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Aristeu Elisandro Machado Lopes - Universidade Estadual de ...

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AS ALEGORIAS FEMININAS DA REPÚBLICA NA IMPRENSA ILUSTRADA. RIO<br />

DE JANEIRO, SÉCULO XIX.<br />

Consi<strong>de</strong>rações iniciais<br />

<strong>Aristeu</strong> <strong>Elisandro</strong> <strong>Machado</strong> <strong>Lopes</strong><br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas<br />

aristeuufpel@yahoo.com.br<br />

Em 1870, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, um grupo <strong>de</strong> homens das mais variadas ativida<strong>de</strong>s<br />

profissionais, como médicos, jornalistas e, sobretudo, advogados se reuniram e fundaram um<br />

novo partido, o Partido Republicano (BOHERER, 2000, p.45). Iniciava com a nova agremiação<br />

política a campanha republicana, ou seja, oficialmente, surgia um movimento contrário ao<br />

Império e a Monarquia. Logo, o novo partido lançou um órgão <strong>de</strong> imprensa para difundir seu<br />

i<strong>de</strong>ário e outros partidos fundados nas <strong>de</strong>mais províncias nos anos seguintes 1 .<br />

Ao longo da primeira década <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s do Partido Republicano no Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

surgiram vários periódicos ilustrados, alguns circularam pouco tempo, como Comedia Social<br />

(1870-1871) e outros por vários anos. Entre estes, A Vida Fluminense (1868-1875), O<br />

Mosquito (1869-1877), O Mequetrefe (1875-1893), Revista Illustrada (1876-1898), além da<br />

Semana Illustrada, que já circulava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1860 permanecendo até 1876. Todos esses<br />

pequenos jornais <strong>de</strong> circulação semanal tinham o humor como a forma primordial <strong>de</strong> abordar<br />

as notícias, eventos e emitir suas opiniões. A política do tempo foi um dos assuntos que se<br />

<strong>de</strong>stacaram nas páginas ilustradas dos periódicos. Os republicanos não foram exceção, ao<br />

contrário, mereceram a atenção dos caricaturistas dos periódicos. Analisar como as ativida<strong>de</strong>s<br />

republicanas foram veiculadas nas páginas <strong>de</strong> dois <strong>de</strong>sses periódicos é o objetivo <strong>de</strong>ste<br />

trabalho. As ilustrações direcionadas aos republicanos quase sempre se valiam dos principais<br />

elementos do conjunto da simbologia republicana: a alegoria feminina da República e o<br />

barrete frígio. Ambos foram adaptados do arsenal simbólico revolucionário e republicano<br />

francês do final do século XVIII. Estes símbolos foram divulgados com a Revolução Francesa<br />

e, seu emprego foi ampliado, sobretudo, a partir da Primeira República proclamada em 1792 e<br />

no século XIX 2 .<br />

As comadres da Semana Illustrada<br />

III Encontro Nacional <strong>de</strong> Estudos da Imagem<br />

03 a 06 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2011 - Londrina - PR<br />

O periódico Semana Illustrada foi uma iniciativa <strong>de</strong> Henrique Fleiuss, um imigrante<br />

prussiano que logo após sua chegada ao Rio <strong>de</strong> Janeiro fundou uma litografia. Em 1860 vinha<br />

a público o primeiro exemplar da Semana que permaneceria até 1876 com ativida<strong>de</strong> regular<br />

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III Encontro Nacional <strong>de</strong> Estudos da Imagem<br />

03 a 06 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2011 - Londrina - PR<br />

<strong>de</strong> circulação. A Semana foi o primeiro periódico que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado bem sucedido,<br />

<strong>de</strong>vido a sua circulação regular e longevida<strong>de</strong>.<br />

Henrique Fleiuss, segundo Herman Lima tomava parte da “vida palaciana”, ou seja,<br />

que ele tinha relações <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e respeito pelo Imperador Dom Pedro II e sua família.<br />

