medida <strong>PIEF</strong> como promotora do<br />

sucesso escolar desde o primeiro momento de integração do filho numa<br />

turma de segundo ciclo.<br />

O percurso do João em <strong>PIEF</strong> foi marcado pela instabilidade emocional<br />

que sentia, promovida pelas alterações na composição do seu agregado<br />

familiar. Foi assim, fundamental, todo o trabalho que a TIL desenvolveu<br />

junto desta mãe, no sentido de promover o desenvolvimento de competências<br />

parentais que lhe permitissem lidar com as exigências quotidianas<br />

do filho e da sua nova vida familiar.<br />

Bastante reservada, foi com muita dificuldade que a D. Maria aprendeu a<br />

partilhar as suas dificuldades, tal como foi longo o percurso para aceitar<br />

ajuda para lidar com as suas questões pessoais, uma vez centralizar-se<br />

sempre nos problemas do filho.<br />

Ao longo dos quatro anos em que o jovem teve apoio directo do <strong>PETI</strong>,<br />

a D. Maria aprendeu a procurar autonomamente o suporte dos técnicos.<br />

Actualmente, superou a maior parte das suas dificuldades, revelando-se<br />

uma pessoa muito mais forte e com maior capacidade para expressar<br />

os seus sentimentos.<br />

Em relação ao filho, encontra-se feliz com o facto deste frequentar um<br />

curso profissional na sua área de interesse (técnico de vídeo, audio-<br />

-produção e pós-produção) que lhe dará, também, a certificação do<br />

décimo segundo ano. Reconhece a sua própria evolução quando afirma<br />

que «não sei o que seria do meu João se não tivesse sido o <strong>PIEF</strong>».<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

127


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

128<br />

5 - TRABALHAR PARA SABER - Ana Fátima Santos (TIL)<br />

Passaram quase três anos desde que o Rui, filho da D. Francisca e do<br />

Sr. José, concluiu o <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo numa localidade do Alentejo,<br />

no ano lectivo 2004-05. Actualmente, ainda consideram que a integração<br />

do seu filho alterou no bom sentido o rumo das suas vidas, mantendo<br />

contacto com a TIL como recurso e apoio à família e ao jovem…<br />

Esta família era então, tal como agora, composta <strong>pelo</strong>s pais e uma irmã<br />

mais velha. Eles, sempre trabalharam como vendedores ambulantes e,<br />

a irmã, é actualmente estudante universitária. Trata-se de um agregado<br />

sem dificuldades económicas e com um ambiente familiar estável.<br />

Em 2001 a EMM conheceu-os, após ter recebido sinalização do abandono<br />

escolar do Rui, com referência a existirem indícios de que ele, então<br />

com catorze anos, se encontrava a trabalhar. A mãe foi sempre a figura<br />

de referência nos contactos estabelecidos, assumindo o pai um papel<br />

mais distante em relação ao acompanhamento da vida escolar do filho.<br />

Apurou-se que o abandono escolar do Rui se deveu a uma decisão da<br />

mãe, uma vez que «não andava a fazer nada na escola, vai trabalhar<br />

para saber o que custa a vida». O trabalho encontrado na<br />

altura foi ajudar um amigo do pai que arranjava electrodomésticos,<br />

sendo também a forma encontrada <strong>pelo</strong> Rui para ter dinheiro e comprar<br />

um carro telecomandado.<br />

O jovem ingressou no <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo no ano lectivo 2001-02.<br />

A mãe sentiu, desde o primeiro momento, que a relação próxima estabelecida<br />

entre o jovem e a equipa técnico pedagógica, tentava dar<br />

resposta às suas necessidades: «acontecia qualquer coisa diziam-me<br />

logo, assim nem faltava».<br />

O controlo da assiduidade foi um dos aspectos importantes a trabalhar<br />

inicialmente, tal como a forte desmotivação pelas tarefas escolares e<br />

consequente desinvestimento. «No <strong>PIEF</strong>, foi fazendo… Eu sabia sempre<br />

tudo, caso se portasse mal, como era logo avisada, acertava logo as<br />

contas com ele». Assim, foi notório o papel de autoridade que a mãe<br />

do Rui desempenhava junto dele, tal como foi sempre evidente para a<br />

equipa técnico pedagógica que havia um acompanhamento eficaz da<br />

situação do jovem e co-responsabilização desta mãe no acompanha-


mento da sua vida escolar. O facto de se ter precipitado, como mais<br />

tarde admitiu, em retirar o filho da escola, deveu-se ao facto de não<br />

saber como castigar o filho e fazer com que ele valorizasse a escola,<br />

considerando-a promotora de um futuro profissional de sucesso.<br />

Esta mãe revelou-se muito preocupada com um aspecto difícil de<br />

trabalhar pela equipa, no decorrer do percurso do Rui em <strong>PIEF</strong>. Para ela,<br />

a turma <strong>PIEF</strong> era bastante estigmatizada pela população local e preocupava-a<br />

muito que «o meu Rui seja metido no mesmo saco».<br />

Olhando agora para trás, foi muito positivo o trajecto que esta mãe fez<br />

na construção da sua imagem do <strong>PIEF</strong>, inicialmente receosa por possíveis<br />

comentários, acompanhou o seu filho e levou-o a defender junto<br />

de todos que «andar em <strong>PIEF</strong> é um privilégio». O jovem concluiu o<br />

segundo ciclo e posteriormente concluiu também o terceiro ciclo.<br />

Na conclusão do <strong>PIEF</strong>, no ano lectivo 2004-05, foi também possível<br />

contar com a colaboração da mãe na decisão pós-<strong>PIEF</strong>. O Rui decidiu<br />

matricular-se num curso profissional de animação sócio-cultural, numa<br />

escola profissional local. O curso acabou por não corresponder às suas<br />

expectativas e resolveu desistir do mesmo, ainda no decorrer do primeiro<br />

período.<br />

Até hoje, com regularidade, a D. Francisca tem mantido contacto com<br />

a TIL do <strong>PIEF</strong>, recorrendo aos técnicos quando precisa de ajuda para<br />

algum assunto relacionado com o filho, ou até mesmo com a filha, tal<br />

como aconteceu quando esta concorreu ao ensino superior. No último<br />

ano, inesperadamente, o Rui sofreu um acidente vascular-cerebral e,<br />

mais uma vez, a TIL foi um suporte importante em termos de apoio à<br />

família e na procura de recursos no âmbito da reabilitação dele.<br />

Actualmente, o Rui encontra-se em fase de recuperação. Aguarda com<br />

expectativa, a oferta formativa do Centro de Formação Profissional local,<br />

para que se possa matricular num curso profissional que lhe dê equivalência<br />

ao 12º ano.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

130<br />

6 - UMA DAS NOSSAS ALEGRIAS - Maria da Conceição Queiroga Valério<br />

de Carvalho (professora)<br />

No ano 2001, quando o <strong>PIEF</strong> dava os primeiros passos numa região do<br />

norte do país, uma professora, pela sua sensibilidade e perfil, foi desafiada<br />

a leccionar e simultaneamente a coordenar a equipa pedagógica<br />

que desempenharia um papel fundamental na construção de uma<br />

alternativa efectiva para muitos jovens. Os percursos destes tinham-se<br />

desviado da escola e aproximado do trabalho e de outras problemáticas.<br />

A experiência que se prolongou durante três anos, por opção<br />

própria da docente, deixou marcas e mudanças de práticas, e é descrita<br />

na primeira pessoa, dando ênfase ao processo dinâmico, com avanços<br />

e retrocessos, mas cuja construção foi sempre envolvendo os diferentes<br />

intervenientes.<br />

O meu contacto com o <strong>PIEF</strong> foi aquando da abordagem da equipa do<br />

PEETI, que deu a conhecer os objectivos e, genericamente, as realidades<br />

dos jovens a incluir no plano. A escola em que lecciono, sensibilizada<br />

com esta problemática, e uma vez que já fazia parte da rede de<br />

escolas promotoras de saúde, contactou então professores para leccionar<br />

estas turmas. Na altura, realizaram-se reuniões, onde estiveram representados<br />

todos os parceiros, para elaboração e aprovação da ficha de<br />

projecto.<br />

O PEETI, através dum trabalho em parceria com diversas instituições,<br />

procurava sensibilizar os jovens, em situação de abandono escolar e de<br />

trabalho infantil, e as respectivas famílias, para o regresso a um percurso<br />

educativo-formativo.<br />

Numa primeira fase foi feita uma avaliação diagnóstica, na qual se<br />

desenvolveu um mini processo de orientação vocacional, e uma avaliação<br />

do nível de conhecimentos e de competências escolares dos alunos,<br />

em particular nas áreas de português e de matemática. Esta fase deu-nos<br />

indicações importantes acerca da realidade dos alunos, entre outras, ao<br />

nível das lacunas e interesses. Numa segunda fase, foi feita uma definição<br />

de programas, tendo em atenção os indicadores obtidos na<br />

primeira fase e as perspectivas de futura formação e enquadramento<br />

profissional. O <strong>PIEF</strong> tinha como objectivo geral dotar os alunos de<br />

competências ao nível do saber-ser, saber-estar e saber-fazer. No final,


os alunos obtiveram certificação escolar correspondente ao segundo ou<br />

terceiro ciclos, consoante os objectivos que se pretendiam atingir.<br />

A equipa pedagógica era formada por professores da escola. O acompanhamento<br />

dos alunos era assegurado por técnicas do PEETI e por uma<br />

monitora com formação na área da psicologia, que leccionava as áreas<br />

de desenvolvimento pessoal e social, mundo actual e exploração vocacional,<br />

como complemento à componente curricular.<br />

Os programas eram vocacionados para a realidade dos alunos, que<br />

tinham idades compreendidas entre os treze e os dezasseis anos. Eram<br />

alunos com uma baixa auto-estima, grande parte deles com problemas<br />

de índole familiar e alguns com problemas de toxicodependência. Todos<br />

eles apresentavam situações de retenções repetidas, seguidas de<br />

abandono escolar e com risco de trabalho infantil; alguns deles estavam<br />

já efectivamente a trabalhar.<br />

Houve alguns constrangimentos relacionados com a baixa auto-estima<br />

dos jovens, desmotivação e desvalorização do papel da escola. No<br />

início, grande parte destes jovens não cumpria as regras básicas para<br />

o bom funcionamento/ambiente de trabalho das aulas; são de realçar<br />

as faltas de pontualidade, de material e de regras de conduta, entre<br />

outras.<br />

O percurso não foi feito sem dificuldades... No início, os professores<br />

sentiram-se um pouco desorientados face a esta nova realidade. A<br />

persistência em cativar os alunos, no sentido de irem às aulas e de<br />

cumprirem minimamente as regras de conduta surtiu os seus efeitos,<br />

não sem antes haver fases de retrocesso. Ao longo do projecto, a<br />

equipa pedagógica reunia várias vezes para analisar e redefinir estratégias,<br />

fazer o ponto da situação e proceder à avaliação qualitativa. No<br />

decurso do programa, os jovens foram interiorizando, aos poucos, a<br />

mensagem e os objectivos.<br />

Ao longo do tempo em que implementámos o projecto, constatámos<br />

que estes jovens não aceitavam bem os espaços escolares, por a escola<br />

continuar a ter, para eles, uma conotação negativa. Pelo facto de as<br />

aulas funcionarem em espaços não escolares, a assiduidade e o<br />

interesse aumentavam.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

131


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

132<br />

Uma das motivações destes jovens era a integração em escolas profissionais<br />

tendo três alunas entrado num centro de formação profissional<br />

na área de cabeleireiro. Todos os outros pretendiam concluir o nono ano<br />

integrados no <strong>PIEF</strong>.<br />

Era fundamental apostar na componente prática. Como estratégia de<br />

leccionação, os professores recorreram à leitura e à análise de obras ou<br />

textos que reflectiam, de algum modo, as suas vivências, tais como, «A<br />

lua de Joana», «O diário de Sofia e companhia», entre outras, e à apresentação<br />

e discussão de problemas de matemática ligados também à<br />

sua realidade. Promoveram-se debates sobre temas do interesse dos<br />

alunos e teatralizações, actividades em que eles participavam com<br />

grande interesse e empenho.<br />

Para mim, esta experiência foi uma mais-valia, no sentido de<br />

conhecer realidades distintas das que se vivem numa escola.<br />

Mais importante do que isso, sei que, volvidos alguns anos, uma<br />

grande parte dos alunos está integrada no mercado de trabalho<br />

e que alguns deles voltaram à escola, e estão agora a concluir a<br />

escolaridade básica. O sucesso destes jovens passou a ser também<br />

uma das nossas alegrias enquanto docentes e formadores.<br />

7 - DADA A ESPERANÇA - José Paulo Mendes Rico (presidente de asso-<br />

ciação)<br />

Sou presidente duma associação juvenil numa cidade do Alentejo. Desde<br />

o ano lectivo 2002-03 que a minha associação é entidade gestora de<br />

turmas <strong>PIEF</strong> no concelho e, consequentemente, parceira do <strong>PETI</strong>. Neste<br />

testemunho, poderia escrever sobre a gestão dos sucessivos orçamentos:<br />

as dificuldades encontradas no dia-a-dia, o relacionamento com a segurança<br />

social e as finanças, a cooperação com o técnico oficial de contas,<br />

o diálogo com a EB 2,3 e, por inerência, com a direcção regional de<br />

educação do Alentejo, e as demais entidades públicas e privadas com<br />

as quais fomos interagindo para cumprir os objectivos orçamentais. Em<br />

alternativa, como presidente da direcção e responsável por esta parceria,<br />

prefiro reconhecer o privilégio que tive em participar e contribuir<br />

para um projecto desta natureza.


Esta associação é uma entidade sem fins lucrativos, constituída juridicamente.<br />

No entanto, é uma das valências da paróquia, à qual também<br />

está agregada uma IPSS. Este enquadramento é importante para se<br />

perceber que a associação ultrapassou os limites da gestão económica<br />

a que estava obrigada <strong>pelo</strong> protocolo de cooperação institucional. Por<br />

outro lado, em virtude de ser professor do quadro de nomeação definitiva<br />

da EB 2,3, além de presidente da direcção da associação, houve<br />

vantagem no diálogo com o estabelecimento de ensino ao qual os alunos<br />

pertenciam.<br />

O facto da escola não possuir condições físicas para albergar três turmas<br />

<strong>PIEF</strong> (uma do segundo ciclo e duas do terceiro ciclo) possibilitou à<br />

associação acolher na sua sede alguns destes jovens (duas turmas),<br />

tendo-se revelado uma experiência extremamente enriquecedora. Da<br />

observação diária que fiz, foi muito gratificante ver jovens «marcados»<br />

pelas dificuldades económicas e sociais crescerem, integrarem-se<br />

na comunidade local e terem perspectivas de futuro.<br />

Foi igualmente gratificante verificar o empenho, a luta diária<br />

dos professores, funcionários, técnicos e demais parceiros, que<br />

acreditaram que era possível modificar mentalidades, alterar<br />

comportamentos.<br />

Além das competências escolares, foi bem mais importante a aquisição<br />

de competências sociais e o reconhecimento por parte dos intervenientes,<br />

do papel da associação (entidade gestora), em colaboração<br />

com a IPSS. Sendo uma associação juvenil, não é de estranhar que<br />

estes jovens a adoptassem como «segunda casa», como um espaço<br />

deles, onde se sentiram bem.<br />

Assim, «a escola saiu à rua» foi o acontecimento que permitiu renovar<br />

a socialização destes jovens, ao adquirirem ferramentas para continuarem<br />

a estudar ou aprenderem uma profissão. A cada um, foi dada a<br />

esperança de concretizar os seus sonhos, de ter um futuro melhor.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

133


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

134<br />

8 - EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL - Faisal Aboobakar (mestre em gestão<br />

da formação desportiva, professor)<br />

O encontro com o <strong>PIEF</strong> aconteceu no início do ano lectivo 2002-03.<br />

Cheguei àquela cidade alentejana para me apresentar na escola e, em<br />

conversa com um elemento do conselho executivo, informei que tinha<br />

estado a trabalhar com turmas dos currículos alternativos durante três<br />

anos. Foi nessa altura que fiquei a saber da existência do <strong>PIEF</strong> e das<br />

duas turmas para esse ano lectivo.<br />

Talvez devido à minha experiência anterior, foi-me proposto integrar<br />

uma delas, assumindo a direcção de turma. Aceitei, sem hesitar. Trabalhar<br />

com alunos que por uma razão ou outra tinham perdido a motivação<br />

para estudar tinha sido uma experiência gratificante, sobretudo, <strong>pelo</strong><br />

facto de ter contribuído para o reencaminhamento de uns e a motivação<br />

de outros.<br />

O primeiro ano foi particularmente difícil. O <strong>PIEF</strong> era novo na escola, as<br />

turmas eram constituídas por alunos que acumulavam problemas de<br />

indisciplina, insucesso escolar, abandono escolar e, por isso, sempre<br />

que algo acontecia, até prova em contrário, os culpados «eram os <strong>PIEF</strong>».<br />

No início houve necessidade de desmistificar a imagem diabolizada<br />

criada à volta dos alunos, tornando perceptível para todos que os<br />

«<strong>PIEF</strong>» eram alunos da escola, do sistema educativo, e que cabia à<br />

escola assumir o seu papel educativo.<br />

Foi desenvolvido um trabalho de informação e sensibilização para os<br />

objectivos do <strong>PIEF</strong> junto dos funcionários, professores, outros alunos e<br />

até dos encarregados de educação. Simultaneamente, foram desenvolvidos<br />

e implementados os projectos curriculares de turma e os planos<br />

individuais de educação e formação.<br />

No final do primeiro ano (dos quatro que trabalhei neste <strong>PIEF</strong>) propus<br />

a realização, por parte das turmas <strong>PIEF</strong>, de um festival de encerramento<br />

do ano lectivo. Seria uma óptima oportunidade dos alunos<br />

mostrarem a sua face positiva, isto é, a sua capacidade de organizar,<br />

dinamizar actividades e de mostrar as suas competências. A actividade<br />

foi um sucesso. A escola «parou» e numa manhã concentrou-se no<br />

pavilhão desportivo para assistir e participar em diversas actividades,


desportivas e culturais. O processo organizativo no qual estiveram<br />

envolvidos alunos e professores foi sem dúvida um momento revelador.<br />

Para os alunos foi a auto-percepção das suas capacidades; para os<br />

professores a possibilidade de observarem o nível de aquisição das<br />

competências previstas nos planos individuais dos alunos.<br />

Resolvidos os problemas de integração e aceitação do <strong>PIEF</strong> na escola,<br />

no ano seguinte colocou-se um novo desafio: a ligação com a comunidade.<br />

Nesse particular desafio promoveu-se a colocação dos alunos em<br />

experiências de exploração vocacional em empresas e instituições da<br />

região.<br />

Mais uma vez, a fama precedia os nossos alunos mas, com a colaboração<br />

do IEFP, foi possível encontrar parceiros e assim proporcionar aos nossos<br />

jovens um contacto directo com a realidade do mundo do trabalho.<br />

Estas experiências contribuíram para o desenvolvimento dos nossos<br />

alunos e, em muitos casos, funcionaram como factor de motivação para<br />

a frequência da escola.<br />

A implementação e optimização da exploração vocacional foi muito<br />

importante pois, os alunos, quando colocados nas empresas, autarquia<br />

e nas IPSS, puderam revelar competências que eles próprios desconheciam<br />

e em muitos casos surpreender as entidades hospedeiras.<br />

Deste modo, também ficou relativamente resolvida a questão da imagem<br />

exterior e ligação com a comunidade. As actividades de exploração<br />

vocacional permitiram igualmente a valorização dos alunos junto<br />

dos encarregados de educação que, ao longo de anos, já se<br />

haviam habituado a receberem informações negativas quando<br />

se deslocavam à escola. De resto, desde o início que a filosofia<br />

defendida no <strong>PIEF</strong> foi a valorização dos aspectos positivos.<br />

Falar das actividades desenvolvidas ao longo de quatro anos, seria<br />

exaustivo; destacar certas actividades, uma tarefa difícil. No entanto,<br />

algumas foram marcantes.<br />

No quarto ano de existência do <strong>PIEF</strong> na escola, foi implementado um<br />

jardim num espaço ermo e quase abandonado. Este projecto permitiu<br />

promover um trabalho de interdisciplinaridade em cada turma e de<br />

cooperação entre a turma do segundo ciclo e a de terceiro. Em todo o<br />

processo, desde o desenho do jardim, escolha das espécies florais<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

135


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

136<br />

utilizadas e o próprio planeamento das actividades, foram colocados<br />

meios e recursos disponibilizados pela estrutura de coordenação regional<br />

do <strong>PIEF</strong>, câmara municipal e escola.<br />

Como professor e coordenador de grupos-turma do <strong>PIEF</strong> de 2002 a<br />

2006, tendo chegado a «comandar as tropas» de três grupos-turma<br />

<strong>PIEF</strong> em simultâneo, hoje com trinta e seis anos de idade, do ponto de<br />

vista pessoal, considero que a passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> significou um<br />

enorme crescimento e desenvolvimento profissional. A relação pedagógica<br />

com os alunos foi muito rica, um desafio constante, na medida em<br />

que os alunos do <strong>PIEF</strong> detinham patrimónios particulares com problemas<br />

diversificados que convocavam o professor para tarefas de pesquisa,<br />

planeamento e inovação permanente. Outro aspecto muito significativo<br />

foi o papel de coordenador do <strong>PIEF</strong> na Escola. Entre todas as tarefas,<br />

coordenar várias equipas de professores procurando que todas as turmas<br />

<strong>PIEF</strong> funcionassem como um todo promovendo assim um verdadeiro<br />

trabalho de equipa foi um marco importante. Enquanto professor passar<br />

<strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> foi uma experiência inesquecível!<br />

9 - FORMAÇÃO CONTÍNUA - Sandra Caeiro (técnica da EMM)<br />

O meu primeiro contacto com o <strong>PIEF</strong> ocorreu no ano lectivo 2002-03,<br />

quando fiquei colocada numa EB 2,3 duma cidade alentejana. O horário<br />

que me foi atribuído contemplava, entre outras turmas, um grupo-<br />

-turma <strong>PIEF</strong> cuja existência desconhecia. O primeiro impacto foi muito<br />

difícil. Durante a minha experiência profissional, já tinha trabalhado<br />

com jovens indisciplinados e conflituosos, mas nunca tinha trabalhado<br />

numa turma só com jovens problemáticos.<br />

Pouco a pouco fui-me integrando na metodologia <strong>PIEF</strong>: a estrutura<br />

curricular era diferente da do currículo nacional do ensino básico;<br />

existia a disciplina de tecnologias de informação e comunicação, na<br />

qual todos os professores do conselho de turma estavam presentes; a<br />

novidade trazida pela área de formação vocacional, cujo objectivo era<br />

a experimentação de diferentes áreas de interesse dos jovens; a equipa<br />

reunia semanalmente e, ocasionalmente, assistiam às reuniões dois<br />

elementos da EMM do <strong>PETI</strong>, uma psicóloga e uma professora.


O início do ano lectivo foi bastante tenso. Uma grande parte dos jovens<br />

estava revoltada com a situação de regresso à escola e, este «curso»,<br />

não correspondia às suas expectativas, pois queriam desenvolver apenas<br />

uma área de interesse mas, afinal, tinham também disciplinas<br />

como língua portuguesa e matemática.<br />

Eu era uma das professoras de educação artística e formação vocacional.<br />

Quanto à primeira, não existiu qualquer problema, pois era do agrado<br />

da maioria dos jovens. No que diz respeito à formação vocacional a<br />

situação foi diferente. Não era possível desenvolver os interesses da<br />

maioria dos jovens, como mecânica, electricidade e informática, pois na<br />

escola não existiam condições físicas para a sua implementação. Deste<br />

modo, cerca de dois meses após o início das aulas, foi possível expandir<br />

as actividades de formação vocacional para os bombeiros voluntários<br />

da cidade e, posteriormente, para os ateliês na Santa Casa da Misericórdia<br />

do concelho.<br />

Com o passar do tempo, fui-me apercebendo das complexas situações<br />

familiares dos meus alunos e estabeleceu-se um relacionamento com<br />

eles que permitiu a diminuição dos comportamentos problemáticos.<br />

O meu trabalho com esta turma cessou em Fevereiro de 2003. Estava<br />

grávida e fiquei em licença de maternidade até ao final do ano lectivo.<br />

Três anos depois, no final do ano lectivo 2005-06, fui surpreendida com<br />

o convite da representante do <strong>PETI</strong> na região Alentejo para integrar a<br />

EMM, o que acabei por aceitar após alguma reflexão e consciência da<br />

necessidade de compreender ainda melhor a realidade dos jovens com<br />

os quais trabalhava no dia-a-dia.<br />

Deste modo, no ano lectivo 2006-07 integrei a EMM do Alto Alentejo, o<br />

que me permitiu uma «formação contínua» sobre a problemática do<br />

abandono escolar e do trabalho infantil. Neste âmbito, percebi bem o<br />

percurso que é necessário fazer para a integração de um jovem numa<br />

turma <strong>PIEF</strong>, desde a sinalização ao diagnóstico escolar e sócio-familiar,<br />

ao encaminhamento e ao apoio e acompanhamento na implementação<br />

e desenvolvimento da medida <strong>PIEF</strong>...<br />

Durante este apoio e acompanhamento, adquiri nova perspectiva sobre<br />

o modo de funcionamento desta medida, bem diferente da que tinha<br />

experimentado no ano lectivo 2002-03, destacando resumidamente a<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

137


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

138<br />

leccionação em par pedagógico, a existência de um TIL e um fundo de<br />

apoio económico.<br />

Esta experiência, enquanto elemento da EMM, muito significativa em<br />

termos profissionais, contribuiu para uma nova visão sobre o<br />

abandono escolar e suas causas. Neste sentido, embora tenha sido<br />

muito enriquecedora, sem dúvida, a experiência adquirida na passagem<br />

pela EMM, sinto particularmente que a minha participação neste trabalho<br />

é bem mais relevante enquanto professora, actuando agora de um modo<br />

mais estreito com estes jovens, <strong>pelo</strong> que, aceitei um destacamento para<br />

professora de uma turma <strong>PIEF</strong>, no ano lectivo 2007-08.<br />

10 - O BARCO ESTÁ PARA PÔR NO MAR, HÁ QUE O DEIXAR NAVEGAR…<br />

- Fátima Miranda (técnica da EMM)<br />

Com uma vida tecida em fábricas na região centro litoral do país, a<br />

Conceição fica desempregada com quarenta e sete anos de idade.<br />

Numa fase complicada da sua vida, ganha novo rumo e novo alento e<br />

coloca-se à disposição de todos os que a procuram com a sua humildade,<br />

carinho e capacidade de trabalho. É neste contexto que a EMM<br />

aparece no seu caminho e a cativa para assumir o trabalho de coordenadora<br />

local do <strong>PIEF</strong>, quebrando a regra destas funções serem assumidas<br />

por alguém do corpo docente.<br />

O envolvimento e o trabalho desenvolvido enquanto coordenadora local<br />

da turma <strong>PIEF</strong> que decorreu no ano lectivo 2002-03, bem como, as<br />

razões que conduziram à sua integração na equipa, ilustram as opções<br />

tomadas para o funcionamento da turma <strong>PIEF</strong>.<br />

A Conceição aderiu totalmente ao espírito do <strong>PIEF</strong>, tendo sido não só<br />

coordenadora, mas também educadora, amiga, mãe e confidente de todos<br />

os jovens que integraram o <strong>PIEF</strong>, bem como, das suas famílias. Ao mesmo<br />

tempo, soube como ganhar respeito e impor as regras necessárias ao<br />

bom funcionamento da turma <strong>PIEF</strong>. Num projecto que contou com muitas<br />

parcerias e muita gente empenhada no seu sucesso é à Conceição que<br />

se deve o mérito de estimular e aglutinar estes contributos.<br />

Se o <strong>PIEF</strong> foi marcado por esta senhora, o trabalho que aqui desenvolveu<br />

não se esgotou com a sua conclusão. A relação que estabeleceu


com estes jovens prolongou-se no tempo, mantendo ainda hoje a<br />

amizade com muitos deles e suas famílias, continuando a ser para<br />

alguns o único apoio com que podem contar.<br />

Quando a escola sede que iria acolher o <strong>PIEF</strong> recusou receber os jovens<br />

nas suas instalações, a EMM teve de encontrar alternativas de espaço.<br />

Nesse sentido, procurou encontrar uma solução junto da rede social do<br />

concelho. Aí, foi consensual o exercício de funções de coordenação local<br />

pela Conceição.<br />

Aceitou esta responsabilidade com humildade e satisfação e refere-nos<br />

a sua experiência como um tempo de aprendizagem muito grande,<br />

sentindo como maior fonte de gratificação o tempo que passou com<br />

os jovens. Passados já quatro anos continua a saber qual o rumo que<br />

a vida preparou para eles e a acompanhar de perto algumas situações.<br />

Também a relação estabelecida com alguns técnicos de intervenção a<br />

nível local se perpetuou no tempo e, muitos deles, tal como eu própria,<br />

fomos pontualmente recorrendo à Conceição para, conjuntamente,<br />

pensarmos em formas adaptadas de intervenção junto de jovens e<br />

famílias residentes no concelho que ela tão bem conhece.<br />

Talvez pela sua experiência académica ter tantos pontos de semelhança<br />

com estes jovens, a proximidade fosse tão fácil de conseguir. Fez a então<br />

designada quarta classe e o exame de admissão, tendo frequentado o<br />

primeiro ano do curso geral de comércio. Aos catorze anos a vida obrigou-a<br />

a começar a trabalhar numa empresa vidreira como paquete de<br />

recados. A Conceição diz que a sua vida fechou o círculo: «comecei a<br />

minha carreira profissional como paquete de recados e vou terminá-la<br />

como paquete de recados», a sua função actual na câmara municipal.<br />

Aos quinze anos, por vontade própria e com o apoio do pai, apesar das<br />

dificuldades colocadas <strong>pelo</strong>s patrões, foi estudar à noite e concluiu<br />

então o curso geral de comércio, continuando a trabalhar em diversas<br />

empresas vidreiras. Em 1988, sendo sócia duma associação cultural e<br />

desportiva, apresentou à direcção um projecto de realização de uma<br />

pequena exposição de divulgação de artesanato que simultaneamente<br />

servisse para angariar fundos para a mesma. Essa ideia foi crescendo,<br />

assumindo desde então a Conceição a coordenação e/ou execução das<br />

diligências necessárias para tornar possível o que é hoje em dia a feira<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

