18.04.2013 Views

Cogito Ergo Sum - Livraria Martins Fontes

Cogito Ergo Sum - Livraria Martins Fontes

Cogito Ergo Sum - Livraria Martins Fontes

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

ORLANDO DE RUDDER<br />

5


6<br />

Ouvrage publié avec le soutien du Centre National du Livre<br />

– Ministère Français CHargé de la Culture –<br />

Obra publicada com o apoio do Centro Nacional do Livro<br />

– Ministério Francês da Cultura –<br />

Título original: IN VINO VERITAS<br />

Dictionnaire commenté des expressions d’origine latine<br />

Autor: Orlando de Rudder<br />

© Larousse, Paris, 2005<br />

Tradução: Tiago Marques<br />

Revisão: Hélder Viçoso<br />

Grafismo: Cristina Leal<br />

Edições Texto & Grafia, Lda.<br />

Av. Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.<br />

1000-217 LISBOA<br />

Telefone: 21 797 70 66<br />

Fax: 21 797 81 30<br />

E-mail: texto.grafia@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Europress, Lda.<br />

Rua João Saraiva, 10-A<br />

1700-249 Lisboa<br />

1.ª edição<br />

Lisboa, Fevereiro de 2008<br />

ISBN 978-989-95689-0-7<br />

Depósito Legal n.º 270 907/08<br />

Esta obra está protegida pela lei.<br />

Não pode ser reproduzida, no todo ou<br />

em parte, qualquer que seja o modo<br />

utilizado, sem a autorização do Editor.<br />

Qualquer transgressão à lei do Direito<br />

de Autor será passível de procedimento<br />

judicial.


COGITO ERGO SUM<br />

Sejam dicionários, prontuários, glossários ou obras genéricas de referência<br />

identificadas através de ordenação alfabética, pretende-se sobretudo que os<br />

temas abordados na colecção “Índice” sejam representados por obras de<br />

indiscutível qualidade, que se possam afirmar como auxiliares imprescindíveis<br />

de consulta e de leitura nos diversos domínios do conhecimento humanístico,<br />

científico, técnico ou artístico.<br />

7


Latim<br />

Língua natural do homem. Prejudica a escrita. É útil apenas para ler<br />

as inscrições dos fontanários públicos. Desconfiar das citações em<br />

latim; ocultam sempre qualquer coisa inconveniente.<br />

Gustave Flaubert, Dictionnaire des idées reçues 1 .<br />

1 Edição portuguesa: Dicionário das Ideias Feitas, tradução de João da Fonseca<br />

Amaral, Lisboa, Editorial Estampa, 1974.<br />

8


PREÂMBULO<br />

À memória de Mario Ruspoli,<br />

cineasta, balenófilo, entomologista,<br />

bluesman, viajante e romano.<br />

E<br />

sta obra nasceu do devaneio, do devaneio no sentido<br />

etimológico, isto é, do passeio. O estudante que fui<br />

adorava dicionários, mas não os consultava. No<br />

entanto, tentava aplicar-se, não se deixar distrair, procurar uma<br />

palavra precisa. Não tardava, porém, que uma outra palavra o<br />

interrompesse, o interessasse, o retivesse, a menos que fosse uma<br />

estampa ou um mapa. É evidente que aquelas errâncias faziam<br />

com que eu esquecesse aquilo de que tinha ido à procura a<br />

princípio. Além disso, a proximidade alfabética de diversos termos<br />

pertencentes a domínios distintos produzia amiúde curiosas<br />

associações de ideias.<br />

O Dictionnaire Universel de Pierre Larousse continha citações<br />

e locuções latinas. Já o Petit Larousse as reunia nas suas famosas<br />

«páginas cor-de-rosa». Tais frases, na sua grande maioria,<br />

reencontrei-as depois em versões escolares. À semelhança das<br />

palavras ligadas por uma ordem arbitrária, aprendi a utilizar<br />

aquelas expressões num contexto diferente do da sua origem;<br />

aprendi a produzir, mais uma vez, associações de ideias. Tal uso,<br />

por vezes irritante, das citações (o qual aprendi a fazer ainda<br />

mais tarde) não é mais do que aplicação retórica. Essa figura é<br />

uma daquelas que podemos encontrar com maior frequência:<br />

não há livros que não a contenham. Constitui uma das bases<br />

daquilo a que chamamos «espírito», fundamento da «arte da<br />

conversação» que, apesar da sua ligeireza, ou até mesmo da sua<br />

inconsistência, valia largamente a discussão vã e muitas vezes<br />

com laivos de agressividade que a substituiu.<br />

A partir das «páginas cor-de-rosa» do seu Nouveau Dictionnaire<br />

de la Langue Française (1856), Pierre Larousse publicou em 1861<br />

as Fleurs latines des dames et des gens du monde. Esse livro<br />

recenseava por ordem alfabética as citações latinas mais comuns,<br />

indicava as suas referências, explicava-as, fazia o seu histórico,<br />

acrescentava citações que as ilustravam. Nas páginas que se<br />

seguem, poder-se-á encontrar o mesmo tipo de informações,<br />

assim como aplicações similares.<br />

9


PREÂMBULO<br />

O presente livro constitui, portanto, uma homenagem à obra<br />

de Pierre Larousse, mas não sem deixar de se distinguir dela.<br />

Para mim, não se trata de competir com o que foi feito, mas<br />

antes convidar o leitor a partilhar o grande prazer dos passeios<br />

feitos pelo dicionário.<br />

Como um contraponto dos meus antigos devaneios, as frases<br />

e os fragmentos que eu explicitava e comentava ao fazer este<br />

livro guiaram-me muitas vezes até outras citações, outros<br />

fragmentos; dirigiram-me insidiosamente a novas pistas.<br />

Revelavam-se incessantemente novos horizontes. Foi mesmo<br />

preciso parar ou esta obra não teria tido fim. Ao corpus tradicional<br />

das citações antigas, acrescentei, contudo, algumas frases e<br />

locuções mais modernas, partindo do latim medieval até chegar<br />

a um graffito de... 1987: a língua latina até está muito bem de<br />

saúde, para uma morta.<br />

Cada entrada oferece a tradução, as referências (quando elas<br />

existem) da locução tratada, apresenta um comentário que se<br />

quis engraçado e prossegue, por vezes com um desvio, até com<br />

divagações que representam aquilo que a palavra ou a frase em<br />

questão me evocam. No final de certos artigos, citam-se «fontes»,<br />

que não são forçosamente aquelas de que me servi para redigir<br />

o livro. Trata-se, em geral, de obras acessíveis hoje em dia e que<br />

resumem um dos aspectos do propósito/da conversa em curso.<br />

Em suma, tudo o que se segue é uma incitação à viagem. É por<br />

este motivo que muitos artigos remetem para outras entradas,<br />

de maneira a propor múltiplos itinerários.<br />

Assim, tudo está feito para que o leitor deambule e encontre<br />

a impressão vertiginosa que tantos e tantos miúdos<br />

experimentaram subvertendo, por distracção, o uso dos<br />

dicionários. Nunca indo directo ao assunto, deixando-se guiar<br />

pelo acaso das palavras, pelos encontros estranhos que a ordem<br />

alfabética produz — era assim que eles descobriam o que nunca<br />

mais se esquece: a verdadeira cultura, ou seja, o prazer.<br />

10


ORLANDO DE RUDDER<br />

Ab absurdo<br />

(Por absurdo)<br />

Claramente presente no aforismo de Lichtenberg «Uma faca sem lâmina<br />

à qual falta o cabo», o absurdo não se exprime apenas nos pensadores severos<br />

ou nos filósofos cultivados: o teatro de feira e o teatro de variedades,<br />

muito antes de Beckett, já o empregavam de forma vertiginosa.<br />

Com efeito, Louis François Archambault (1742-1812), cognominado<br />

Dorvigny, autor e actor, filho putativo de Luís XV e de uma hóspede do Parc<br />

aux cerfs 2 , inventor de Jocrisse, criou em 1779 (ano da morte de Lichtenberg),<br />

numa peça intitulada Les Battus payent l’amende [Os Vencidos Pagam a<br />

Multa], a personagem de Janot (espécie de imbecil que espera ganhar na<br />

lotaria porque o acaso é tão grande), que usa uma sintaxe confusa e comete<br />

erros aos quais se passou a chamar, desde então, janotismos: «Ponha o seu<br />

chapéu na sua cabeça de três bicos», por exemplo.<br />

Janot remete para Lichtenberg. A faca deste, frequentemente partida,<br />

sofreu diversas reparações: mudou-se-lhe a lâmina, depois o cabo, depois a<br />

lâmina, depois o cabo; no entanto, ela continua a ser sempre a mesma...<br />

Assim, Janot e Lichtenberg juntam-se para nos demonstrar, cada qual à<br />

sua maneira, que uma faca só existe por meio da ideia que temos dela.<br />

A geometria utiliza muitas vezes as demonstrações ab absurdo. Mas o<br />

absurdo, confronto entre uma realidade que nos parece irracional e o nosso<br />

frenético (ou mesmo neurótico) desejo de coerência, apela-nos, «interpela-nos»...<br />

Há algo de insuportável no mundo tal como ele é. Aqueles para quem<br />

um deus continua a ser insuficiente procuram ver as coisas de forma clara.<br />

Para isso, talvez seja preciso tapar os ouvidos para não se ouvir o canto,<br />

tentador, de certas sereias do racionalismo, do misticismo ou da crença.<br />

O absurdo, ab surdum, dirige-se aos surdos, àqueles que têm orelhas e não<br />

querem ouvir, àqueles que pertencem à mesma espécie de Ulisses.<br />

Porque é que há algo em vez de nada? A questão é trivial: nada é já<br />

alguma coisa (cf. Ex nihilo nihil). O absurdo existe, está mesmo debaixo<br />

dos nossos olhos, podemos mesmo ouvi-lo: os surdos, na verdade, são aqueles<br />

que aceitam acreditar... Assim, tudo pode inverter-se... A prova: os novilatinos<br />

do Vaticano, aquando de um concílio, tendo de falar de jazz, fizeram prova<br />

de uma bela surdez, muito pouco absurda, aliás, ao designarem tal aventura<br />

musical como absurda symphonia, expressão retirada de um texto antigo<br />

que falava da forma ridícula de os Gauleses cantarem (se bem me lembro;<br />

cf. Media acies, quanto ao latim contemporâneo).<br />

2 Nome dado, na época de Luís XV, a um bairro de Versalhes hoje designado<br />

Quartier Saint-Louis [N. do T.].<br />

12


COGITO ERGO SUM<br />

Não acreditar naquilo que vemos nem naquilo que ouvimos é o início da<br />

sabedoria. No século V antes da nossa era, Zenão de Eleia não acreditava no<br />

movimento. Tinha razão: quando uma coisa é demasiado evidente, duvida-<br />

-se dela. Zenão investigou e esforçou-se por demonstrar que, devido ao facto<br />

de o espaço e o tempo serem indefinidamente divisíveis em pontos e<br />

instantes, o infinito não pode ser percorrido. O movimento implica tal<br />

contradição, dado haver efectivamente percurso.<br />

Assim, Aquiles, ao correr atrás de uma tartaruga, nunca conseguirá<br />

alcançá-la, pois, a cada momento da perseguição, a distância que o separa<br />

da fugitiva pode ser dividida...<br />

A bela dúvida de Zenão chegou até a pôr em dúvida a existência do<br />

espaço. Aristóteles (Física, IV, 3) explica-nos que Zenão mostrou que o espaço<br />

supõe necessariamente um espaço que o contenha, e assim por diante.<br />

É esta forma de raciocínio que nos leva às grandes descobertas: hoje, o<br />

cardinal (isto é, a totalidade) dos números pode ser pensado como estando<br />

contido num cardinal maior; sendo cada totalidade designada pela letra<br />

hebraica aleph, aleph 1 é englobado em aleph 2, e assim consecutivamente.<br />

Apenas o absurdo é fecundo: é assim que tudo avança.<br />

Fonte:<br />

Georg Christoph Lichtenberg, Aphorismes, Paris, 1965<br />

[Aforismos, tradução de João da Fonseca Amaral, Lisboa, Editorial Estampa, 1974].<br />