Ressalta, ainda que a sua vida pessoal refletiu-se em sua obra artística e que apesar <strong>de</strong><br />

algumas vezes direcionar sua sátira aos “homens da política conservadora, jamais lhe permitiu<br />

incorporar-se ao grupo <strong>de</strong> <strong>de</strong>molidores do trono” (LIMA, 1964, p.748); tal grupo era<br />

constituído pelos <strong>de</strong>mais caricaturistas da Corte. Fleiuss foi muito satirizado pelos <strong>de</strong>mais<br />

caricaturistas que atuavam na Corte concomitante a ele, no entanto, não foi averiguado uma<br />

crítica direta a sua “vida palaciana” 3 .<br />

Para Lucia Guimarães o respeito e as <strong>de</strong>ferências ao Império não <strong>de</strong>vem ser<br />

consi<strong>de</strong>rados como subservientes ao governo e nem como uma falta <strong>de</strong> espírito crítico do<br />

caricaturista: “o lápis ágil e <strong>de</strong> ponta afiada <strong>de</strong> Henrique Fleiuss estava sempre pronto para<br />

satirizar as práticas pouco recomendadas dos políticos e das elites dirigentes” (GUIMARÃES,<br />

2006, p.92). Foi possível averiguar que houve sim um certo cuidado do caricaturista ao<br />

abordar a Família Imperial. Contudo, a autora está correta, uma vez que esse cuidado não<br />

significou que críticas a <strong>de</strong>terminados setores da vida política do Império fossem sim<br />

realizadas no periódico. Já ao que se refere aos republicanos, a sátira foi permanente. Se as<br />

suas relações com a Monarquia conduziam a sua conduta na elaboração <strong>de</strong> suas ilustrações,<br />

como coloca Lima, a critica ao i<strong>de</strong>ário republicano po<strong>de</strong>ria ser justificada apenas por essa<br />

atitu<strong>de</strong>. Entretanto, é possível consi<strong>de</strong>rar que a sátira produzida por Fleiuss aos republicanos<br />

foi também executada a partir das suas convicções políticas. Dessa forma, passava aos<br />

leitores, com as suas imagens, aquilo que consi<strong>de</strong>rava o caminho político correto, o qual<br />

<strong>de</strong>veria ser conduzido pela Monarquia e não por uma República.<br />

Parte das críticas aos republicanos nas páginas da Semana se dava acompanhada <strong>de</strong><br />

outra, direcionada aos Liberais radicais. Estes constituíam uma ala do Partido Liberal que em<br />

1868 após a queda do Gabinete Zacarias <strong>de</strong> Góis Monteiro, resolveu lançar um manifesto com<br />

uma pauta <strong>de</strong> reformas sugeridas ao partido (CARVALHO, 2007, p.24). Para propagar suas<br />

i<strong>de</strong>ias criaram o Centro Liberal e lançaram jornal oficial, Reforma. Os Jornais Reforma, dos<br />

liberais, e Republica dos republicanos apareciam nas ilustrações <strong>de</strong> Fleiuss associados, como<br />

<strong>de</strong>fensores das mesmas i<strong>de</strong>ias. Parte <strong>de</strong>sta atitu<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve as posições <strong>de</strong> alguns membros do<br />

partido Republicano que apesar <strong>de</strong> atuarem nas fileiras republicanas seguiam carreira política<br />

abrigados no Liberal. O melhor exemplo é Joaquim Saldanha Marinho que teve sua trajetória<br />

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política marcada pela <strong>de</strong>fesa da República, mas se candidatou e foi eleito como liberal<br />

(HOLANDA, 2005, p.299-302).<br />

III Encontro Nacional <strong>de</strong> Estudos da Imagem<br />

03 a 06 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2011 - Londrina - PR<br />

Uma das ilustrações veiculadas no periódico que faz essa associação apresentava duas<br />

alegorias femininas da República simbolizando os jornais República e Reforma 4 . (Figura 1)<br />

Na imagem as duas alegorias foram transformadas em duas comadres. Ambas<br />

possuem traços semelhantes e acentuados: corpo avantajado, seios e mãos agigantadas; a<br />

República ostenta seu barrete frigio e possui uma expressão mais caricata, seu sorriso largo<br />

entrega seu caráter zombeteiro (parece que está gargalhando), pois ela parece se divertir com<br />

o conteúdo que será publicado na folha. Sua “comadre” Reforma tem uma expressão mais<br />

séria, ela está concentrada no <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> seu trabalho em misturar “veneno” com<br />