140<br />

nacional de gastronomia e artesanato daquela localidade, já na sua<br />

décima oitava edição.<br />

O espírito de empreendedorismo, de vontade e de capacidade de trabalho,<br />

foram colocados ao serviço da medida <strong>PIEF</strong>, quando a turma de<br />

segundo ciclo decorreu nas instalações da associação, assumindo nessa<br />

altura a Conceição funções na direcção. A Conceição diz que a vida lhe<br />

tem trazido muitos bens não materiais que a fazem ser feliz e que,<br />

quando se empenha numa tarefa, nunca a deixa por concluir, sabendo<br />

recorrer às ajudas necessárias. Muitas vezes, perante as dificuldades,<br />

apenas referia: «eu disse que fazia, é para fazer!».<br />

Ao desempenhar funções de coordenação local do <strong>PIEF</strong> enfrentou como<br />

maior dificuldade a elaboração de documentos, o compreender questões<br />

«mais técnicas e burocráticas», mas que foram sendo ultrapassados,<br />

pois não tinha receio de solicitar ajuda sempre que necessário, nomeadamente<br />

à EMM. Os contactos com jovens, famílias, técnicos de outras<br />

instituições foram sentidos como fáceis e gratificantes, tendo recebido<br />

de todos um respeito muito grande.<br />

À Conceição coube a tarefa de gerir uma equipa técnico pedagógica<br />

bastante extensa. Contámos com a intervenção de nove técnicos especializados<br />

(um monitor, seis formadores para a oficina de artes, um<br />

formador de informática, um professor de primeiro ciclo e uma conselheira<br />

de orientação profissional).<br />

A equipa pedagógica foi convidada <strong>pelo</strong> conselho executivo a desempenhar<br />

funções junto da turma <strong>PIEF</strong> «imposta» a esta escola. A monitora<br />

e a coordenadora local do projecto tiveram participação em todas as<br />

reuniões e actividades do projecto. A Conceição acompanhou inclusive<br />

os jovens nas actividades extra curriculares e nas visitas de estudo.<br />

O desenho da estrutura curricular, metodologias e estratégias, contou<br />

com a participação e envolvimento de todos os elementos da equipa<br />

técnico pedagógica bem como dos restantes parceiros. Também aqui o<br />

envolvimento da Conceição se tornou fundamental, não só devido às suas<br />

características pessoais, bem como, à facilidade em agregar vontades.<br />

Conseguimos que a oficina de artes e ofícios ocupasse duas tardes e um<br />

dia completo do horário semanal dos jovens e se concretizasse por


módulos: vitral, fusão, pintura, mosaico, gravação e cerâmica. Estas<br />

actividades decorrerem nas instalações de uma escola profissional e<br />

artística, onde contámos com grande disponibilidade de formadores,<br />

instalações e materiais. A direcção da escola recebeu-nos de «braços<br />

abertos» e, também, nesta atitude pudemos encontrar um pouco da<br />

influência da Conceição, que tinha uma história de articulação e<br />

trabalho com esta escola. Os nossos jovens puderam participar de<br />

perto na organização da feira e visitar os seus stands com actuação ao<br />

vivo de artesãos.<br />

Foram organizados três momentos formativos ao longo do ano para a<br />

equipa técnico pedagógica, monitores e equipa de coordenação local,<br />

com um formador externo convidado, que foi um excelente suporte de<br />

reflexão e trabalho para todos.<br />

Se as actividades do <strong>PIEF</strong> decorreram fora do espaço escola, a EMM<br />

contou com o apoio da Conceição para conseguir dinamizar um grupo<br />

de parcerias considerável que permitiu colmatar as limitações impostas<br />

pelas instalações utilizadas e que possibilitou diversificar o trabalho<br />

com estes jovens.<br />

Sendo natural do concelho, conhecia bem os recursos locais e as vivências<br />

das famílias, pois trabalhou nas fábricas, como a maior parte delas.<br />

Essa vivência deu-lhe uma sabedoria na actuação pois «era do povo, tal<br />

como eles», como dizia muitas vezes.<br />

Em síntese, verificámos que a implementação desta turma <strong>PIEF</strong> obteve<br />

ganhos consideráveis através do envolvimento muito próximo de agentes<br />

locais, que conhecendo realidades em maior profundidade puderam<br />

dar contributos essenciais ao seu sucesso. Também as características<br />

pessoais e relacionais se configuram como um factor importantíssimo<br />

a cuidar, quando se trabalha com o tipo de problemáticas<br />

que o <strong>PIEF</strong> geralmente congrega. As dificuldades, são uma constante<br />

na nossa área de intervenção e no caso concreto desta turma <strong>PIEF</strong>, a<br />

Conceição, coordenadora local, tinha uma grande determinação em<br />

ultrapassar os obstáculos e encontrar alternativas de actuação que<br />

costumava exprimir com uma frase que bem recordo: «o barco está<br />

para pôr no mar, há que o deixar navegar…».<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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11 - AOS MENINOS DO <strong>PIEF</strong> - Helena Milheiro Almeida e Sandra Mendes<br />

(técnicas da EMM)<br />

Albano Francisco de Sousa foi professor de matemática e carpintaria do<br />

<strong>PIEF</strong> que decorreu numa escola EB 2,3 da área metropolitana do Porto,<br />

no ano lectivo 2002-03. No final do ano, elaborou um pequeno livro de<br />

poemas que dedicou a todos os elementos envolvidos: professores, TIL,<br />

alunos e EMM. É desse livro que se retira o poema «Aos Meninos do<br />

<strong>PIEF</strong>» que aqui se apresenta, sendo ele um reflexo das marcas que a<br />

passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> deixaram neste professor.<br />

«Hoje, de manhã bem cedo, escrevo para ti e por ti, menino do <strong>PIEF</strong>.<br />

Escrevo para dizer-te o quanto ensinando-te, aprendo contigo!<br />

Como és generoso! Como és casmurro!<br />

Como és difícil! Será que poderias ser de outra forma?<br />

Poderias ser mais meigo, mais amoroso, mais envolvido, mais calmo?<br />

Hoje, eu, já sei a resposta, mas não vou dizer-ta! Terás que ser tu, no<br />

longo caminho que trilharás durante a tua vida, a descobri-la!<br />

Como sois difíceis! Todos tão diferentes mas todos tão iguais!<br />

A grande janela que te abriram no início deste ano lectivo, irá ajudar-te<br />

mostrando-te o rumo a seguir, o caminho a trilhar e vai ajudar-te a<br />

manter-te na direcção certa.<br />

Com a minha ajuda, com a tua ajuda, com a ajuda de todos os teus<br />

professores vais caminhar mais seguro, mais calmo, mais envolvido e<br />

mais amoroso, até atingires a tua meta.<br />

É por ti, por mim e por todos que agora registo este sentimento de<br />

alegria.<br />

O ter-te descoberto, o ter-te ensinado e contigo ter aprendido provoca-me<br />

um bem-estar interior e dá-me a certeza de que irei saldar a minha, já<br />

antiga, dívida.<br />

Boa viagem! Vai em paz e caminha com alma, voando no teu sonho!<br />

Por tudo o que contigo descobri, pela viagem que fiz ao meu passado,<br />

muito obrigado!»<br />

Ensinar matemática a um grupo de jovens oriundo de bairros sociais<br />

problemáticos, que tinham associado à sua situação de abandono escolar<br />

e trabalho infantil, comportamentos disruptivos, percursos de pré-delinquência,<br />

falta de competências pessoais e sociais, rejeição pela instituição


escola e desrespeito pelas figuras de autoridade, não foi fácil. Podemos<br />

mesmo afirmar que numa primeira instância houve confronto, choque<br />

e rejeição de parte a parte. Professor do quadro de nomeação definitiva,<br />

com vários anos de serviço e alguns de idade, abordou o grupo e<br />

os conteúdos da disciplina de forma demasiado tradicional. O currículo<br />

foi decalcado do ensino regular, era excessivamente teórico e leccionado<br />

através de métodos expositivos. Todos estes factores conduziram<br />

ao inevitável: indisciplina dentro e fora da sala de aula.<br />

No entanto, a mensagem que o professor Albano lança na nota introdutória<br />

do seu livro e que encerra um ciclo de experiências e vivências é<br />

a seguinte: «Que este contributo sirva para nos aproximar e nos ensine<br />

a aceitar as nossas diferenças, pois só na diferença e na diversidade é<br />

possível crescer». Foi o confronto com as diferenças, vivido numa fase<br />

inicial de forma dolorosa, que lançou o desafio da mudança. O professor<br />

foi o primeiro a reconhecer a necessidade de mudar. Como este desafio<br />

também se colocou à restante equipa de professores que trabalhava<br />

neste <strong>PIEF</strong>, juntos desabafaram, reflectiram e decidiram redimensionar<br />

a escola como espaço de aprendizagens funcionais e<br />

significativas, apostando na diferenciação, respeitando cada aluno<br />

na sua individualidade e trabalhando o saber ser e o saber estar.<br />

Trabalhar afectos, incutir valores e desenvolver competências pessoais<br />

e sociais passou a ser a prioridade, pois todos perceberam que conquistado<br />

este patamar tudo mais era possível: «De repente, sem saber<br />

como, dou comigo a ser criança outra vez! Dou comigo a correr, a pular,<br />

a gritar, a vivenciar e a assumir todos os sentimentos que transpareciam<br />

dos meninos! Por Eles e com Eles, vivi o medo, o deslumbramento,<br />

a coragem, a descoberta, a excitação e a alegria do grande vencedor».<br />

Todos os implicados, professores e alunos, saíram vitoriosos. O curso,<br />

apesar dos percalços, foi um sucesso, a grande maioria dos alunos<br />

obteve certificação de sexto ano e quis prosseguir estudos. A escola<br />

apostou na continuidade, criou um novo projecto <strong>PIEF</strong> no qual o professor<br />

Albano se quis implicar novamente.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

144<br />

12 - PAIS QUE NUNCA DESISTIRAM - Márcia Lacerda (técnica da EMM)<br />

Os pais de duas jovens intervencionadas <strong>pelo</strong> <strong>PETI</strong> foram sempre<br />

empenhados na tarefa de reintegração escolar das suas filhas. Apesar<br />

da grande resistência das mesmas, mantiveram-se envolvidos no processo<br />

com grande empenho.<br />

Em Outubro de 2002, «a Rita está a trabalhar num restaurante», disse<br />

a Carina, sua irmã mais nova, que se encontrava em casa, aquando da<br />

visita das técnicas duma EMM no Norte do país. No início da intervenção<br />

à situação de abandono escolar e trabalho infantil da jovem, Carina deu<br />

as indicações necessárias da localização do restaurante para que as<br />

técnicas do <strong>PETI</strong> pudessem conversar com a Rita. No entanto, o facto<br />

da jovem Carina estar em casa, chamou a atenção. Acabaram por verificar<br />

que esta também tinha abandonado a escola, embora ainda não<br />

tivesse sido sinalizada por nenhuma entidade.<br />

Na fase de diagnóstico, os pais da Rita e da Carina encontravam-se já<br />

«em grande aflição» por causa do seu comportamento de risco. Rita<br />

tinha quinze anos de idade e o sexto ano de escolaridade e Carina, com<br />

doze anos, tinha apenas o primeiro ciclo concluído. Ambas tinham<br />

desistido da escola. Uma das soluções apontadas <strong>pelo</strong> pai, nesta fase<br />

inicial, era o internamento de Carina num colégio. Esta recusava-se a<br />

regressar à escola e o seu comportamento era de risco. Rita estava<br />

numa situação ilegal de trabalho de menores, num restaurante no<br />

centro do concelho onde residia.<br />

Foi feita a proposta de integração das duas jovens no <strong>PIEF</strong>, que decorreu<br />

no concelho de residência das jovens, no ano lectivo 2002-03. Rita após<br />

a sensibilização dos técnicos do <strong>PETI</strong> deixou o trabalho no restaurante<br />

e integrou o <strong>PIEF</strong>. Relativamente à sua irmã Carina, foi sugerida também<br />

a sua frequência do <strong>PIEF</strong>, pois a integração num colégio parecia-nos<br />

demasiado drástica naquele momento. Carina aceitou a proposta porque<br />

não queria regressar ao ensino regular e poderia estar na companhia<br />

da irmã mais velha.<br />

No primeiro período das actividades do <strong>PIEF</strong>, Rita conheceu um rapaz e<br />

iniciou um namoro. A má fama da família do rapaz alertou os pais.<br />

Confirmam-se então os seus piores receios. Em Janeiro de 2003, aos


dezasseis anos de idade, Rita foge de casa, vai viver com o namorado<br />

e abandona o <strong>PIEF</strong>. O maior receio do pai era que as filhas a partir daí<br />

caíssem nas «malhas» da prostituição, dados os indícios e suspeitas<br />

relativamente à mãe do rapaz. As duas irmãs continuavam a andar<br />

sempre juntas, <strong>pelo</strong> que Carina também começou a faltar ao <strong>PIEF</strong> para<br />

estar em companhia da irmã.<br />

Foram accionados meios legais de investigação, junto das entidades<br />

competentes. Era necessário acautelar a protecção das<br />

jovens caso estivessem a ser vítimas de piores formas de trabalho<br />

infantil, nomeadamente, prostituição.<br />

O apoio das técnicas do <strong>PETI</strong> continuou e a Rita foi encaminhada para<br />

cursos de formação profissional. Como no curso de empregada de mesa<br />

e bar não teve vaga, foi encaminhada para um curso de apoio à família<br />

e à comunidade na escola secundária da sua área de residência. No<br />

entanto, a jovem recusou esta alternativa. Paralelamente a estas diligências<br />

e como a frequência do <strong>PIEF</strong> não estava a resultar, foi possível<br />

sensibilizar a irmã mais nova de que seria benéfico afastar-se temporariamente<br />

do concelho de residência, para não ser «aliciada» a faltar e<br />

possivelmente estar exposta a situações de risco. Então, de comum<br />

acordo com todas as partes, foi planeada a integração num colégio conceituado<br />

de um concelho vizinho, onde estaria durante toda a semana,<br />

e aos fins-de-semana iria para junto da família.<br />

O envolvimento dos pais em todo o processo foi muito intenso, mostraram-se<br />

sempre disponíveis para ajudar as filhas. Houve uma visita<br />

prévia dos pais com a jovem, às instalações da instituição, e todos os<br />

detalhes foram acertados para o início da frequência do colégio. Carina<br />

parecia motivada, não fosse o a<strong>pelo</strong> da sua irmã Rita que, mesmo na<br />

véspera, pediu para que não fosse...<br />

Carina acedeu ao pedido da irmã e desistiu. Quando questionada <strong>pelo</strong>s<br />

pais e técnicos envolvidos, não quis revelar o motivo da desistência e<br />

foi muito rude nas respostas. Mais tarde revelaria que o pedido da irmã<br />

tinha sido motivo suficiente.<br />

Não se tendo efectivado a integração no colégio, foram efectuadas<br />

novas tentativas de integração da Carina no ensino regular. Infelizmente,<br />

continuou a rejeitar o regresso à escola.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

145


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

146<br />

Passaram-se dois anos lectivos sem uma integração de sucesso. No<br />

entanto, nem técnicos, nem os pais tinham desistido da Carina. Como<br />

estava a ser organizado um novo <strong>PIEF</strong>, num outro concelho vizinho, foi<br />

feita nova proposta de integração e, finalmente, Carina aceitou frequentar<br />

o programa.<br />

A sua passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> foi tranquila, teve bom comportamento, bom<br />

desempenho e foi assídua, tendo conseguido assim concluir o segundo<br />

ciclo. É de salientar que foi fundamental o envolvimento dos pais em<br />

todo o processo, foram incansáveis, não baixaram os braços e persistiram.<br />

Participaram inclusive em algumas actividades do programa,<br />

como por exemplo num acampamento de férias de final de ano, onde<br />

se deslocaram, por iniciativa própria, para levar um lanche especial a<br />

todos os jovens.<br />

A seguir, a jovem foi encaminhada <strong>pelo</strong>s técnicos do <strong>PETI</strong> e integrada<br />

no curso de têxtil vestuário, para conclusão do nono ano, numa das EB<br />

2,3 do concelho de residência, escola que outrora tinha abandonado.<br />

Porém, Carina faltou muito desde o início das aulas e acabou por<br />

desistir. A partir daí, as técnicas do <strong>PETI</strong>, decidiram encaminhar a situação<br />

para a CPCJ local. Mais tarde a jovem integrou um curso de práticas<br />

técnico-comerciais, promovido por uma associação local, para conclusão<br />

do nono ano.<br />

Actualmente a Carina está com dezassete anos de idade e os seus<br />

colegas estão prestes a acabar o curso de práticas técnico-comerciais.<br />

Há seis meses atrás, a Carina reprovou por excesso de faltas. Os seus<br />

pais, que sempre procuraram acompanhar esta nova tentativa da<br />

Carina, não se conformam com o facto de só terem sido informados, <strong>pelo</strong><br />

responsável do curso, numa altura em que pouco ou nada poderiam<br />

fazer.<br />

Hoje a Carina arrepende-se e reconhece que faltava muito pouco para<br />

concluir o curso. Está à procura de emprego, mas como só tem o sexto<br />

ano e nenhuma qualificação, adivinham-se dificuldades e poucas<br />

opções de escolha.<br />

A Rita tem vinte anos de idade, uma filha de três, e está casada com o<br />

mesmo rapaz com quem fugiu. Recentemente teve de deixar o emprego<br />

numa empresa de confecção têxtil, alegadamente devido a atitudes de


perseguição por parte da patroa. Acabou por entrar em depressão, sendo<br />

acompanhada por um médico psiquiatra. Está visivelmente debilitada e<br />

o seu casamento, que desde sempre não correu bem, ressente-se<br />

disso. O marido, trabalhador da construção civil, é descrito como pessoa<br />

sem sensibilidade que, por este motivo, não tem condições para ajudar<br />

a mulher no processo de recuperação. Como não consegue avaliar o<br />

grau de gravidade da doença da mulher, as suas atitudes ríspidas só<br />

agravam o estado de saúde da mesma. Por isso, mais uma vez, os pais<br />

têm sido o maior apoio emocional da Rita. O jovem casal passou, em<br />

tão pouco tempo, por várias situações dramáticas e em todas elas<br />

foram os pais da Rita que estiveram disponíveis para ajudar, sendo o<br />

principal suporte para que as situações não se agravassem. Os pais<br />

estão sempre a postos para amparar as filhas e, neste momento,<br />

concentram-se em apoiar a recuperação da mais velha que tem inclusive<br />

ideias suicidas.<br />

No relato da ainda curta história de vida destas duas «manas» verificámos<br />

que fizeram uma série de opções precipitadas e inconsequentes.<br />

Não fizeram tais opções por necessidade, nem por falta de incentivo ou<br />

de outras alternativas. Os pais deram este poder de escolha às suas<br />

filhas, embora se empenhassem para as afastar dos riscos e perigos<br />

das mesmas escolhas. Davam orientações e eram colaborantes com<br />

todos aqueles que procuravam apresentar alternativas mais seguras de<br />

construção do futuro, nomeadamente, a prossecução dos estudos.<br />

Opções feitas, não tardou a surgirem consequências negativas e os<br />

prejuízos destas escolhas, mas estas irmãs tal como um «filho pródigo»,<br />

foram recebidas de «volta» de braços abertos <strong>pelo</strong>s seus pais<br />

para serem apoiadas, acarinhadas, tratadas e reconduzidas.<br />

Por agora, Rita e Carina desistiram de apostar na sua formação, apesar<br />

das diferentes alternativas apresentadas. As consequências destas<br />

opções estão à vista. No entanto, estas filhas têm a sorte de terem pais<br />

que nunca desistiram.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

148<br />

13 - DAS PARTES AO TODO - Delfina Dias (professora)<br />

Professora contratada, com habilitação profissional para o grupo de<br />

artes visuais, actualmente com trinta e três anos de idade e no oitavo<br />

ano de serviço, em resultado do concurso nacional de docentes fui<br />

colocada, no ano lectivo 2003-04, numa EB 2,3 do Alentejo, com distribuição<br />

de serviço por uma turma do terceiro ciclo do <strong>PIEF</strong>, onde fui<br />

directora de turma e leccionei várias disciplinas/áreas em regime de par<br />

pedagógico: educação visual e artística; educação física e desporto;<br />

tecnologias de informação e comunicação; exploração vocacional e<br />

formação cívica.<br />

- Não conheço este Programa! Não escolhi esta turma, nem sabia da sua<br />

existência! Trabalhar em par pedagógico!? - este foi o pensamento inicial.<br />

Se é verdade que o ano iniciou com dificuldades, muitas dificuldades<br />

(reuniões, preparação de materiais, conhecer e trabalhar activamente<br />

com uma equipa de desconhecidos e os alunos... os alunos eram<br />

«diamantes em bruto», rebeldes, assustados, «desamados», com qualidades<br />

e defeitos, prontos a ser cuidadosamente lapidados, moldados),<br />

não é menos verdade que com muito trabalho, carinho e muita compreensão,<br />

partindo de pequenas partes, no fim chegámos a um todo:<br />

conhecimentos e sobretudo respeito, por si e <strong>pelo</strong>s outros.<br />

Todos os alunos são potencialmente indisciplinados. Mas esta turma de<br />

dez alunos era particularmente indisciplinada. Estes alunos foram<br />

excluídos do sistema regular, não só pela sua inadaptação a esse<br />

sistema de ensino mas, sobretudo, pela sua vida extra-escolar.<br />

A indisciplina reflectia-se a vários níveis: perturbações que afectavam<br />

o funcionamento das aulas; conflitos, que podiam atingir a agressividade<br />

e até violência física ou verbal, roubos e vandalismo.<br />

As causas da indisciplina destes alunos passavam pela família, ao nível<br />

da pobreza, violência doméstica, alcoolismo, droga, ausência de valores,<br />

permissividade, demissão dos pais enquanto educadores…<br />

A motivação é um dos factores fundamentais da aprendizagem. Para<br />

que a motivação exista nas escolas é necessário que os programas<br />

sejam próximos da realidade vivenciada <strong>pelo</strong>s alunos e com temas<br />

agradáveis.


<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

149


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

150<br />

Neste sentido, as competências que os alunos da turma <strong>PIEF</strong> teriam<br />

que adquirir em cada disciplina/área foram direccionadas para os seus<br />

interesses, de modo a que eles não pudessem dizer que «a verdadeira<br />

vida é lá fora». As regras e as respectivas punições foram definidas, no<br />

início do ano, e redefinidas várias vezes ao longo do ano com os próprios<br />

alunos.<br />

Depois da avaliação diagnóstica realizada <strong>pelo</strong> conselho de turma e de<br />

inquéritos e entrevistas realizados pela psicóloga que acompanhava os<br />

alunos da turma, diagnosticou-se que os interesses da turma, maioritariamente<br />

masculina, convergiam para o futebol e, neste sentido, o tema<br />

do projecto curricular de turma foi o «Euro 2004». O conselho de turma<br />

cativou os alunos para as várias disciplinas congregando todos os<br />

conteúdos para o «Euro 2004» e planificou cuidadosamente todas as<br />

aulas em cada momento.<br />

Como directora de turma elaborei uma estratégia de reforço positivo:<br />

visita de estudo a Braga durante três dias e com entrada directa no<br />

novo - na altura - estádio de Braga, para assistir a um jogo de preparação<br />

do «Euro 2004». Esta estratégia baseou-se nos cartões das<br />

regras do futebol: vermelho e amarelo (e acrescentei o verde). Num<br />

quadro afixado na sala da turma, todos os professores apontavam,<br />

durante o período de tempo estipulado, o comportamento dos alunos<br />

nas suas aulas, através das cores dos cartões: vermelho, automaticamente<br />

excluído da visita; dois amarelos eram permitidos mas, o<br />

terceiro, dava também exclusão. Em conjunto com os alunos, foi elaborado<br />

um quadro, referente aos comportamentos correspondentes a<br />

cada cor. No final, só foram à visita os alunos aptos para tal e não<br />

houve lugar a excepções.<br />

Esta turma exigiu muito tempo e disponibilidade de todos os professores<br />

e restante equipa técnico-pedagógica – psicóloga e monitora –<br />

mas foi um ano muito enriquecedor para mim, não só enquanto professora,<br />

mas também enquanto ser humano.<br />

Em relação à turma <strong>PIEF</strong>, penso que contribuí de modo positivo para a<br />

vida destes alunos, que também contribuíram para a minha formação<br />

enquanto professora: ajudaram-me a criar estratégias para lidar<br />

com situações de conflito, persistência na busca de novas técnicas


e, muito importante, alertaram-me para a importância da indagação<br />

das razões que se escondem por trás de comportamentos<br />

de indisciplina. Ensinaram-me ainda a distinguir a simpatia do<br />

«porreirismo» e que temos sempre qualquer coisa para aprender<br />

com todos os alunos.<br />

14 - VALEU A PENA - Ana Paula Guarda Martins Grosso (professora)<br />

A minha experiência <strong>PIEF</strong> engloba o ano lectivo de 2003-04, numa EB<br />

2,3 duma capital de distrito no Alentejo, e o ano lectivo 2006-07, numa<br />

EB 2,3 de outra cidade alentejana.<br />

A minha entrada no projecto foi casual, tanto num ano, como no outro.<br />

No primeiro ano a entrada foi um pouco influenciada <strong>pelo</strong> conhecimento,<br />

por parte do conselho executivo, da pós-graduação em necessidades<br />

educativas especiais e da especialização em ensino especial que estava<br />

a fazer nesse ano. Consideraram que esta formação poderia proporcionar-me<br />

uma sensibilidade maior relativamente às problemáticas<br />

destes alunos. No segundo ano, valeu a experiência anterior.<br />

Os meus primeiros alunos <strong>PIEF</strong> ficaram no meu coração e não esqueci<br />

nem nome, nem rosto, mas o que recordo melhor foram os pequenos<br />

progressos que fui observando e como o olhar se iluminava à medida<br />

que a consciência da mudança se processava. Da experiência deste<br />

ano, fica principalmente o meu papel de tutora.<br />

Tenho verificado que os alunos do <strong>PIEF</strong> manifestam dificuldades ao<br />

nível do relacionamento, fruto, por vezes, da instabilidade emocional<br />

associada à falta de estrutura familiar. Estes têm como denominador<br />

comum o abandono escolar e a consequente exploração do trabalho<br />

infantil. As características que apresentam e as suas vivências acabam<br />

por os excluir, à priori, do ensino regular. Este projecto proporciona a<br />

estes jovens o desenvolvimento de competências sociais e algumas<br />

aprendizagens.<br />

O caminho a percorrer é longo e emocionalmente muito intenso, mas<br />

cada pequeno progresso é muito gratificante. Temos a possibilidade de<br />

aplicar a pedagogia diferenciada, na sua verdadeira essência e testemunhar,<br />

por vezes, autênticas metamorfoses.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

151


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

152<br />

Acabamos por descobrir que estes alunos têm medo: medo da<br />

exclusão, medo de não conseguirem alcançar objectivos, medo<br />

de serem julgados <strong>pelo</strong>s outros, medo de não serem respeitados<br />

<strong>pelo</strong>s outros… em suma, medo da vida! A agressividade que<br />

alguns apresentam é o destilado de todos estes medos.<br />

Quando confrontados com professores que têm esta noção e que estão<br />

preparados para os ajudar a descobrir as suas potencialidades e a lidar<br />

com estes medos, mostrando sempre uma atitude coerente, compreensiva<br />

mas firme, baseada no respeito mútuo e na confiança, desarmam<br />

e acabam por mostrar o que têm de melhor, contrariando quase sempre<br />

a ideia que deles fazemos no início do processo.<br />

Esta experiência foi e tem sido uma aprendizagem, que ficará para<br />

sempre na minha memória, mudando um pouco a forma de gerir conflitos<br />

e indisciplina na sala de aula, nas dinâmicas de grupo, na importância<br />

cada vez maior da diversidade de estratégias, mas sobretudo o<br />

conhecimento de uma realidade que se tem alastrado.<br />

Foram dois anos muito positivos, autênticos casos de sucesso, dos<br />

quais esteve dependente a análise semanal das problemáticas, o bom<br />

funcionamento do par pedagógico e o bom funcionamento da equipa<br />

técnico-pedagógica.<br />

O «amargo de boca» que fica é a não continuidade de aluno e professor<br />

no projecto. A continuidade seria muito positiva para o aluno, uma vez<br />

que não veria interrompido o processo anterior (na tutoria e nas aulas),<br />

e para o professor que acompanharia o processo num intervalo de<br />

tempo maior, ajudando no fortalecimento dos alicerces necessários ao<br />

desenvolvimento das competências sociais e nas aprendizagens, sendo<br />

mais visível o caminho a seguir relativamente à sinergia de cada aluno<br />

e contribuindo para uma estabilidade tão necessária, não prevalecendo<br />

a sensação do trabalho incompleto.<br />

Continuo a acompanhar o percurso dos meus «piefes» (como habitualmente<br />

lhes chamo) e dos meus colegas de equipa.<br />

Estes jovens precisam de nós e mesmo que só um consiga, já valeu a<br />

pena.