Ab irato<br />

(Num acesso de cólera)<br />

A cólera é má conselheira; a cólera é uma breve loucura: Ira furor brevis<br />

est, diz Horácio (Epístolas, I, 2, 62)... Ira, irritabilidade, irritação: as palavras<br />

francesas que derivam de ira, a cólera latina, marcam uma nuance relativamente<br />

à sua origem. Preferimos cólera, que apareceu na língua francesa no<br />

século XV e que é formada a partir de duas palavras gregas: kholera, por um<br />

lado, designando a cólera ou outra doença do mesmo tipo, e, por outro<br />

lado, kholé, que designa a bílis. A semelhança entre as duas palavras fez<br />

com que os Romanos acreditassem que a cólera era uma doença da bílis.<br />

Supunha-se que a bílis provocava a tristeza, a melancolia (ou bílis negra), e<br />

não a cólera. O rei Picrocolo, no livro Gargântua, de Rabelais, age sempre<br />

ab irato. O seu nome significa «bílis amarga»...<br />

O francês antigo servia-se da palavra courroux, derivada do verbo latino<br />

corrumpere, que significa «alterar», «corromper». Desse verbo nasceu outro,<br />

em latim popular: corruptiare, formado a partir do particípio passado corruptus.<br />

A cólera era, sem dúvida, considerada então como uma alteração do espírito.<br />

Séneca (4 a.C.-65 d.C.) escreveu um tratado acerca da cólera (De ira),<br />

dirigido ao seu irmão Novato. Será que o grande estóico teve de vencer os<br />

seus impulsos coléricos? Será que aquele nativo de Córdova herdou da sua<br />

13


ORLANDO DE RUDDER<br />

cidade natal um carácter susceptível, tal como o que se costuma atribuir<br />

aos Ibéricos? O certo é que ele era mordaz: tendo sido obrigado a<br />

escrever uma apologia de Cláudio, vingou-se redigindo uma contra-<br />

-apologia, a Apokolokyntose, na qual o imperador se via<br />

metamorfoseado em abóbora. É possível imaginar que se trata de um<br />

texto redigido ab irato. Lucius Annæus Seneca [Lúcio Aneu Séneca]<br />

acabou, no entanto, por se acalmar e compôs um tratado sobre a<br />

tranquilidade da alma (De tranquillitate animi), assim como outro a<br />

propósito da clemência (De clementia). O autor devia decerto pensar<br />

que a vida é demasiado curta para que ele se deixasse tomar por certos<br />

impulsos coléricos – a tal ponto que escreveu uma obra sobre a brevidade<br />

da existência (De brevitate vitæ).<br />

O antigo Direito francês conhecia a acção ab irato, extensão da queixa de<br />

inoficiosidade, a qual permitia que os descendentes que se sentiam lesados<br />

quando recebiam uma herança, ou até quando se viam privados dela, pedissem<br />

a anulação do testamento, alegando que o testador o redigira sob a<br />

influência da cólera ou do ódio. Hoje em dia, o artigo 901 do Código Civil<br />

francês permite uma tal anulação, caso seja possível estabelecer que os<br />

mesmos sentimentos alteraram, ainda que passageiramente, as faculdades<br />

intelectuais do testador.<br />

Ab ovo<br />

(A partir do ovo)<br />

Expressão de Horácio (Arte Poética, 147), aludindo a Leda: Júpiter, transformado<br />

em cisne, seduziu-a. Em resultado de tal amor, Leda deu à luz, ou<br />

melhor, pôs... dois ovos. Um continha Castor e Pólux, enquanto o outro<br />

guardava Clitemnestra e Helena.<br />

Horácio louva Homero por este não ter feito a Ilíada começar pelo<br />

nascimento de Helena, mas pela cólera de Aquiles, ou seja, por ter ido<br />

directo ao assunto. . Fazer recuar o início de uma narrativa seria, portanto,<br />

um erro.<br />

No entanto, alguns não se privaram de fazê-lo: Gregório de Tours, por<br />

exemplo, no século VI, que começa a sua História dos Francos com uma<br />

profissão de fé, precisamente antes de fazer o relato do Antigo e, em seguida,<br />

do Novo Testamento, os quais, resumidos, introduzem a relação dos factos e<br />

feitos dos Merovíngios. Tal forma de recuar ab ovo é frequente nos antigos<br />

cronistas. Evocando continuidade, permite legitimar os soberanos<br />

contemporâneos da redacção da crónica.<br />

Esses primeiros historiadores teriam ficado certamente surpreendidos se<br />

tivessem podido saber que encontrariam no seu século um digno continuador,<br />

pelo menos. Com efeito, Ferdinand-Joseph La Menthe, admirável pianista de<br />

14


COGITO ERGO SUM<br />

Nova Orleães, seguiu-os nessa prática. . Fundador do jazz, mais conhecido<br />

sob o pseudónimo de «Jelly Roll» Morton, teve a veleidade de redigir as suas<br />

Memórias. E começou-as assim:<br />

«O Senhor Supremo criou o Universo em seis dias de trabalho; no sétimo,<br />

descansou [...]. O Novo Mundo foi ignorado até ao dia em que o Rei e a<br />

Rainha financiaram a viagem do grande Cristóvão Colombo.»<br />

Depois, portanto, de ter relatado a descoberta da América, «Jelly Roll»<br />

chega à Luisiana:<br />

«No centro do sudoeste deste Estado constituíra-se a aglomeração mais importante<br />

da região: a cidade de Nova Orleães. E, nessa cidade, uma família<br />

de origem francesa que usava o nome La Menthe teve um filho. Tal filho<br />

recebeu os nomes Ferdinand-Joseph La Menthe.»<br />

Começar assim uma história ab ovo pode parecer-nos curioso, cansativo<br />

ou divertido. A repetição incessante de acontecimentos conhecidos de todos<br />

pode, evidentemente, causar irritação. Os historiadores antigos não<br />

ignoravam decerto tal facto, persistindo nisso, no entanto. Havia, por<br />

conseguinte, utilidade naquele procedimento.<br />

Começar uma história por algo que toda a gente considera como verdadeiro<br />

não é inocente. O Génesis ou os relatos mitológicos não eram postos em<br />

causa, nas respectivas épocas de esplendor. As narrativas começavam, pois,<br />

pela «verdade», o que inspirava confiança no seguimento. Tal fenómeno filia-<br />

-se nas genealogias reais, supostas ou até inventadas: o mérito de um grande<br />

antepassado repercute-se, assim, no seu mais modesto descendente.<br />

Começar ou não ab ovo põe também o problema da ordem da narração:<br />

será que se deve seguir a cronologia ou proceder por meio de recuos<br />

(analepses narrativas) ou avançando mesmo no futuro (prolepses narrativas)?<br />

Tais rupturas, tais explosões temporais não são tão «modernas» quanto<br />

possamos pensar (cf. Nil novi sub sole). Em 1670, J.-B. Huet critica<br />

severamente As Babilónicas de Jâmblico, escritor sírio de língua grega<br />

que viveu no século II. Segundo Huet, «ao ordenamento do seu esboço<br />

falta arte. [O autor] seguiu grosseiramente a ordem do tempo e não lançou<br />

o leitor logo de início no meio do assunto, seguindo o exemplo de<br />

Homero».<br />

O recuo, após um início in medias res, é característico da epopeia, mas<br />

continua a ser frequente até aos nossos dias. Em todo o caso, é esse o motor<br />

das Impressions d’Afrique [Impressões de África] de Raymond Roussel.<br />

Podemos também modificar uma lenda ou um mito ab ovo devido a<br />

razões políticas ou religiosas: quem poderá alguma vez chegar a saber quais<br />

foram as diversas modificações que antigos textos babilónicos, egípcios e<br />

muitos outros tiveram de sofrer para serem integrados no vasto corpus a<br />

que chamamos Bíblia?<br />

15


ORLANDO DE RUDDER<br />

Já o que se pode conhecer melhor é a actuação de Leonor de Aquitânia.<br />

Em Inglaterra, enquanto reinava o seu esposo, Henrique II Plantageneta,<br />

estava em curso uma certa resistência saxónica. As velhas lendas celtas contavam<br />

que o rei Artur estava adormecido e que iria provavelmente acordar<br />

um dia para expulsar o invasor normando. Que fazer neste caso? É bastante<br />

simples: basta reescrever a lenda e dizer que o rei Artur morreu, deixando-se<br />

subentender que designou como sucessor Henrique II Plantageneta. Leonor<br />

esteve na origem dessa reescrita. A grande literatura normanda medieval<br />

(que trata das lendas bretãs) nasceu, em parte, desta forma.<br />

A Ilíada, portanto, não começa ab ovo, mas sim pela cólera de Aquiles:<br />

podemos então dizer que ela se inicia ab irato (cf. supra).<br />

Também se pode explicar a locução em causa completando-a da seguinte<br />

maneira: Ab ovo usque ad mala — o que significa «desde o ovo até às maçãs»,<br />

pois os Romanos começavam as suas refeições com ovos e terminavam-nas<br />

com fruta.<br />

<strong>Fontes</strong>:<br />

A. Lomax, Mister Jelly Roll, Paris, 1964, tradução de Henri Parisot;<br />

J.-B. Huet, Traité de l’origine des Romans, 1670.<br />

Ab urbe condita<br />

(Desde a fundação da cidade)<br />

Os Romanos datavam os anos a partir da suposta fundação de Roma<br />

(urbe condita ou urbis conditæ), que teve provavelmente lugar por volta<br />

de 753 a.C. No entanto, Roma não foi feita num dia. Além disso, estabelecer<br />

uma data não é assim tão simples.<br />

A Idade Média ocidental herdou dos Romanos o calendário juliano e adicionou-lhe<br />

o cômputo eclesiástico por anos a partir da era da encarnação de<br />

Jesus Cristo. Omitamos o facto de não se saber nada a propósito da data<br />

precisa do nascimento de Jesus, o que não atrapalhou Dionísio, o Pequeno.<br />

Dionísio, o Pequeno, era natural da Cítia, mas vivia em Roma. Monge,<br />

escrevia com igual facilidade tanto o grego como o latim e traduziu do primeiro<br />

para o segundo os cânones dos Concílios. Introduziu um novo ciclo<br />

pascal para substituir o que tinha sido feito por São Vítor e decidiu, em 525,<br />

tomar a suposta data do nascimento de Cristo como ponto de partida da<br />

era vulgar, isto é, a era do povo cristão – e a nossa.<br />

O que não nos falta são eras: a antiga era consular romana tinha fracassado<br />

há já muito tempo, mas datava-se sempre um acontecimento de «tal<br />

ano depois do último cônsul». A acção de contar por anos de reinado dos<br />

imperadores nunca chegou a impor-se verdadeiramente, ainda que se tenha<br />

usado bastante a «era de Diocleciano» ou «era dos mártires» para os<br />

Cristãos. Era possível igualmente contar por indictio, período de quinze anos,<br />

16


COGITO ERGO SUM<br />

o que se fez por volta do século III. Os Cristãos também quiseram fazer partir<br />

o início dos anos a partir da criação do Mundo. Infelizmente, os cálculos<br />

efectuados a partir dos dados cronológicos do Antigo Testamento divergiam<br />

sensivelmente. O ano romano começava a 1 de Janeiro. Já os Cristãos decidiram<br />

que o ano começaria no dia de Páscoa, festa móvel.<br />

Portanto, 753 a.C. seria a data da fundação de Roma. Pois seja… mas...<br />

O ano juliano de 365 dias não corresponde ao ciclo solar. Para haver<br />

conformidade com esse ciclo, é necessário, de quatro em quatro anos,<br />

acrescentar um dia. Tudo estaria bem se o ano compreendesse efectivamente<br />

365 dias e 6 horas. Ora, ele dura apenas 365 dias, 5 horas e 48 minutos.<br />

Desde a época do Império Romano até ao século XVI, o erro ascendeu a dez<br />

dias. A Páscoa, calculada de acordo com o equinócio da Primavera, que se<br />

supunha coincidir com o dia 21 de Março, mas que correspondia na verdade a<br />

11, podia calhar por vezes no mês de Maio actual, isto é, na altura do Pentecostes.<br />