“petróleo”. Petróleo nesse sentido po<strong>de</strong> ser entendido como algo falso ou ainda fantasioso o<br />

que caracterizaria, na visão do caricaturista, as notícias veiculadas pelo jornal. A palavra<br />

petróleo aplicada na i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> algo como falso, por exemplo as notícias da Reforma, na<br />

visão da Semana, po<strong>de</strong> ter surgido no século XIX <strong>de</strong>vido às várias tentativas frustradas <strong>de</strong><br />

encontrar o produto no território brasileiro, expectativa que <strong>de</strong>ve ter gerado várias notícias<br />

falsas. As primeiras tentativas ocorreram em 1858 em territórios do estado da Bahia, contudo<br />

foi somente no final dos anos 1930 que a produção petrolífera iniciou em terras brasileiras 5 .<br />

A caricatura é uma forma artística que emprega o humor para apresentar uma<br />

<strong>de</strong>turpação <strong>de</strong> uma pessoa, acentuando seus traços físicos que po<strong>de</strong>riam passar <strong>de</strong>spercebidos<br />

resultando em algo exagerado (BELUZZO, 1992) (FONSECA, 1999). A ilustração é consi<strong>de</strong>rada<br />

uma caricatura, no entanto, ela não trata <strong>de</strong> uma pessoa, as duas comadres são caricaturas <strong>de</strong><br />

duas alegorias femininas que representavam os jornais República e Reforma ou ainda po<strong>de</strong>m<br />

ser vistas como uma caricatura dos i<strong>de</strong>ais que eram <strong>de</strong>fendidos pelos simpatizantes das folhas;<br />

o que foi tomado <strong>de</strong> maneira mais acentuada no caso da República. A legenda da ilustração<br />

narrava a ação que se passava: “As duas comadres República e Reforma preparando as suas<br />

armas para um conflito, uma guerra, um bombar<strong>de</strong>amento, e Deus sabe o que mais, dando<br />

graças à Providência por ter fornecido este pano para mangas que enche diariamente algumas<br />

colunas”.<br />

A legenda <strong>de</strong>ixava clara a posição crítica adotada pela Semana em relação aos dois<br />

órgãos políticos. A palavra comadre certamente foi empregada como sinônima <strong>de</strong> alcoviteira<br />

já que no ponto <strong>de</strong> vista do periódico os assuntos abordados pelos jornais eram boatos ou<br />

notícias aumentadas, petróleos. A mesma atitu<strong>de</strong> foi verificada num artigo chamado “Notícias<br />

falsas” no qual o articulista criticava alguns jornais da Corte por publicarem noticiários falsos.<br />

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Figura 1: Duas comadres<br />

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Legendas: As duas comadres Republica e Reforma preparando as suas armas para um conflito, uma<br />

guerra, um bombar<strong>de</strong>amento, e Deus sabe o que mais, dando graças a Providência por ter fornecido<br />

este pano para mangas que enche diariamente algumas colunas<br />

Fonte: Semana Illustrada, Rio <strong>de</strong> Janeiro, n .582, p.4653, 04 fev. 1872. Acervo: AEL-UNICAMP<br />

Tanto a República como a Reforma não escaparam. Sobre a primeira, era pedido que fosse<br />

mais exata na publicação das novida<strong>de</strong>s sobre os abalroamentos das barcas, pois noticiavam<br />

“ferimentos graves <strong>de</strong> indivíduos em brigas individuais, quando estas feridas não passam <strong>de</strong><br />

um arranhão” (Semana Illustrada, 05/11/1871).<br />

O autor entendia o procedimento da redação do jornal visto que “assim é a mocida<strong>de</strong>”<br />

o que <strong>de</strong>notava uma crítica aos redatores consi<strong>de</strong>rados por ele jovens <strong>de</strong>mais para estar à<br />

frente <strong>de</strong> um órgão político; a parte referente à República encerrava aconselhando os redatores<br />

a acalmarem o espírito. Ao se referir a Reforma, <strong>de</strong>stacava que os boatos acabaram “porque já<br />

o título os <strong>de</strong>clarou falsos, e ainda mais porque a Reforma reconheceu que ela toda estava<br />

composta <strong>de</strong> boatos”.<br />

A ilustração e o artigo veiculados na Semana Illustrada po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados como<br />

anti-republicanos ou ainda anti i<strong>de</strong>ias novas, se se consi<strong>de</strong>rar também o manifesto do Centro<br />