15 - ESTOU AQUI - Ana Ferro (TIL)<br />

Foi no ano lectivo 2003-2004 que surgiu a oportunidade de integrar o<br />

<strong>PIEF</strong> enquanto técnica de intervenção local. Nessa altura, a percepção<br />

social que eu tinha em termos de exploração do trabalho infantil e<br />

abandono escolar, naquele concelho da Estremadura, em nada tinha a<br />

ver com a realidade, não só porque a minha formação de base (psicologia<br />

clínica) não se debruçava especificamente sobre estas temáticas<br />

como, também, a própria sociedade se encarregava de camuflar estas<br />

questões, permitindo que muitos alunos se acomodassem à exclusão<br />

das escolas por terem atingido a «suposta» escolaridade obrigatória<br />

aos quinze anos. Era portanto, uma razão plausível para entregar estes<br />

jovens ao abandono, muitos deles apenas com a quarta classe.<br />

Felizmente, ao tomar contacto com este programa, percebi que o <strong>PIEF</strong><br />

poderia ser uma resposta viável para muitos deles. Mas não era tarefa<br />

fácil. Afinal de contas era necessário fazê-los retornar e motivar para<br />

um contexto escolar que já os havia excluído previamente.<br />

Na fase de diagnóstico, pude constatar que estes alunos apresentavam<br />

na sua maioria dificuldades a nível da concentração/atenção e problemas<br />

de atitude/comportamento (entravam facilmente em frustração,<br />

desinteressando-se rapidamente pelas tarefas que lhes eram propostas,<br />

o que originava uma consequente confrontação com os professores).<br />

Alegadamente, estas questões surgiam normalmente, face ao desinteresse<br />

pelas matérias, à falta de objectivos em termos profissionais e<br />

pessoais (indefinição pessoal), sendo que, previam um futuro pouco<br />

animador.<br />

Nesta medida, a minha intervenção tinha que incidir necessariamente<br />

numa motivação e reforço contínuo, tanto junto dos alunos como das<br />

respectivas famílias e instituições, colocando em prática estratégias<br />

conjuntas que permitissem fomentar uma maior autonomia e um maior<br />

respeito <strong>pelo</strong>s direitos dos jovens.<br />

É o que tenho feito ao longo de quatro anos em <strong>PIEF</strong>, durante muitos<br />

dias e algumas madrugadas à mistura (isto porque a necessidade de<br />

ser ajudado não escolhe horas).<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

153


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

154<br />

Pela minha vida passaram já muitas histórias de outras vidas, de jovens<br />

sem rumo, uns que já mendigaram, roubaram ou que se perderam<br />

totalmente e cujas famílias ignoravam completamente a sua existência;<br />

outros que, simplesmente, não conseguiram encontrar uma resposta<br />

para si no sistema de ensino regular.<br />

São estes meninos a quem devo a minha experiência, enquanto profissional,<br />

e também o meu enriquecimento pessoal porque, afinal de<br />

contas, eu também recebi. Não só o muito afecto, aprendi a dá-lo<br />

da melhor forma que sei, estando lá todos os dias, dizendo: «estou<br />

aqui para te apoiar».<br />

16 - PASSAGENS QUE MARCAM - André Ferreira (professor)<br />

Todos temos momentos na nossa vida que nos marcam para sempre,<br />

que nos despertam para novas realidades, para novos mundos e para<br />

novos problemas.<br />

Conheci o <strong>PETI</strong> no ano de 2003. Estava a concluir a licenciatura em<br />

Educação Física, na altura ainda era o plano para eliminação da exploração<br />

do trabalho infantil (PEETI). Fui a uma entrevista para ser monitor<br />

nos campos de férias de Verão dos meninos do programa integrado de<br />

educação formação (<strong>PIEF</strong>), fiquei logo curioso e na expectativa de como<br />

me sairia neste novo desafio. Lá fui eu para a Serra da Estrela onde ia<br />

receber o meu grupo de dez meninos. A primeira reacção foi de pânico,<br />

mas ao fim de algumas horas e alguma conversa percebi que eram<br />

pessoas que estavam ali e que acima de tudo meninos que jamais<br />

voltariam a ter a oportunidade de voltar àquele lugar. Há sempre pessoas<br />

que nos marcam: ainda hoje penso no Lucas, que não quis aproveitar<br />

a oportunidade e foi para casa ao segundo dia. Na viagem para<br />

casa, em conversa com ele, íamos só os dois, percebi que a revolta a<br />

que tinha assistido horas antes, fazia parte de uma infância conturbada,<br />

e de um ambiente familiar desestruturado. Na viagem, o tom de<br />

conversa foi sereno falou-se de tudo e de nada, o sentimento do outro<br />

lado era de arrependimento, mas o mal estava feito e não havia volta<br />

a dar. Estive com o Lucas pouco mais de vinte e quatro horas, mas é<br />

um nome que jamais irei esquecer pela marca que deixou na minha<br />

vida. Outro dos meus meninos - sim porque depois passaram a ser os


«meus meninos» - era o João, início conturbado, numa tentativa de<br />

chamar a atenção, no final houve lágrimas de despedida. No balanço do<br />

campo de férias ficou a vontade de voltar a estar com estes meninos e<br />

fazer o que fosse possível para os ajudar. Eles precisam de tão pouco<br />

para nos darem tanto.<br />

Em 2004 volto a ter oportunidade de estar com miúdos do <strong>PIEF</strong>, desta<br />

vez como monitor de uma turma tipo dois num <strong>PIEF</strong> no Ribatejo. Novos<br />

meninos, novo contexto, o mesmo desafio e uma vontade ainda maior.<br />

O pânico do primeiro dia quase nem foi sentido, houve aquela resistência<br />

inicial dos miúdos mas ao fim de dois dias consegui criar uma ligação e<br />

uma relação de cumplicidade. Agora tinha <strong>PIEF</strong> todos os dias, cada dia<br />

aconteciam coisas novas. É admirável a capacidade destes miúdos<br />

e a transformação nas suas vidas quando passam por Nós. O<br />

Marco, foi dos primeiros miúdos que tive, possivelmente aquele com<br />

quem tive mais proximidade, mas dos mais difíceis de conquistar. Foi<br />

certificado e fez o terceiro ciclo connosco, foi encaminhado para o<br />

centro de formação e é um dos muitos casos de sucesso em <strong>PIEF</strong>. O<br />

Marco tinha capacidades excepcionais que não foram aproveitadas na<br />

infância por condicionantes familiares; se não passasse por <strong>PIEF</strong>, ainda<br />

hoje não teria o nono ano de escolaridade. Outros houve que passaram<br />

<strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong>, e aproveitaram a oportunidade para melhorar as suas vidas,<br />

apesar de todos os sacrifícios, como foi caso do Valter, o meu primeiro<br />

aluno com bolsa de formação, que fazia setenta quilómetros para vir às<br />

aulas de terceiro ciclo em <strong>PIEF</strong>. Foi mais um caso de sucesso, que<br />

conseguiu completar a escolaridade obrigatória. Um ano mais tarde<br />

encontrei-o na localidade onde reside, num restaurante onde estava a<br />

trabalhar a tempo inteiro e com contrato.<br />

Em 2005, novo ano lectivo, nova experiência <strong>PIEF</strong>, desta vez como TIL.<br />

Com novas funções, passou a haver uma proximidade com as famílias,<br />

o que permitiu uma intervenção mais precisa junto dos miúdos, quando<br />

conseguia apelar à consciência dos pais e encarregados de educação.<br />

Neste <strong>PIEF</strong> o caso mais desafiante foi do Jonas, com problemas de<br />

consumo de substâncias ilícitas; consegui com ele uma relação de amizade<br />

próxima, assumiu compromissos, cumpriu, teve alguns deslizes<br />

<strong>pelo</strong> meio, mas conseguiu. Foi certificado com o segundo ciclo por<br />

mérito próprio.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

155


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

156<br />

Em 2007 consegui realizar um sonho que nasceu em 2003 nos campos<br />

de férias de Verão: dar aulas em <strong>PIEF</strong>. Novo desafio, novo contexto,<br />

desta vez numa cidade da Estremadura, novos alunos, já integrados e<br />

à espera de um professor novo, para substituir a professora de<br />

educação física que estava grávida. Foi sem dúvida a integração mais<br />

fácil num grupo <strong>PIEF</strong>: fui recebido de braços abertos <strong>pelo</strong>s alunos, como<br />

se fizesse parte daquele grupo de trabalho desde o primeiro dia. O<br />

Flávio faz parte deste <strong>PIEF</strong> tipo um, é o aluno mais novo do grupo (falo<br />

em grupo porque é isso que nós somos, mais que uma turma). As<br />

alterações na sua vida, depois da integração em <strong>PIEF</strong>, foram muitas e<br />

para melhor - é um miúdo que adora estar em <strong>PIEF</strong>. Está a crescer por<br />

dentro a cada dia que passa, ele próprio diz que o seu comportamento<br />

mudou muito e para melhor. Há por aí ainda muito Marco, muito João,<br />

muito Jonas e muito Flávio, assim como tantos outros. Estes que relatei<br />

são apenas exemplos de muitos casos de sucesso, que aproveitaram<br />

com todas as suas forças a oportunidade que lhes foi dada.<br />

17 - TAREFA INGLÓRIA - Anabela Adrião dos Santos (professora)<br />

Escrever sobre o <strong>PIEF</strong> é uma tarefa inglória… Por mais rápida que seja<br />

a pena, jamais alcançará o tropel das emoções e memórias ricas e<br />

atabalhoadas que surgem sem pedir licença nem respeitar civismos de<br />

ocasião. São casos atrás de casos, momentos atrás de momentos, sem<br />

nunca parar.<br />

Ser professor de <strong>PIEF</strong> é um nunca terminar, nunca fazer pausas (mesmo<br />

quando se pensa que as estamos a fazer), é viver mil emoções num dia<br />

e sentir muito, num minuto ou numa hora. É viver de opostos: tanto<br />

nos apetece gritar para sermos ouvidos, como abraçar para amarmos<br />

e sermos amados. É dizer: «não vás por aí! Espera!»… e, ao mesmo<br />

tempo, incentivá-los a voar com muita força como só um jovem consegue.<br />

É conhecer a força imensa que dorme lá dentro e temer que<br />

expluda antes que aprenda a mover montanhas.<br />

Todos temos histórias que não queremos contar<br />

Nem mesmo a nós.<br />

Só escolhemos os espelhos


que nos dão a imagem que nos atrai ver.<br />

Para ser mais fácil olhar. Sem vergonha. Com menos dor.<br />

Acreditamos que hoje pode ser um bom dia.<br />

Mesmo que amanhã seja diferente.<br />

Hoje, forte.<br />

Amanhã, derrotado.<br />

Depois, sobrevivente.<br />

E o olhar dos outros nos mata ou alimenta.<br />

Com carinho e luz.<br />

Num trilho difícil<br />

possível.<br />

Talvez. Quem sabe…<br />

A experiência de dez anos de ensino regular com turmas complicadas<br />

e em escolas inseridas em meios sociais complexos preparou-me para<br />

o que viria a ser um dos melhores desafios da minha carreira e vida<br />

pessoal.<br />

Passei a fazer muitas mais perguntas, depois de integrar a equipa<br />

de trabalho do <strong>PIEF</strong>, a partilhar mais conhecimentos e a contar<br />

com a confiança reforçada no grupo.<br />

Aprendi a ouvir os «Alunos» com mais atenção. E continuo a<br />

aprender. Todos os dias. Cada vez que se lança uma ideia, na formulação<br />

de um novo projecto, ninguém pode prever o caminho que se<br />

delineará, pois o contributo activo deles enriquece essa ideia inicial. Os<br />

projectos vão crescendo e os «Alunos» crescem com eles, com a perspectiva<br />

de desenvolver competências previstas. Acontece depois, na<br />

maior parte dos projectos, que <strong>pelo</strong> desenvolvimento imprevisível,<br />

outras competências ainda não previstas surgem, porque as circunstâncias<br />

assim o exigem. Quantas vezes, temos uma aula preparada,<br />

tudo muito organizadinho e pedagogicamente encadeado, com acetatos,<br />

fichas, filmes, sons, planificações lindas e terminamos essa aula sem<br />

ter feito nada disso, mas com uma satisfação maior do que o peito<br />

porque respondemos a dúvidas que só pais e/ou professores sabem<br />

responder. E depois? Por surgir uma dúvida, uma situação, tudo pára e<br />

se segue num outro caminho. Um debate espontâneo porque alguém<br />

disse: «e qual é o mal de se fumar uma ganza?», ou «à primeira vez<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

157


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

158<br />

podes sem protecção que não engravidas!». São oportunidades que<br />

não se podem perder no trabalho com jovens. São realidades para as<br />

quais temos de alertar. Daí a minha alcunha «setôra fantasias», porque<br />

os chamo à realidade.<br />

Pensar nestes ou noutro caso qualquer, faz pensar, sorrir e chorar, às<br />

vezes. Porque cada um é um mundo por descobrir, do qual apenas<br />

vimos o que quiseram mostrar ou dar. E perto ou longe, sabemos que<br />

vivem o melhor que podem ou sabem, mas diferentes, sempre, do que<br />

eram quando nos conheceram.<br />

O trabalho/vivência em <strong>PIEF</strong> é muito rico pela variedade e suga energias<br />

e emoções pelas solicitações constantes e ininterruptas. Pensa-se<br />

que podemos fazer muito, preparamos tudo, aplicamos e… nada feito,<br />

não resulta. É um puro engano, já que os efeitos vêm sempre depois,<br />

ou seja, parece que não aprendem, que não adquirem competências<br />

nenhumas, mas aos poucos, tudo se resolve, tudo se revela quando é<br />

necessário.<br />

E é fantástico no fim do dia, cansada ou muito cansada, quando se faz<br />

uma reflexão sobre tudo o que se passou desde que chegámos à escola<br />

até sairmos. Registámos um «bom dia» que antes não se dizia espontaneamente,<br />

um «obrigado» e «com licença» ou mais difícil ainda<br />

«desculpe, foi sem pensar»... Rituais e práticas sociais que antes não<br />

estavam consolidadas. E é indescritível a satisfação de ouvir: «consegui»<br />

ou «conseguimos».<br />

A equipa de trabalho vive e reflecte estas vivências em conjunto com<br />

muita emoção e satisfação mas também frustração quando as expectativas<br />

se goram. E a equipa de trabalho é constituída por muitos<br />

profissionais de diferentes áreas, dentro e fora do recinto escolar, que<br />

contribuem de diferentes maneiras para ajudarmos os nossos jovens a<br />

crescer como indivíduos e cidadãos.


18 - CONHECER OS SEUS SENTIMENTOS - Paula Polainas (professora)<br />

Com trinta e seis anos de idade, sou professora do <strong>PIEF</strong> há três anos,<br />

porque gosto, porque me sinto útil e recebo destes alunos mais do que<br />

alguma vez recebi em onze anos de trabalho com alunos do ensino<br />

regular.<br />

Estes alunos <strong>PIEF</strong> dão aquilo que têm: um sorriso por se sentirem<br />

iguais a tantos outros.<br />

O primeiro contacto com o <strong>PIEF</strong> foi numa EB 2,3 duma cidade alentejana,<br />

em 2004. Nesse ano tive por coordenadora a pessoa mais amiga<br />

dos alunos que já alguma vez conheci. Sempre segui o seu lema: «dar<br />

tudo aquilo que eles merecem»; talvez pouco para um jovem dito<br />

normal; para alunos <strong>PIEF</strong>, aquilo que nunca tiveram!!!<br />

Foi difícil esse ano. Trazia para casa sentimentos inexplicáveis. Vivia, e<br />

continuo a viver, problemas de vidas difíceis, de vidas complicadas<br />

(abandonos, delinquências, vícios…). No final do ano senti-me realizada<br />

como pessoa, como cidadã e como docente…<br />

No segundo ano pedi destacamento para longe de casa (setenta quilómetros),<br />

para ficar mais um ano em <strong>PIEF</strong>. Todos os anos são diferentes,<br />

todos eles são diferentes…<br />

Este ano, noutra cidade do Alentejo, fui tutora do António. «Homem»<br />

feito, marcado <strong>pelo</strong> abandono <strong>pelo</strong>s pais, «mauzão», «conhecedor da<br />

vida», tudo lhe era indiferente, principalmente a escola; esta apenas<br />

lhe servia para «dar as refeições». Após uma interrupção lectiva, o<br />

António apareceu na escola com um abcesso num dente. Fui com ele<br />

ao hospital; foi-lhe diagnosticado uma infecção generalizada e tinha<br />

que ser transferido para um hospital de Lisboa. Não tinha ninguém, não<br />

tinha nada (roupa, documentos…). O António disse-me que não queria<br />

ir e eu, com calma, apesar de nervosa, e sem saber o que fazer, disselhe<br />

que o mais importante era ele… e que eu não podia ficar sem<br />

tutorando. Ficaria à espera dele…<br />

Quando a ambulância partiu, o António olhou para mim triste, com<br />

medo… O «mauzão» tinha-se transformado num criança indefesa…<br />

fiquei a pensar como é possível viver sem alguém mais…<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

159


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

160<br />

Nessa noite mandou-me várias mensagens, para saber simplesmente<br />

se eu estava do outro lado. Apesar de longe, estava presente…<br />

Eu, a TIL e a EMM, entrámos em contacto com o hospital. Fomos visitá-lo<br />

no fim-de-semana, fizemos tudo o que foi possível para que ele não se<br />

sentisse só. Quando regressou, não tinha dentes (foi submetido a uma<br />

operação)… Nessa altura, para que serviriam os livros? Como tutora,<br />

fazia-lhe antes papa «maizena»…<br />

Houve dias em que não sabia como… se… o quê… só sabia porquê… Um<br />

sorriso, um amigo/a… uma competência adquirida.<br />

E conto outra história:<br />

O Joel era o cigano mais bonito da escola, tinha namoradas de outra<br />

etnia, não vestia como os ciganos e até usava «piercings». Lembro-me<br />

de uma manhã, quando o Joel começou a pôr um «piercing» a sangue<br />

frio no lábio, o sangue escorria! Comecei a vê-lo branco, comecei a ficar<br />

branca, e pensei: que faço? Não podia gritar, nem entrar em conflito, o<br />

Joel não estava muito consciente, talvez «pedrado»…<br />

Então, disse-lhe:<br />

- Joel filho, ou paras ou sais, é que a professora, se continuas, desmaia<br />

à tua frente, e depois o que fazes?<br />

O Joel, com aquela cara linda, olhou para mim e disse:<br />

- Ai… isso é que eu não quero!<br />

Durante um certo tempo brincámos com o acontecimento.<br />

Mas, era cigano e como muitos ciganos teria que casar com uma cigana<br />

que fosse de «boas famílias». Esse dia aconteceu. Apesar do Joel gostar<br />

de andar na escola, a sua família tinha encontrado a tal cigana. Fugiu<br />

com ela e foi pai precocemente. O cigano de cara «laroca», para honrar<br />

sua família, teve que ir tratar da vida, «deitar-se à vida» (expressão<br />

usada por ele). Nunca mais voltou à escola…<br />

Os testemunhos que eles me quiseram deixar, são bastante significativos:<br />

«Para mim o <strong>PIEF</strong> foi uma coisa única. Se não estivesse aqui, estava a<br />

dormir em casa, serviu para entender algumas coisas da vida… Se o<br />

<strong>PIEF</strong> fosse uma perda de tempo, não estaria aqui».


«Para mim o <strong>PIEF</strong> foi muito bom, serviu para tirar o sexto ano e para<br />

arranjar um emprego melhor. Se não estivesse aqui estava em casa a<br />

ver televisão».<br />

E o que mais me marcou foi conhecer os seus sentimentos…<br />

19 - GRANDE DESAFIO - Alexandra Sofia C. Terrinca Silva (professora)<br />

Professora licenciada em ensino, na variante matemática e ciências, a<br />

leccionar numa cidade alentejana, foi-me proposto em 2004-05 entrar<br />

num projecto que integrava jovens com problemas de inclusão escolar<br />

e com percursos de vida complicados. Só podia aceitar. Gosto de desafios<br />

e, pensar que poderia ajudar estes alunos, foi sem dúvida um<br />

grande desafio.<br />

Um desafio algo desgastante, confesso! Não é fácil interagir dia-a-dia<br />

com alunos que, por necessidade de se afirmarem, estão permanentemente<br />

a quebrar as regras. No entanto, é extremamente compensador<br />

verificar que os seus comportamentos se modificam.<br />

Falamos de alunos que muitas vezes conhecem o lado mais escuro da<br />

sociedade. Alunos que sabem muito bem o que fazer para «ir para a<br />

rua», que desafiam com bastante facilidade a autoridade do professor.<br />

Contrariar estes comportamentos e fazer com que estes alunos gostem<br />

de estar numa sala de aula é sem dúvida um desafio.<br />

Ser professor de uma turma <strong>PIEF</strong> é ser muito mais que professor. É ser<br />

o amigo, o confidente, alguém em que numa situação complicada se<br />

pode confiar e que sem criticar vai tentar ajudar.<br />

Ser professor <strong>PIEF</strong> é conseguir antes de começar a aula, apenas com<br />

um olhar, saber se o aluno está bem ou menos bem… Um aluno com<br />

problemas mais dificilmente será capaz de adquirir conhecimentos.<br />

Existe algo que o perturba, é necessário tentar saber o que aconteceu.<br />

No entanto, o resto da turma deve continuar com a sua rotina, isto se<br />

o problema não envolver mais alunos, pois existem situações onde é<br />

preferível parar a aula e, em grande grupo, falar do que os perturba…<br />

Ser professor <strong>PIEF</strong> é não ter horário... É com certeza um desafio, eu diria<br />

mesmo uma grande aventura. Já para não falar que dentro da mesma<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

162<br />

turma existem vários níveis de ensino e que cada aluno apresenta o seu<br />

ritmo de trabalho e o seu plano de educação e formação (PEF).<br />

A união e a utilização das mesmas orientações dentro da equipa-pedagógica<br />

são factores indispensáveis para o sucesso deste tipo de projecto.<br />

Como profissional foi uma experiência que recordarei com o maior<br />

carinho e para a qual estarei sempre disponível.<br />

A leccionar no <strong>PIEF</strong> desde 2004, aprendi com estes alunos muito mais<br />

do que lhes pude transmitir. Principalmente tive a possibilidade<br />

de aprender a observar e não, apenas, olhar para um aluno.<br />

Conseguir ter a confiança e o respeito destes alunos é um privilégio.<br />

Verificar mudanças no seu comportamento, atitudes e até perspectivas<br />

de vida, é uma recompensa <strong>pelo</strong> trabalho realizado.<br />

20 - UMA CERTEZA FICA - Maria José Ferreira (professora)<br />

Professora do quadro de nomeação definitiva na EB 2,3 da cidade<br />

alentejana onde resido, portadora duma licenciatura via ensino em<br />

português/inglês, corria o final do ano lectivo 2003-04, quando fui<br />

contactada <strong>pelo</strong> conselho executivo do agrupamento. Perguntaram-me<br />

se queria integrar e coordenar o projecto <strong>PETI</strong> na escola. Um turbilhão<br />

de perguntas surgiu quase instantaneamente: O que é? Como vai ser<br />

trabalhado? Como estabelecer parcerias? Como quebrar barreiras dentro<br />

e fora da escola? Que grupo de docentes?<br />

Ao iniciar a minha função como coordenadora da turma <strong>PIEF</strong> de segundo<br />

ciclo, senti que estava perante um desafio maior a nível pessoal e<br />

profissional. As respostas ao sem número de questões foram sendo<br />

encontradas ao longo do caminho, porque os percursos fazem-se em<br />

interacção com todas as partes: alunos, famílias, colegas e parceiros.<br />

A turma era composta por sete rapazes e duas raparigas, com idades<br />

compreendidas entre os doze e dezassete anos, percursos de vida<br />

diferenciados, interesses múltiplos e divergentes entre si, algo tinham<br />

em comum: a escola era uma «grande seca» e tinham de voltar.<br />

Do outro lado, todos tínhamos uma certeza: estávamos a abrir a porta<br />

a um grupo de jovens que tinha um percurso negativo no sistema edu-


cativo. Não seria possível fazê-los passar, outra vez, por uma experiência<br />

semelhante, pois isso já tinham rejeitado, explícita ou implicitamente,<br />

através do abandono e de comportamentos menos adequados na escola.<br />

A questão da equipa de docentes foi fundamental em todo o processo.<br />

Todos os elementos participaram voluntária e conscientemente no projecto.<br />

Sabíamos que a missão era dificultada por factores internos da escola:<br />

a aceitação de alunos com faixas etárias acima da média e com percursos<br />

já sinalizados como negativos, ao nível comportamental e académico;<br />

procurar-se-ia incluir o que anteriormente já tinha sido excluído – tarefa<br />

árdua e com sucesso duvidoso. Mas, como ultrapassar estes entraves?<br />

No caso concreto, através de um diálogo constante, de uma leitura<br />

comum dos acontecimentos, de uma tomada de decisão coesa, consciente<br />

e assertiva, acima de tudo, uma liderança partilhada.<br />

De reunião em reunião, conseguimos estabelecer metas, objectivos e<br />

delinear caminhos, onde o avanço e retrocesso eram a constante, onde<br />

a verdade e a certeza eram incógnitas e variáveis sempre presentes,<br />

formando-se em torno destas descobertas um grupo coeso e forte na<br />

decisão.<br />

A partilha de informação, planificação conjunta promotora de interdisciplinaridade,<br />

disponibilidade constante, flexibilidade de horários e envolvimento<br />

afectivo, foram as constantes no grupo de trabalho. Somado o<br />

apoio do órgão de gestão do agrupamento, foi possível chegar ao nosso<br />

objectivo maior: «consciencializar potencialidades visando a descoberta<br />

de uma vocação, promover a auto estima e integrar na comunidade».<br />

Os momentos que nos deixam marcas nestes percursos revelam-se<br />

no sentimento egoísta de um dever cumprido, de uma<br />

realização pessoal, na consciente partilha das dificuldades com<br />

os outros elementos da equipa.<br />

Sinto que esta experiência é como o semear de um agricultor. Sementes<br />

deitadas à terra, mas de colheita muito tardia. Os seus primeiros frutos<br />

são passíveis de se visualizar, talvez hoje, dois anos passados. Saber<br />

que do grupo inicial de nove jovens, quatro concluíram a escolaridade<br />

obrigatória, dois continuam no sistema e dois estão integrados no<br />

mercado de trabalho; apenas um não teve continuidade…<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