Seguindo os conselhos do astrónomo Lílio, Gregório XIII decidiu restabelecer<br />

a ordem: o dia que se seguiu a 4 de Outubro de 1582 foi chamado...<br />

15 de Outubro. Mas nós conservámos o velho sistema relativamente às<br />

datas anteriores a 1582, pois o nosso costume vai no sentido de prolongar o<br />

calendário gregoriano pelo passado. Eis, portanto, algumas equivalências.<br />

O dia 1 de Janeiro de 1500 juliano seria o 10 de Janeiro gregoriano. O 1.º de<br />

Janeiro de 1200 juliano (ano bissexto) seria o 8 de Janeiro gregoriano.<br />

O 1.º de Janeiro do ano 800 juliano seria o 5 de Janeiro gregoriano.<br />

No ano 300, as datas coincidem, porque os reformadores de 1582 quiseram<br />

restabelecer o estado que achavam certo na época do Concílio de Niceia,<br />

em 325. Contudo, se continuarmos no passado, a diferença entre os dois<br />

calendários aumenta 3 dias de 400 em 400 anos: o dia 1 de Janeiro do ano<br />

101 a.C. juliano seria, para nós, o dia 29 de Dezembro do ano 102.<br />

O túmulo de Carlos, o Temerário, apresenta o dia 5 de Janeiro de 1476<br />

como a data do seu falecimento. Para as pessoas da época, não havia qualquer<br />

problema: o ano de 1477 começaria na Páscoa. Para nós, nos nossos<br />

livros de História, ele morreu naquele ano.<br />

O hábito que temos de prolongar o nosso calendário pelo passado foi<br />

introduzido por volta do século XVIII. Na História Antiga de Rollin,<br />

publicada entre 1730 e 1738, as datas ainda são calculadas a partir da<br />

suposta data de criação do Mundo. Alguns sábios do século XIX continuaram<br />

a datar os acontecimentos da História grega por Olimpíadas e os da<br />

História romana tomando como ponto de partida a fundação de Roma.<br />

O sistema actual tem a vantagem de nos permitir orientar-nos melhor, de<br />

poder fazer-nos aproximar acontecimentos contemporâneos entre si.<br />

Todavia, se os anos 750 viram Roma nascer e foram a época da grande<br />

poesia homérica, será que podemos ligar tais factos à fundação de Lo-Yi,<br />

a nova capital da China dos Cheu, que teve lugar um ano antes?<br />

A contemporaneidade dos acontecimentos não situa forçosamente uns<br />

em relação aos outros.<br />

17


ORLANDO DE RUDDER<br />

Os Romanos não tinham mais referências para datar ab urbe condita do<br />

que nós temos para fixar a data de nascimento de Cristo (ou até mesmo a<br />

data da sua morte: a tradição do ano 33 já vem sendo contestada há muito<br />

tempo, pelo menos desde 1923, por E. Meyer, cujas investigações o conduziram<br />

a fazer a Paixão recuar ao curso do ano 29 ou 28...). No século III antes<br />

da nossa era, Timeu, historiador grego, pensava que Roma existia desde<br />

o século IX a.C. Énio, escritor latino da mesma época, inclinava-se mais para<br />

o século XI. Para Varrão, a data é a de 753 a.C. Para os fastos capitolinos,<br />

tábuas nas quais se registavam os dias de audiência, as festas, etc., a data<br />

corresponde àquilo que consideramos como 752 a.C.<br />

Acrescente-se que, além disso, as pessoas nem sempre sabem qual é o<br />

ano em curso. Datar foi, durante muito tempo, uma preocupação de pessoas<br />

letradas: o grande temor do ano mil não pôde existir, pois teria sido<br />

necessário que todos soubessem que se encontravam, então, no ano 1000.<br />

Tal terror afligiu alguns monges eruditos e provocou arrepios a alguns historiadores<br />

do século XIX (d.C.!).<br />

Ab urbe condita? Querer estabelecer pontos de referência temporais deixou<br />

de ser fácil. O passado não é simples e a diversidade dos nossos calendários<br />

torna-o imperfeito.<br />

<strong>Fontes</strong>:<br />

E. Cavaignac, Chronologie de l’histoire mondiale, Paris, 1946;<br />

E. Meyer, Ursprung und Anfänge des Christentums, 1923;<br />

VV. AA., Chronothèque, Tables historiques, les Éditions d’Organisation, Paris, circa<br />

1981 (um desdobrável diferente por cada época).<br />

Abusus non tollit usum<br />

(O abuso não exclui o uso)<br />

Aforismo jurídico romano citado como provérbio, significa, antes de mais,<br />

que não se pode privar alguém do uso ou da propriedade de uma coisa,<br />

ainda que dela abuse. No sentido corrente, essa frase quer dizer que o abuso<br />

que possamos fazer de uma coisa não deve necessariamente forçar-nos a<br />

abster-nos dela.<br />

Trata-se apenas de uma questão de equilíbrio. Tanto hoje como no<br />

passado, o equilíbrio é o que é mais difícil de estabelecer. Os efeitos desastrosos<br />

do álcool e do tabaco não provêm do seu consumo, mas do seu<br />

abuso. Todavia, as circunstâncias da vida contemporânea levam a isso. As<br />

tensões que suscitam têm necessidade de encontrar um escape, e o equilíbrio<br />

restabelece-se à custa do consumo excessivo de bebidas estimulantes<br />

ou pelo aumento do tabaquismo. É possível que abusiva seja a própria vida<br />

moderna – e não o consumo exagerado de diversos excitantes.<br />

18


Outro abuso é o da pureza a qualquer preço, o da «vida sã», geralmente<br />

revestida de saudosismo. A obsessão pela saúde, pela dietética, espécie de<br />

catarse moderna, não deixa de ser uma fonte de inquietação, que leva a<br />

posições turvas, vagamente religiosas, ou, pior, a uma moral da eficácia.<br />

Também se manifesta nos zeladores do «natural» um pouco de ódio: basta<br />

ver a agressividade com que atacam os fumadores, acusando-os de todos os<br />

males. Aqueles que cometem tais excessos talvez devessem fumar, de modo<br />

a acalmarem a sua cólera, ou então «beber uma pinguinha», para finalmente<br />

serem capazes de sorrir.<br />

Jean Dutourd, em Le Fond et la Forme [O Fundo e a Forma], declara:<br />

«Todo o uso acaba por transformar-se em abuso.»<br />

Podemos acreditar nele. Contudo, não será surpreendente que esse respeitável<br />

académico adopte, a propósito de assuntos linguísticos, posições<br />

abusivamente puristas? Bernard Le Bovier de Fontenelle (1657-1757), um<br />

dos seus predecessores no Instituto, pronunciara em tempos um Elogio dos<br />

Académicos, no qual declarava:<br />

«[Leibniz] apresenta definições exactas que o privam da agradável liberdade de<br />

abusar dos termos nas ocasiões.»<br />

Abuso, em matéria linguística, é querer que uma palavra tenha apenas<br />

um único sentido ou, então, que ele seja vago e só exista pelo seu aspecto<br />

peremptório, tal como um slogan, uma mensagem publicitária. É entre estes<br />

dois excessos que reside a liberdade, tanto mais que tudo o que se refere à<br />

linguagem acaba, mais dia menos dia, por tomar um aspecto político.<br />

Convém, ainda assim, não abusar.<br />

Abyssus abyssum invocat<br />

(O abismo atrai o abismo)<br />

COGITO ERGO SUM<br />

«Porque é que te deprimes, alma minha, e te lamentas em mim?», diz<br />

David (Salmos, 42, 6). O chamamento do abismo apresenta-se como maldição:<br />

um erro acarreta outro, e assim por diante. Será que alguma vez chegamos<br />

a tocar o fundo da infelicidade ou da vergonha?<br />

Abismo significa «sem fundo». A palavra provém de um superlativo latino,<br />

Abyssimus, ele próprio forjado a partir da palavra abyssus, de origem grega,<br />

composta pelo privativo a- e pelo nome bussos, que significa «fundo».<br />

Confundem-se as profundezas abissais, inquietantes, ctónicas ou<br />

pelágicas, infernais ou marinhas: o golfo e o precipício derivam da mesma<br />

palavra grega (kolpos). Neptuno e Vulcano reinam sobre as profundezas<br />

insondáveis, negras como a noite, escuras ou rubras devido às chamas do<br />

inferno. Os anjos rebeldes foram atirados para o abismo.<br />

Emposieux do Jura, avens de Landes, catavothres do Peloponeso, os abismos<br />

geológicos possuem a forma de funil: a iconografia cristã representava,<br />

por vezes, o abismo sob a forma de um cone. Dele saía uma cabeça humana,<br />

19


ORLANDO DE RUDDER<br />

enorme, horrenda, com um ar feroz: o abismo, o oculto que sai das<br />

profundezas, atemorizava, quer fosse exterior (o poço; o precipício; o local<br />

da queda, da vertigem), quer fosse interior (o abismo que existe dentro de<br />

nós; loucura; inquietação; melancolia; desespero; vertigens da razão que<br />

gostaríamos de poder ignorar, mas que nunca conseguimos evitar). O abismo<br />

revela e revela-se: o abismo chama pelo abismo e responde a si mesmo como<br />

um eco, indefinidamente.<br />

A mise en abyme ilustra tal repetição. O «abismo», em heráldica, é o<br />

centro do escudo. Pôr em abismo é reproduzir o escudo no seu próprio<br />

centro. Tal procedimento fascinante foi ilustrado em outros tempos por<br />

Benjamin Rabier, através da simpática e célebre Vaca que ri. A caixa que<br />

contém esse queijo representa uma vaca alegre com brincos que representam<br />

a própria caixa na qual se encontra a mesma vaca com brincos, etc. Essa<br />

«colocação em abismo» é acompanhada de uma progressão geométrica:<br />

o número de brincos representados duplica-se em cada uma das vezes, o<br />

que se escreve da seguinte forma:<br />

../.. : 2 : 4 : 8 : 16... e etc.<br />

O escudo de armas ostenta os brasões de uma família, de uma linhagem.<br />

Esta última palavra, tal como linha, provém do vocábulo latino linea, que<br />

mantivemos na palavra alínea, que designa, originariamente, o fio de linho.<br />

A continuação das gerações é assim representada como um fio, à semelhança<br />

do fio da vida que as Parcas fiam e cortam, podendo ser um fio de<br />

linho ou de lã (lana e linea são palavras próximas) e representando o<br />

destino. A linhagem testemunha o enraizamento daqueles que são oriundos<br />

de uma terra, de um país, de um conjunto de tradições. A palavra<br />

linho em grego é bussos e encontra como homónimo nessa língua o vocábulo<br />

que significa «fundo». A ligação ao solo ou o enraizamento podem<br />

ser representados por byssus, de idêntica origem. A byssus (ou «seda<br />

marinha) é segregada pelos moluscos lamelibrânquios e pode ser tecida.<br />

É graças a ela que, por exemplo, os mexilhões conseguem prender-se tão<br />

tenazmente às rochas nas quais se encontram.<br />

Desgraçados dos órfãos e dos bastardos: malditos pelo seu nascimento,<br />

deverão caminhar de infelicidade em infelicidade e nunca chegarão a<br />

envergar o cândido linho da inocência. Errarão, a-bussos, tal como<br />

Perceval, sem terem forçosamente a sorte de serem reconhecidos um dia,<br />

e ficarão cegos como Édipo, como os moluscos, a fauna tenebrosa das<br />

profundezas abissais, deserdados, desenraizados, desdichados, avançando<br />

de abismo em abismo, declinando todas as estações [stations («estações»,<br />

«paragens») e saisons («estações do ano») provêm ambas de stationem]<br />

de uma Paixão que conduz ao Inferno. E este último será talvez a Abissínia<br />

de Rimbaud, terra assim denominada de modo desprezível pelos antigos<br />

geógrafos, país, continente negro, nas margens do Mar Vermelho, cores<br />

do inferno, do abismo, da morte e do sangue, país do exílio e de uma<br />

sede inextinguível.<br />

20


COGITO ERGO SUM<br />

Será que a linha, o fio da existência é o mesmo que Ariadne usará para<br />

salvar Teseu antes de se deslocar a Naxos, para atirar-se ao mar, respondendo<br />