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Liberal que fundou o jornal Reforma. A posição verificada aqui não foi isolada, em outros<br />

momentos o periódico veiculou ilustrações que tinham por objetivo criticar i<strong>de</strong>ias novas,<br />

revolucionárias, tanto as republicanas como aquelas propostas por membros liberais. É<br />

possível que Henrique Fleiuss consi<strong>de</strong>rasse todos esses elementos como perigosos para as<br />

bases que sustentavam o Império e, como amigo do Imperador, tentava frear as suas<br />

campanhas com a veiculação <strong>de</strong> imagens contrárias a eles.<br />

A alegoria produzindo “alguma coisa <strong>de</strong> bom” em O Mequetrefe<br />

O primeiro número do periódico O Mequetrefe foi lançado em janeiro <strong>de</strong> 1875. O<br />

jornal foi uma iniciativa <strong>de</strong> Pedro Lima e Eduardo Joaquim Correa; este se tornou o único<br />

proprietário do jornal em 1879 e se manteria nessa condição até sua morte em maio <strong>de</strong> 1891;<br />

a viúva assumiu os negócios do marido, colocando seu cunhado, José Joaquim Correa, no<br />

comando do jornal. O jornal encerrou sua circulação em Janeiro <strong>de</strong> 1893.<br />

Ao longo dos anos <strong>de</strong> sua circulação o periódico contou com um número variado <strong>de</strong><br />

colaboradores, como Olavo Bilac, Artur Azevedo, Henrique <strong>Lopes</strong> <strong>de</strong> Mendonça, Lúcio <strong>de</strong><br />

Mendonça, Raimundo Correia, Filinto <strong>de</strong> Almeida e Lins <strong>de</strong> Albuquerque, este exercendo o<br />

cargo <strong>de</strong> diretor por um <strong>de</strong>terminado tempo. Entre os caricaturistas, passaram pelo periódico<br />

Candido <strong>de</strong> Faria, Antonio Alves do Vale, Joseph Mill, Aluisio Azevedo que mais tar<strong>de</strong><br />

abandonaria os <strong>de</strong>senhos para se <strong>de</strong>dicar a literatura 6 e Pereira Netto (LIMA, 1964, p.116).<br />

Este, se retirou do periódico para substituir Angelo Agostini na Revista Illustrada após seu<br />

afastamento <strong>de</strong>vido a uma viagem para Paris em 1888 (BALABAN, 2005, p.48-51).<br />

O arranjo do jornal no que toca às questões políticas foi evi<strong>de</strong>nciado nos primeiros<br />

números do periódico. A redação afirmava “não somos republicanos... mas também não somos<br />

monarquistas. Em princípios políticos, que se prendam a formas <strong>de</strong> governo, assim como em questões<br />

<strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>, nem queremos ser vistos, nem cheirados” (O Mequetrefe, 15/04/1875). Na<br />

sequência do texto asseveravam que combatiam o po<strong>de</strong>r pessoal: “combatemos, por exemplo, o<br />

po<strong>de</strong>r pessoal que é um excesso da monarquia constitucional”. Em outras palavras, a batalha era<br />

dirigida ao Imperador Dom Pedro II e aos seus ministros, principalmente o Presi<strong>de</strong>nte do<br />

Conselho <strong>de</strong> Ministros, escolhido pelo Imperador.<br />

Já suas ilustrações se valeram dos símbolos republicanos. O segundo número do<br />

periódico, por exemplo, trazia na primeira página dois homens ajoelhados e com barrete<br />

frígio. O recurso aos símbolos republicanos, contudo, era a melhor maneira para criticar a<br />