164<br />

Com quarenta e sete anos de idade, recordações que ficam… Neles, o<br />

facto de terem criado um grupo onde a entreajuda se foi cimentando,<br />

a cooperação e integração na escola se consolidou. Outros momentos<br />

foram o prémio a nível distrital ganho através dos trabalhos de reciclagem,<br />

as visitas de estudo projectadas e desenvolvidas por eles e com<br />

eles e, sem dúvida, o final do ano que culminou na realização de um<br />

sonho comum – andar de avião.<br />

Desta experiência uma certeza fica: trabalhar em equipa é a forma<br />

mais correcta e fácil para chegar a sucessos. Por isso, não posso deixar<br />

de referir e agradecer à equipa: Alexandra Silva, Mário Rui Silva, Paula<br />

Polainas, Paulo Rodrigues, Salomé Paiva, Susana Russo e Teresa Lopes.<br />

21 - APRE(E)NDER A EDUCAÇÃO - Marta Inácio (psicóloga)<br />

Psicóloga clínica no grupo de apoio à saúde mental infantil num concelho<br />

do Algarve desde há cerca de dois anos, é nessa qualidade e pelas<br />

duas experiências profissionais anteriores, como técnica no «projecto<br />

renascer» (projecto de luta contra a pobreza naquele concelho), que os<br />

nossos caminhos se cruzaram e continuam a cruzar. Conheço bem o<br />

trabalho do <strong>PETI</strong> há algum tempo e, inclusivamente, promovi um projecto<br />

com duas turmas em 2004-05, tendo havido estreita articulação<br />

com a equipa técnico-pedagógica e respectivos jovens.<br />

Posso dizer que demorei e hesitei a escrever este breve texto, pois<br />

desde o início que achei que iria ser difícil colocar em palavras a minha<br />

experiência como psicóloga, mas sobretudo como pessoa, que esteve<br />

próxima de muitos jovens incluídos nas turmas de <strong>PIEF</strong> na zona do<br />

barlavento algarvio.<br />

Por vezes, tenho dúvidas relativamente a quem aprendeu mais com<br />

quem... Considero que aprendi e cresci muito durante o tempo que<br />

estive directamente ligada a alunos e professores envolvidos nas<br />

turmas <strong>PIEF</strong> de segundo e terceiro ciclos nesta região, logo durante o<br />

ano lectivo 2004-05. Anteriormente, havia conhecido muitas situações<br />

de jovens em risco de absentismo escolar. Muita da minha intervenção<br />

com os técnicos do <strong>PETI</strong>, passava então por lhes transmitir a minha<br />

preocupação relativa aos percursos e futuros trajectos escolares/profis-


sionais de determinados jovens. Na equipa do «projecto renascer»<br />

soube que, sem a ajuda preciosa destes técnicos, muitos desses jovens<br />

iriam abandonar a escola e ficar à margem de oportunidades ímpares,<br />

educativas e de enriquecimento pessoal, pois a palavra «educação»<br />

implica todo um conjunto de conhecimentos e experiências que influenciam<br />

o interior de cada um, tendo o forte poder de o transformar e<br />

enriquecer.<br />

Posso afirmar que este meu último pensamento foi a minha primeira<br />

lição, durante o ano em que estive em contacto directo com os rapazes<br />

e raparigas das turmas <strong>PIEF</strong>. Antes disso, a palavra «educação» tinha<br />

um significado bastante mais redutor e pobre.<br />

Quando desafiei um meu colega e amigo que então desempenhava<br />

funções como psicólogo clínico e coordenador do grupo de apoio à<br />

saúde mental infantil do centro de saúde do concelho, para desenvolvermos<br />

um projecto dirigido aos jovens e professores que iriam incluir<br />

as duas turmas de <strong>PIEF</strong> (uma de segundo ciclo que funcionou numa EB<br />

2,3 na cidade e outra de terceiro ciclo que funcionou noutra EB 2,3 fora<br />

da cidade), tinha em mente que muita experiência e conhecimentos<br />

que ambos iríamos passar a alunos e professores iriam fazê-los beneficiar<br />

de um conjunto de conhecimentos em termos de desenvolvimento<br />

pessoal e social, que se constituiriam como mais valias em termos<br />

futuros no percurso formativo e educativo que o <strong>PIEF</strong> proporciona aos<br />

jovens. Enganei-me mais uma vez, pois o plano que nós achávamos que<br />

iria fazer sentido às turmas não o fez e estava cheio de desajustes que<br />

se repercutiram numa disciplina desinteressante… uma verdadeira seca!!!<br />

Posso dizer que, nesta verdadeira aventura, tive a sorte de ter mais<br />

duas pessoas ao meu lado completamente disponíveis para me auxiliar<br />

e aturar em momentos de verdadeiro desalento: as minhas queridas<br />

colegas e amigas TIL, da turma de segundo ciclo, e a técnica da EMM<br />

do <strong>PETI</strong>, responsável pelas duas turmas de <strong>PIEF</strong>. Pude ainda contar com<br />

o apoio precioso da outra TIL, da turma de terceiro ciclo. Com o tempo<br />

e com o coração aberto (porque só assim é possível trabalhar de forma<br />

real – segunda lição que aprendi com os jovens do <strong>PIEF</strong>), fomos<br />

reajustando o programa tendo como guias de aventura os nossos<br />

jovens.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

166<br />

A pouco e pouco fomos percebendo o que os entusiasmava e como os<br />

podíamos fazer chegar mais próximo do que lhes fazia sentido, para a<br />

sua aprendizagem e percurso de vida. Em muitas situações, esse<br />

entusiasmo colidia com o que nós considerávamos o mais correcto<br />

(terceira lição que aprendi com eles). Novamente tentámos mudar o<br />

rumo da nossa aventura e abdicar em parte do que eram as nossas<br />

crenças.<br />

Afinal, «educação» significa desafio, coragem para crescer, conhecimento<br />

e poder de transformação. Por isto, agradeço a todos (jovens,<br />

professores e colegas) as lições que me transmitiram e a hipótese que<br />

me deram de conhecer o verdadeiro sentido desta maravilhosa palavra.<br />

Obrigada, a todos!<br />

22 - LUTA POR UMA CAUSA - Suzana Guerreiro (TIL)<br />

Licenciada em educação e intervenção comunitária, TIL há três anos<br />

em grupos-turma do <strong>PIEF</strong>, na região Algarve, tive outras experiências<br />

profissionais, mas foi na intervenção com os jovens integrados em<br />

<strong>PIEF</strong> que me senti verdadeiramente realizada profissional e pessoalmente.<br />

Actualmente acompanho um grupo-turma de terceiro ciclo.<br />

Em 2004 fui contactada <strong>pelo</strong> <strong>PETI</strong> e convidada a integrar o projecto,<br />

desempenhando as funções de TIL, no âmbito de um <strong>PIEF</strong>, a decorrer<br />

numa escola do barlavento algarvio. Foi com agrado e entusiasmo que<br />

aceitei o desafio. Porém, depois de decorrida a primeira semana, tive<br />

consciência de que nada me preparara para o que tinha em mãos - nem<br />

quatro anos de estudos universitários, nem três anos de experiência<br />

profissional. Confesso que a minha reacção inicial foi entrar em pânico<br />

e considerar-me incapaz de desempenhar as funções para as quais fui<br />

solicitada.<br />

Diariamente colocava em causa a minha capacidade de levar a cabo<br />

este desafio, perante um grupo inicial de quinze jovens irreverentes e<br />

desafiadores, para quem a escola significava mais um espaço de convívio<br />

com os pares do que um espaço de aprendizagem. Este era um grupo<br />

difícil, claramente liderado por um aluno com uma postura agressiva e<br />

de nítida oposição.


Passado o primeiro período, os laços entre a TIL e os jovens estreitaram-se.<br />

Foram dois meses complicados, para alunos, professores,<br />

encarregados de educação, funcionários e técnicos. As semanas eram<br />

pautadas por situações de conflito, indisciplina e, por vezes, até<br />

agressões. A visita ao gabinete da presidente do conselho executivo e<br />

a entrega de participações disciplinares eram uma constante, solução<br />

recorrente encontrada por docentes, mas sobretudo <strong>pelo</strong>s funcionários,<br />

como única e funcional.<br />

O desgaste emocional foi muito e a conjuntura não era favorável. Ponderei<br />

inclusivamente desistir. Não retornar no segundo período lectivo.<br />

Contudo, não faz parte da minha personalidade desistir; desistir de<br />

projectos, de desafios, das pessoas e, afinal, de mim também. Resolvi<br />

continuar, por mim e por eles, que inevitavelmente e apesar de todas<br />

as tropelias, já tinham ocupado um lugar especial no meu coração.<br />

No segundo período, todos os dias de manhã, a caminho do trabalho,<br />

continuava a questionar-me: «como será que vai correr hoje o dia?».<br />

Era sempre uma incógnita. Pequenos feitos que considerava alcançados,<br />

eram no dia seguinte tidos como inatingíveis. Outras vezes, era surpreendida<br />

com pequenas mudanças positivas que pensava não serem<br />

possíveis, para já, mas que significavam tanto.<br />

Passei a valorizar cada pequena conquista, coisas simples como o tirar<br />

do boné à entrada do refeitório, o pedir autorização para entrar na sala<br />

de aula ou o facto de conseguir reuni-los de forma organizada para<br />

transmitir uma informação ou para fazê-los repensar uma situação/atitude.<br />

O auge era quando conseguia fazê-los admitir os seus erros e os<br />

convencia a corrigi-los.<br />

O líder que inicialmente se opunha a qualquer sugestão e não se deixava<br />

sequer tocar, passou a ouvir e, a dado momento, até a influenciar<br />

positivamente os colegas. Mas, até aqui, foi uma longa caminhada!<br />

No final do ano lectivo, passados os momentos de tensão e desgaste,<br />

saímos todos vencedores. Professores, encarregados de educação,<br />

técnicos e alunos. Infelizmente não conseguimos tocar algumas pessoas<br />

pertencentes à comunidade educativa, mas o saldo final foi bastante<br />

positivo. Foram alcançados objectivos que numa primeira abordagem,<br />

pensáramos não serem possíveis atingir, principalmente a nível da<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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aquisição de competências sociais. Transitaram onze alunos, num total<br />

de dezasseis que frequentaram esta turma <strong>PIEF</strong>.<br />

Por questões financeiras e na incerteza de ser possível dar continuidade<br />

ao <strong>PIEF</strong> no ano lectivo seguinte, acabei por aceitar uma proposta para<br />

trabalhar num protocolo direccionado a famílias beneficiárias do rendimento<br />

social de inserção, tendo sido difícil desvincular-me e tentar<br />

esquecer estes jovens e as suas histórias de vida. Passei da incerteza<br />

de sucesso, no início de cada dia de trabalho, normalmente, atribulado<br />

e intenso com aqueles jovens, à rotina do trabalho um tanto burocrático<br />

da medida do rendimento social de inserção.<br />

Esta nova condição, foi uma experiência importante quer a nível profissional,<br />

quer pessoal. No entanto, o desgaste emocional que representara<br />

acompanhar os alunos integrados em <strong>PIEF</strong> e que, por vezes,<br />

afectara a minha vida pessoal, deixou de ser uma constante enquanto<br />

técnica nesta outra medida.<br />

Depois da fase de adaptação em que tudo é novo e ansiamos por<br />

aprender mais, ao olhar para a foto em cima da secretária de uma das<br />

visitas de estudo realizada com os meus «anjinhos diabólicos», como os<br />

costumava chamar, crescia a sensação de vazio e aumentava a vontade<br />

de voltar a ter a sensação de vitória por cada pequena batalha ganha<br />

a ferro e fogo.<br />

O contacto com o <strong>PETI</strong> não se quebrou e, em cada encontro informal,<br />

surgia a necessidade de saber como se desenrolava a história de vida<br />

de cada um daqueles jovens que acompanhara e quais os novos projectos<br />

implementados <strong>pelo</strong> <strong>PETI</strong>. Cada encontro servia para me aperceber<br />

que, se a oportunidade surgisse, o regresso seria inevitável. A oportunidade<br />

surgiu…<br />

O a<strong>pelo</strong> foi maior e, no ano lectivo 2006-07, voltei a desempenhar as<br />

funções de TIL num grupo-turma do <strong>PIEF</strong>, afecto à Escola mas a funcionar<br />

parcialmente numa associação local.<br />

A maioria das aulas eram leccionadas numa sala generosamente cedida<br />

pela associação, deslocando-nos diariamente para a escola, nos transportes<br />

urbanos da cidade, para almoçar e frequentar as aulas mais<br />

específicas e práticas, o que por si só exigiu maior força de vontade


por parte de todos os envolvidos, mas que acabou por não ser um<br />

obstáculo.<br />

Este foi um ano mais tranquilo a nível de problemas comportamentais.<br />

A comunidade escolar e a direcção da associação que nos acolheu tiveram<br />

um papel importante para o sucesso deste projecto. Porém, em<br />

termos de problemáticas sociais e familiares, foi um ano lectivo bem<br />

preenchido, entre fugas de casa, situações de furtos e consequentes<br />

idas à PSP, gravidez precoce na adolescência, problemáticas do foro<br />

psicológico, inserção em instituições públicas, violência doméstica, entre<br />

outras situações.<br />

Contudo, em conjunto com os alunos e encarregados de educação, a<br />

equipa técnico-pedagógica, a escola, a direcção da associação local e<br />

os técnicos dos serviços parceiros, chegámos ao final do ano lectivo<br />

partilhando o sentimento de que, apesar de algumas adversidades,<br />

fomos bem sucedidos.<br />

É frequente questionarem-me porque voltei a assumir o papel de TIL,<br />

tendo noção de que é um trabalho desgastante e monetariamente<br />

menos compensador que o anterior. Respondo que é <strong>pelo</strong> facto de<br />

existir um forte sentimento de pertença, associado a uma luta por uma<br />

causa como a prevenção e eliminação da exploração do trabalho infantil.<br />

E também por haver um permanente trabalho de equipa, reforçado<br />

pelas reuniões de avaliação no final de cada período lectivo, envolvendo<br />

todos os TIL do Algarve, onde são partilhadas experiências e saberes e<br />

apontadas directrizes, que me permitem sentir em todos os momentos<br />

apoiada e encorajada, principalmente, com a pessoa da EMM com quem<br />

directamente articulo.<br />

Apontar o trabalho de parceria também seria verdadeiro, pois tendo o<br />

objectivo comum de apoiar e orientar estes jovens, trabalhar de outra<br />

forma não faria sentido. É feito sem dúvida um trabalho multidisciplinar<br />

e transversal às entidades, que é enriquecedor.<br />

Todavia, é por acreditar que posso efectivamente fazer a diferença no<br />

percurso escolar e pessoal destes jovens e pela certeza de que cada um<br />

deles me marca inevitavelmente quer a nível profissional quer a nível<br />

pessoal, de forma irremediavelmente positiva, que regressei e prossigo...<br />

Pelo facto de sentir que existe um processo de crescimento e<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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aprendizagem mútuos, onde todos nos desenvolvemos e apoiamos no<br />

processo, é para mim o principal factor impulsionador para desempenhar<br />

as funções de TIL.<br />

Certo é que houve e haverá dias em que tudo parece correr mal e que<br />

o insucesso espreitará constantemente… Mas as pequenas vitórias alcançadas,<br />

tantas vezes perante as expectativas contrárias de muitos, essas<br />

sim são o motivo para orgulhosamente vestir a camisola do <strong>PETI</strong>, acreditando<br />

que o combate ao trabalho infantil e ao abandono escolar são<br />

uma causa merecedora do meu esforço e dedicação.<br />

23 - UMA ESCOLA DE LAÇOS - Sara Pimentel (psicóloga)<br />

«Tens agora dezassete anos. Encontro-te muitas vezes na rua (às vezes<br />

encontro-te até nos meus sonhos!), sinto-te diferente e quando te olho<br />

percebo. Consigo ver que tens um brilho diferente, sinal que já não te<br />

sentes tão vazio. Perdido».<br />

O Jorge entrou para o <strong>PIEF</strong> com catorze anos tendo completado o nono<br />

ano de escolaridade dois anos depois. Na escola manifestava dificuldades<br />

em aprender e se relacionar, factos que traduziram um mal-estar<br />

interior. Permitir-lhe a criação de sentimentos de pertença à escola, a<br />

interiorização de outros adultos de referência e intervir no contexto<br />

familiar, foram as estratégias encontradas para que no final encontrasse<br />

o seu próprio sucesso.<br />

Psicóloga de um <strong>PIEF</strong> na região Centro, em jeito de carta, escrevo ao<br />

Jorge...<br />

«Juntos temos uma história. A nossa história. Ainda te lembras? Passámos<br />

tardes a falar. Eu só te queria ajudar e sentia-me impotente com<br />

o que tu contavas. Sem querer, envolvemo-nos nas histórias, nas vidas<br />

de todos aqueles que se cruzam connosco na escola, na vida. Vivemos<br />

todos os sofrimentos, todas as desilusões. Foi uma caminhada lenta, a<br />

nossa. Foram dois anos de história conjunta que agora queria passar<br />

para o papel, para que saibas que ouvi tudo o que me disseste, que<br />

senti contigo o que partilhaste.


É difícil viver com tanta rejeição e, mesmo assim, continuar a acreditar<br />

que ainda era possível sonhar. Sonhavas com impossíveis. Fantasias<br />

onde te perdias, onde te escondias da realidade e eu não te queria<br />

acordar. Tinha vontade de te dar colo, de te dizer que ia correr tudo<br />

bem mas não queria ser mais uma a desiludir-te.<br />

Vieste para o <strong>PIEF</strong> contrariado. Estiveste sempre à parte na turma, até<br />

na escola. Não querias o curso de electricidade mas precisavas, acima<br />

de tudo, sair de casa. Estavas sempre só e escondias-te atrás dos<br />

cigarros e de um gorro que teimavas em não tirar. Por vezes, farto do gozo<br />

dos outros, desatavas ao murro a tudo e a todos. Eram dias difíceis. Tu a<br />

quereres toda a atenção do mundo, e eu, a ter de a dividir sempre com<br />

mais dez. Esgotámos conversas por telemóvel, por mensagens. Tu querias<br />

desistir (acho que até de ti) e eu queria fazer-te ficar.<br />

As aulas pouco ou nada te diziam e até aí era difícil acordar. Quantas<br />

vezes estiveste em risco de chumbar, por adormeceres na sala, por<br />

largares piadas sem nexo ou por te dedicares a comportamentos<br />

descontextualizados que não agradavam a ninguém. Desinteresse e<br />

insucesso de mãos dadas, que te acompanhavam para todo o lado.<br />

Mergulhavas em filmes que te anestesiavam e em cigarros que cravavas<br />

sem discriminação. Foi difícil fazeres amigos, os outros sempre te<br />

olharam de forma estranha, porque tu não querias dividir nada com<br />

ninguém. Isolavas-te nas tuas coisas, numa fuga constante face ao que<br />

acontecia à tua volta.<br />

De tanto te tratarem como o mau começavas a acreditar que o eras.<br />

Porque nós (os adultos) esquecemos que o que dói nem sempre é o que<br />

é, às vezes basta ser o que se pensa que poderá ser. Por vezes os<br />

problemas estão dentro de nós e valem como se fossem reais. Às vezes<br />

são até mais assustadores, quais moinhos de D. Quixote em forma de<br />

gigantes invencíveis.<br />

Por momentos, achei que te tinha perdido nesta viagem complicada<br />

que é crescer. Chegaste àquele ponto onde já nada interessa, onde a<br />

indiferença chega e se instala. Não há nada pior do que nos sentirmos<br />

indiferentes, invisíveis aos olhos dos outros. Ninguém existe sozinho.<br />

Todos precisamos de ser vistos, de nos mostrarmos para alguém que nos<br />

acompanha ao longo da vida. Tu habituaste-te a estar só, a crescer só.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

172<br />

Vivias com a tua mãe, que te culpa de um casamento fracassado e te<br />

acusa de seres parecido a um pai que não vês. Ao teu lado, uma irmã<br />

mais velha, demasiado ocupada com o seu próprio sucesso pessoal e<br />

profissional. Em casa, trancavas-te no teu quarto e ligavas-te a um<br />

rádio que tocava músicas sem fim. Como se necessitasses das melodias<br />

que te prendessem a casa, à vida. Como se te alimentasses das melodias<br />

que te enchiam o corpo, a alma, até te sentires cheio de qualquer<br />

coisa.<br />

Muitas vezes fui a tua casa tentar servir de intermediário entre ti e uma<br />

mãe, com dificuldade em amar-te, em aceitar-te como és. Foram horas<br />

de conversa, de troca de acusações, até de insultos, como se não<br />

houvesse nada que vos ligasse. Não a culpavas mas, querias muito que<br />

ela te visse, que se sentisse orgulhosa de ti.<br />

Por meio, um AVC que também foi dado como uma culpa tua. Nunca<br />

tinhas pressa de ir para casa, andavas por aí a vaguear. À procura de<br />

qualquer significado para ti, de qualquer significado de ti. Pouco tempo<br />

depois a tua mãe precisou de ti e tu lá estavas. A tua irmã voltou para<br />

casa e tu começaste a sentir-te importante. O homem da casa. Passaste<br />

a trabalhar aos fins-de-semana, e com um dinheirinho no bolso, sentiste-te<br />

útil, capaz. Descobriste-te bonito, atraente para o sexo oposto<br />

e isso ajudou-te a gostar de quem és.<br />

Nunca faltavas à escola, acho que procuravas o que não tinhas em<br />

casa. Mas, as notas eram más e o rótulo difícil de alterar. O segundo<br />

ano foi diferente. Acordaste para os estudos. Passávamos tardes na<br />

biblioteca a estudar. Tu querias mudar, aprender e não foi difícil ensinar-te.<br />

Estavas disponível e facilmente levantaste as negativas.<br />

A tua luz interior sempre foi mais forte, acho que te surpreendeste até<br />

a ti mesmo e continuaste, até ao fim. No final, completaste o nono ano<br />

e quiseste continuar a estudar. Depressa percebeste que precisavas de<br />

dinheiro para poderes voar e as dificuldades em manteres relações<br />

voltaram a ganhar. Deixaste os estudos e agora trabalhas. Mas, ainda<br />

hoje continuas a sonhar».<br />

A importância de uma escola de afectos, de significações e criação de<br />

laços desenvolve-se com adultos de referência. No <strong>PIEF</strong> procuramos<br />

tornar a escola num espaço de crescimento intelectual e cognitivo. Mas


EM BAIXO<br />

Desenho realizado por José Carlos Fernandes Nunes, aluno de <strong>PIEF</strong>.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

174<br />

procuramos torná-la também num espaço de crescimento emocional e<br />

relacional.<br />

Da escola esperamos que tenha um papel de suporte, proporcionando<br />

um ambiente não exclusivo mas diferente, que possa integrar e não<br />

excluir, que possa acolher e não encaminhar, que possa ensinar e não<br />

instruir. Porque aprender também é (e de acordo com o étimo latino)<br />

criar laço, vínculos, sentimentos de pertença. Escola e relação pedagógica<br />

poderão funcionar como um modelo reparador de falhas internas,<br />

de contenção e gratificação, estabelecendo desta forma a ponte entre<br />

escola e saúde mental. Caso contrário, continuaremos a ter jovens que<br />

se perdem por caminhos de consumo de álcool, tabaco e até de outras<br />

drogas, que não são mais do que equivalentes a ansiolíticos, anestesias<br />

sociais que impedem novas desilusões.<br />

Quando os jovens chegam ao <strong>PIEF</strong> não procuram uma intervenção caridosa<br />

ou permissiva. Não se trata de olhar para eles como os coitadinhos<br />

ou os mal amados do sistema mas, de lhes dar um novo<br />

espaço, um olhar interessado de quem tem disponibilidade para<br />

ouvir, para compreender, sem julgar ou criticar. E é desta qualidade<br />

e constância das relações que se estabelecem com o monitor, com<br />

o director de turma ou com o psicólogo, que se buscam as referências<br />

para a sua modelação interior, para que internalizem que nem todos os<br />

adultos são enganadores, abusivos ou pior abandonantes.<br />

Muitas vezes, tal como com Jorge, lidamos com jovens que cresceram<br />

num clima de ausência de vinculações seguras, carências que criam<br />

falhas ao nível do respeito <strong>pelo</strong> próximo e <strong>pelo</strong> próprio. E é com frequência<br />

que estes jovens voltam à escola carregados de desejos de<br />

vingança, de destrutividade, demonstrando <strong>pelo</strong>s outros uma desconfiança<br />

que é necessário trabalhar, reconduzir. A sua capacidade de se<br />

relacionarem é muito frágil, volátil, marcada por extremos de investimento-desinvestimento,<br />

entre o desejo de não depender de ninguém e<br />

a vontade de ser desejável e desejado.<br />

Lidamos com jovens, que tal como o Jorge, por razões várias, vivenciaram<br />

situações negativas, vendo-se por isso privados de uma boa sensação<br />

de preenchimento afectivo, crescendo num desamparo familiar e<br />

social que condicionam as suas atitudes e comportamentos. Porque há


famílias que bloqueiam, dificultam, distorcem a capacidade de amar.<br />

Perde-se o lugar por excelência dos afectos, caindo-se num vazio difícil<br />

de encher.<br />

Este voltar à escola é tentar uma última vez. É voltar a dar, antes da<br />

entrada na idade adulta e da consolidação da Identidade, a necessidade<br />

de ter limites e regras para a vida mas, é também actuar enquanto<br />

adultos de referência, enquanto novos modelos contentores, atentos,<br />

disponíveis e interessados, reparando falhas existentes. Equilibrando<br />

diariamente, numa luta contra o tempo de crescimento, o tudo e o nada,<br />

o bom e o mau, e estar e o ser. Porque na vida é preciso saber estar<br />

para poder ser e é feita de pequenos nadas ora bons ora maus, que nos<br />

marcam em toda a nossa individualidade.<br />

Para estes jovens o seu lugar ainda é a escola. Talvez não uma escola<br />

preocupada com o nível de instrução a alcançar mas, uma escola de<br />

afectos, que não dê mais do mesmo mas, que permita continuar a<br />

sonhar, para que possam manter a vontade de mudar, de ser diferente.<br />

Uma escola (verdadeiro palco social) que seja um lugar de todos, sem<br />

portas fechadas, sem perpetuar rótulos de casos perdidos – escola<br />

contentora, onde todos temos um lugar que é de todos por direito.<br />

24 - TESTEMUNHO COLECTIVO - os/as professores/as, monitora, psicó-<br />

loga e conselho executivo (2006/07)<br />

A partir da implementação da medida <strong>PIEF</strong> numa EB 2,3 na região<br />

centro do país, há cerca de três anos, foram dados determinados<br />

passos para a recuperação de jovens em abandono escolar, em risco de<br />

trabalho infantil e mesmo em trabalho infantil. Quando se fala em<br />

recuperação de jovens, trata-se, sobretudo, de trazê-los de novo à<br />

escola e ajudá-los a construir estruturas e competências: criar hábitos<br />

de trabalho, diferentes daqueles que tinham noutras circunstâncias;<br />

desenvolver a sua auto-estima e autonomia na realização de tarefas<br />

escolares; projectar o seu futuro sob uma perspectiva que passe, inevitavelmente,<br />

por uma escolarização. Este é um depoimento colectivo<br />

dos professores destacados em <strong>PIEF</strong> nessa EB 2,3, da monitora e da<br />

psicóloga, incluindo um testemunho do órgão de gestão da escola.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

176<br />

A nossa passagem <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> sensibilizou-nos por a considerarmos uma<br />

medida única e, por isso mesmo, tão especial para um público específico,<br />

com características muito marcantes. Parece quase à partida uma<br />

medida suicida, sem grande possibilidade para crescer e dar frutos. De<br />

facto, juntar numa mesma turma, todos os que por qualquer motivo,<br />

foram rotulados de delinquentes, fora-da-lei, mal-educados, preguiçosos,<br />

maus, feios, porcos, os que não dão nada… (a lista poderia continuar a<br />

engordar…) não é tarefa fácil, nem tão pouco aliciante. Contudo, facilmente<br />

compreendemos que há, certamente, muito ainda por fazer com<br />

aqueles para quem a escola não soube responder de forma objectiva e<br />

clara às suas expectativas. Não porque a escola tivesse agido mal, mas<br />

por não responder, exactamente às suas expectativas, quantas vezes,<br />

diferentes das que tomamos como norma.<br />

É precisamente nesta perspectiva diferente de encarar a nossa tarefa<br />

enquanto educadores que as coisas podem funcionar. Trabalhar com<br />

uma turma <strong>PIEF</strong> requer uma (muito) grande flexibilidade e um ajuste<br />

permanente daquilo que se espera e daquilo que se recebe efectivamente.<br />

Requer também uma mente aberta e um «contar até cem»,<br />

para o não «rebentar» constante.<br />

O primeiro grande objectivo quando se trabalha com uma turma <strong>PIEF</strong> é<br />

criar (voltar a criar) e devolver o gosto de andar na escola. E isto,<br />

torna-se tanto mais difícil quanto mais experiências interessantes o<br />

jovem já teve fora do contexto escolar.<br />

Por isso, é fundamental uma equipa pedagógica coesa (quase familiar),<br />

capaz de ser flexível e exigente, capaz de ser meiga e dura, capaz de<br />

ouvir e fazer-se ouvir, capaz de dar (sem medidas) e de receber. Igualmente<br />

necessária é a comunicação permanente entre toda a equipa e<br />

a EMM, bem como, entre todas as estruturas, para que nada se perca<br />

e para que tudo sirva de partilha e enriquecimento. Esta permanente<br />

comunicação faz toda a diferença e é sem dúvida a mais-valia para que<br />

tudo funcione.<br />

A forma como a Escola, de uma forma particular, o órgão de gestão da<br />

escola, encara este programa, contribui decisivamente para que os<br />

objectivos sejam, ou não, alcançados. A atestá-lo está o testemunho a<br />

seguir apresentado.