ao chamamento dos Abismos?<br />

A byssus era uma espécie de cambraia fina e designava também um tecido<br />

de seda. Seria este o tecido do manto de luz do Eterno (Salmos, 102, 2)?<br />

Nesse mesmo salmo, o abismo é comparado com uma veste que envolve a<br />

Terra, rodeando-a de trevas. O manto de glória, o manto da Fortuna que os<br />

reis romanos copiavam, o manto da Grande Deusa etrusca, todos eles eram<br />

de cor púrpura, tal como o manto do grande sacerdote dos Hebreus. A cor<br />

púrpura opõe-se ao negro das trevas... Mas não sem ambiguidade: é também<br />

a cor do sangue, benéfico se estiver oculto, maléfico se estiver à vista, visto<br />

que, então, se torna sinal de morte. A morte é negra, cor da noite, do abismo,<br />

das profundezas: eram negros os touros sacrificados a Neptuno.<br />

O vermelho é a vestidura do ferreiro, herdeiro de Vulcano, aquele que doma<br />

o fogo do inferno. Vermelho é o fato do carrasco que derrama sangue.<br />

Ferreiro, carrasco: estes dois «intocáveis», ligados ao inferno, evocam a morte,<br />

o arcano 13, o negro da Morte de foice vermelha, ceifando impiedosamente a<br />

paisagem negra da ilusão transitória. Negro: luto, mas também ventre do<br />

mundo, cor das deusas-mães, Ísis, Deméter ou Cíbele, cuja negrura contrasta<br />

com o vermelho das suas entranhas fecundas, feminilidade inquietante, de<br />

origem infernal, onde se operam as transmutações misteriosas da vida.<br />

A púrpura do brasão, nem metal nem esmalte, é a cor impura, bastarda,<br />

mistura das outras quatro, ou ainda uma alteração da prata; responde ao<br />

sable heráldico que é negro; responde ao pó ao qual a morte conduz, vermelho<br />

impuro, sangrento, animal, negro, sable, mineral, estéril: novamente<br />

o chamamento do abismo ao abismo...<br />

A púrpura vem das profundezas do mar, das rochas, das pedras que se<br />

apanham e trituram depois de retiradas dos abismos oceânicos. É também a<br />

cor do pecado, opondo-se à brancura do fio de lã:<br />

Se os vossos pecados forem como o carmesim,<br />

tornar-se-ão brancos como a neve.<br />

Se forem vermelhos como a púrpura,<br />

tornar-se-ão brancos como a lã.<br />

(Isaías, I, 18.)<br />

Mas, sem redenção, os pecadores «cobertos de sangue», os corruptores<br />

de linhagens, os bastardos «que se dedicam à magia como os Filisteus», e<br />

«porque se conluiam com os filhos dos estrangeiros» (Isaías, II, 7), regressarão<br />

às rochas, encontrar-se-ão com o abismo: «E refugiar-se-ão nas cavernas<br />

dos rochedos e nas profundezas do pó» (Isaías, II, 19) e «refugiar-se-ão nas<br />

fendas dos rochedos e nas aberturas das pedras» (II, 21), até ao dia em que<br />

mulheres sem nome prenderão um único homem e lhe dirão: «com as nossas<br />

vestes nos cobriremos, deixa-nos apenas usar o teu nome, livra-nos do<br />

opróbrio» (IV, 1).<br />

21


ORLANDO DE RUDDER<br />

A veste, o nome: tecido e linhagem, o contrário de a-bussos, o contrário<br />

do abismo. Ao fiarmos a roca, ao seguirmos o fio da vida, da morte, descobrimos<br />

outros aspectos do eterno abismo: o mau rico do Evangelho, coberto<br />

de byssus, ricamente vestido de púrpura e linho (Lucas, XVI, 19), não<br />

socorre o pobre Lázaro e vê-se no Inferno. Ali, sufocando no fogo eterno,<br />

ergue os olhos para o Céu e vê Abraão e Lázaro. E pede a este que mergulhe<br />

o dedo na água para lhe refrescar a língua. Mas Abraão declara que tal é<br />

impossível:<br />

«Recebeste bens durante a tua vida, enquanto Lázaro só obteve males durante<br />

a sua. Agora ele está consolado e tu sofres. Aliás, existe um abismo entre nós<br />

e vós.»<br />

O abismo perseguia Blaise Pascal. Segundo o testemunho um pouco suspeito<br />

do abade Boileau, Pascal teria ficado obcecado com a visão de um<br />

abismo à sua esquerda e ter-se-ia servido de uma cadeira para se proteger.<br />

O abismo, um cone de onde sai uma cabeça horrenda... Será que Blaise<br />

Pascal pensava nele quando escreveu o seu Tratado sobre as Cónicas em<br />

1639, aos dezasseis anos?<br />

Em 1886, Rollinat escreveu L’Abîme [O Abismo], uma série de poemas<br />

que fizemos mal em deixar de ler. Aí, o autor sonda os principais móbeis dos<br />

seres humanos, os seus erros: orgulho, egoísmo, ódio, inveja... Não é algo<br />

certamente muito alegre, mas a sua obra possui uma força que justificaria a<br />

redescoberta desse poeta esquecido.<br />

Ad augusta per angusta<br />

(Chegar a resultados gloriosos por caminhos estreitos)<br />

É esta a senha dos conjurados no quarto acto de Hernani (cf. Per aspera<br />

ad astra, locução que tem aproximadamente o mesmo sentido), peça de<br />

Victor Hugo que o Théâtre-Français representou em 1830.<br />

A batalha de Hernani permanece como o exemplo do confronto entre as<br />

opiniões estéticas. No entanto, trata-se de uma grande peça, escrita pelo<br />

maior poeta da língua francesa. Pois Hugo, na verdade, domina tudo:<br />

romântico, certamente, mas precursor de toda a modernidade — simbolista<br />

antes dos Simbolistas; parnasiano antes dos Parnasianos; rimbaldiano antes<br />

de Rimbaud; surrealista de acordo com os Surrealistas, que tanto teriam<br />

gostado que ele tivesse sido estúpido. Hugo provoca, irrita, espanta. Desde<br />

que a sua obra existe, não houve uma única geração em que um qualquer<br />

rabugento não se esforçasse por lhe morder as pernas, em que um<br />

escrevinhador, ou até mesmo um escritor ligeiramente inferior a ele, não<br />

procurasse arranhá-lo.<br />

Porque a sua grandeza envergonha todos aqueles que são pequenos: de<br />

Valéry a Nimier, passando por Breton, toda a gente latiu. Mas ninguém é<br />

capaz de igualar o grande Victor, renovador da língua, justo entre os justos,<br />

22


COGITO ERGO SUM<br />

louco, adivinho, desenhador alucinado, tendo atravessado o seu século iluminado<br />

por uma «estrela na testa», o terceiro olho dos poetas.<br />

Hernani? É a grandeza, o teatro no seu prazer, o espectáculo, o poema e<br />

a liberdade...<br />

Doña Sol é a amada de Don Carlos, o rei. Mas também do seu tio, Ruy<br />

Gomez, e do bandido Hernâni. O rei e o bandido salvam-se um ao outro,<br />

alternadamente. Depois, um dia, Don Carlos prende Hernâni, que só a<br />

muito custo consegue escapar. Doña Sol julga-se abandonada, resignando-se,<br />

então, a casar-se com o velho Ruy Gomez. E deixa-se levar até à casa<br />

dele.<br />

Hernâni encontra-se com ela aí. Infelizmente, o velho duque Ruy Gomez<br />

surpreende-os nos braços um do outro. Surge então o rei, exigindo que lhe<br />

entreguem o proscrito. Ruy Gomez, corneliano, espanhol, fidalgo e altivo,<br />

recusa evidentemente trair as leis da hospitalidade. Hernâni está sob a sua<br />

protecção, pelo que não o entregará. O rei leva Doña Sol no lugar de Hernâni.<br />

A partir de então, este já só tem um único objectivo: arrancar a sua amada a<br />

Don Carlos.<br />

Depois de uma série de peripécias relativamente difíceis de resumir, o<br />

rei, candidato ao Império, espera, em Aix-la-Chapelle, no jazigo de Carlos<br />

Magno, a decisão dos Grandes Eleitores para saber se irá reinar.<br />

Mas uma conspiração na sombra projecta a sua morte e são Ruy Gomez<br />

e Hernâni que a conduzem. Este último deve mesmo matar Carlos. Eleito,<br />

este torna-se Carlos Quinto, sai do jazigo e os seus soldados prendem os<br />

conspiradores.<br />

Preso, Hernâni revela a sua verdadeira identidade: ele é João de Aragão,<br />

duque de Ségorbe e Cardonna. Carlos Quinto concede o perdão a Hernâni e<br />

une-o a Doña Sol.<br />

Porém, como prometera entregar-se a Ruy Gomez, Hernâni deve cumprir a<br />

sua palavra. O que fazer? O mais simples é, evidentemente, envenenar-se com<br />

Doña Sol. O duque não tem outro remédio senão fazer o mesmo.<br />

Complicada, louca, por vezes obscura, essa peça serve-se com humor<br />

dos ingredientes dos piores folhetins. Simultaneamente legível tanto a um<br />

primeiro como a um segundo nível, é — à imagem de Hugo — inatingível,<br />

drama e farsa, irrisória e séria. Trata-se de uma das maiores peças do seu<br />

repertório.<br />

A sua primeira representação teve a vantagem de permitir que jovens<br />

cretinos batessem em velhos imbecis, os quais não se deixaram ficar, na<br />

célebre «batalha de Hernani». A peça chocou o burguês e este deveria,<br />

desde o tempo em que o escandalizam, começar a já não se espantar com<br />

nada.<br />

Hernani é uma peça desigual, impetuosa, forte, que apenas suporta (em<br />

palco, na sala ou na vida) o paroxismo. A tal ponto que Hugo e Verdi, qual<br />

choque de Titãs, se atacaram a propósito da ópera que o segundo compusera<br />

a partir da peça do primeiro. Hugo opôs-se a que a ópera fosse representada.<br />

Foi necessário transformar Hernâni num corsário veneziano e<br />

23


ORLANDO DE RUDDER<br />

Carlos Quinto num senador. E Doña Sol passou a chamar-se Elvira, tal como<br />

toda a gente do teatro, tal como uma das minhas irmãs e tal como a talentosa<br />

Murail 3 na vida. A peça recebeu o título de Il Proscritto, fez das suas, foi<br />

representada 4 .<br />

O público parisiense pôde, pois, aplaudir, a 6 de Janeiro de 1846, tal obra<br />

problemática. Hugo acabou por autorizar a ópera de Verdi na sua forma original.<br />

Decerto tê-la-á considerado superior ao Hernani desastroso que encomendara<br />

ao músico Gabussi, obra que não teve sucesso absolutamente nenhum.<br />

Admiror paries te non cecidisse ruinis<br />

Qui tot scriptorum tædia sustineas<br />

(Estou surpreso, ó muro, que não te tenhas desmoronado sob<br />

o insuportável peso de tantos escritos)<br />

Tal graffito, inscrito num muro de Pompeia, atesta a antiguidade do hábito<br />

de escrever, pintar ou gravar «selvaticamente» nos edifícios. Tais degradações<br />

podem, contudo, revelar-se preciosas: ainda em Pompeia, as diversas<br />

inscrições descobertas por aqui e por ali dão-nos informações acerca do<br />

estado da língua latina naquela época, assim como acerca da sua pronúncia.<br />

Com efeito, os «grafiteiros», em geral pouco letrados, transcreviam<br />

foneticamente aquilo que tinham a dizer. Os seus desvios, os seus erros<br />

relativamente ao latim de referência permitem-nos estabelecer certos factos<br />

da evolução do latim falado.<br />

Os graffiti das latrinas latinas assemelham-se àqueles que encontramos<br />

hoje em dia em tais locais: Nil novi sub sole (cf. infra); por esse motivo,<br />

não os citaremos. Os desenhos encontrados nas casernas dos gladiadores<br />

mostram as armas e os costumes dos combatentes.<br />

O «peso das palavras», segundo a divisa de um semanário contemporâneo 5 ,<br />

sempre conseguiu intrigar: peso metafórico ou peso agradavelmente<br />

imaginado. Será que a escrita pode pesar? O próprio nome de uma das<br />

escritas medievais parece responder a esta questão: a escrita uncial deveria o<br />

seu nome ao facto de que, para traçar as suas iniciais ornadas, seria preciso<br />

uma onça de ouro, a qual corresponde ao duodécimo da libra (cerca de 489<br />

gramas, consoante as épocas).<br />

3 O autor alude à escritora francesa Elvire Murail (nascida em 1958) [N. do T.].<br />

4 No original: «et le tour fut, comme elle, joué» — jogo de palavras entre jouer un<br />

tour («pregar uma partida») e jouer la pièce («representar a peça») [N. do T.].<br />