«… Numa perspectiva de escola aberta, o projecto foi mesmo para a<br />

frente, criando-se assim uma turma <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo que, no<br />

início, foi alvo de muitas dúvidas sobre a sua viabilidade, suscitando<br />

muitas incertezas sobre o seu grau de sucesso.<br />

Foram disponibilizados recursos físicos específicos para esta turma: uma<br />

sala específica, um horário adaptado, parcerias com instituições, etc.<br />

Sucederam-se sucessos e percalços, ocorreram vitórias e fracassos,<br />

houve alturas de desânimo mas, sobretudo, registaram-se muitos momentos<br />

de satisfação e sucesso educativo. E, aos poucos, a turma <strong>PIEF</strong><br />

deixou de ser apenas a turma dos alunos que causavam desconfiança<br />

e passou a ser mais uma turma da escola - algumas vezes até o seu<br />

orgulho - com desempenhos muito positivos em actividades e projectos<br />

desenvolvidos.<br />

Alunos que já haviam desistido da escola, a quem o mundo do trabalho<br />

acenava, fizeram um esforço e, em colaboração com os seus professores,<br />

monitora e psicóloga, percorreram um caminho nem sempre fácil<br />

e conseguiram concluir o sexto ano de escolaridade, abrindo-se assim<br />

novas portas e perspectivas.<br />

Não houve, portanto, muitas dúvidas quando surgiu a possibilidade de<br />

continuar a dar resposta a estes jovens criando uma turma <strong>PIEF</strong> de<br />

terceiro ciclo, com características CEF (curso de educação e formação).<br />

Passado que está já o primeiro ano deste projecto nós, membros do<br />

conselho executivo, estamos satisfeitas com o trabalho desenvolvido;<br />

estamos particularmente agradadas com o desempenho<br />

da equipa pedagógica, da monitora, da psicóloga e dos parceiros<br />

mas, sobretudo, estamos muito gratas por ver nos alunos desta<br />

turma gosto <strong>pelo</strong>s estudos, gosto pela escola e a perspectiva de<br />

um futuro melhor, uma vez que para além de lhes garantir a conclusão<br />

da escolaridade obrigatória, os estamos a dotar de uma formação<br />

profissional que pode ser decisiva no mercado de trabalho».<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

178<br />

25 - VÁRIAS FUNÇÕES E MÚLTIPLOS PAPÉIS - Ana Simas, Carla Silva,<br />

Carlos Freitas e Maria João Breia (técnicos da EMM)<br />

De todos os técnicos que trabalham directamente nos <strong>PIEF</strong>, aqueles que<br />

têm um papel mais árduo, mas que pode também ser o mais compensador,<br />

são os monitores. Constituem-se como uma verdadeira ponte<br />

entre o passado e o futuro dos jovens do <strong>PIEF</strong>, os que estão em permanência<br />

com eles na escola, os que ouvem as suas queixas relativamente<br />

aos professores e, porventura ainda mais no sentido inverso, dos<br />

professores face aos alunos. Técnicos com a missão de gerir equilíbrios,<br />

dirimir conflitos, procurar sistematicamente soluções para problemas<br />

que, às vezes, parecem insolúveis.<br />

O percurso de uma psicóloga que trabalhou com uma EMM do norte do<br />

país, entre 2004 e 2006, primeiro como membro da unidade de saúde<br />

escolar do centro de saúde, posteriormente como monitora de <strong>PIEF</strong> a<br />

tempo inteiro, destaca a multiplicidade de papéis, funções e níveis diferenciados<br />

de intervenção dos monitores no <strong>PIEF</strong>.<br />

Se os jovens que passam <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong> precisam de um enquadramento<br />

particular, também as escolas que acolhem os <strong>PIEF</strong> precisam de sentir<br />

o suporte de um técnico com perfil e qualificações adequadas para gerir<br />

grupos que, em maior ou menor grau, criam turbulência no normal<br />

funcionamento da comunidade escolar. Existem, assim, níveis de intervenção<br />

diferenciados na monitorização de um <strong>PIEF</strong>, desde a intervenção<br />

directa com os menores, ao trabalho com as famílias, passando <strong>pelo</strong><br />

papel desempenhado nas equipas pedagógicas, ou tipos de intervenção<br />

mais indirecta, com funcionários da escola ou técnicos de outras instituições.<br />

Conjugam-se assim na figura do monitor uma multiplicidade de<br />

papéis que, alternada ou simultaneamente, definem a intervenção<br />

destes técnicos no <strong>PIEF</strong>.<br />

Uma das experiências paradigmáticas na monitorização do <strong>PIEF</strong> foi a<br />

que ocorreu com a Mónica, no <strong>PIEF</strong> para certificação de terceiro ciclo<br />

que decorreu numa escola secundária entre Setembro de 2004 e Junho<br />

de 2006.<br />

Em 2004, no âmbito de uma parceria com um centro de saúde, foi<br />

construído o programa «Ser Capaz», um programa de prevenção pri-


mária dos problemas relacionados com a sexualidade na adolescência<br />

que visava promover o desenvolvimento de competências que permitissem<br />

aos jovens compreender e integrar a sexualidade de uma forma<br />

mais positiva, segura, responsável e adaptativa.<br />

A Mónica fazia o seu estágio curricular naquele centro de saúde e foi<br />

uma das técnicas envolvidas na construção e na aplicação do <strong>PIEF</strong>. Em<br />

boa verdade, acabou por ser o elemento central da equipa de trabalho,<br />

pela extraordinária ligação que desenvolveu com todos os intervenientes<br />

no <strong>PIEF</strong>. Terminado o estágio e a licenciatura em psicologia, a<br />

Mónica foi convidada a trabalhar connosco no segundo e último ano<br />

lectivo daquele <strong>PIEF</strong>, desafio que aceitou.<br />

A Mónica trabalhou com duas turmas <strong>PIEF</strong> de dezasseis alunos cada, no<br />

ano lectivo 2005-06. Entrava à hora que os alunos entravam e só saía<br />

depois deles regressarem a casa. Trabalhou directamente com cada um<br />

dos grupos através de sessões semanais de desenvolvimento pessoal e<br />

social e, posteriormente, com um programa de promoção cognitiva.<br />

Interveio, como psicóloga, nos casos diagnosticados com perturbações<br />

de tipo clínico ou psicopedagógico. Era membro de direito próprio no<br />

conselho de turma e o braço da EMM nos órgãos pedagógicos e de<br />

gestão da escola. Encaminhou vários casos para as instituições competentes<br />

quando a abordagem implicava a intervenção de outros serviços<br />

da comunidade. Foi responsável <strong>pelo</strong> enquadramento e monitorização<br />

dos menores do <strong>PIEF</strong> que tinham processos de promoção e protecção<br />

ou tutelares educativos. Esteve disponível para os pais dos alunos,<br />

mesmo para os que tinham menor disponibilidade. Foi, à vez, monitora,<br />

conselheira e psicóloga, sendo curioso o facto de todos sentirem que<br />

qualquer um daqueles rótulos era redutor da sua intervenção.<br />

A intervenção mais relevante foi a que efectuou com as equipas pedagógicas.<br />

Inicialmente vistas com alguma relutância, esta intervenção teve<br />

um importante impacto na reestruturação de crenças e expectativas<br />

dos professores relativamente aos alunos e no estabelecimento de uma<br />

relação de efectiva parceria na equipa pedagógica. Esta acção foi<br />

estruturada, intitulou-se «<strong>PIEF</strong>: um desafio educativo» e teve como<br />

objectivos, em primeiro lugar, constituir um espaço de partilha de<br />

ansiedades, receios e dúvidas dos professores e, em segundo lugar,<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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discutir alguns factores de risco associados aos jovens (risco de abandono<br />

escolar, meios sociais desfavorecidos, idade), pela forma como<br />

estes muitas vezes se relacionam com a desmotivação e o desinteresse<br />

escolar e com a manifestação de comportamentos disruptivos.<br />

Era uma intervenção dividida em três grandes módulos e que englobava<br />

hipóteses explicativas para o abandono e o insucesso escolares, a<br />

etiologia dos comportamentos de indisciplina e, por último, sugeria<br />

estratégias e metodologias de intervenção diferenciadas, desde a reestruturação<br />

ambiental da sala de aula e de outros contextos escolares<br />

como forma de regular e controlar comportamentos, à importância da<br />

qualidade da interacção pedagógica ou à explicitação de estratégias<br />

comportamentais e cognitivas de modificação da conduta.<br />

Sendo, talvez, o trabalho directo com os jovens a forma mais comum<br />

de intervenção dos monitores nos <strong>PIEF</strong>, cremos que é fundamental dar<br />

visibilidade a outras estratégias mais indirectas, ainda que o seu objectivo<br />

último seja, também, promover o sucesso educativo dos alunos.<br />

Desta forma, e dando voz à Mónica, trabalhar com as equipas pedagógicas<br />

«será talvez uma das actividades mais importantes no que se<br />

refere ao sucesso de toda a intervenção psicopedagógica com estes<br />

alunos uma vez que os professores constituem o elemento chave de<br />

todo o processo. Os alunos passam a maior parte do seu tempo na sala<br />

de aula e, portanto, a personalidade, o comportamento, expectativas,<br />

atitudes e estratégias educativas de cada professor são elementos fundamentais<br />

que é preciso identificar. E se algumas destas características<br />

poderão ser imutáveis, outras são passíveis de se moldarem, serem<br />

alteradas ou atenuadas, sem ameaçar ou pôr em causa a identidade<br />

pessoal e profissional dos docentes. Esta é uma tarefa difícil uma vez<br />

que nem todos os professores se mostram receptivos a este apoio e<br />

troca de experiências que resulta numa mais valia para os alunos.<br />

Neste contexto escolar concreto foi possível e na maior parte das vezes<br />

bem sucedido».


26 - MULHERES EM CASA - Carmem Sofia Silva (TIL)<br />

A Sónia integrou o <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo, com treze anos de idade, numa<br />

escola de um concelho do Alentejo. O motivo do abandono escolar?<br />

Após concluir o quarto ano, o pai não deixou que nenhuma das filhas<br />

fizesse mais: mulheres são para ficar em casa ou trabalhar debaixo da<br />

sua alçada.<br />

Realizou o segundo ciclo e ingressou imediatamente na turma de terceiro<br />

ciclo, que actualmente frequenta com sucesso. Apesar de todas as<br />

suas experiências de trabalho, a escola é hoje vista como um espaço<br />

privilegiado onde pode ser simplesmente ela própria.<br />

Vivem num monte relativamente perto da vila mas, por vezes, isolado<br />

do mundo, especialmente, desde que a irmã da Sónia constituiu família<br />

e passou a viver no seu próprio agregado. A mãe tem verbalizado o<br />

reconhecimento que sente <strong>pelo</strong> que se fez pela sua filha. Sentimos que<br />

o pai, agora, também o faz, alternando entre o seu habitual silêncio e<br />

alguns murmúrios pouco perceptíveis.<br />

No primeiro contacto com a família, no Verão de 2005, verificou-se a<br />

dificuldade em encontrar a jovem em casa, dado que se encontrava no<br />

campo a pastorear. O processo de sedução a esta família levou mais de<br />

seis meses, com visitas regulares. A possibilidade de reingressar na<br />

escola estava sempre dependente de qualquer coisa relacionada com o<br />

gado….<br />

Enquanto a mãe se dedica às lides domésticas, o pai da Sónia sai todos<br />

os dias de manhã bem cedo para guardar o gado. As dificuldades económicas<br />

são muitas vezes sentidas por todos, mas tentam ultrapassá-las<br />

da melhor forma possível.<br />

A Sónia é simpática e bem disposta. Mantém uma boa relação com toda<br />

a família, principalmente, com a sua irmã. Com o pai é que é mais<br />

complicado. Sempre apresentou um feitio muito difícil e tudo tem que<br />

ser à maneira dele. Por um lado, defendia que elas tinham de ficar em<br />

casa muito cedo para aprenderem a ser «mulherzinhas», não havia cá<br />

tempo para brincadeiras. Achava que o importante era as mulheres<br />

saberem fazer tudo lá em casa. Por outro, considerava importante que<br />

o acompanhassem durante o seu trabalho, pois só assim conseguia<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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garantir que nada de mal acontecia. Tinham sempre que fazer aquilo<br />

que ele mandava e sem reclamar, «tinham que se preparar para<br />

enfrentar a vida», segundo ele. A mãe, sempre fez tudo aquilo que ele<br />

quis, mesmo sem concordar com muitas decisões que tomava, nunca<br />

lhe fazendo frente e dizendo permanentemente que «não podia fazer<br />

nada».<br />

Para o pai, a escola era uma autêntica perda de tempo, não vendo nela<br />

qualquer utilidade. A mãe não tinha a mesma visão, achando até que<br />

seria bom aprender mais. No entanto, como não queria aborrecer-se<br />

com ele, sempre acatou as suas decisões. Era bem mais fácil não o<br />

contrariar. Assim, não o via tão «chateado». Nesta altura, a Sónia aproveitava<br />

também para o ajudar quando ele saía para guardar as ovelhas,<br />

sempre estava ocupada e sentia-se bem!<br />

Durante dois anos não frequentou a escola e, em 2004, não tendo<br />

comparecido nem um dia e tendo treze anos de idade, a escola fez a<br />

sinalização do abandono escolar. Pouco tempo depois, a EMM foi lá a<br />

casa. Explicaram que não tinha idade para trabalhar e que tinha mesmo<br />

que voltar para a escola.<br />

A Sónia não mostrou muita vontade, mas pior foi mesmo o pai.<br />

Inicialmente nem sequer queria falar com a EMM. Para ele, a decisão<br />

estava tomada e não havia volta a dar. Tudo foi explicadinho ao pormenor<br />

mas, mesmo assim, o pai levou algum tempo a acreditar que aquilo<br />

podia correr bem. Foi necessário garantir-lhe que a ida da sua filha para<br />

a escola não trazia mais despesas lá para casa e que a iriam proteger<br />

das más companhias. Só ao fim de alguns contactos conseguiram<br />

convencê-lo a deixar ir a Sónia... e ela lá foi.<br />

Em Dezembro de 2005 voltou à escola. Integrou o <strong>PIEF</strong> de segundo<br />

ciclo mas, apesar de ter conseguido concluir com sucesso o sexto ano,<br />

só com muito apoio dos professores e da TIL conseguiu manter-se até<br />

final. Se, durante o período de aulas só se dedicou à escola, logo que<br />

as férias começaram regressou ao campo e aos trabalhos lá de casa.<br />

No final do período de férias recebeu novamente a visita das mesmas<br />

técnicas. Era o momento de voltar para a escola... O pai afirmou então<br />

que, desta vez é que não a autorizava a ir, não achava que as coisas<br />

tivessem corrido mal durante o ano lectivo, pois tudo o que fora


prometido tinha sido cumprido, mas como para terminar o nono ano<br />

eram necessários mais dois anos, então era melhor terminar o seu<br />

percurso escolar. Depois do acordo feito com as técnicas, resolveu<br />

deixá-la ir, logo que terminassem os últimos dias da vindima…<br />

Esta família passou a encarar a escola de outra forma, principalmente<br />

o pai da Sónia. Nos contactos com a TIL foi percebendo que, afinal, a<br />

ida da filha para a escola não lhe trouxe qualquer problema, uma vez<br />

que cumpriu as suas obrigações escolares e sempre apresentou um<br />

bom comportamento, tanto na escola como fora dela. Entendeu também<br />

que a conclusão do nono ano era muito melhor para a Sónia,<br />

podendo tentar arranjar um emprego melhor, bem como, tirar a carta<br />

de condução.<br />

Com o tempo, foi ganhando confiança com as técnicas e com os<br />

professores e percebeu que estavam a cumprir o que haviam prometido.<br />

Para além de ter autorizado a Sónia a participar em todas as<br />

actividades da escola, até a deixou ir à viagem de três dias que fizeram<br />

no final do ano ao Algarve.<br />

Actualmente, este pai está muito diferente. Ficou triste quando<br />

inicialmente a Sónia disse que não lhe apetecia muito ir à escola.<br />

Acabou mesmo por dizer que não queria que ela desistisse… agora<br />

que já só falta um ano para chegar ao fim do nono ano...<br />

Tendo-se apresentado inicialmente como um homem muito conservador<br />

no que respeitava à educação das filhas, não vendo qualquer utilidade<br />

na escola, após os progressivos contactos que foram efectuados desenvolveu<br />

uma percepção diferente (da escola) e começou a ser relativamente<br />

mais permissivo e bastante mais participativo no percurso<br />

escolar da sua Sónia.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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27 - OS «<strong>PIEF</strong>S» - Sílvia Maria Reis Silva (auxiliar da acção educativa)<br />

Funcionária auxiliar da acção educativa numa EB 2,3 do Alentejo<br />

central, desde o dia 29 de Setembro de 2005 que me encontrava num<br />

programa ocupacional e foi a partir desse mesmo dia que comecei a<br />

ouvir falar nos «<strong>PIEF</strong>S».<br />

Este testemunho em três actos, começa com o meu primeiro dia de<br />

trabalho, prossegue com as minhas impressões sobre o «estar perto»<br />

destes jovens e termina com uma dedicatória a estes e todos os «<strong>PIEF</strong>S»<br />

do país.<br />

Acto I<br />

Para saber o que eram os «<strong>PIEF</strong>S», no dia 29 de Setembro de 2005<br />

perguntei a várias pessoas na escola que me respondiam:<br />

- São aqueles que vêm para a semana!<br />

- São os maus!<br />

- São os do bairro!<br />

Curiosa perguntava:<br />

- E «<strong>PIEF</strong>S» quer dizer o quê?<br />

- Então, quer dizer que são os «<strong>PIEF</strong>S».<br />

E eu ficava a saber o mesmo. Na manhã de três de Outubro, quando<br />

cheguei à escola, a primeira coisa que ouvi foi o seguinte:<br />

- Já cá estão os «<strong>PIEF</strong>S», agora é que vai ser bonito!<br />

Pensei, finalmente, que iria saber «o que» eram e «quem» eram os<br />

«<strong>PIEF</strong>S». Foi quando vi, um grupo de rapazes e raparigas muito irrequietos<br />

que se movimentavam ruidosamente de um lado para o outro.<br />

No seu andar apressado e olhar em frente, passavam por mim, como<br />

se eu fosse apenas uma coisa que ali estava, e seguiam o seu caminho.<br />

Ao soar o toque para a entrada nas aulas, aquele grupo de (quase)<br />

homens e mulheres que já deveriam estar a frequentar a escola secundária,<br />

estavam ali na «escola preparatória», entravam todos para a sala<br />

e por lá se acomodavam (ou não) até à hora da saída.


Durante vários dias observei-os atentamente e notei que havia neles<br />

um certo «desinteresse» <strong>pelo</strong>s estudos. Foi quando imaginei, que a<br />

sigla «<strong>PIEF</strong>S», poderia, muito bem, querer dizer: «projecto de inserção<br />

educativa dos falhados». Sempre atenta aos seus movimentos e comportamentos,<br />

comecei a sentir uma enorme vontade de me aproximar<br />

e de comunicar com eles.<br />

Entretanto continuei a perguntar o significado da sigla. Ao perguntar a<br />

um miúdo que aparentava ter os seus onze anos este respondeu-me:<br />

- Então a senhora empregada não sabe? Isso quer dizer: «parvos,<br />

incultos, estúpidos e feios».<br />

- Muito obrigada, meu menino, <strong>pelo</strong> teu esclarecimento.<br />

Mas, ali logo ao lado, havia um grupo de raparigas adolescentes e uma<br />

delas disse:<br />

- Senhora empregada não acredite no que esse menino disse porque a<br />

sigla «<strong>PIEF</strong>S» quer dizer: «parvalhões, indesejados, emburrados e<br />

fumadores».<br />

Perante estas duas informações, mais uma vez, fiquei sem saber qual<br />

o seu significado. E continuei a observá-los.<br />

No dia dezoito de Outubro, num dos canteiros das árvores em frente ao<br />

bar da escola, uma aluna da turma dos «<strong>PIEF</strong>S» escreveu com giz o<br />

nome de um rapaz, também dos «<strong>PIEF</strong>S», acrescentando-lhe palavras<br />

feias. Cheguei perto dela e disse-lhe:<br />

- Menina esses canteiros não foram feitos para se escrever neles.<br />

Ela parou um pouco. Mal eu virei as costas, começou novamente a<br />

escrever. Dirigi-me a ela e disse-lhe:<br />

- Tu sabes tão bem como eu que não deves escrever aí essas coisas.<br />

Portanto, não escrevas mais.<br />

Levantou-se contrariada virou-se para mim e disse-me:<br />

- E o que é que você tem com isso?<br />

E foi-se embora. Não lhe respondi mais nada. Peguei na vassoura molhada<br />

e apaguei a escrita. Enquanto isso, saiu do bar o rapaz cujo nome<br />

tinha sido escrito. Chamei-o <strong>pelo</strong> nome. Ele olhou para mim e disse-lhe:<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

186<br />

- O que aquela menina escreveu aqui já está apagado que eu já limpei<br />

tudo com a vassoura.<br />

Ele respondeu-me:<br />

- Muito obrigadinho!<br />

No dia seguinte, esse mesmo rapaz, estava com outro a fumar em frente<br />

às casas de banho do campo de futebol. Quando me viu disse-me com<br />

uma voz muito meiga:<br />

- Senhora empregada, eu estou, a fumar.<br />

- Eu já vi… mas tu sabes que é proibido fumar no recinto da Escola, não<br />

sabes?<br />

- Sei sim senhora empregada!<br />

- Tens consciência de que estás a prejudicar a tua saúde?<br />

- Tenho!<br />

- Sabes que estás a queimar o dinheiro em frente aos teus olhos? Não<br />

sabes?<br />

- Sei sim senhora empregada, mas tudo depende do primeiro cigarro<br />

porque se a gente não gosta ficamos por ali, mas se a gente gosta<br />

torna-se num vício e eu tive o azar de gostar.<br />

- Ainda, és muito jovem e se tiveres força de vontade podes muito bem<br />

prescindir desse vício que só te traz malefícios.<br />

Depois desta troca de palavras continuei o meu serviço e ele ficou<br />

calmamente a fumar o resto do cigarro.<br />

No dia vinte de manhã, tentei falar com ele mas só o vi uma vez de longe,<br />

quando ele ia a entrar para a sala de aulas. À tarde, quando vinha já<br />

de saída para casa encontrei-o casualmente. Chamei-o, ele dirigiu-se a<br />

mim, e disse-lhe:<br />

- Tenho aqui uma coisa que trouxe para te oferecer, se a quiseres<br />

aceitar.<br />

Comecei a desenrolar uma folha de papel «A4», um texto sobre os<br />

«<strong>PIEF</strong>S» que lhe entreguei, e ele começou a ler.


Acto II<br />

Quando terminei de escrever o texto sobre os «<strong>PIEF</strong>S», onde relato o<br />

comportamento de alguns dos alunos, dirigi-me à tipografia para mostrá-lo<br />

à minha chefe e perguntar-lhe se ela achava, ou não, que o<br />

trabalho teria algum interesse para que eu o oferecesse ao conselho<br />

executivo da escola.<br />

Depois de falar com a minha chefe, entrou uma empregada que, ao ver<br />

a capa, com o título «OS <strong>PIEF</strong>S», perguntou:<br />

- Então isto é alguma participação dos «<strong>PIEF</strong>S»?<br />

Respondi:<br />

-Não! Isto é um trabalho que eu fiz sobre os «<strong>PIEF</strong>S»!<br />

- Ainda você anda a perder tempo com eles. O que eles querem todos<br />

é um murro nos cornos, cada um.<br />

Não lhe respondi e como já tinha falado com a chefe, o que tinha a falar<br />

sobre o assunto, retirei-me. Mas aquela frase do murro ficou a martelar-me<br />

na cabeça e pensei:<br />

- Depois dizem que os «<strong>PIEF</strong>S» são maus e que são mal-educados… se<br />

o são, muitas vezes, é porque não os respeitam. Se algum deles tivesse<br />

ouvido o que aquela colega disse, certamente, não a deixaria sem<br />

resposta.<br />

Os «<strong>PIEF</strong>S», quando tiveram conhecimento de que estava a escrever um<br />

trabalho, sobre eles, começaram a aproximar-se de mim. Todos tinham<br />

curiosidade em saber o tema e começaram a dizer uns aos outros:<br />

- Aquela empregada que veio para cá agora anda a escrever uma<br />

história dos «<strong>PIEF</strong>S».<br />

Todos os dias me perguntavam se eu já tinha acabado de escrever a<br />

história, tal o interesse que tinham. Apenas lhes dizia que falava deles<br />

e que depois de terminar gostaria que no intervalo das dez horas, nos<br />

juntássemos todos, e aí então eu iria ler para que todos ouvissem.<br />

A curiosidade deles aumentava a cada dia até que, no dia 11 de<br />

Novembro de 2005, conforme o prometido, como eles não se juntaram<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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todos e o tempo escasseou, li para alguns deles apenas uma parte do<br />

texto, enquanto eles me escutavam com muita atenção.<br />

Quando soou o toque da entrada, pediram-me se lhes emprestava a<br />

história para mostrarem à professora de português e pedirem para a<br />

professora ler para eles na sala de aula. Atendi ao pedido e entreguei<br />

um original do texto a uma das alunas «<strong>PIEF</strong>S».<br />

Soube depois que, enquanto a professora lia, os alunos ouviam-na<br />

emocionados com muita atenção e quando terminou verificou que<br />

alguns deles tinham os olhos marejados de lágrimas.<br />

Depois de todos os «<strong>PIEF</strong>S» terem ouvido o texto na íntegra, na primeira<br />

oportunidade dirigiram-se a mim, agradeceram-me por tudo<br />

o que escrevi sobre eles e por não ter mencionado nomes.<br />

Enquanto estava rodeada por eles, houve um que me abraçou e,<br />

enquanto me passava carinhosamente a mão <strong>pelo</strong> cabelo, dizia<br />

para os outros emocionado: - Esta empregada escreveu a história<br />

mais bonita do mundo - o que me comoveu profundamente.<br />

Outro dizia:<br />

- Senhora empregada agora tem que escrever o segundo capítulo!<br />

Outros diziam:<br />

- Faça também um poema!<br />

- Esta empregada é diferente das outras todas!<br />

- Se todas as empregadas fossem como esta, até a gente vinha de<br />

gosto para a escola!<br />

- A gente nunca se vai esquecer de si, senhora empregada!<br />

- Para o ano, tem que vir para cá outra vez, que você é fixe!<br />

A «história dos <strong>PIEF</strong>S», como eles próprios lhe começaram a chamar,<br />

passou a andar de sala em sala, foi lida por várias/os professoras/es e<br />

funcionários/as da escola. Foi no dia 11 de Novembro de 2005, dia em<br />

que completei cinquenta e oito anos de idade, que ofereci um exemplar<br />

do texto ao conselho executivo da escola e foi, também, a partir desse<br />

dia que se desencadeou uma onda de carinho, respeito e convivência<br />

com todos os «<strong>PIEF</strong>S», que é difícil imaginar.