5 Trata-se de Paris Match, revista semanal de actualidades conhecida pela sua divisa «Le<br />

poids des mots, le choc des photos» («O peso das palavras, o choque das fotos») [N. do T.].<br />

24


COGITO ERGO SUM<br />

Tal peso parece exagerado: quarenta gramas de ouro para uma única<br />

letra... No entanto, a Crónica da Abadia de Santo Huberto assinala, no<br />

século IX, a degradação e a raspagem de manuscritos, mostrando que a<br />

quantidade de metal precioso utilizada nas iniciais ornadas era suficiente para<br />

provocar a cobiça de alguns. Dito isto, é mais verosímil que o nome oncial provenha<br />

do facto de cada letra desse tipo ocupar o duodécimo de uma coluna.<br />

Fonte:<br />

J. Stiennon, Paléographie du Moyen Âge, Paris, 1973 (reedição).<br />

Ad usum Delphini<br />

(Para uso do Delfim)<br />

Esta expressão diz respeito às edições rigorosas, cuidadas, mas censuradas,<br />

dos textos clássicos que o Duque de Montausier, sob as ordens de Luís XIV,<br />

mandou fixar para o Delfim. Foram retiradas, pois, todas as passagens<br />

licenciosas, ousadas ou obscenas, ainda que, para alguns autores, como<br />

Marcial, certos textos «livres» tenham sido colocados em apêndice, no final<br />

das obras. Por extensão, ad usum Delphini refere-se a qualquer livro que<br />

tenha sido censurado ou retocado com o intuito de tirar-lhe as partes<br />

eventualmente chocantes.<br />

Em 1952, numa colecção dirigida por Maurice Nadeau, as Éditions Corréa<br />

publicaram Le Monde du Sexe, tradução do livro The World of Sex 6 , de Henry<br />

Miller. O pudor da época quis que as palavras inconvenientes fossem substituídas<br />

pelas suas iniciais, seguidas — segundo o costume — de um número<br />

de pontos correspondente ao número de letras restantes da palavra em questão.<br />

A leitura é fácil quando nos encontramos, por exemplo, perante um c<br />

seguido de um único ponto: o número de interpretações possíveis, neste<br />

caso, é restrito. Mas o que se pode dizer do seguinte enunciado: «Havia<br />

outros que eram acusados de já ter ......................................»? O que escondem<br />

estes trinta e oito pontos? A frase diz respeito a raparigas precoces,<br />

mas os pontos misteriosos não nos dizem coisa alguma quanto à extensão<br />

da sua precocidade. O livro em questão é quase ilegível, ainda que possa<br />

conseguir estimular a nossa imaginação: não sabendo aquilo que elas<br />

fazem, estamos em condições de supor todas as espécies de coisas.<br />

A propósito de pontos, eis uma historieta sobre Diderot. Quando este se<br />

encontrava na corte russa, uma aristocrata francófila e francófona ter-lhe-ia<br />

perguntado o que significava, em certas obras, a letra f seguida de cinco<br />

pontos. Diderot teria respondido: «Minha Senhora, leia f e passe adiante...»<br />

6 O Mundo do Sexo e Outros Textos, tradução de Ana Luísa Faria e Miguel Serras<br />

Pereira, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987.<br />

25


ORLANDO DE RUDDER<br />

A obscenidade, o erotismo ou a pornografia nem sempre são as únicas<br />

causas de censura ou de edição de obras ad usum Delphini. Na advertência<br />

do seu Dictionnaire de la fable (reedição de 1810, original de 1727) 7 , Chompré<br />

declara o seguinte:<br />

26<br />

«É sabido que a Mitologia é um tecido de imaginações bizarras [...] que,<br />

enfim, se trata de uma reunião de contos miseráveis, sendo a maior parte dos<br />

quais desprovida de verosimilhança e digna de desprezo. Mas também se<br />

sabe que o conhecimento daquelas quimeras poéticas e pagãs é absolutamente<br />

necessário à compreensão dos Autores. Nesta perspectiva, reunimos<br />

aqui, por ordem alfabética, o que há de essencial a saber acerca desta matéria,<br />

de modo a poupar aos jovens o sacrifício que é ir beber a fontes muitas<br />

vezes envenenadas, nas quais, após um estudo perigoso e infame, a razão<br />

não tem nada a ganhar e o coração tem tudo a perder.»<br />

A.E.I.O.U.<br />

Abreviatura da frase latina Austriæ est imperare orbi universo, que<br />

significa «Cabe à Áustria reinar sobre o Universo». A mesma sigla pode significar<br />

a mesma coisa em alemão: Alles Erdreich ist Österreich untertan.<br />

Tal divisa simbólica da Casa da Áustria inspirou-lhe ardores belicosos e<br />

imperialistas, que não agradaram a toda a gente. A Itália ocupada, no século XIX,<br />

respondeu àquela proclamação abusiva, escrevendo nas paredes o nome de<br />

um músico: Verdi. Tratava-se também de uma sigla, que significava Vittorio<br />

Emmanuelle Re D’Italia, ou seja, «Victor Emanuel, Rei De Itália».<br />

Alea jacta est<br />

(Os dados estão lançados)<br />

Frase atribuída a Caius Julius Cæsar [Caio Júlio César] por Caius Tranquillus<br />

Silentius [Caio Tranquilo Silêncio] Suetónio (César, 32). Júlio César pronunciou<br />

tais palavras ao atravessar o Rubicão à frente das suas tropas, apesar da<br />

lei que ordenava a qualquer general o licenciamento do respectivo exército<br />

antes de atravessar aquele rio. Essa perigosa transgressão, que teve lugar em<br />

49 a.C., levou César ao poder. O perigo era grande, dado que o poderoso<br />

exército de Pompeia lhe fazia frente. César, ao cruzar o Rubicão, deve ter<br />

conhecido o grande frémito da incerteza, a sensação de suspense bem<br />

conhecida do jogador no momento em que tudo ainda é possível, antes de<br />

a roleta se imobilizar, antes de caírem os dados.<br />

7 Em português, entre outras edições: Diccionario Abreviado da Fabula (…),<br />

tradução de Pedro José da Fonseca, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, 1785.


COGITO ERGO SUM<br />

Alea, em latim, significava «dado» ou «jogo de dados»; por extensão,<br />

designava a sorte, o acaso, etc. O latim tardio preferiu datum, «o que é<br />

dado». O francês fez dele a palavra dé, enquanto o português obteve a<br />

palavra dado.<br />

«Um lance de dados, ainda que em circunstâncias eternas [...] nunca<br />

abolirá [...] o acaso», e, mais à frente, «qualquer pensamento emite um<br />

lance de dados», afirma Stéphane Mallarmé. Os dados lançados fascinam,<br />

mesmo que haja o risco de perder, tudo pode acontecer, tudo acontece.<br />

Assim, no início de Mahabharata, o príncipe perde todos os seus bens ao<br />

jogar aos dados contra um demónio: é este o ponto de partida da epopeia.<br />

A antiga paixão pelos dados persistiu durante a Idade Média. Esse jogo foi<br />

sucessivamente proibido e autorizado. Se acreditarmos nas palavras do poeta,<br />

os dados arruinaram Rutebeuf. Os fabricantes de dados eram objecto de<br />

uma vigilância especial. Concini, ao que parece, perdeu numa noite a soma de<br />

dois milhões de francos-ouro, aposta certamente mais considerável do que as<br />

modestas vestes de Cristo que apostaram, ao pé da cruz, alguns legionários<br />

romanos (Evangelho de S. Mateus, XXVII, 35; Evangelho de S. Marcos, XV, 24;<br />

Evangelho de S. Lucas, XXIII, 34; Evangelho de S. João, XIX, 24).<br />

Com três dados, a probabilidade de vermos realizar-se uma disposição<br />

qualquer (como, por exemplo, 421) escreve-se da seguinte maneira:<br />

3 A 1/6 = 3 × 6 ! / (6 –1) ! = 3 × 720/120.<br />

Alea encontra-se na origem da palavra aleatório e, hoje em dia, conhecemos<br />

a música aleatória, que não é tão nova assim, pois havia no século XVIII<br />

um jogo de sociedade que consistia em lançar dados após estabelecer uma<br />

correspondência entre os sons e os números de pontos obtidos, de modo a<br />

«compor» um trecho musical. Mozart, segundo alguns, dedicava-se de vez<br />

em quando a tal actividade. Já só restava mecanizar o sistema.<br />

Um mecânico holandês chamado Winckel ocupou-se dessa tarefa em<br />

1820. Construiu um mecanismo que se adaptava a um pequeno órgão. Baptizado<br />

como componium, tal mecanismo era capaz de improvisar ao infinito<br />

a partir de um determinado tema. As variações assim obtidas nunca se<br />

repetiam. O número possível destas variações chegou a ser calculado:<br />

14 513 461 557 741 527 824.<br />

Supondo que sejam necessários cinco minutos para executar um trecho,<br />

seriam precisos 138 triliões de anos para esgotar as variações das quais ele<br />

pode ser a fonte.<br />

A invenção de Winckel é referida por Raymond Roussel no seu romance<br />

Locus solus, obra na qual se diz que, «em belga», o componium é<br />

«uma máquina de compor».<br />

<strong>Fontes</strong>:<br />

M. de Smedt, J. Varenne e Z. Bianu, L’Esprit des jeux, Paris, 1980;<br />

Nouveau Larousse illustré, Paris, 1898-1907.<br />

27


ORLANDO DE RUDDER<br />

Alma Mater<br />

(Mãe criadora)<br />

Era assim que se designava, metaforicamente, a pátria em Roma. Os poetas<br />

latinos usavam e abusavam dessa locução tão corrente que acabou por<br />

tornar-se um lugar-comum.<br />

Por vezes, ainda falamos da «pátria-mãe». Este tipo de expressão pode<br />

ser encontrado nos cantos de guerra. De facto, não deixa de ser verdade que<br />

a palavra pátria deriva de pater, que significa «pai». Desta forma, a «pátria-mãe»<br />

é uma mãe bastante paternal. Um verdadeiro purista não deixaria de se<br />

manifestar, caso a expressão não fosse demasiado antiga para que ele<br />

pudesse dar-se conta de tal bizarria.<br />

Também se diz Alma Parens: as duas expressões são equivalentes. Após<br />

terem designado a terra natal, elas designaram, primeiro, a Universidade de<br />

Paris e, depois, qualquer universidade que alimentasse os estudantes com o<br />

leite da sapiência e do saber.<br />

“Alma Mater” é também o título de uma canção hilariante e pateta do<br />

grande Elvis Presley, cujo talento, infelizmente, se relaxou de vez em<br />

quando... (cf. Quandoque bonus dormitat Homerus).<br />

Amant alterna Camenæ<br />

(As Musas gostam dos cantos alternados)<br />

Final de um verso de Virgílio (Éclogas, III, 59). A terceira écloga (ou<br />

bucólica) de Virgílio oferece-nos um célebre exemplo de canto alternado ou<br />

amebeu (do grego amoibaios, «alternativo»).<br />

Dametas e Menalcas, dois pastores, desafiam-se no canto alternado. Dametas<br />

propõe uma vaca como aposta. Um terceiro pastor, Palémone, serve de juiz.<br />

Este desafio poético não deixa de lembrar o de Kalevala, no qual o bardo<br />

Väinämöinen é desafiado da mesma maneira (cf. Genus irritabile vatum).<br />

As Camenas (Camenæ) eram ninfas romanas confundidas com as Musas<br />

gregas.<br />

Os cantos alternados, ou por meio de «pedidos e respostas», encontram-<br />

-se em várias civilizações e são, muitas vezes, religiosos. O ritual romano<br />

compreende um grande número deles.<br />

Victor Hugo, no célebre prefácio de Cromwell, faz uma divertida aplicação<br />

desta frase de Virgílio, a propósito da tragédia clássica:<br />

28<br />

«Com efeito, como é inverosímil e absurdo este vestíbulo, este peristilo, esta<br />

antecâmara, locais banais nos quais as nossas tragédias têm a amabilidade de<br />

se desenrolar, aos quais chegam, não se sabe como, os conspiradores para<br />

declamar contra o tirano, o tirano para declamar contra os conspiradores,<br />

cada um por seu turno, como se tivessem combinado bucolicamente: Alternis<br />

cantemus; amant alterna Camenæ.»


A. M. D. G.<br />

COGITO ERGO SUM<br />

Abreviatura de ad majorem Dei gloriam («Para a suprema glória de<br />

Deus»), divisa da Companhia de Jesus. Os livros provenientes da Ordem dos<br />

Jesuítas têm geralmente essa frase como epígrafe.<br />

Tal divisa foi muitas vezes objecto de pastiche:<br />

«De todos os motivos aos quais o espírito parece obedecer, não existe senão<br />

um único que valha e tal motivo único é tomado sempre em liberdade; trata-<br />

-se da glorificação do eu: ad majorem mei gloriam.»<br />

(Pierre Leroux, citado por Larousse, Flores latines, op. cit.)<br />

Em 1791, no centro da tormenta revolucionária francesa, nasceu um jornal<br />

de oposição, no intuito de fazer a defesa do trono e do altar. Chamado<br />

L’Apocalypse, adoptou como divisa A. M. R. G., isto é, Ad majorem regis<br />

gloriam («Para a suprema glória do rei»).<br />

Amicus Plato sed magis amica veritas<br />

(Amo Platão, mas amo ainda mais a verdade)<br />

Tradução de uma frase de Aristóteles (Ética a Nicómaco, I, 4), que tinha<br />

tido Platão como mestre. Essa afirmação tornou-se um provérbio, cujo<br />

sentido se opõe directamente ao enunciado: Magister dixit (cf. infra).<br />

Aperto libro<br />

(A livro aberto)<br />

Diz-se igualmente Ad aperturam libri. Esta locução era aplicada,<br />

durante o período medieval, àqueles que eram capazes, não apenas de decifrar,<br />

mas também de compreender e interpretar um texto de autor antigo<br />

segundo os quatro «sentidos»: literal, histórico, ético e anagógico.<br />

«Dado que a publicação dos manuscritos se fazia sob a forma de recitação,<br />

a cultura daí resultante era uma conversa entre o autor e o seu público»,<br />

declara Marshall McLuhan. Ler aperto libro consistia, antes de mais, em ler<br />

em voz alta e inteligente, numa espécie de «recitação encantatória».<br />

Quem podia ler aperto libro tinha aprendido a fazê-lo com um mestre que<br />

lhe ensinara primeiro o sentido literal do texto, com comentários acerca do<br />

significado das palavras, as suas formas gramaticais e as suas derivações.<br />

Depois, era necessário aprender a extrair o sentido histórico do texto.<br />

Citemos J. Leclercq: «Será que a palavra historia não designa, em primeiro<br />

lugar, a passagem da Bíblia que se lê no serviço litúrgico, na atmosfera da<br />

oração?» Tal sentido histórico não é apenas anedótico ou descritivo: pode<br />

29


ORLANDO DE RUDDER<br />

conduzir ao terceiro sentido da leitura, a saber: o sentido ético ou moral.<br />

O quarto e último sentido, o sentido anagógico, é uma interpretação do<br />

texto que permite uma elevação até ao seu sentido espiritual ou místico.<br />

Ler ad aperturam libri consistia, portanto, em esclarecer um texto por<br />

vezes abstruso (que exigia uma grande aplicação de compreensão) ou<br />

absconso (cujo sentido estava oculto).<br />

Nos nossos dias, essas duas expressões designam geralmente uma leitura<br />

agradável e corrente de um texto estranho ao leitor ou de um código<br />

particular, como, por exemplo, o solfejo.<br />

A presente obra pode ser lida aperto libro, visto apresentar simultaneamente<br />

frases antigas e diversas interpretações destas. Trata-se de uma aplicação<br />

ligeira, divertida, mas respeitosa, do método de derivações, interpretações<br />

e associações de ideias vigente durante as lectio medievais. De forma<br />

mais modesta, foi concebida a pensar nos inúmeros comentários perdidos,<br />

outrora necessários para que uma obra fosse «uma conversa entre o autor e<br />

o seu público».<br />

<strong>Fontes</strong>:<br />

M. McLuhan, La Galaxie Gutenberg, Montreal, 1967;<br />

J. Leclercq, Initiation aux auteurs monastiques du Moyen Âge, Paris, 1957.<br />

Aquila non capit muscas<br />

(Águia não apanha moscas)<br />

Este provérbio peremptório, mas um pouco pateta, significa que um homem<br />

superior não se ocupa de pequenas coisas, ou seja, daquilo que está<br />

abaixo de si. Sabemos que Rockefeller contava cada cêntimo, que o banqueiro<br />

Laffite deveu a sua fortuna ao facto de ter apanhado um alfinete (se<br />

acreditarmos na anedota) e que toda a gente podia ir exigir justiça ao rei<br />

Luís IX de França em pessoa.<br />

Tais exemplos não são suficientes para certas pessoas, pois, quando lhe perguntaram<br />

se era necessário ceder às pressões alemãs e entregar os aeródromos<br />

sírios à Luftwaffe, Philippe-Omer Pétain respondeu: «Um marechal não se ocupa<br />

da faxina do quartel.» Tal resposta constitui uma tradução livre, mas correcta, de<br />

aquila non capit muscas e, sobretudo, de outra locução muitas vezes utilizada<br />

nas mesmas circunstâncias: De minimis non curat prætor («o pretor não<br />

se ocupa de assuntos menores»). Mas será que não é preciso uma certa<br />

pequenez para que estejamos tão imbuídos da nossa própria grandeza?<br />

Fonte:<br />

Jean Galtier-Boissière, Tradition de trahison chez les maréchaux, Paris, 1945.<br />

30


Argumentum baculinum<br />

(O argumento do bastão)<br />

COGITO ERGO SUM<br />

A razão do mais forte é sempre a melhor: para se concluir uma discussão<br />

quando já não se tem argumentos, não será suficiente dar umas bastonadas?<br />

É o que faz Esganarelo a Marfúrio, n’O Casamento Forçado 8 de Molière.<br />

É o que fazem geralmente as pessoas cujo espírito carece tanto de subtileza<br />

quanto os seus braços possuem vigor. É o que continuam a fazer certas<br />

facções...<br />

No final do século XV, na Lombardia, um franciscano algo papalvo já não<br />

sabia o que havia de responder a um professor de Teologia que argumentava<br />

contra a Imaculada Conceição da Virgem. O frade estava enganado:<br />

a Imaculada Conceição não era um dogma então, sendo promulgada por<br />

Pio IX no dia 8 de Dezembro de 1854, na bula Ineffabilis. Antes disso, a<br />

Imaculada Conceição não tinha nada de oficial nem de estritamente católico.<br />

Em determinadas épocas, foi mesmo uma heresia.<br />

No entanto, o frade não entendia isso dessa maneira, pelo que prendeu<br />

o professor de Teologia para lhe administrar umas palmadas nas nádegas<br />

nuas, visto que, evidentemente, o mestre não usava ceroulas, tal como preconizavam<br />

as regras de muitas ordens monásticas: «como o professor falara<br />

contra o sacrário de Deus, o franciscano pôs-se a bater nos seus sacrários<br />

quadrados» (isto é, nas suas nádegas).<br />

<strong>Fontes</strong>:<br />

J.-C. Bologne, Histoire de la pudeur, Paris, 1986<br />

[História do Pudor, tradução de Telma Costa, Lisboa, Teorema, 1986];<br />

Du Cange, Glossarium mediæ et infimæ Latinitatis, Paris, 1840-1856;<br />

Mariale eximii viri Bernardini de Busti ordinis Seraphici Francisci, Haguenau, 1506,<br />

citado por J.-C. Bologne.<br />

Asinus asinum fricat<br />

(O burro coça o burro)<br />

Este provérbio latino escarnece das pessoas que se dirigem mutuamente<br />

elogios exagerados. Em Les Femmes Savantes 9 , Molière apresenta-nos Vadius<br />

e Trissotin a cobrirem-se, dessa forma, de louvores abusivos.<br />

8 A tradução de Henrique Braga da peça Le Mariage forcé foi editada juntamente<br />

com O Estouvado ou Os Contratempos (Porto, Lello & Irmão, 1971).<br />

9 As Sabichonas. Comédia em 5 Actos. Versão Libérrima, tradução de António<br />

Feliciano de Castilho, Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1872.<br />

31


ORLANDO DE RUDDER<br />

Molière conhecia certamente bem Erasmo, que declara no seu<br />

Elogio da Loucura:<br />

32<br />

«Não há nada mais aprazível do que ver dois burros a coçarem-se mutuamente,<br />

seja por versos, seja por elogios que dirigem um ao outro sem qualquer pudor.<br />

“O senhor supera Alceu”, diz um. “E o senhor, Calímaco”, diz o outro.<br />

“O senhor faz eclipsar os oradores romanos.” “E o senhor esmaga o divino Platão.”»<br />

Nascido em Lesbos no início do século VII a.C., Alceu foi o poeta grego<br />

que inventou o verso alcaico. Esse verso jâmbico, ou seja, composto de<br />

sequências que compreendem uma sílaba breve seguida de uma longa, era<br />

hendecassilábico (isto é, compreendia onze sílabas). A sua regularidade era<br />

interrompida no quarto pé, obrigatoriamente anapéstico (duas sílabas breves<br />

seguidas de uma longa). Os poetas latinos começavam sempre este tipo<br />

de verso com um espondeu (duas sílabas longas). Alceu celebrou a aristocracia<br />

e cobriu de sarcasmos o partido democrático. Autor bastante esquecido,<br />

encontra-se junto de Calímaco na grande família de poetas antigos<br />

que o tempo tornou obscuros. Gramático e poeta de Alexandria, Calímaco<br />

foi o bibliotecário de Ptolomeu Filadelfo durante o século III antes da nossa<br />

era. A sua poesia erudita já quase não é lida nos nossos dias.<br />

De facto, é verdade que esses dois autores, embora conhecidos dos eruditos<br />

na época de Erasmo, não deixavam de ser poetas menores. Assim,<br />

dá-se no Elogio da Loucura um efeito humorístico e gradativo, dado haver<br />

de seguida uma progressão até Platão.<br />

Quantas obras, quantos autores acabam por ter o destino de Calímaco e<br />

Alceu? Habent sua fata libelli e Sic transit gloria mundi... (cf. infra).<br />

Asinus in tegulis<br />

(Um burro no telhado)<br />

Este adágio latino serve para designar qualquer coisa estranha ou incongruente.<br />

Curiosamente, os telhados das casas são muitas vezes o suporte<br />

dos objectos mais extraordinários, quando se deseja evocar o absurdo. Para<br />

além de um burro, podemos encontrar sobre eles um violino ou, então,<br />

o companheiro do burro da Natividade, o boi, o qual viu efectivamente<br />

nascer o início de uma nova era.<br />

Espaço de uma certa consciência do absurdo, Bœuf sur le toit foi inicialmente<br />

um bar, uma espécie de discoteca situada na Rua Duphot e aberta<br />

por Louis Moysès, oriundo de Charleville. O primeiro nome do estabelecimento<br />

foi Le Gaya, devido a um [vinho do] porto da região de Gaia que ali se<br />

vendia. Jean Wiéner tornou-se pianista do local e ali tocava todos os géneros<br />

de música, particularmente jazz, e até mesmo o Pierrot lunar de<br />

Schönberg, que, na época, tinha a capacidade de chocar, tanto mais que o<br />

seu autor era austríaco.