Acto III<br />

Dedicado aos alunos do <strong>PIEF</strong><br />

Os <strong>PIEF</strong>S, detestáveis<br />

Para mim são muito amáveis<br />

A todos tenho amizade;<br />

Um dia quando abalar<br />

Certamente irei levar<br />

No coração a Saudade…<br />

Saudade… E a lembrança<br />

De risos cheios de esperança<br />

Dos abraços apertadinhos;<br />

Do vosso olhar, da ternura<br />

Desta amizade tão pura<br />

De todo este carinho.<br />

Rogo à Virgem Maria<br />

Que a vida lhes sorria<br />

Que vos dê felicidade;<br />

Realizem cada sonho<br />

Tenham um futuro risonho<br />

Ao longo da vossa idade.<br />

Eu nunca fui o que quis ser<br />

Eu nunca pude aprender<br />

Para minha desventura;<br />

Não queiram minha vivência<br />

Não queiram minha experiência<br />

Minha vida amarga e dura.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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28 - SORRISO ROUBADO - Carmem Sofia Silva (TIL)<br />

Após dois anos (2005-06 e 2006-07) a trabalhar como TIL (licenciada<br />

em psicologia) junto de turmas <strong>PIEF</strong> na região Alentejo, tenho percebido<br />

cada vez mais, que vale a pena apostar nestas famílias e nestes<br />

jovens. O que inicialmente parece impossível de se conseguir, aos poucos<br />

vai sendo possível obter-se, através de muito esforço, persistência<br />

e demonstração de inteira disponibilidade para o outro. O trabalho<br />

junto desta população é feito de pequenas vitórias diárias, que todas<br />

somadas acabam por atingir dimensões nunca antes imaginadas.<br />

Tenho verificado que ao longo de vários anos, a questão cultural tem<br />

sido um dos obstáculos para a eliminação do trabalho infantil. As famílias<br />

mais carenciadas para além de verem o trabalho como uma fonte<br />

de rendimento para os filhos e, por conseguinte, para si, vêem-no como<br />

uma forma de livrar as suas crianças da marginalização. Em pleno<br />

século XXI, ainda é frequente encontrarmos estas situações, como é o<br />

caso dos adolescentes integrados em <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo.<br />

Os seus progenitores sempre colocaram vários obstáculos face à integração<br />

dos filhos em contexto escolar. Para eles, o melhor seria trabalhar,<br />

preferencialmente junto deles, porque só debaixo da sua alçada,<br />

estarão livres de enveredar por um caminho menos desejado. É perante<br />

situações destas que temos de intervir. É nestas famílias que investimos<br />

a diversos níveis.<br />

O trabalho desenvolvido em <strong>PIEF</strong> permite aos técnicos, por um lado,<br />

obter um maior conhecimento de toda a problemática que envolve o<br />

jovem e a sua família, o que por sua vez, poderá ser fundamental em<br />

termos de intervenção. Contudo, por outro lado, leva a um maior envolvimento<br />

em termos emocionais. O contacto sistemático, e em vários<br />

contextos, com os nossos jovens e suas famílias, leva a que em determinadas<br />

situações, passemos a viver os problemas deles, como se<br />

fossem os nossos próprios problemas. É um trabalho que está constantemente<br />

a pôr à prova o nosso lado mais emotivo.<br />

Relembro particularmente um caso de integração em <strong>PIEF</strong> em que houve<br />

necessidade de encaminhamento para uma comunidade terapêutica:<br />

enquanto profissional, sabia que era o melhor encaminhamento que


poderíamos fazer; como pessoa, foi muito difícil participar nessa tomada<br />

de decisão.<br />

Apesar das dificuldades inerentes às funções desempenhadas como<br />

TIL, este é um trabalho bastante gratificante e a recompensa é conseguida<br />

sempre que percebemos que contribuímos para melhorar situações<br />

menos agradáveis na vida de cada um dos jovens.<br />

Tem extrema importância todo o trabalho desenvolvido com estes<br />

jovens em risco, sendo necessário continuar nesta luta, uma vez que as<br />

crianças e jovens merecem que lhes seja devolvido o «sorriso» roubado<br />

<strong>pelo</strong> trabalho!<br />

29 - ACEITO! - Helena Escravana (professora)<br />

Em Junho de 2005 falaram-me do <strong>PIEF</strong>. Desconhecia por completo o<br />

projecto.<br />

Estava a leccionar numa escola da região de Lisboa e fui contactada<br />

pela presidente do conselho executivo. Achava ela que eu reunia algum<br />

perfil para este tipo de projecto e desafiou-me. Por instinto, a minha<br />

reacção imediata foi: aceito!<br />

Fui para casa procurar tudo o que pude sobre <strong>PIEF</strong>. Encontrei então o<br />

<strong>PETI</strong>!<br />

A partir daqui fui contactada pela EMM e iniciaram-se todas as diligências<br />

burocráticas com a direcção regional de educação de Lisboa.<br />

Período conturbado! Sem saber ainda se poderia ficar, comecei a ir às<br />

reuniões da equipa técnico pedagógica e a integrar-me...<br />

Conhecia já, muito bem, a população alvo. Logo aqui percebi que este<br />

projecto seria um verdadeiro desafio.<br />

São jovens com um elevado absentismo, rebeldes, desmotivados, em<br />

parte excluídos e por vezes agressivos. Para eles a escola deixou de ter<br />

interesse!<br />

É necessário impor regras, métodos, pois de desordem já a vida deles<br />

é feita.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

192<br />

É necessário estudá-los, conhecê-los, motivá-los e acima de tudo acreditar<br />

neles!<br />

É necessário imaginação, paciência e versatilidade.<br />

Aqui tudo é diferente: são os projectos de trabalho, a metodologia<br />

aprendente, conseguir reunir num grupo jovens no limiar da homogeneidade<br />

e da heterogeneidade, tudo em simultâneo! E ainda, trabalhar<br />

em pares pedagógicos. Temos de ser cúmplices, ler nos olhos, actuar<br />

com coerência e nunca desacreditar o outro na presença dos alunos.<br />

Neste grupo-turma do <strong>PIEF</strong>, interviemos particularmente na área dos<br />

comportamentos desviantes, procurando minimizá-los, se possível, extingui-los!<br />

Enquanto sentir que estes jovens, mesmo que apenas alguns, a curto,<br />

médio ou longo prazo, aprendem algo, mudam atitudes e ganham autoestima,<br />

continuo a acreditar que valeu a pena o desafio!<br />

30 - SEGUNDA OPORTUNIDADE… - A equipa do «Incluir» (Programa<br />

Escolhas)<br />

Técnicas responsáveis <strong>pelo</strong> projecto «Incluir» (projecto local resultante<br />

de uma candidatura ao «Programa Escolhas») reflectimos acerca da<br />

importância da metodologia de trabalho em parceria, designadamente,<br />

com a equipa do <strong>PETI</strong>, no combate ao abandono escolar e trabalho<br />

infantil, quer em termos remediativos, quer preventivos, ilustrando o<br />

sucesso que é possível obter através do caso concreto de um jovem que<br />

passou por um <strong>PIEF</strong> no ano lectivo 2005-06.<br />

Eram duas e meia da tarde. Saímos para visitas domiciliárias com a<br />

equipa do <strong>PETI</strong> e seguimos para casa de um jovem que deixou de<br />

frequentar as aulas, mesmo estando dentro da escolaridade obrigatória.<br />

Chegámos a uma casa perdida no meio da serra e encontrámos<br />

o jovem a tomar conta de um dos irmãos mais novos. A mãe olhava<br />

para nós com muita desconfiança e reserva, mas depois de alguns<br />

momentos de conversa conseguimos explicar que apenas pretendíamos<br />

ajudar o jovem a regressar à escola e que esse regresso poderia ser<br />

feito através de uma resposta formativa diferente, voltada para os seus


interesses e expectativas. Depois de uma longa conversa a família e o<br />

aluno aceitaram a proposta para integrar um <strong>PIEF</strong>. Começou aí uma<br />

nova etapa na vida do José.<br />

Não queríamos, neste breve testemunho, deixar de dar o exemplo de<br />

sucesso deste jovem acompanhado <strong>pelo</strong> projecto «Incluir» e que, no<br />

âmbito da articulação com o <strong>PETI</strong>, foi integrado num <strong>PIEF</strong> e aí encontrou<br />

uma segunda oportunidade.<br />

«Eu chamo-me José, tenho 16 anos e vivo em X. Eu fui estudar<br />

para a Y para uma turma <strong>PIEF</strong>, que eu nunca pensei que fosse<br />

tão fantástica. Tenho muitas mais facilidades no estudo, óptimos<br />

professores, sempre alegres e bem dispostos. Também tenho umas<br />

boas coordenadoras e uma monitora muito simpática, adorei os meus<br />

colegas, a escola e até os empregados eram fantásticos. Tínhamos<br />

várias actividades, como natação e física, e também tínhamos saídas<br />

ao cinema, ao Gerês e ao Diver Lanhoso [parque temático onde se<br />

praticam actividades radicais e de contacto com a natureza] onde<br />

eu e os meus colegas passámos um óptimo dia na companhia da<br />

monitora e das coordenadoras. Também nas aulas de área projecto<br />

fizemos um jogo de conhecimento que decorreu até ao final do ano.<br />

Eu consegui passar de ano e por o <strong>PIEF</strong> ser uma boa turma eu até<br />

vou continuar a estudar. Adorei muito poder ter uma segunda<br />

oportunidade!».<br />

(Testemunho do José – Revista Incluir)<br />

A diferença de oportunidades no acesso à educação fornece aos<br />

indivíduos possibilidades distintas na fase de integração na vida activa.<br />

Por isso, reconhece-se actualmente a necessidade de correcção das<br />

trajectórias escolares de alguns jovens a quem não foram proporcionadas<br />

as oportunidades a que tinham direito. Sabemos que as oportunidades<br />

que vamos tendo ao longo da infância, marcam o nosso futuro<br />

e sabemos também que a separação entre um percurso de sucesso e<br />

um percurso de insucesso pode assentar apenas numa boa (ou má)<br />

escolha. Por isso, tal como na vida, em educação nada é definitivo… há<br />

sempre a possibilidade de (re)começar!<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

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A história do José permite-nos perceber de que forma a sua integração<br />

no <strong>PIEF</strong> transformou a sua história de insucesso escolar num percurso de<br />

sucesso e, dessa forma, reconfigurou o seu percurso de vida. O regresso<br />

à escola é, nesse sentido, possível e pode ser marcado por sentimentos<br />

de alegria e de satisfação pessoal.<br />

A acção desenvolvida ao longo dos últimos anos permitiu que fossem<br />

criadas parcerias efectivas, designadamente com o projecto «Incluir»,<br />

que facilitaram o desenvolvimento de dinâmicas fundamentais para a<br />

inclusão social de jovens e crianças desfavorecidos, através da implementação<br />

de um conjunto de instrumentos de combate ao abandono<br />

escolar e à inserção precoce no mundo do trabalho.<br />

Se é verdade que a colaboração do <strong>PETI</strong> com o projecto «Incluir» tem<br />

sido fundamental ao nível da remediação do abandono escolar, através<br />

da criação de respostas alternativas de inserção escolar, como o <strong>PIEF</strong>,<br />

também não podemos deixar de referir toda a colaboração que tem<br />

existido ao nível da prevenção. O trabalho junto dos professores, através<br />

de acções de formação e sensibilização e o apoio na definição de planos<br />

educativos para jovens em risco de abandono escolar, são exemplos de<br />

acções em que o <strong>PETI</strong> tem sido um parceiro activo e imprescindível.<br />

Olhando para trás percebemos que o caminho não foi fácil. Introduzir<br />

novas práticas, novas atitudes e diferentes modelos de intervenção na<br />

área do abandono escolar implicou uma atitude persistente, mas, ao<br />

olhar para trás, percebemos que tem valido a pena! Estas transformações<br />

apenas foram possíveis devido ao empenho dos técnicos do <strong>PETI</strong><br />

que, tendo sido os primeiros a actuar nesta área, foram abrindo espaço à<br />

intervenção de outros projectos, designadamente do projecto «Incluir».


31 - ACREDITAR… - Célia Silva (TIL)<br />

Já pensaram alguma vez em desistir? Já sentiram que deram tudo de<br />

vós e num determinado momento sentem que foi tudo em vão? O que<br />

pensam e o que sentem quando isso acontece?<br />

No ano lectivo 2006-07, primeiro ano de trabalho como TIL, acompanhei<br />

o grupo-turma de <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo em desenvolvimento<br />

numa cidade do Alentejo. Se eu dissesse que nunca tinha pensado em<br />

desistir estaria a mentir…<br />

É muito complicado e exige muito de nós lidar com os nossos<br />

adolescentes, mas mais complicado é lidarmos com os nossos<br />

próprios sentimentos e emoções, que muitas vezes são contraditórios<br />

e nos «pregam» algumas partidas.<br />

Muitas vezes sentimo-nos como bola de «pingue-pongue»: avançamos<br />

com a esperança de conseguir grandes feitos e voltamos ao ponto de<br />

partida, com o desalento de quem não conseguiu, nem um simples<br />

sorriso, porque nesse dia o nosso adolescente não estava «disponível»,<br />

preferia andar perdido <strong>pelo</strong>s corredores da escola, ignorando a nossa<br />

presença…<br />

Ou aquela adolescente meiga e comunicativa, com quem senti uma<br />

empatia desde o primeiro dia, que repentinamente se lembra de em<br />

determinada aula ofender e provocar quer os professores, quer os colegas,<br />

chegando ao ponto de agredir fisicamente a professora que a<br />

estava a tentar acalmar. Perante este cenário, mantenho-me imóvel,<br />

não querendo acreditar naquilo que estava a acontecer diante de mim.<br />

Depois de alguns minutos, que pareciam uma eternidade, ela abandona<br />

a sala de aula a chorar…<br />

Dava-me jeito ter um controlo remoto, carregar na tecla «pausa» e<br />

«retroceder», dando uma segunda oportunidade para recomeçar aquele<br />

dia ou reiniciar esta aula, desta vez sem incidentes. Mas, na vida real,<br />

não existe a tecla «pausa», «retroceder» ou «avançar»; existe simplesmente<br />

a tecla «play».<br />

O que fariam nesta situação? Iriam atrás da aluna? Ficavam na sala de<br />

aula a «cuidar» da professora e dos alunos que tinham sido vítimas<br />

desse mau humor?...<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

196<br />

Eu não fui atrás da aluna, fiquei na sala de aula. Enquanto os professores<br />

e alunos comentavam o sucedido, eu senti uma enorme vontade<br />

de sair dali para fora. Senti que aquela jovem, em quem eu acreditei,<br />

se tinha transformado em alguém que eu não conhecia.<br />

Com trinta e um anos de idade, psicóloga, reconheço que ainda não<br />

estava preparada para a desilusão, apesar de saber que eles são jovens<br />

instáveis e que a qualquer momento isto poderia acontecer. Posso dizer<br />

que, apesar de tudo o que aconteceu, continuo a acreditar nesta adolescente,<br />

assim como em todos os adolescentes. Acredito que, tal como<br />

nós, eles muitas vezes também gostavam de ter um controlo remoto,<br />

para carregarem na «pausa» ou até no «apagar», ou numa outra<br />

qualquer tecla... Como isso não é possível, cá estamos nós (TIL,<br />

professores, EMM…) para os ensinar e encorajar a continuar, a<br />

saber manter carregada a tecla «play».<br />

O que vos move, para continuar?<br />

A mim o que me move é acreditar que nós podemos fazer a diferença,<br />

nem que seja, por breves segundos! Acreditar que muitas vezes os seus<br />

comportamentos significam simplesmente «estou aqui, ajuda-me».<br />

Acreditar que muitas das suas respostas significam simplesmente «gosto<br />

de ti». Acreditar que querem caminhar, mas têm medo, por isso, recusam-se<br />

a avançar! Acreditar que… «Aqueles que passam por nós, não<br />

vão sós, não nos deixam sós, deixam um pouco de si, levam um pouco<br />

de nós» (Antoine de Saint- Exupéry).<br />

32 - A NOSSA «BATALHA» - Maria Guiomar Paulo (professora)<br />

Professora titular do primeiro ciclo, com trinta anos de carreira, a exercer<br />

a função de vice-presidente no conselho executivo duma EB 2,3 do<br />

Algarve, quando no mês de Agosto de 2006, estando em pleno gozo de<br />

férias, o presidente me telefonou a pedir o meu aval para que a minha<br />

componente lectiva fosse desempenhada com a turma <strong>PIEF</strong>, coadjuvando<br />

em duas disciplinas. Eu não podia recusar, apesar do número de<br />

horas em trabalho directo com os alunos exceder o habitual para quem,<br />

como eu, também está na gestão. Afinal, preocupada com a abstenção<br />

escolar de muitos jovens, com a entrada precoce e ilegal no mundo do


trabalho e com a fácil adesão à marginalidade, eu tinha sido uma das<br />

pessoas que mais força tinha feito para a criação daquela turma na<br />

escola.<br />

Assim, no dia quinze de Setembro, primeiro dia de aulas, ocorreu o<br />

nosso primeiro «frente a frente». Já conhecia alguns de perto, outros<br />

só de nome. É costume, os alunos do segundo ciclo, fazerem-se<br />

acompanhar <strong>pelo</strong>s encarregados de educação no primeiro dia de<br />

aulas. Todos, exceptuando um que veio acompanhado por uma<br />

tia, vieram sozinhos. Todos eles já conheciam «os cantos à casa».<br />

Aquela casa que não tinha sido suficiente até então para «os agarrar».<br />

Eles olhavam, as professoras e o psicólogo que estavam à sua frente a<br />

falar-lhes sobre a escola e as vantagens de concluir o segundo ciclo,<br />

com algumas reticências, mas estavam ali… quiçá num a<strong>pelo</strong> mudo que<br />

poderia querer dizer: façam algo por mim, eu também quero ser alguém!<br />

Para estes jovens que deixam de ser crianças à força, que são oriundos<br />

de contextos familiares onde falta o suporte e acompanhamento que<br />

qualquer criança ou jovem precisa até entrar na idade adulta, os professores<br />

têm de ser muito mais que «simples professores», são homens<br />

e mulheres que constituem para eles referências, são pessoas que se<br />

preocupam com o futuro deles, que valorizam os aspectos positivos,<br />

mesmo poucos que sejam, e que se alegram com os seus sucessos.<br />

Mais do que transmitir conteúdos é importante o contributo para a<br />

aquisição de competências pessoais e sociais, facilitadoras de um<br />

processo de integração social, que está em risco.<br />

Não é tarefa fácil! Muitos destes alunos, antes de abandonarem a<br />

escola, já a escola os abandonou a eles, já se sentiram excluídos ao<br />

serem expulsos das salas de aula ou ao serem penalizados com dias de<br />

suspensão. Essas medidas ao invés de se revelarem correctivas empurraram-nos<br />

para grupos «de rua» onde sentem algum apoio. Eles desconfiam<br />

da escola e dos professores! Tudo isso dificulta a tarefa de os<br />

trazer de volta e ao bom caminho. Têm de ser conquistados! Mas,<br />

apesar das dificuldades, é preciso acreditar que iremos conseguir e é<br />

gratificante quando o conseguimos.<br />

Quando as coisas correm menos bem, o professor, ao invés de assumir<br />

a postura de mandar sair da sala de aula, ou penalizar com dias de<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

197


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

198<br />

suspensão, deve ponderar sobre a gravidade do ocorrido e as vantagens<br />

dessas medidas que já se revelaram ineficazes anteriormente. Dar<br />

mais do mesmo não é solução!<br />

A nossa «batalha» é ganha com pequenas (grandes) vitórias. São<br />

pequenos nadas que se tornam gigantes no mundo de cada um deles.<br />

É uma mão que toca e se deixa tocar... um sorriso que se abre… uma<br />

frase que sai de dentro e que não foi programada... são pequenos<br />

nadas que nos fazem também crer que com estes jovens vale sempre<br />

tudo a pena... Não podemos desistir!<br />

Gostei de trabalhar com esta turma! Alegrei-me com os sucessos deles<br />

e entristeci-me também com algumas situações menos agradáveis.<br />

Nem tudo o que de menos bom aconteceu ao longo do ano foi culpa<br />

deles, mas eles carregam um estigma contra o qual é difícil lutar.<br />

Aproveito aqui a oportunidade para elogiar o trabalho do TIL que acompanhou<br />

o grupo ao longo do ano lectivo. Sem a sua paciência, compreensão,<br />

persistência, simpatia e boa vontade, estes jovens já teriam<br />

desistido há muito tempo e não teriam obtido sucesso. O trabalho dele<br />

não foi nada fácil, ele teve que lutar em duas frentes. Por um lado,<br />

trazer à escola alunos desmotivados, por outro, convencer o corpo<br />

docente a não «desistir» deles.<br />

Agora, olhando para trás, penso que os resultados não foram os ideais<br />

mas foram bons. Nem todos os alunos obtiveram a certificação do segundo<br />

ciclo, mas outros houve que não só obtiveram essa certificação<br />

como começaram a olhar o mundo de uma forma mais positiva e<br />

fazendo projectos para o futuro. Os professores, também, ainda têm<br />

muito para aprender! Fica-me a esperança de que todos tenham saído<br />

mais «ricos» desta experiência e que, futuramente, o «produto final»<br />

seja melhor.


33 - ÀS VEZES BASTA OUVIR - Anabela Rosa Marques (professora)<br />

Professora do quadro de zona pedagógica, com onze anos de experiência,<br />

dos quais alguns em turmas com currículos alternativos, há<br />

cerca de quatro anos a leccionar numa EB 2,3 do sotavento algarvio,<br />

passei em 2006-07 o primeiro ano como professora <strong>PIEF</strong>.<br />

De acordo com certas teorias somos feitos de pó e luz mas, na maioria<br />

das vezes, o pó de que somos feitos «encobre» a luz que nos faz<br />

brilhar!<br />

O início de um novo ano lectivo representa sempre um novo desafio…<br />

contudo intensifica-se quando nos apercebemos que vamos leccionar a<br />

turmas de projecto e, como é óbvio, a reacção subsequente difere de<br />

professor para professor! Aceitei o desafio de trabalhar com uma turma<br />

de <strong>PIEF</strong> por vontade própria sabendo que, nestas chamadas turmas de<br />

projecto, os desafios são constantes e inesperados (quer sejam positivos<br />

ou negativos) e que nunca nada pode ser previsto.<br />

O que mais me atrai ao trabalhar com estas turmas são o que pessoalmente<br />

designo como «recompensas»: seja um sorriso, um gesto de<br />

carinho, uma palavra simpática… Regra geral, todos os alunos nos «põem<br />

à prova» e estes alunos mais do que os outros. Os motivos são de toda<br />

a ordem, seja porque querem impor-se, porque não gostam da escola<br />

e estão ali obrigados, porque têm já uma grande experiência de vida<br />

ou porque vêm de famílias/meios socialmente desfavorecidos.<br />

Por isto, o trabalho que se apresenta é árduo e extenso! Consequentemente,<br />

o ponto de partida, quase em exclusivo, é trabalhar e desenvolver<br />

as competências transversais, designadamente, o saber estar (atitudes,<br />

comportamento, regras) em detrimento das competências específicas.<br />

No entanto, muitas vezes, é necessário dar espaço a estes alunos e<br />

sobretudo ouvi-los e tentar compreendê-los! A título de exemplo, na<br />

turma de <strong>PIEF</strong> com que trabalhei havia um aluno que dizia constantemente<br />

que se ia embora e que não voltava mais à escola mas, na verdade,<br />

raramente faltou e acabou por se revelar bastante cooperante.<br />

Lembro-me particularmente de um dia em que este aluno estava<br />

aborrecido e «amuado», toquei-lhe no ombro e perguntei-lhe<br />

(em tom de brincadeira) se queria um miminho. Respondeu que<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

200<br />

não, mas <strong>pelo</strong> sorriso que expôs notou-se que ficou mais bem<br />

disposto.<br />

Entre muitos outros exemplos, não quero com isto dar uma imagem<br />

cor-de-rosa relativamente a estes projectos… até porque neles estão<br />

presentes muitas «imagens», com uma palete de cores bastante diversificada.<br />

Nuns dias as cores são mais alegres, noutros são menos alegres e,<br />

noutros ainda, podemos ter a sensação de que nem sequer há cores.<br />

Mas, no cômputo final, o esforço vale a pena porque o que realmente<br />

importa é que estes alunos sejam melhores seres humanos/cidadãos e<br />

que apreciem e descubram o que de melhor há em si e, também, no<br />

mundo que os rodeia, ainda que esse mundo, por enquanto, quase se<br />

restrinja à escola.<br />

34 - LIGAR A ESCOLA À VIDA - Bruno Lima (professor)<br />

«Para ser professor, também é preciso ter as mãos purificadas.<br />

A toda a hora temos de tocar em flores.<br />

A toda a hora a Poesia nos visita».<br />

GAMA, Sebastião da (2004), Diário de Sebastião da Gama, Lisboa,<br />

Diversos.<br />

Natural de Viseu, trabalhei durante cinco anos como professor do pri-<br />

meiro ciclo numa escola do barlavento algarvio. No final do ano lectivo<br />

2005-06 fui convidado a integrar uma equipa pedagógica onde iria trabalhar<br />

com uma turma <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo, numa cidade de da região.<br />

As pessoas conheciam o meu trajecto como docente e invocaram o meu<br />

perfil para trabalhar com este tipo de crianças. Pedi alguns dias para me<br />

informar, pois tinha ainda algumas dúvidas acerca do programa. Após<br />

alguma pesquisa constatei que era a altura certa para aceitar este<br />

desafio, consciente de que seria um trabalho árduo; por vezes pouco<br />

visível em termos de resultados e muito desgastante em termos pessoais.<br />

Tudo isto coincidiu com a fase mais gratificante da minha vida: o facto<br />

de ser pai pela primeira vez.


Quando iniciei a actividade lectiva na turma <strong>PIEF</strong> confesso que duvidei<br />

se estaria já preparado para tal desafio. Sensação que, porventura,<br />

teria sido já experimentada <strong>pelo</strong>s colegas que encontrei. Imperava a<br />

falta de regras, a desmotivação em relação às actividades lectivas, etc.<br />

Para mim quase tudo era diferente: trabalhar com discentes destas<br />

idades e características, leccionando em coadjuvação. Quase tudo novo,<br />

quase tudo carecendo de muita paciência e aprendizagem…<br />

Era urgente tomar um rumo, encontrar soluções pedagógicas que fossem<br />

de encontro às características e limitações do grupo de trabalho.<br />

Após um período de reflexão e de adaptação a esta nova realidade,<br />

encontrei na reunião semanal de quinta-feira o local apropriado para<br />

lançar ideias, discutir possíveis soluções para minorar os comportamentos<br />

menos apropriados e acima de tudo adequar o currículo à realidade<br />

que tínhamos em mãos.<br />

Ao trabalhar com todos os docentes e técnicos, fiz saber que na minha<br />

opinião era de extrema importância que a equipa pedagógica, mesmo<br />

sendo heterogénea, jamais poderia mostrar fragilidades. Era necessário<br />

partilhar ideias e cultivar um espírito de entreajuda entre os vários<br />

elementos.<br />

Tinha a consciência de que o que marcara o percurso escolar deste tipo<br />

de alunos era a sua descrença face ao adulto. A escola dita normal<br />

quando esgota as soluções, como que «desliga», deixando estes jovens<br />

ao abandono. É claro que, com as suas atitudes, eles contribuem indiscutivelmente<br />

para o problema. Todavia não podemos dissociá-los, em<br />

caso algum, das suas estruturas familiares nem dos seus percursos<br />

como seres humanos.<br />

Sendo crianças necessitadas de referências positivas, era possível –<br />

apesar disso – ser «cool», sugerindo simultaneamente o aproveitamento<br />

das valências que a escola proporciona, tendo em vista um futuro melhor.<br />

O método expositivo dificilmente resultava com os alunos que tínhamos,<br />

razão pela qual se sugeriu ao conselho de turma o desenvolvimento de<br />

projectos que fossem o elemento aglutinador de todas as actividades<br />

das disciplinas. Aqueles alunos necessitavam de ver o seu trabalho dar<br />

frutos em algo concreto.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

202<br />

A ideia vingou. Os alunos – mesmo os mais cépticos – foram<br />

aderindo, e nós fomos aumentando o grau de exigência enquanto<br />

constatávamos com nitidez a importância de alguém «acreditar<br />

neles», reforçando-lhes a auto-estima essencial à realização<br />

das tarefas.<br />

Cada aluno foi como uma história vivida com intensidade, com carinho.<br />

Pedagogia, companheirismo, mas acima de tudo amizade e preocupação<br />

com os seus problemas, interesses e inquietações, foi a fórmula para o<br />

resultado obtido.<br />

Se alguma palavra há a salientar em todo este processo de prática e<br />

reflexão pedagógica essa terá de ser: equilíbrio. O rigor surgiu acompanhado<br />

do desenvolvimento da intuição; a preocupação de despertar<br />

o interesse dos alunos acompanhou a experimentação (mesmo se com<br />

a consciência das suas limitações); o destaque da compreensão teórica<br />

não fez esquecer a importância de ligar a escola à vida.<br />

Retirei muito mais do que partilhei, sinto-me hoje melhor pessoa e<br />

profissional.<br />

Não tenho a pretensão de mudar o mundo, mas toquei-lhes e acredito<br />

que hoje sabem que, com esforço e dedicação, é possível concretizarem<br />

muita coisa.<br />

Em jeito de finalização, deixo esta pequena história que julgo ser ilustrativa:<br />

«Certa lenda conta que dois amigos estavam a patinar em cima de um<br />

lago gelado. Era uma tarde nublada, fria e as crianças brincavam sem<br />

preocupação.<br />

De repente, o gelo quebrou-se e uma das crianças caiu na água. A outra,<br />

vendo que o seu amigo se afogava debaixo do gelo, pegou numa pedra<br />

e começou a golpear o gelo.<br />

Quando os bombeiros chegaram e viram o que tinha acontecido, perguntaram<br />

ao menino:<br />

- Como é que conseguiste fazer isto?