COGITO ERGO SUM<br />

O bar tornou-se o ponto de encontro das pessoas mais importantes da<br />

altura no domínio das artes: Picasso, Gide, Diaghilev, Misia Sert, Ravel, Erik<br />

Satie, Picabia, Mistinguett ou, então, Fernand Léger, o qual pediu a Wiéner<br />

que lhe tocasse um tema recente: “Saint Louis Blues”. Arthur Rubinstein<br />

substituiu pontualmente Wiéner para tocar obras de Chopin. Léon-Paul Fargue<br />

e Jean Cocteau relacionavam-se ali com o Grupo dos Seis. Em suma, todo<br />

um espírito novo nasceu naquele espaço.<br />

Tristan Tzara, o pai do Dadaísmo, frequentou Le Gaya. No entanto, os seus<br />

herdeiros, os Surrealistas, mais sectários e menos abertos às reais novidades,<br />

muitíssimas vezes impermeáveis à música, mostraram indiferença para com aquele<br />

estabelecimento, preferindo Le Certa, outro bar próximo da Ópera de Paris.<br />

Em 1919, Jean Cocteau quis escrever uma farsa para dar continuação à<br />

Parade de Erik Satie. Tinha ouvido Georges Auric e Darius Milhaud tocarem<br />

a quatro mãos um encadeamento de sambas e de rumbas, uma peça que<br />

deveria chamar-se Cinéma-Symphonie, na qual se misturavam alguns ritmos<br />

novos importados do Brasil. Milhaud mudou o título dessa obra para<br />

Le Bœuf sur le toit, embora se tratasse do título de uma canção brasileira 10 já<br />

existente. A obra assim intitulada teve como subtítulo The Nothing Doing<br />

Bar, pois Cocteau desejava escrever uma farsa «onde nada se passaria».<br />

A estreia do espectáculo teve lugar na Comédia dos Campos Elísios, no dia<br />

21 de Fevereiro de 1920. Vestuário e cenários eram de Raoul Dufy.<br />

A agitação e o ruído gerados em torno do Gaya fizeram com que Moysès<br />

se mudasse para outro local, abrindo um novo estabelecimento na Rua Boissy-<br />

-d’Anglas, ao qual deu simplesmente o nome de Le Bœuf sur le toit. O espírito<br />

novo continuou a reinar, enquanto a reputação do bar se espalhava.<br />

Clément Doucet, que ia de seguida tocar com Wiéner, acabou por substituí-lo<br />

ao piano.<br />

No dia 15 de Julho de 1922, Jean Hugo e René Crevel levaram Marcel<br />

Proust ao Bœuf sur le toit, local onde encontrou os famosos «valsistas<br />

bolchevisantes» dos quais fala na obra Em busca do Tempo Perdido. Foi<br />

também ali que veio a conhecer Radiguet.<br />

Quer neles se encontrem burros, bois ou simples gatos vadios, os telhados<br />

são decididamente locais onde sempre se passa alguma coisa. E muitas<br />

vezes aparece alguém a dizer que o que ali ocorre é absurdo.<br />

<strong>Fontes</strong>:<br />

Recordações pessoais de Germaine Tailleferre contadas ao autor.<br />

Au temps du «Bœuf sur le toit», Artcurial, Paris, 1981. Obra redigida para uma exposição.<br />

A. U. C.<br />

Abreviatura da expressão Ab urbe condita (cf. supra).<br />

10 “O Boi no Telhado” [N. do T.].<br />

33


ORLANDO DE RUDDER<br />

Audaces fortuna juvat<br />

(A fortuna favorece os audazes)<br />

Este hemistíquio está incorrecto. Constitui uma má citação de Virgílio<br />

(Eneida, X, 283), que escreveu: Audentes fortuna juvat.<br />

O erro é certamente deliberado. Com efeito, audax, em latim, é quase<br />

sempre mal interpretado. Cícero escreve sceleratissimus et audacissimus<br />

(Verrines, 4, 111), o que passa muito bem sem tradução. Audens não comporta<br />

tal conotação pejorativa e designa uma nobre intrepidez ou, então,<br />

um heroísmo. Portanto, existe na fórmula audaces fortuna juvat uma<br />

nuance acrescentada voluntariamente ao texto original, para dar-lhe um<br />

espírito um tanto sarcástico.<br />

Será que essa frase de Virgílio está votada à aproximação? Estará escrito<br />

que ela será sempre vítima de um erro? Entretanto, a sua aplicação<br />

(«O sucesso sempre foi filho da audácia») continua a ser atribuída frequentemente<br />

a Voltaire, pertencendo, na verdade, a Prosper Jolyot de Crébillon<br />

(1674-1762), mais conhecido como Crébillon Pai, que a escreveu na sua<br />

peça Catilina (1748). Esse autor gostava que o terror fosse a mola dramática<br />

das suas peças, pelo que teve a audácia de declarar: «Corneille tomara<br />

o Céu; Racine, a Terra; já só me restava o Inferno.»<br />

As peças de Crébillon Pai tiveram sucesso, provando, efectivamente, que<br />

audentes (audaces?) fortuna juvat. A audácia continuou com o seu<br />

filho, Claude-Prosper, evidentemente conhecido como Crébillon Filho, que<br />

redigiu elegantíssimos contos licenciosos, o que em nada o impediu de se<br />

tornar censor real, tendo como função, portanto, o acto de velar pela moralidade<br />

dos escritos de terceiros. «Audácia, mais audácia, sempre audácia», diz Danton<br />

— em circunstâncias mais graves, é certo. Os Prósperos (de apelido Crébillon)<br />

não tinham falta dela.<br />

Aurea mediocritas<br />

(Mediania dourada)<br />

Horácio (Odes, II, 10, 5) elogia aqui as vantagens do desafogo, de uma<br />

mediocridade que é auto-suficiente. Todas as civilizações tiveram de conhecer<br />

alguns cidadãos repletos, notáveis sem audácia que se contentavam com<br />

uma vida banal, mas confortável, sem prejudicar ninguém, mas também<br />

sem servir para grande coisa. Essa falta de capacidades seduz ainda muitos<br />

dos nossos contemporâneos e conduz a uma espécie de aporia moral, social<br />

e política que leva fatalmente a graves desordens.<br />

34


Auri sacra fames<br />

(Execrável fome de ouro)<br />

COGITO ERGO SUM<br />

Virgílio (Eneida, III, 57) insurge-se aqui contra aqueles que apenas pensam<br />

em bens materiais. Não há dúvida de que tem razão, embora aqueles<br />

que só pensam em bens do espírito sejam muitas vezes mais perigosos, pois<br />

têm o hábito demasiado frequente de quererem convencer os outros a qualquer<br />

preço, mesmo sangrento.<br />

O ouro afiava a fome dos Romanos e hoje aguça a nossa sede; poderíamos<br />

muito bem dizer «execrável sede de ouro». Todavia, a fome é má<br />

conselheira: provoca surdez, visto que «barriga vazia não tem ouvidos».<br />

Será melhor ter fome ou ter sede?<br />

Os Franceses, que elevaram ao mais alto grau a arte de vinificação herdada<br />

dos Romanos e dos Gregos, escolhem sem qualquer hesitação a fome<br />

como mal menor: O tempora, o mores! (cf. infra). Não será certamente<br />

Alphonse Allais quem vai contradizer-nos, visto ter escrito na sua recolha<br />

intitulada Rose et vert-pomme [Rosa e Verde-Alface]:<br />

«A sede de ouro – auri sacra fames – tornou-se de tal forma imperiosa nos dias<br />

de hoje que muitas pessoas não hesitam, para conseguir obtê-lo, em servir-se<br />

do homicídio, da traição e, por vezes, até mesmo da indelicadeza.»<br />

Aut Cesar aut nihil<br />

(Ou César ou nada)<br />

Divisa atribuída a César Bórgia. Tais palavras servem a todos os ambiciosos.<br />

No entanto, notemos que a frase exacta é, de facto, aut Cesar aut nihil –<br />

e não aut Cæsar aut nihil, o que quereria dizer «ou imperador ou nada».<br />

César Bórgia desejava, portanto, ser ele mesmo, de maneira que não se tornou<br />

imperador, mas papa.<br />

Autobi passebant completi<br />

(Os autocarros passavam completos)<br />

Belo exemplo de latim contemporâneo, essa frase — retirada dos Exercices<br />

de style 11 que Raymond Queneau publicou em 1947 — servir-nos-á para<br />

explorar a aventura dos transportes colectivos.<br />

11 Exercícios de Estilo, tradução de Constança Bobone, Hélder Venças Mendes,<br />

Maria de Jesus Rodrigues, Maria Luísa Mariante e Marina Maia Ferreira, Lisboa,<br />

Colibri, 2000.<br />

35


ORLANDO DE RUDDER<br />

A ideia de veículos públicos circularem em Paris seguindo um itinerário<br />

fixo deve-se a Blaise Pascal. Interessado, o duque de Rouannez obteve um<br />

privilégio e as famosas «carroças a cinco soldos» aproximaram diversos pontos<br />

da capital. No entanto, tais veículos, demasiado pesados e incómodos,<br />

não tiveram sucesso: a sua entrada em serviço teve lugar a 18 de Março de 1672.<br />

Em 1678, a aventura já tinha acabado.<br />

Stanislas [Estanislau] Baudry, nascido em 1777, antigo cirurgião militar,<br />

comprou uma fábrica de moagem na cidade de Nantes e ali fez funcionar a<br />

primeira máquina a vapor da região. Poupado, Baudry procurou um meio<br />

de utilizar a água fervente produzida por aquela máquina, pelo que acabou<br />

por criar banhos públicos nas dependências da sua fábrica, a qual se encontrava<br />

infelizmente afastada do centro da cidade. Baudry criou, portanto, um<br />

serviço de transportes que partia da Place du Port-aux-Vins, hoje Place du<br />

Commerce, para transportar os clientes até ao seu estabelecimento.<br />

Pouco tempo depois, verificou que os veículos chegavam cheios e voltavam<br />

a partir cheios, sem que aumentasse a clientela dos banhos. Baudry<br />

suprimiu os banhos e manteve a empresa transportadora.<br />

Assim, Baudry inventou o omnibus. Fê-lo deslocar-se de início até Nantes<br />

e Bordéus e, depois, em 1828, até Paris. Em pouco tempo, um grande número<br />

de companhias dedicou-se a uma concorrência desenfreada. Meditemos<br />

um pouco nos nomes que elas tinham: Dames Blanches, Orléanaises,<br />

Favorites, Gazelles, Batignollaises, Béarnaises e, ainda, Excellentes, Hirondelles<br />

e Constantines 12 ... Todas elas foram reunidas em 1855 para formarem a não<br />

tão bela designação de Compagnie Générale des Omnibus 13 .<br />

Baudry dera àqueles veículos o nome omnibus, ou melhor, «viaturas<br />

omnibus», provavelmente por causa de um chapeleiro — o senhor Omnès<br />

— cuja loja de Nantes ficava próxima da paragem dos seus veículos.<br />

Tal chapeleiro latinizante tinha como divisa Omnès omnibus («Omnès para<br />

todos»). De qualquer forma, o nome omnibus correspondia perfeitamente<br />

às viaturas em questão.<br />

Omnibus é o dativo plural da palavra omnis, que quer dizer «tudo» ou<br />

«todos». «Viatura omnibus» significa, portanto, «veículo para todos». Sendo<br />

a língua aquilo que é, o nome omnibus foi abreviado por apócope, dando<br />

origem a bus, modesta desinência latina tornada sufixo que designa<br />

«veículo de transporte em comum». Daí nasceram os compostos autobus 14 ,<br />

aérobus 15 , etc. Curiosa mistura de um prefixo de origem grega e de uma<br />

12 Damas Brancas, Orleanesas, Favoritas, Gazelas, Batignolesas, Bearnesas,<br />

Excelentes, Andorinhas e Constantinas.<br />

13 Companhia Geral dos Ónibus.<br />

14 autocarro.<br />

36<br />

15 aerocarro.


COGITO ERGO SUM<br />

terminação latina, autobus também foi igualmente abreviado para bus,<br />

simplesmente. Esse sufixo é usado de forma corrente enquanto substantivo:<br />

nós apanhamos simplesmente o bus.<br />

Baudry não devia gerir bem o seu negócio. Envolvido, além disso, em<br />

certas especulações arriscadas em terrenos de Passy, o homem passou por<br />

sérias dificuldades financeiras. Desesperado, Stanislas Baudry suicidou-se em<br />

Fevereiro de 1830, mesmo em frente das suas cavalariças, no cais de<br />

Jemmapes, em Paris. Antes de cair à água, deu um tiro na cabeça. E assim<br />

pereceu um homem sem o qual as nossas cidades não teriam o mesmo<br />

rosto.<br />

Fonte:<br />

Roger-Henri Guerrand, «De l’omnibus à l’autobus...», L’Histoire, n.º 81, Setembro de<br />

1985.<br />

Ave, Cæsar, morituri te salutant<br />

(Salve, César! Aqueles que vão morrer saúdam-te)<br />

Citada por Suetónio (Claudius, 21), tal frase era pronunciada pelos<br />

gladiadores romanos enquanto desfilavam diante do camarote imperial,<br />

imediatamente antes de lutarem.<br />

Os combates de gladiadores apaixonaram os Romanos e<br />

pouquíssimos foram aqueles que se insurgiram contra tais espectáculos,<br />

os quais consideramos desumanos, mas que eram, então, uma festa.<br />

Séneca protestou, declarando que aqueles escravos eram homens: Servi<br />

sunt homines...<br />

Para reencontrar a dignidade humana perdida, ergueu-se um gladiador:<br />

Espártaco, que desafiou Roma e foi, talvez, o grande crucificado da liberdade.<br />

Vigoroso pastor trácio, Espártaco trabalhou primeiro como auxiliar no<br />

exército romano. Não devia decerto suportar a disciplina, visto ter desertado.<br />

Acabou por voltar a ser preso, escravizado e reservado para a gladiatura.<br />

Revoltou-se e fugiu, acompanhado de setenta e três outros gladiadores.<br />

Tal trupe roubou armas, dispersou os soldados de Cápua e entrincheirou-<br />

-se no Vesúvio.<br />

Milhares de escravos foram juntar-se ao pequeno grupo formado por<br />

Espártaco, o qual logo se transformou num exército que conseguiu vencer o<br />

exército do general Cláudio Glabro. Espártaco queria conduzir os escravos<br />

para longe de Itália, pois sabia que as suas vitórias eram precárias. Pensava<br />

que, mal saíssem do Império Romano, cada um deles poderia voltar para a<br />

sua própria pátria.<br />

O essencial dos exércitos de Roma estava ocupado em locais tão longínquos<br />

como o Oriente ou Espanha, motivo que explica porque é que Espártaco<br />

conseguiu enfrentar Roma. Porém, quando o exército de Crasso, o Rico,<br />

37


ORLANDO DE RUDDER<br />

regressou, esmagou a revolta e Espártaco foi preso e crucificado, a menos<br />

que tenha morrido em combate: as opiniões divergem quanto a este ponto.<br />

Morreu em 71 a.C.<br />

Ao regressar de Espanha, o exército de Pompeu matou 5000 escravos<br />

sobreviventes, enquanto Crasso fez crucificar 6000 deles na estrada que<br />

ligava Cápua a Roma.<br />

Simbolizando o espírito de liberdade, o nome de Espártaco foi atribuído<br />

ao movimento espartaquista, socialista e pacifista, por volta de 1918.<br />

<strong>Fontes</strong>:<br />

Plutarco, Vidas paralelas («Vida de Crasso»);<br />

H. Wallon, Histoire de l’esclavage dans l’Antiquité, Paris, 1879.<br />

38


ORLANDO DE RUDDER<br />

Beati monoculi in terra cæcorum<br />

(Felizes são os zarolhos em terra de cegos)<br />

Este provérbio latino continua a ser quase idêntico na nossa língua; nos<br />

dias de hoje, costumamos dizer: «Em terra de cegos quem tem olho é rei.»<br />

Tal dito parece-nos evidente, não? Sim, mas...<br />

Que sucedeu a Gulliver, logo no início do seu aportamento em Lilliput?<br />

Os habitantes locais começaram por prendê-lo. Um ser diferente numa<br />

determinada sociedade não deixa de levantar problemas, qualquer que seja<br />

a sua diferença. O problema é resolvido geralmente pelo desaparecimento<br />

do indivíduo ou da comunidade (discordante).<br />

Deste modo, se imaginarmos a chegada de um zarolho a um país de<br />

cegos, seria bem possível que estes se aliassem de maneira a prender,<br />

torturar e matar o desgraçado. Talvez este sucumbisse sob os golpes de uma<br />

multidão enfurecida. Ou, então, a justiça, a sua pompa e as suas obras se<br />

encarregariam de matá-lo, seguindo escrupulosamente as leis, os decretos,<br />

a jurisprudência e os procedimentos em vigor. A não ser que membros de<br />

um partido de extrema-direita o assassinassem simplesmente.<br />

Assim, o nosso zarolho compreenderá, antes de dar o último suspiro, quão<br />

culpado é por «não ser» escandalosamente «como os outros». E isto especialmente<br />

quando se vê melhor e mais longe do que essoutros. Terá ele tempo,<br />

antes de expirar, para meditar na frase Beati monoculi in terra cæcorum?<br />

A língua francesa não guardou a palavra latina monoculus para designar<br />

aquele que só tem um olho. Esse substantivo latino da época baixa composto<br />

de grego foi escolhido por volta de 1671 pelo senhor Chérubin [Querubim],<br />

óptico e físico, para designar uma luneta para um olho. O substantivo francês<br />

borgne («zarolho») data do século XII e significou, por vezes, «vesgo»<br />

(em francês antigo) e «cego» (em alguns dialectos). A sua etimologia é, no<br />

mínimo, complexa. É possível que essa palavra provenha de um vocábulo<br />

germânico, como o alemão brunnen. Mas também se costuma propor um<br />

étimo gaulês reconstituído (*borna), que teria tido simultaneamente duas<br />

origens e dois sentidos diferentes. Um deles representaria o latim forare, que<br />

teria fornecido um adjectivo (*bornio, «a quem se furou os olhos»). O outro<br />

teria sido retirado de um radical indo-europeu (*bher) que significaria «surdir»,<br />

«brotar» (falando-se de água) e teria estado na origem de borne, no sentido<br />

de «fonte». (Os asteriscos colocados antes das palavras anteriores indicam que<br />

essas formas não estão atestadas, tendo sido reconstituídas pelos filólogos.)<br />

Beati pauperes spiritu<br />

(Bem-aventurados os pobres em espírito)<br />

Assim se exprime Cristo no começo do Sermão da Montanha (Evangelho<br />

de S. Mateus, V, 3). A ocasião era bem boa para que os mordazes de<br />

toda a espécie conseguissem resistir à tentação de fazer troça: os<br />

40


COGITO ERGO SUM<br />

«pobres em espírito» tornaram-se os «pobres de espírito» e, depois, os<br />

«simples de espírito», para se chegar finalmente aos «felizes imbecis».<br />

Recordemos que o substantivo depreciativo cretino vem da palavra cristão<br />

(cf. Flagitia cohærentia nomini), que se usou para gozar com os fiéis de<br />

Cristo. Será verdade que «é próprio do génio fornecer ideias aos cretinos»,<br />

como declara Aragon no seu Traité de style 16 ?<br />

Beati possidentes<br />

(Felizes aqueles que possuem)<br />

Adágio latino pelo qual Bismarck, ao que parece, sentia afeição.<br />

Formalmente, tal frase parece opor-se a Beati pauperes spiritu. No entanto,<br />

nada parece impedir que alguém seja rico e, todavia, pobre em espírito.<br />

É-se, então, duplamente feliz. Da mesma forma, existem decerto pobres de<br />

espírito, imbecis felizes, perfeitamente afortunados. Pode também ser-se rico<br />

em espírito e miserável, mas não é aconselhável. Ser ao mesmo tempo<br />

rico em espírito e rico em termos materiais comporta, contudo, algumas<br />

vantagens.<br />

Bella matribus detestata<br />

(Guerras detestadas pelas mães)<br />

Expressão de Horácio (Odes, I, 1, 24, 25). «Meu Deus, quão bela é a<br />

guerra», dizia Guillaume Apollinaire. A guerra é uma das paixões mais<br />

antigas. Agrada aos governantes, aos políticos, aos militares, aos imbecis.<br />

Desagrada aos seres humanos, mas isso não tem muita importância.<br />

Auguste Barbier (1805-1882), poeta de estilo «vigoroso até à crueza»,<br />

espécie de Courbet da poesia, está bem esquecido hoje em dia. Foi, no<br />

entanto, ele quem reabilitou o ritmo jâmbico e chocou os burgueses com a<br />

sua «veia quente e lodosa» e as suas «declarações roucas e descompostas»,<br />

segundo os julgamentos do seu tempo, aos quais respondeu com as seguintes<br />

palavras:<br />

É que a liberdade não é uma condessa<br />

Do nobre bairro Saint-Germain. 17<br />

16 Tratado do Estilo, tradução de Júlio Henriques, Lisboa, Antígona, 1995.<br />

17 No original: «C’est que la liberté n’est pas une comtesse / Du noble faubourg<br />

Saint-Germain.» (Ïambes et Poèmes, 1831).<br />

41


ORLANDO DE RUDDER<br />

Levado pelo generoso sopro de Julho de 1830, o poeta escreveu este<br />

verso a propósito da imunda coluna Vendôme:<br />

42<br />

Aquele bronze que as mães jamais observam. 18<br />

O que não impede a opinião do sinistro Joseph de Maistre:<br />

A guerra é, portanto, divina, visto ser uma lei do mundo.<br />

Tal declaração condensa, ao mais alto nível, o espírito retrógrado. Primeiro,<br />

glorifica a guerra, o que já não é nada mau. Depois, deixa subentender que<br />

devemos submeter-nos às leis do mundo. Ora, qualquer actividade humana<br />

consiste em desviá-las, em violá-las, em subvertê-las, em fazer com que não<br />

as soframos, ou, pelo menos, em evitar sofrer os seus inconvenientes. Essa<br />

santa revolta constitui certamente aquilo que mais nos distingue dos<br />

animais. Essa «recusa em obtemperar» transforma-nos em «ladrões de fogo»,<br />

insubmissos, filhos de Prometeu, e é assim que o progresso técnico vence a<br />

inércia, que as leis corrigem as desigualdades naturais, que a gastronomia<br />

sublima a necessidade de alimentação e que o erotismo magnifica as banais<br />

funções de reprodução da espécie...<br />

Na época galo-romana, a paz durou, sem dúvida, um certo tempo, visto<br />

que a palavra latina bellum, designando a guerra, não pegou em francês.<br />

Tal palavra desapareceu com a organização militar romana. As invasões<br />

germânicas ofereceram aos franceses tanto a palavra *werra como a coisa<br />

propriamente dita. *Werra está na origem de war em inglês, de guerra em<br />

espanhol, português e outras línguas.<br />

Infelizmente, a guerra continua. O desejo de assassínio colectivo ainda<br />

não encontrou a sua sublimação. Proíbe-se qualquer erotismo nos espectáculos<br />

para jovens, mas autorizam-se cenas bem sangrentas de massacres e<br />

combates.<br />

Vá, abandonemos tal assunto: os exércitos recrutam e ainda há jovens a<br />

quererem tornar-se militares. A psiquiatria moderna não encontrou ainda<br />

qualquer remédio para uma tão perigosa neurose. O desastre continua.<br />

Ouçamos as palavras de Victor Hugo, nesta bela quadra retirada de Chansons<br />

des rues et des bois [Canções das Ruas e dos Bosques]:<br />

Desde há seis mil anos, a guerra<br />

Agrada aos povos quereladores,<br />

E Deus perde o seu tempo a fazer<br />

As estrelas e as flores. 19<br />

18 «Ce bronze que jamais ne regardent les mères.»<br />

19 «Depuis six mille ans, la guerre / Plaît aux peuples querelleurs, / Et Dieu perd son<br />

temps à faire / Les étoiles et les fleurs.»

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!