É impossível que tenhas quebrado o gelo com essa pedra e com essas<br />

mãos tão pequenas!<br />

Nesse instante, apareceu um ancião e disse:<br />

- Eu sei como ele conseguiu.<br />

Todos perguntaram:<br />

- Como?!<br />

O ancião respondeu:<br />

- Não havia ninguém ao seu redor para lhe dizer que não conseguia<br />

fazer!»<br />

LENDA: in, http://tatanka.blogs.sapo.pt<br />

Talvez sejam estas palavras finais que me fizeram incluir esta pequena<br />

história. Hoje penso, um pouco mais que no passado, que não podemos<br />

permitir que perante situações deste tipo nos digam:<br />

- Isto não é possível!<br />

Um abraço a toda a equipa pedagógica com quem privei e onde ganhei<br />

muitos amigos.<br />

35 - LUZ AO FUNDO DO TÚNEL<br />

Mãe de um jovem em <strong>PIEF</strong> de terceiro ciclo na região Algarve, com<br />

problemas de integração na escola, chegando mesmo a ser considerado<br />

o cenário de fobia social.<br />

«Sou mãe de um aluno que desde pequeno teve dificuldades de adaptação<br />

à escola, começando <strong>pelo</strong> infantário. Desde cedo deu indícios de<br />

não gostar da escola. Da escola em si ele gostava. Não gostava do que<br />

aprendia, porque não dava importância. Sempre teve muita habilidade<br />

com as mãos principalmente para carros e máquinas: tudo menos<br />

estudar.<br />

Entrou para a primária e concluiu sempre os objectivos mínimos e mais<br />

tarde entrou para a preparatória a ter as mesmas ou piores dificuldades<br />

de adaptação, sempre a dizer que a escola não lhe dizia nada. Houve<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

204<br />

um período lectivo em que ele faltou muito às aulas. Sendo assim, eu<br />

e o meu marido, decidimos tirá-lo da escola, sabendo todas as consequências<br />

que daí acarretavam.<br />

Então apareceu este programa das turmas <strong>PIEF</strong>, onde encontrámos<br />

todo o apoio desde professores, a psicólogas e toda uma equipa que o<br />

ajudaram a voltar à escola e onde ele podia ter a possibilidade de<br />

acabar o nono ano e ter também a possibilidade de estar numa firma a<br />

aprender aquilo que ele mais gosta.<br />

Dando o exemplo do meu filho acho que para este tipo de miúdos que<br />

desde sempre a escola em si nunca lhes disse nada, é como encontrar<br />

a luz ao fundo do túnel, porque como mãe e aliás como todas as mães,<br />

nós queremos o melhor para os nossos filhos.<br />

O importante para nós é o seu equilíbrio emocional e serem felizes<br />

numa sociedade cada vez mais egoísta, porque a diferença existe e é<br />

por isso que este tipo de projectos são tão importantes: para que, no<br />

futuro, eles sintam que também tiveram a sua oportunidade e souberam<br />

aproveitar e alcançar os seus objectivos.<br />

Espero que haja bom senso no sentido de manter estes projectos bem<br />

activos para que no futuro tenham valido a pena todo o sacrifício e<br />

empenho que todas as pessoas envolvidas neste projecto deram ao<br />

mesmo. Para eles o meu agradecimento.<br />

Bem hajam!».<br />

36 - PRIMEIRA TURMA <strong>PIEF</strong> - Emília Batista (professora)<br />

Professora no ensino particular durante onze anos, na região centro<br />

interior, em 2006 fiquei colocada no quadro de zona pedagógica, numa<br />

escola do barlavento algarvio, tendo oportunidade de leccionar numa<br />

turma <strong>PIEF</strong> de segundo ciclo.<br />

Depois do choque inicial, acabei por «adoptar» aquela turma. O ano lectivo<br />

de 2006-07 esteve cheio de emoções e experiências novas para mim.<br />

De todas retenho na memória duas como sendo as mais marcantes.<br />

Na minha primeira aula com a turma <strong>PIEF</strong> senti-me a pior pessoa deste<br />

mundo, a inimiga número um destes alunos, o alvo a abater… Enfim,


senti uma tristeza muito grande porque pensei que, pela primeira vez,<br />

em quinze anos de ensino, (distribuídos <strong>pelo</strong>s segundo e terceiro ciclos<br />

do ensino básico e <strong>pelo</strong> secundário, no particular e no público) não iria<br />

conseguir lidar com uma turma de alunos.<br />

A outra foi o meu relacionamento com um aluno. Durante todo o primeiro<br />

período lectivo e parte do segundo, fui odiada de forma directa.<br />

Ele, desde o primeiro momento, rejeitou-me como professora, fazia<br />

tudo para me provocar e causar distúrbios nas minhas aulas. Eu interrogava-me<br />

muitas vezes acerca da causa de tanta raiva, de tanto ódio e<br />

tanta fúria por parte de alguém a quem eu nunca tinha feito nada de mal.<br />

Com o passar do tempo aprendi a conhecê-lo, a ele e aos outros.<br />

Aprendi a organizar-me dentro da desorganização que reinava<br />

na cabeça deles e teimava em permanecer. Aceitei-o e aceitei a<br />

turma como mais um desafio na minha vida. Dei-lhes aquilo que<br />

achava que precisavam – tempo, tempo, diálogo, paciência, muita,<br />

muita paciência.<br />

Hoje, terminado o ano lectivo, ainda me interrogo sobre tantas questões,<br />

sobretudo se começasse de novo se faria tudo igual. Talvez alterasse<br />

algumas estratégias de ensino, mas o que não modificava era a<br />

minha atitude como professora <strong>PIEF</strong>. Os alunos cresceram como alunos<br />

e como pessoas. O meu relacionamento com ele melhorou porque eu<br />

não desisti e porque compreendeu que eu não era uma inimiga. Hoje<br />

consigo conversar com ele, já pede ajuda e às vezes até já brinca<br />

comigo. Para trás ficaram os dias angustiantes.<br />

A turma em si cresceu. Os alunos são, sim, miúdos complicados, com<br />

problemas, desorganizados, mas acima de tudo, são miúdos carentes.<br />

Eles necessitam de compreensão, uma palavra amiga e, porque não, às<br />

vezes, um ralhete?! Um Castigo?<br />

Eles necessitam, sobretudo, de alguém que lhes dê a mão e os ajude a<br />

percorrer este caminho difícil que é a vida, mostrando-lhes que para<br />

viver em sociedade temos que respeitar determinadas regras.<br />

Amanhã, de certeza que vou continuar a recordar esta experiência de<br />

uma forma positiva e vou ter saudades da minha primeira turma <strong>PIEF</strong>.<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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206<br />

37 - RESPEITO E CUMPLICIDADE - Lúcia Bandeira (TIL)<br />

Psicóloga de formação, trabalhando como TIL no Algarve, desde início<br />

de 2006, actualmente estou a acompanhar uma turma <strong>PIEF</strong> de segundo<br />

ciclo. A experiência profissional é vasta, acumulando funções como<br />

psicóloga nos serviços de psicologia do hospital distrital.<br />

Iniciei as funções de TIL junto dum grupo-turma de <strong>PIEF</strong> com jovens<br />

sem conclusão do primeiro ciclo e, só posteriormente, uma outra de<br />

segundo ciclo. No primeiro caso, a turma era composta somente por<br />

elementos do sexo masculino e maioritariamente de etnia cigana. As<br />

aulas decorriam fora do espaço escolar, numa sala dentro de uma<br />

cooperativa, pois a escola nesse ano lectivo apresentou-se menos inclusiva:<br />

os alunos só entravam no espaço escolar para almoçar e sempre<br />

acompanhados pela TIL. Estes alunos tinham exclusivamente uma<br />

professora de primeiro ciclo que leccionava as várias áreas curriculares.<br />

Só mais tarde foi possível aos alunos beneficiarem de aulas de educação<br />

física, leccionadas por um professor em regime de voluntariado, no<br />

pavilhão de um clube desportivo.<br />

Tentou-se que a sala dentro da cooperativa fosse um espaço alegre e<br />

dinâmico, proporcionando várias actividades, de forma a colmatar a<br />

ausência do espaço escolar, o que foi muito sentido <strong>pelo</strong>s alunos no<br />

início mas que, gradualmente, deixou de ser relevante. Para além do<br />

vasto leque de actividades que foram desenvolvidas dentro da sala,<br />

foram proporcionadas a estes alunos inúmeras no exterior. Eram actividades<br />

muito motivadoras e enriquecedoras, visando uma das características<br />

mais vincadas na etnia cigana, a necessidade do contacto com<br />

a natureza.<br />

Estes jovens tiveram aulas somente entre Fevereiro e Junho de 2006.<br />

No entanto, conseguiram neste curto espaço de tempo adquirir as competências<br />

necessárias para transitarem de ano (tendo havido apenas<br />

uma excepção), pois mostraram-se sempre interessados e com<br />

excelente assiduidade.<br />

Sendo a minha primeira experiência como TIL e atendendo à especificidade<br />

desta turma, senti inicialmente alguma ansiedade embora, ao<br />

mesmo tempo, muita vontade de conhecer e experienciar. Rapidamente


foram ultrapassados os obstáculos de ambas as partes, originando um<br />

grande respeito e cumplicidade, tanto com os alunos como com as suas<br />

famílias. Estas, valorizavam a escola tentando motivar os seus filhos e<br />

estando sempre disponíveis para o que fosse necessário tendo, inclusive,<br />

participado em actividades extra-curriculares.<br />

Embora já não acompanhe actualmente estes alunos e suas famílias,<br />

mantenho contacto permanente com a sua maioria.<br />

No ano lectivo seguinte (2006-07) acompanhei uma turma de segundo<br />

ciclo muito heterogénea, designadamente, a nível etário, características<br />

pessoais e interesses. Esta turma integrou alguns dos jovens anteriores<br />

e já funcionou dentro da comunidade escolar. Foi possível verificar que<br />

estes jovens eram segregados dentro da própria escola. No início do<br />

ano lectivo, houve muita dificuldade de aceitação por parte da mesma,<br />

dando azo a situações difíceis sentidas especialmente <strong>pelo</strong>s jovens. Os<br />

professores que acompanharam esta turma também passaram a ser<br />

alvo de discriminação dentro do seu próprio núcleo. Foi necessário<br />

conquistar um espaço que, à partida, pertence a todos. Será que estes<br />

acontecimentos se podem explicar pela existência de estereótipos,<br />

desconhecimento e falta de receptividade a projectos que se demarcam<br />

pela inovação?...<br />

Parece importante salientar que esta situação se tem vindo a alterar e<br />

que este projecto se tem apresentado progressivamente como uma<br />

vantagem para a comunidade escolar e sociedade em geral. A diversidade<br />

e a troca de experiências têm sido muito enriquecedoras,<br />

principalmente, pela perspectiva circular onde todos os elementos são<br />

chamados a dar o seu contributo.<br />

Desta turma retira-se exactamente esta lição: sendo ela muito heterogénea,<br />

tem sido possível fazer um trabalho bastante positivo enfatizando<br />

as boas relações, entre alunos e entre professores e alunos, do qual<br />

resultou a transição de ano da sua maioria. Foi também importante o<br />

trabalho desenvolvido junto das famílias, assim como as parcerias<br />

estabelecidas com diversas entidades.<br />

Deste ainda curto percurso como TIL, tem sido possível apreender que<br />

estes jovens transportam, normalmente, muitas carências, principalmente<br />

afectivas e sócio-económicas, estando sempre presente neles a<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

208<br />

desvalorização da escola em prole de interesses mais imediatos. Percorrem,<br />

por vezes, caminhos muito sinuosos, que passam <strong>pelo</strong> abandono<br />

escolar e trabalho infantil, tornando-se essa a sua realidade. O <strong>PIEF</strong><br />

apresenta-se assim como uma possibilidade de mudança de rumo, de<br />

mudança de realidade, compreensão, companheirismo, cumplicidade,<br />

aprendizagens, a possibilidade de um novo futuro. O <strong>PIEF</strong> respeita as<br />

características individuais de cada jovem e famílias, permite que a<br />

integração ocorra em qualquer momento do ano lectivo, apresenta uma<br />

grande flexibilidade atendendo às necessidades individuais designadamente<br />

nas actividades curriculares, permite uma maior celeridade,<br />

estando inerente uma constante procura conjunta das melhores respostas<br />

e, sempre, procurando e colaborando com as mais diversas<br />

parcerias.<br />

38 - UMA ARMA PODEROSA - A.M.S.M. (professor)<br />

Docente do grupo de língua portuguesa, desempenhei funções lectivas<br />

numa turma do <strong>PIEF</strong> na região centro litoral do país no ano lectivo<br />

2006-07.<br />

O conselho de turma, em particular a sua directora de turma, pediu-me<br />

para fazer um relato sobre a minha experiência como professor de «viver<br />

em português» na turma <strong>PIEF</strong>. Nesse sentido, fiz uma retrospectiva de<br />

todo o ano lectivo. Recordei os momentos bons e os menos bons.<br />

Recordei primeiramente o primeiro dia de aulas, uma segunda-feira, no<br />

último bloco da tarde. Já antes, os colegas que tinham estado com a<br />

turma me tinham alertado para o facto de os alunos não parecerem ser<br />

fáceis. Quando entrei na sala não tinha, como habitualmente se verifica<br />

noutras turmas, quaisquer alunos à minha espera. Contudo, passados<br />

breves minutos, um grupo de adolescentes entra na sala de rompante.<br />

Assustei-me com a desorganização, testemunhei agressões entre alunos,<br />

desviei-me de objectos voadores e escutei inéditos impropérios!<br />

A experiência dizia-me que numa aula de apresentação, os alunos<br />

estão mais atentos e gostam de observar o professor que têm à sua<br />

frente: o seu aspecto físico, a sua linguagem corporal, a sua voz, a sua<br />

autoridade… Ora, com a turma <strong>PIEF</strong>, as apresentações fizeram-se com


gritaria, alguma adjectivação vicentina por parte dos alunos, enfim…<br />

sob grande turbulência. Após esta «espécie de aula», recordo ter-me<br />

dirigido a casa e cogitado sobre o sacrifício que iria ser, estar com estes<br />

alunos ao longo de um ano lectivo.<br />

Que estratégias teria de utilizar? Que competências exigir? Quais os<br />

materiais a preparar? A diversidade era aqui uma realidade, sendo<br />

impossível preparar «uma» aula para «um» aluno padrão. É<br />

nestas alturas que um professor sente, paradoxalmente, que só<br />

pode contar consigo próprio!<br />

No entanto, dias depois, em conversas mantidas com os restantes<br />

professores, apercebi-me que não estava sozinho. De facto, existia uma<br />

equipa consciente e leal ao projecto que partilhava os mesmos medos<br />

e fragilidades que eu sentia, pela primeira vez em sete anos como<br />

professor. De imediato, o conselho de turma exigiu regras aos alunos.<br />

Das primeiras aulas tumultuosas, passou-se para algumas aulas em<br />

que se conseguia trabalhar. A turma já não me parecia tão má como a<br />

impressão causada durante a primeira aula. Além disso, podia sempre<br />

contar com a colega que fazia par pedagógico comigo.<br />

Tenho a consciência que, tanto eu como ela, demos o melhor de nós<br />

para que as aulas corressem bem. Após alguns dias, estávamos a<br />

conquistar a confiança dos alunos. Fomo-nos apercebendo que alguns<br />

deles tinham enormes potencialidades. Era nossa função fazê-las<br />

emergir. E quando, por vezes, sentia algum desalento, confesso que me<br />

deu força cada episódio de sucesso. O estabelecimento de uma relação<br />

empática estava a mostrar-se uma arma poderosa. Os dois ingredientes<br />

indispensáveis – o afecto e os limites – definidos em conselho de<br />

turma estavam a mostrar um resultado positivo. Mas, existiam duas<br />

regras básicas, também, para os alunos: irem às aulas e apresentarem<br />

um comportamento mais ou menos adequado.<br />

Estabelecer boas relações com estes jovens não é uma missão fácil!<br />

Aqui, o caminho faz-se caminhando. A desmotivação era imensa e os<br />

conteúdos escolares interessavam-lhes muito pouco (para não dizer,<br />

mesmo nada). Faziam tudo por fazer, sem propósito ou com propósitos<br />

alterados, prontos a explodir com as mais elementares regras de<br />

comportamento. Tudo tinha de ser negociado. Eram «miúdos» especiais<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

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<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

210<br />

e sabiam isso: pessoas que pedem atenção, que precisam ser olhadas,<br />

querendo nos emocionemos com as suas histórias sem que lhes coloquemos<br />

rótulos, sem julgamentos, e que carecem ser compreendidas.<br />

Agostinho da Silva dizia «não faças planos para a vida, para não estragares<br />

os planos que a vida tem para ti». Estes alunos têm o direito de<br />

sonhar, acreditar que vale a pena, fazer planos e vê-los crescer. Gostava<br />

de os reencontrar daqui a dez anos. Espero que até lá, não caminhem<br />

por uma estrada que não é a sua. Oxalá saibam escolher a direcção<br />

certa. Quanto a mim, vou ter saudades de esperar por eles na sala de<br />

aula, de os ver entrar, dirigirem-se a mim, estendendo cordialmente a<br />

mão e dizendo:<br />

- «Como é stôr? Tá-se Bem?»<br />

39 - FIONA - Fátima Matos (técnica da EMM)<br />

Era uma vez, não há muitos anos atrás, uma jovem rebelde, teimosa<br />

e, como alguém diria, «insuportável». Vivia numa cidade que, segundo<br />

alguns, nem sequer se encontra no mapa nacional, mas estudava na<br />

capital do reino.<br />

Ao fim de semana, Fiona, assim se chamava, costumava sair à noite<br />

com os amigos, onde cada um contava o que tinha andado a fazer<br />

durante a semana. E fim-de-semana após fim-de-semana, Fiona ouvia<br />

atentamente e em especial uma amiga: Sofia.<br />

Sofia estava no seu primeiro ano de trabalho como professora de matemática<br />

e ciências. Contudo, esta não dava aulas a uma turma qualquer:<br />

ela dava aulas a uma turma <strong>PIEF</strong>. Assim, semanalmente, Fiona ouvia<br />

histórias sobre vidas complicadas, histórias de amor e de amizade,<br />

histórias que a inquietavam…<br />

Sem dúvida que era isto que ela queria aprender e viver no seu último<br />

e principal ano de faculdade. Assim, Fiona colocou mãos à obra e, após<br />

muitas cartas, telefonemas e algumas «pressões», pois ela conseguia<br />

ser «chata», a tão desejada atenção e o «sim» da Big Chefe Cara<br />

Pálida, responsável <strong>pelo</strong>s estágios no <strong>PETI</strong>, surgiu.


A pequena jovem e com ar de miúda começou por aprender a saber o<br />

que eram vidas difíceis na sua terra. Não era fácil: primeiro, porque era<br />

a sua terra natal; depois, por o embate com infâncias pouco felizes,<br />

uma realidade tão diferente dela, faziam-na ansiosa, frustrada, mas<br />

com muita vontade de ajudar e cada vez mais apaixonada.<br />

A meio surgiu a mudança para outro <strong>PIEF</strong>, numa localidade diferente,<br />

ou melhor, foi três em um, porque Fiona acabou por ter a sorte, o privilégio<br />

mesmo, de «dar uma perninha» nos <strong>PIEF</strong> de outras duas localidades<br />

(que saudades…). Aí, ela encontrou as verdadeiras razões para a<br />

existência dos «<strong>PIEF</strong>’s», já que através das entrevistas aplicadas por<br />

ela, que faziam parte do seu estágio, pôde perceber que <strong>PIEF</strong> é, na<br />

maioria dos dias, sinónimo de família. Como disse um dos jovens: «o<br />

<strong>PIEF</strong> dá a oportunidade para um dia sermos alguém na vida». Fiona<br />

percebeu que isto não se aplicava só aos jovens em <strong>PIEF</strong> mas, também<br />

a ela. Após esse ano, ela teve a certeza que ali iria aprender e,<br />

sobretudo, crescer.<br />

Assim, depois do Verão, dedicado em exclusivo ao relatório de estágio<br />

e tendo sempre em vista uma eventual e muito desejada oportunidade<br />

para início de carreira, em Outubro, Fiona iniciou o seu trabalho como<br />

TIL no <strong>PIEF</strong> da sua terra natal. Foi um ano de pura e dura aprendizagem,<br />

com muitas «quedas», muitas lágrimas, muitos «sapos para<br />

engolir», foi perceber que não são muitos aqueles que se preocupam<br />

com a qualidade de vida dos jovens de hoje, que muitas das vezes só se<br />

faz porque a lei assim o obriga, porque as estatísticas assim o exigem!<br />

Mas o mais importante foi o sentimento de família que também aqui<br />

nasceu. Foi cultivado e regado diariamente, porque só assim faz sentido<br />

em <strong>PIEF</strong>. Havia professores que já tinham tido aqueles alunos em anos<br />

anteriores e era vê-los… cada frase escrita correctamente era um motivo<br />

de festa; cada dia passado sem discussão, sem palavras ditas, sem<br />

sentido, era uma vitória. Foi duro, mas alimentou ainda mais a vontade,<br />

o bichinho de querer continuar em <strong>PIEF</strong>, de querer continuar a crescer!<br />

Mas se para Fiona o <strong>PIEF</strong> na sua terra natal tinha sido uma emoção, o<br />

que a esperava era… bem, ela nunca soube explicar muito bem…<br />

costumava dizer que o <strong>PIEF</strong> na capital do reino foi o seu bebé! (parece<br />

que diz tudo?!)<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

211


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

212<br />

Foi sentir um turbilhão de emoções, sentir/agir como se o dia não<br />

fossem doze horas de trabalho, mas sim vinte e quatro, porque até à<br />

noite os seus meninos estavam com Fiona. Foi sentir nitidamente que<br />

estes meninos já tinham perdido tanto tempo das suas vidas, já lhes<br />

tinham feito perder tanto tempo, e agora estava na altura de recuperar.<br />

Para Fiona, o dia seguinte já era tarde de mais e havia que aproveitar<br />

cada minuto, cada palavra, cada sorriso, cada lágrima… Se, no passado,<br />

o sentimento de família já tinha surgido e feito sentido, neste <strong>PIEF</strong>,<br />

Fiona sentiu-se responsável, sentiu-se mesmo na obrigação, no fundo<br />

(sem saber na realidade se é assim se não), Fiona sentiu-se mãe…<br />

Junto com os professores, com quem mantinha uma relação de confiança,<br />

tolerância, carinho, eles limparam/arrumaram a casa dos seus<br />

meninos, eles ensinaram-lhes a ler/escrever, a contar e a desenhar,<br />

eles levaram-nos a sítios mágicos e a tirar proveito deles,<br />

foram com eles ao médico, festejaram com eles os aniversários,<br />

as vitórias e deram-lhes a mão e o ombro nas derrotas e nos<br />

tombos… Fizeram o que uma família faz e ensinaram-nos a<br />

crescer.<br />

No ano que se seguiu, havia que dar continuidade, mas não aconteceu...<br />

tinha sido um parto demasiado intenso e um primeiro ano de<br />

vida repleto de emoções, boas e más, mas demasiadas para dar continuidade.<br />

E assim surgiu a adolescência na vida de Fiona, ou melhor, surgiu o<br />

<strong>PIEF</strong> noutra localidade ainda! Ao contrário do ano anterior, Fiona teve<br />

em mãos o que ela considerou de um puro e rebelde adolescente, em<br />

todos os aspectos e mais algum. Se em anos anteriores o elemento em<br />

comum era a novidade, neste a luta diária pela mudança e contra o<br />

preconceito eram as palavras de ordem! Foram várias horas e vários<br />

dias em que foi necessário mostrar ao «mundo» que aqueles miúdos<br />

eram «GENTE», eram meninos mal tratados pela vida, mas que estavam<br />

sedentos de amar e de ser amados… E também aqui um grupo de<br />

escravos da paciência e do carinho lhes deu a mão e o colo, a vela do<br />

bolo para apagar, o diploma do orgulho e da honra para ler, o livro, as<br />

palavras e os números para prosseguir, mas sobretudo, e mais uma<br />

vez, o que é e como é ser «GENTE». E foi também aqui que Fiona se


sentiu menos entre a espada e a parede e que o seu nome surgiu: havia<br />

dias que ela era ogre, havia outros que ela era princesa…<br />

Com mais alguma maturidade e serenidade, a miúda, que começou<br />

rebelde e teimosa, teve que parar para pensar… deixar de ser tão emotiva<br />

e passar a racionalizar mais, o que é difícil em <strong>PIEF</strong>, pois dia após<br />

dia surge uma novidade na vida de cada um dos jovens, das suas<br />

famílias, dos professores, dos funcionários, do meio escolar, da EMM…<br />

e há que gerir! Há que gerir muito bem as emoções, as palavras, os<br />

feitios, os desejos. No entanto, o mais surreal no <strong>PIEF</strong> é que se trabalha<br />

sobretudo com, para, e a partir do sentimento… e no dia a dia não há<br />

livro, régua, estratégia ou máquina que nos valha, se não gostarmos<br />

dos nossos miúdos… sim, «nossos», porque naquele momento eles são<br />

nossos e não podemos deixar que eles percam nem mais um segundo.<br />

Ao fim destes anos, Fiona não se limita a passar pela vida, ela vive<br />

mesmo e isso, ela deve aos seus meninos, professores, coordenadores,<br />

amigos… à sua segunda casa, à sua segunda família!<br />

Fim<br />

40 - MAIS E MELHOR - Alice Pedro (professora)<br />

No início tudo foi inesperado e surpreendente. As diferenças entre esta<br />

prática lectiva e o ensino regular levaram-me a repensar a minha<br />

postura como docente. A equipa técnico-pedagógica, os pares pedagógicos<br />

dentro da sala de aula, a noção de partilha e de espírito de grupo,<br />

foram momentos muito intensos de experimentação e inovação.<br />

O perfil dos alunos e as suas necessidades particulares, a prática do<br />

ensino ainda mais individualizado, as diferenças de atitude e a constante<br />

preocupação em desvendar os mistérios que lhes inundavam a alma,<br />

compreender que do lado de lá estavam pessoas sujeitas a realidades<br />

distintas e perturbadoras e cujo interesse por aquilo que eu faço era<br />

quase nulo, constituíram um grande desafio, nesta nova etapa da minha<br />

vida de professora.<br />

Assim, com este quadro pela frente, decidi que a melhor forma de agir<br />

e reagir seria tentar perceber como e onde era eu mais válida para estes<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

213


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

214<br />

jovens. Com muito diálogo e negociação, dado que esta população não<br />

era de todo fácil para acatar regras de saber estar, lá fui tentando dar<br />

o meu melhor. Claro que, ensinar as áreas de «viver em português» e<br />

«comunicar em língua estrangeira», nem sempre foi uma prioridade,<br />

mas, a pouco e pouco, lá consegui desbravar algum terreno e recorrendo<br />

a estratégias e métodos um pouco diferentes dos quais estava<br />

habituada, penso que as capacidades de ouvir, ler, descodificar e aplicar<br />

foram evoluindo significativamente ao longo do percurso individual de<br />

cada um deles.<br />

Nos momentos em que revelaram uma maior resistência em cumprir o<br />

que lhes era proposto, a ajuda em sala de aula do par pedagógico foi<br />

fundamental para que este tipo de projecto funcionasse bem. A cumplicidade,<br />

a serenidade, o saber fazer, «entrar e sair de cena» no momento<br />

certo, todos estes aspectos foram melhorando diariamente e contribuindo<br />

para que o clima de segurança e confiança fosse perceptível<br />

para todos.<br />

No final de um primeiro ano lectivo, penso que valeu a pena o<br />

confronto diário com uma realidade diferente e em todos os momentos<br />

susceptível de metamorfoses. Tudo me levou, sempre, a<br />

pensar que sou capaz de fazer mais e melhor, porque para mim<br />

a primeira vez é sempre feita de ouvir, observar e considerar, deixando<br />

espaço aos mais experientes na sua actuação. A experiência e a aprendizagem<br />

que daqui resultou servirá com toda a certeza de alicerce para<br />

os próximos anos lectivos com todos os alunos que terei o prazer de<br />

ajudar a serem melhores adultos, pois é mesmo isso que gosto de fazer.<br />

41 - MUITO VALOR - Teresa Farinha (empresária)<br />

Colaboro com o <strong>PIEF</strong> na formação vocacional. Trabalho na área da<br />

restauração e sempre gostei de apoiar crianças e jovens.<br />

Quando me falaram no <strong>PIEF</strong>, no ano passado (2006), achei que seria<br />

um desafio! Ter junto de mim um jovem, talvez rebelde e desmotivado,<br />

que eu poderia ajudar a melhorar e a interessar-se por alguma coisa,<br />

seria sem dúvida aliciante, para mim e para o meu marido.


Acho este (<strong>PIEF</strong>) um projecto com muito valor. Fico chocada quando<br />

ouço falar tanto mal daquela escola, sabendo eu que existem ali projectos<br />

como este, que procuram ajudar os nossos jovens.<br />

Espero que este projecto continue e desde que haja jovens interessados<br />

nesta área, a minha porta continuará aberta para eles.<br />

Vou continuar a acreditar que, se todos ajudarmos um pouco, talvez as<br />

coisas sejam mais fáceis.<br />

42 - UMA VEZ ACHADOS - Marcelo Formosinho (TIL)<br />

Mais que um programa que visa assegurar a integração e o acompanhamento<br />

de jovens em risco, com o intuito de lhes favorecer o cumprimento<br />

da escolaridade obrigatória, o <strong>PIEF</strong> é como um mapa de vida<br />

para todos os que nos entregamos de corpo e alma a esta missão…<br />

No <strong>PIEF</strong> que tenho acompanhado, numa cidade da Estremadura, encontrei<br />

novos caminhos, trilhei novas estradas, descobri atalhos para a<br />

felicidade, aprendi a cair no buraco e a levantar-me, enfim, mudei!<br />

E tudo isto não teria sido possível sem o apoio e influência de todos,<br />

mas em especial, dos jovens; eles são a verdadeira razão da existência<br />

deste programa.<br />

A maior satisfação para um TIL, é ver moldado no rosto dos jovens um<br />

«sorriso <strong>PIEF</strong>», que só quem lida com eles consegue interpretar…<br />

assistir à evolução destes alunos faz-nos acreditar que, quando queremos<br />

alcançar um determinado objectivo na vida, se nos esforçarmos<br />

devidamente, é ele que acaba por abrir os braços para nos receber… e<br />

desta forma, somos nós a aprender com estes jovens maravilhosos,<br />

pois eles são o sinónimo da «Vontade de Viver».<br />

Diziam-me alguns dos jovens com quem lidei, que as suas vidas pareciam<br />

um quadro de «perdidos e achados». E, por ser verdade, por não<br />

rejeitarem esta evidência, unimo-nos todos em redor do mesmo objectivo,<br />

e apercebemo-nos que: «uma vez achados, jamais perdidos!»<br />

Obrigado por tudo, a «TODOS»!<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

215


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

216<br />

43 - O <strong>PIEF</strong> DE TRÊS MÃES<br />

«O <strong>PIEF</strong> para a minha família foi muito importante porque ajudou o<br />

meu filho, ficou mais responsável e mais adulto. É pena haver poucas<br />

pessoas que são professores e amigos ao mesmo tempo. Notei que o<br />

meu filho gosta das aulas do <strong>PIEF</strong> porque os colegas da turma são<br />

todos da mesma idade e os professores são jovens e compreendem<br />

melhor os problemas deles.<br />

O meu muito obrigado a todos os responsáveis do <strong>PIEF</strong>» (Palmira Melo)<br />

«O <strong>PIEF</strong> para mim foi o melhor que podia aparecer. Eu já não sabia o<br />

que fazer à minha vida, o meu filho isolava-se muito em casa e mesmo<br />

na escola, com os colegas. Estava muito complicado. Em relação à TIL<br />

e aos professores, não deviam abandonar estes alunos, eles conseguiram<br />

vencer devido ao <strong>PIEF</strong> e ao esforço dos professores.<br />

Parabéns ao <strong>PIEF</strong> e aos professores também» (Alice Pinto)<br />

«O <strong>PIEF</strong> foi o melhor que podia ter acontecido à minha filha. Antes de<br />

entrar em <strong>PIEF</strong> não queria vir para a escola. Ganhou o gosto pela<br />

escola, passou a sentir-se bem e a querer vir ás aulas, coisa que no<br />

passado não acontecia.<br />

Os professores foram muito bons e atenciosos, estiveram sempre<br />

disponíveis para a ajudar a ultrapassar as suas dificuldades e isso fez<br />

com que ela se sentisse mais amparada e acarinhada. Ainda hoje fala<br />

dos professores, gostou muito deles e foram marcantes para ela. Antes<br />

não queria vir para a escola, chegou a dizer que queria deixar de<br />

estudar. Essa situação devia-se a dificuldades dela na aquisição de<br />

conhecimentos e na falta de disponibilidade dos professores para a<br />

ajudarem na resolução dessa situação.<br />

Sinto que hoje a minha filha gosta da escola, está muito mais<br />

adulta, responsável e deixou de ser tão respondona» (Rosa Vieira)


44 - RECEITA<br />

Professores da equipa técnico pedagógica dum grupo-turma do <strong>PIEF</strong>,<br />

numa localidade do Ribatejo, apresentam uma receita para fazer feliz<br />

na escola um aluno <strong>PIEF</strong>.<br />

Ingredientes:<br />

- seis professores inquietos, expectantes e motivados;<br />

- uma sala intitulada «bikox piriquita»;<br />

- uma técnica da EMM, Patrícia, a força omnipresente;<br />

- uma técnica da EMM, Fátima, uma maré de experiências;<br />

- uma técnica de intervenção regional, Leonor, a enérgica;<br />

- uma TIL, Susana, sempre disponível;<br />

- um grupo de alunos corajosos;<br />

- um barril de felicidade;<br />

- uma tonelada de amor;<br />

- um hectare de compreensão;<br />

- carinho q.b.;<br />

- uma pitada de loucura.<br />

Modo de preparação:<br />

Descascar os professores de todo e qualquer preconceito. Pôr os alunos<br />

a marinar desde o dia zero. Juntar os alunos e professores na mesma<br />

sala e ir adicionando os restantes ingredientes aos poucos.<br />

Deixar apurar em lume brando durante uma semana. Rechear os corações<br />

com o amor e a compreensão. Ir juntando a felicidade aos poucos<br />

até apurar, durante várias semanas, sem tapar. Ir provando para retirar<br />

ou acrescentar os alunos necessários ao sucesso do preparado, com a<br />

ajuda da «chefe de culinária» e seus ajudantes.<br />

Não esquecer ir adicionando carinho e uma pitada de loucura quando<br />

necessário, envolvendo sempre no mesmo sentido.<br />

«Et voilá!» O preparado está pronto a ser provado, certificado e apreciado,<br />

depois de passar nos dezassete testes de qualidade.<br />

«Bon a<strong>PETI</strong>».<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

217


índice remissivo


A<br />

Abandono escolar 5, 18, 20, 25, 32, 36, 37, 43, 45, 46, 48, 51, 53, 58, 59, 77, 79,<br />

81, 82, 83, 89, 94, 103, 105, 107, 125, 127, 128, 130, 131, 134, 137, 138, 142, 144,<br />

151, 153, 170, 175, 180, 181, 182, 192, 194, 208<br />

Absentismo 18, 20, 22, 24, 39, 43, 48, 49, 52, 84, 164, 191<br />

Abuso 61<br />

Acção 13, 15, 19, 24, 45, 119, 179, 184, 194<br />

Acompanhamento 45, 47, 79, 80, 82, 85, 93, 94, 97, 102, 105, 124, 127, 128, 131,<br />

137, 197, 215<br />

Acontecimento 93, 133, 160<br />

Acreditar 10, 69, 76, 116, 120, 169, 171, 182, 192, 195, 196, 197, 202, 210, 215<br />

Actividades 17, 27, 28, 33, 34, 35, 40, 43, 45, 46, 47, 50, 64, 65, 66, 67, 73, 79, 80,<br />

83, 95, 98, 99, 104, 105, 112, 113, 122, 123, 124, 125, 132, 134, 135, 136, 137, 140,<br />

141, 144, 146, 177, 180, 183, 193, 201, 206, 207, 208<br />

Afectos 45, 66, 78, 143, 172, 175<br />

Alternativas 50, 123, 139, 141, 147, 194<br />

Amizade 19, 123, 139, 155, 189, 202, 210<br />

Arriscar 39<br />

Articulação 45, 47, 65, 141, 164, 193<br />

Avaliação diagnóstica 27, 130, 150<br />

Avançar 120, 195, 196<br />

B<br />

Boas-práticas 48<br />

Bolsa 37, 39, 46, 80, 82, 83, 155<br />

Bom ritmo de aprendizagem 47<br />

índice remissivo<br />

palavra/expressão-chave<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

219


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

220<br />

C<br />

Cabeleireira 40, 45<br />

Caminho 5, 29, 40, 68, 75, 85, 86, 111, 119, 126, 138, 142, 151, 152, 157, 162, 167,<br />

177, 184, 190, 194, 197, 205, 209<br />

Campo 51, 63, 74, 119, 155, 181, 182, 186<br />

Campos de férias 122, 124, 154, 156<br />

Carinho 39, 77, 100, 138, 148, 157, 162, 188, 189, 199, 202, 212, 217<br />

CEF 25, 28, 58, 59, 177<br />

Comportamentos disruptivos 43, 142, 180<br />

Comunidade 68, 74, 77, 78, 85, 92, 96, 100, 126, 133, 135, 145, 163, 167, 169, 178,<br />

179, 190, 207<br />

Confecção 41, 146<br />

Confiança 61, 78, 85, 87, 95, 107, 109, 152, 157, 162, 183, 209, 214<br />

Consumo de estupefacientes 58<br />

Coordenadora Local 138, 140, 141<br />

CPCJ 16, 43, 51, 63, 74, 80, 93, 103, 146<br />

Crença 8, 27, 117, 119, 121<br />

Crescimento 61, 136, 169, 172, 174, 175<br />

Criança 92, 99, 100, 102, 104, 117, 143, 159, 197<br />

Currículo 20, 23, 46, 91, 136, 143, 201<br />

D<br />

Decisão 20, 30, 37, 39, 46, 63, 91, 93, 102, 128, 129, 163, 182, 191<br />

Delinquência 58, 142<br />

Dentes 100, 101, 102, 160<br />

Depressão 147<br />

Desafio 9, 53, 59, 125, 135, 136, 143, 154, 155, 156, 161, 162, 166, 179, 191, 192,<br />

199, 200, 201, 205, 213, 214<br />

Descontos 39, 41<br />

Desigualdades educativas 17, 23<br />

«Desigualdades sociais, culturais e económicas» 17<br />

Desilusão 8, 120, 121, 196<br />

Desistir 37, 40, 58, 67, 86, 129, 146, 167, 171, 195, 198<br />

Diferenciação 143


Dificuldade 28, 31, 45, 48, 75, 79, 100, 104, 106, 127, 140, 172, 181, 207<br />

Dinheiro 35, 38, 42, 48, 67, 75, 101, 128, 172, 186<br />

Disfuncionalidade 43, 93<br />

Disponibilidade 33, 55, 78, 120, 125, 141, 150, 163, 174, 179, 190, 216<br />

E<br />

Educação 4, 7, 10, 13, 16, 17, 19, 22, 23, 28, 33, 36, 43, 45, 48, 54, 56, 58, 65, 69,<br />

78, 84, 85, 86, 91, 96, 101, 104, 105, 111, 114, 116, 117, 122, 123, 125, 127, 132,<br />

134, 135, 137, 148, 154, 155, 156, 162, 164, 165, 166, 167, 169, 177, 183, 191, 193,<br />

197, 206<br />

Empatia 59, 78, 97, 195<br />

Empenhamento 85, 120<br />

Emprego 25, 26, 27, 41, 42, 45, 48, 83, 92, 95, 96, 99, 101, 102, 146, 161, 183<br />

Encaminhamento 26, 32, 40, 81, 84, 85, 137, 190<br />

Equipa 10, 13, 14, 16, 17, 32, 33, 34, 35, 37, 43, 45, 51, 56, 60, 64, 65, 66, 69, 77,<br />

78, 79, 80, 82, 84, 85, 88, 89, 90, 94, 95, 99, 100, 111, 122, 123, 126, 128, 129, 130,<br />

131, 136, 138, 140, 141, 143, 148, 150, 152, 157, 158, 162, 163, 164, 165, 169, 176,<br />

177, 179, 191, 192, 200, 201, 203, 204, 209, 213, 217<br />

Escola 5, 6, 7, 10, 11, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32,<br />

34, 35, 37, 39, 40, 42, 43, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 56, 58, 59, 60, 61, 63,<br />

64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 86, 87,<br />

88, 89, 90, 91, 92, 93, 96, 97, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 108, 110, 111, 112, 115,<br />

116, 117, 118, 125, 126, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 139, 140,<br />

141, 142, 143, 144, 145, 146, 158, 159, 160, 162, 163, 164, 165, 166, 168, 169, 170,<br />

171, 172, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 191,<br />

192, 193, 194, 195, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 206, 207, 208, 215, 216,<br />

217<br />

Escola contentora 175<br />

Escolaridade 6, 13, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 27, 28, 30, 31, 35, 42, 48, 49, 50, 54,<br />

56, 58, 59, 63, 73, 74, 75, 79, 80, 82, 84, 87, 94, 96, 98, 125, 126, 132, 144, 153, 155,<br />

163, 170, 177, 192, 215<br />

Escolaridade obrigatória 6, 13, 21, 22, 23, 25, 28, 30, 31, 50, 54, 58, 73, 74, 75, 79,<br />

82, 153, 155, 163, 177, 192, 215<br />

Escolhas 94, 147, 192<br />

Escolher 5, 36, 43, 69, 72, 210<br />

Esperança 9, 52, 72, 75, 76, 103, 104, 119, 120, 132, 133, 189, 195, 198<br />

Esperar 5, 31, 36, 43, 71, 210<br />

Estratégia 85, 90, 132, 150, 213<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

221


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

222<br />

Estudar 7, 22, 35, 38, 39, 41, 42, 44, 73, 75, 76, 81, 84, 86, 87, 88, 91, 96, 106, 107,<br />

114, 115, 116, 118, 133, 134, 139, 172, 193, 203, 216<br />

Experiência 9, 14, 15, 35, 39, 47, 56, 73, 74, 87, 91, 108, 110, 130, 132, 133, 134,<br />

136, 138, 139, 151, 152, 154, 155, 157, 162, 163, 164, 165, 166, 168, 189, 198, 199,<br />

205, 206, 208, 214<br />

Exploração do trabalho infantil 2, 16, 18, 123, 151, 153, 154, 169<br />

Exploração vocacional 27, 35, 48, 67, 131, 135, 148<br />

Extracção 101, 102<br />

F<br />

Faltar 20, 22, 37, 38, 68, 74, 80, 88, 90, 112, 115, 145<br />

Família 6, 19, 21, 22, 26, 32, 40, 46, 47, 49, 52, 55, 58, 59, 60, 61, 63, 64, 66, 67,<br />

69, 70, 71, 72, 78, 80, 81, 82, 83, 88, 89, 92, 93, 94, 96, 97, 98, 100, 101, 102, 103,<br />

104, 106, 108, 111, 114, 126, 128, 129, 144, 145, 148, 160, 181, 183, 190, 193, 211,<br />

212, 213, 216<br />

Formação profissional 27, 34, 40, 57, 64, 83, 99, 108, 109, 129, 132, 145, 177<br />

Formação vocacional 50, 51, 67, 91, 113, 136, 137, 214<br />

Frustração 120, 153, 158<br />

Futuro 5, 6, 21, 23, 24, 40, 42, 44, 48, 49, 50, 51, 54, 59, 66, 67, 68, 74, 75, 76, 79,<br />

82, 84, 85, 86, 97, 129, 133, 147, 153, 175, 177, 178, 189, 193, 197, 198, 201, 204, 208<br />

Futuro risonho 189<br />

G<br />

Grupo 14, 25, 26, 27, 51, 61, 68, 77, 85, 88, 92, 93, 94, 105, 109, 110, 111, 112, 115,<br />

124, 125, 126, 136, 141, 142, 143, 148, 152, 154, 156, 157, 161, 162, 163, 164, 165,<br />

166, 168, 184, 185, 192, 195, 198, 201, 206, 208, 212, 213, 217<br />

H<br />

Heroína 42<br />

Hospital 80, 100, 101, 102, 110, 159, 160, 206<br />

I<br />

Impacto 15, 93, 136, 179<br />

Inclusão 124, 161, 194<br />

Independência 95<br />

Indisciplina 77, 134, 143, 148, 151, 152, 167, 180<br />

Individualidade 143, 175<br />

Infância 19, 67, 87, 117, 154, 155, 193


Infecção 100, 101, 159<br />

Informação 85, 124, 134, 136, 148, 163, 167<br />

Instabilidade emocional 92, 127, 151<br />

Insucesso escolar 20, 43, 84, 134, 194<br />

Integração 5, 13, 15, 26, 39, 45, 46, 48, 50, 52, 68, 77, 78, 80, 83, 90, 94, 106, 108,<br />

116, 122, 127, 128, 132, 135, 137, 138, 144, 145, 146, 156, 164, 190, 193, 194, 197,<br />

203, 208, 215<br />

Intervenção 13, 14, 15, 16, 18, 25, 33, 45, 49, 59, 65, 80, 81, 82, 83, 84, 94, 95,<br />

104, 105, 119, 139, 140, 141, 144, 153, 155, 164, 166, 174, 178, 179, 180, 190, 194,<br />

217<br />

Intervenção psicopedagógica 180<br />

Investimento 21, 84, 174<br />

J<br />

Jogos de futebol 51<br />

M<br />

Mãe 26, 27, 29, 32, 33, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 42, 46, 51, 52, 56, 57, 58, 60, 61, 63,<br />

65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 78, 80, 81, 82, 83, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 96, 97, 98,<br />

99, 100, 103, 104, 105, 107, 108, 110, 111, 115, 116, 127, 128, 129, 138, 145, 172,<br />

181, 182, 192, 203, 204, 212<br />

Marginais 39<br />

Mecânica 34, 50, 51, 95, 96, 137<br />

Medo 29, 31, 39, 61, 66, 87, 100, 104, 143, 152, 159, 196<br />

Missão 43, 163, 178, 209, 215<br />

Monitor 59, 60, 106, 122, 123, 124, 140, 154, 155, 174, 178<br />

Motivação 8, 27, 48, 49, 81, 83, 85, 117, 134, 135, 148, 153<br />

Mudança 5, 19, 25, 36, 39, 47, 80, 116, 117, 119, 143, 151, 208, 211, 212<br />

N<br />

Negligência 43, 55, 61<br />

O<br />

Observar 162, 208, 214<br />

Obstáculos 43, 53, 141, 190, 207<br />

Oportunidade 7, 10, 14, 34, 43, 45, 47, 49, 73, 74, 79, 82, 85, 86, 87, 90, 92, 96,<br />

106, 107, 116, 134, 153, 154, 155, 156, 168, 188, 192, 193, 195, 198, 204, 211<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

223


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

224<br />

Orçamentos 132<br />

Órfãos 119<br />

P<br />

Pai 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 38, 46, 52, 55, 56, 58, 60, 61, 63, 66, 80, 81, 83, 89,<br />

91, 92, 93, 98, 105, 107, 108, 110, 127, 128, 139, 144, 145, 160, 172, 181, 182, 183,<br />

200<br />

Parcerias 50, 138, 141, 162, 177, 194, 207, 208<br />

Partilha 42, 45, 105, 163, 176, 179, 213<br />

Paternidade 36, 119<br />

Patrão 38, 97, 118<br />

PEETI 16, 25, 26, 45, 47, 51, 64, 117, 122, 123, 125, 130, 131, 154<br />

Percurso educativo-formativo 40, 130<br />

Perigo 76<br />

Persistência 131, 150, 190, 198<br />

Pessoas 22, 31, 39, 42, 48, 57, 68, 69, 78, 85, 86, 87, 88, 99, 106, 107, 108, 110,<br />

124, 154, 165, 167, 184, 197, 200, 204, 205, 210, 213, 216<br />

<strong>PETI</strong> 1, 2, 4, 14, 16, 17, 22, 24, 25, 27, 32, 33, 39, 47, 48, 49, 60, 64, 69, 71, 73, 74,<br />

78, 79, 84, 85, 90, 92, 93, 95, 96, 97, 101, 102, 109, 111, 116, 117, 124, 125, 127,<br />

132, 136, 137, 144, 145, 146, 154, 162, 164, 165, 166, 168, 170, 191, 192, 193, 194,<br />

210<br />

<strong>PIEF</strong> 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26,<br />

27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 39, 40, 41, 42, 43, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 53,<br />

54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 64, 65, 67, 68, 73, 74, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84,<br />

85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 102, 103, 104, 105, 106,<br />

107, 108, 109, 110, 111, 112, 114, 115, 116, 117, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128,<br />

129, 130, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146,<br />

148, 150, 151, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 164, 165, 166, 168,<br />

170, 171, 172, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 189, 190, 191, 192, 193,<br />

194, 195, 196, 199, 200, 201, 203, 204, 205, 206, 208, 210, 211, 212, 213, 214, 215,<br />

216, 217<br />

Piores formas de trabalho infantil 1, 145<br />

Poema 43, 142, 188<br />

Pré-<strong>PIEF</strong> 28<br />

Professor 54, 75, 77, 104, 117, 133, 134, 136, 140, 142, 143, 152, 154, 156, 161,<br />

180, 197, 199, 200, 206, 208, 209<br />

Projecto 6, 14, 17, 34, 36, 39, 41, 45, 47, 48, 50, 51, 53, 60, 73, 79, 80, 102, 103,<br />

109, 114, 117, 120, 125, 130, 131, 132, 135, 138, 139, 140, 143, 150, 151, 152, 157,<br />

161, 162, 163, 164, 165, 166, 169, 177, 185, 191, 192, 193, 194, 199, 204, 207, 209,<br />

214, 215


Projecto educativo alternativo 36<br />

Promoção da auto-estima 45<br />

Prostituição 58, 145<br />

Protecção 16, 43, 51, 63, 65, 145, 158, 179<br />

Protocolo 133, 168<br />

Q<br />

Qualificações 39, 178<br />

Querer 5, 36, 42, 43, 70, 121, 170, 185, 197, 211, 216<br />

R<br />

Receber 54, 69, 70, 72, 101, 139, 154, 176, 215<br />

Reflexão 119, 137, 141, 158, 201, 202<br />

Região Norte 117<br />

Regulação próxima 54<br />

Relação 24, 32, 33, 34, 37, 41, 42, 55, 59, 78, 80, 86, 92, 93, 97, 98, 100, 103, 111,<br />

113, 114, 116, 123, 127, 128, 136, 138, 139, 150, 155, 174, 179, 181, 201, 209, 212,<br />

216<br />

Relações 5, 17, 21, 33, 34, 59, 65, 66, 84, 86, 90, 93, 98, 123, 172, 174, 207, 209<br />

Remediação 78, 194<br />

Reprovações 53, 105<br />

Responsabilidade 28, 89, 90, 109, 123, 139<br />

Resposta 25, 27, 28, 31, 32, 33, 43, 58, 66, 69, 71, 80, 81, 84, 85, 86, 91, 103, 105,<br />

106, 128, 142, 153, 154, 177, 187, 192<br />

Restaurante 37, 39, 113, 144, 155<br />

Risco 55, 58, 80, 84, 92, 93, 94, 100, 101, 107, 131, 144, 145, 164, 171, 175, 180,<br />

191, 194, 197, 215<br />

S<br />

Saber-estar 130<br />

Saber-fazer 130<br />

Saber-ser 130<br />

Sedução 181<br />

Segurança 39, 42, 56, 64, 65, 66, 71, 72, 99, 101, 102, 103, 107, 132, 214<br />

Segurança Social 39, 56, 64, 65, 66, 71, 72, 99, 101, 102, 103, 107, 132<br />

Sentimento de pertença 169<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

225


<strong>PETI</strong> 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal<br />

226<br />

Sentimentos 9, 43, 69, 127, 143, 159, 161, 170, 174, 194, 195<br />

Ser 5, 7, 18, 19, 20, 23, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 36, 38, 40, 42, 43, 48, 49, 50, 51,<br />

53, 57, 58, 61, 64, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 76, 78, 79, 80, 82, 85, 87, 90, 97, 98, 99,<br />

101, 102, 103, 106, 110, 112, 116, 117, 121, 125, 130, 132, 133, 139, 140, 142, 143,<br />

145, 146, 148, 150, 153, 154, 156, 157, 159, 161, 162, 164, 168, 169, 171, 174, 175,<br />

176, 177, 178, 179, 180, 181, 183, 184, 189, 190, 192, 193, 194, 197, 199, 200, 201,<br />

202, 203, 206, 207, 208, 209, 210, 212, 213, 215, 216, 217<br />

Sexualidade 179<br />

Sonhar 119, 120, 171, 172, 175, 210<br />

Sorriso 10, 68, 86, 97, 99, 159, 160, 190, 191, 195, 198, 199, 200, 212, 215<br />

Subsídio 37<br />

Sucesso 5, 23, 24, 26, 33, 39, 43, 45, 49, 50, 51, 53, 54, 58, 67, 68, 78, 79, 83, 84,<br />

89, 90, 92, 96, 100, 123, 127, 129, 132, 134, 138, 141, 143, 146, 152, 155, 156, 162,<br />

163, 168, 169, 170, 172, 177, 180, 181, 182, 192, 193, 194, 198, 209, 217<br />

Suor 118<br />

Suporte 58, 84, 100, 127, 129, 141, 147, 174, 178, 197<br />

Suporte familiar 100<br />

T<br />

Testemunho 10, 14, 36, 41, 48, 86, 96, 106, 132, 175, 176, 184, 193<br />

Trabalhar 8, 26, 33, 35, 37, 38, 50, 51, 59, 67, 69, 73, 74, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 87,<br />

94, 97, 98, 106, 107, 116, 118, 122, 125, 126, 128, 129, 131, 134, 139, 143, 144, 148,<br />

155, 164, 165, 168, 169, 172, 174, 176, 179, 180, 181, 182, 190, 192, 198, 199, 200,<br />

201, 209<br />

Trabalho 1, 2, 4, 5, 6, 13, 16, 17, 18, 21, 22, 23, 25, 26, 27, 29, 32, 33, 35, 36, 37,<br />

38, 40, 41, 42, 43, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 54, 59, 60, 63, 64, 65, 67, 73, 81, 82, 85,<br />

89, 91, 95, 97, 100, 102, 105, 107, 116, 117, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 130,<br />

131, 132, 134, 135, 136, 137, 138, 140, 141, 142, 144, 145, 148, 151, 152, 153, 154,<br />

156, 157, 158, 159, 162, 163, 164, 167, 168, 169, 170, 175, 177, 178, 179, 180, 181,<br />

184, 187, 190, 191, 192, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 207, 208, 210, 211,<br />

212, 214<br />

Trabalho em equipa 123<br />

Trabalho infantil 1, 2, 5, 16, 18, 25, 29, 36, 37, 43, 45, 46, 60, 81, 85, 97, 100, 117,<br />

122, 123, 124, 125, 130, 131, 137, 142, 144, 145, 151, 153, 154, 169, 170, 175, 190,<br />

192, 208<br />

Treinos 51, 52, 53, 54<br />

Tribunal 36, 37, 46, 63, 68, 71, 72, 93<br />

Tutoria 152


U<br />

Urgência 27, 100, 119<br />

Utopia 120<br />

V<br />

Vício 20, 37, 186<br />

Viscosidade 61<br />

Visitas domiciliárias 50, 54, 72, 103, 104, 192<br />

Vítima 42<br />

Vítimas 145, 195<br />

Voluntária 163<br />

Vontade 22, 38, 42, 43, 71, 72, 75, 79, 81, 109, 117, 118, 120, 125, 139, 140, 155,<br />

168, 171, 174, 175, 182, 185, 186, 196, 198, 199, 206, 211, 215<br />

<strong>Passagem</strong> <strong>pelo</strong> <strong>PIEF</strong><br />

227


passagem<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

São estórias como estas que fazem a história do <strong>PIEF</strong>.<br />

Rui Jerónimo

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