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Monarquia, uma vez que as duas formas <strong>de</strong> governo são adversárias e o emprego <strong>de</strong><br />

elementos que as caracterizam, colocados contrapostos, configuram e remetem os leitores à<br />

sátira pretendida pelo caricaturista.<br />

A alegoria Feminina da República foi constantemente aproveitada pelos caricaturistas<br />

do periódico na realização <strong>de</strong> suas sátiras ao Império. A questão republicana, por sua vez,<br />

também foi comentada. Um exemplo <strong>de</strong> alegoria que criticava o Império apareceu na primeira<br />

página do dia 07 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1875. A sátira, contudo, se dirigia a uma das instituições<br />

relacionadas a Monarquia, a Igreja católica. A imagem mostra a alegoria feminina<br />

espremendo um membro católico (Figura 2). A alegoria não apresenta nenhuma i<strong>de</strong>ntificação<br />

junto ao corpo; pressupõe-se que se trata daquela da liberda<strong>de</strong> uma vez que é esta a palavra<br />

que i<strong>de</strong>ntifica o líquido que sai do homem que é por ela espremido. Ela é bastante simples; os<br />

traços <strong>de</strong> seu corpo e <strong>de</strong> suas vestes são tênues em relação ao fundo do <strong>de</strong>senho o que lhe dá<br />

um aspecto fantasmagórico. À cabeça, embora o tracejado seja um tanto fraco, é possível<br />

i<strong>de</strong>ntificar claramente o barrete frígio, enquanto a face é <strong>de</strong>lineada <strong>de</strong> forma que a <strong>de</strong>ixa jovial<br />

e <strong>de</strong>licada, se comparada com os traços do rosto do homem. Sua mão não traz nenhum dos<br />

outros atributos republicanos, mas ela é firme e segura com força a prensa da qual sairá, no<br />

final, a liberda<strong>de</strong>.<br />

A legenda explicava a ação que se <strong>de</strong>senvolvia no <strong>de</strong>senho: “Até que lhe façam como<br />

a uva, segundo diz S. Agostinho: espremê-la para que produza alguma coisa <strong>de</strong> bom”. Quem<br />

estava sendo espremida era a Igreja e o algo <strong>de</strong> bom que apareceria era a Liberda<strong>de</strong>. O<br />

homem representa a Igreja e a referência é feita através do emprego <strong>de</strong> um dos símbolos<br />

usados por membros da hierarquia da Igreja Católica, a Mitra. Assim, é possível que ele não<br />

seja um padre, e sim um bispo, visto que a este cargo eclesiástico cabe o uso <strong>de</strong>ste chapéu alto<br />

e <strong>de</strong> pontas, símbolo do po<strong>de</strong>r espiritual que é investido num bispo, que são os representantes<br />

dos apóstolos na terra. O conjunto da imagem não tratava o i<strong>de</strong>ário republicano – satirizavam<br />

a Questão Religiosa 7 .<br />

Essa ilustração é apenas uma entre tantas outras veiculadas nesse periódico sobre o<br />

conflito; ela é importante aos propósitos <strong>de</strong>ste artigo por causa da alegoria feminina que foi<br />

empregada para abordar a questão. O uso da alegoria não se referia diretamente às ativida<strong>de</strong>s<br />

republicanas, como era recorrente nos periódicos, ela foi adaptada para um contexto novo que<br />

consi<strong>de</strong>rava a Igreja como opressora, como um atraso, que emperrava o progresso do país e<br />

que por isso <strong>de</strong>veria ser “espremida”, acabando com o jugo da Igreja sobre o Estado. Em<br />

outras palavras, a separação entre a Igreja e o Estado representava a conquista da liberda<strong>de</strong>, a<br />

qual viria com a República.<br />

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Figura 2: A Alegoria espremendo o bispo<br />

Legenda: Até que lhe façam como a uva, segundo diz S. Agostinho: espremê-la para que produza<br />

alguma coisa <strong>de</strong> bom.<br />

Fonte: O Mequetrefe, Rio <strong>de</strong> Janeiro, n.41, p.1, 07 out. 1875. Acervo: AEL-UNICAMP<br />

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O periódico apregoava tanto essa premissa que chegou a ilustrar em um <strong>de</strong> seus<br />

números o seu personagem símbolo, entregando para Dom Pedro II o livro “A Igreja e o<br />

Estado”. A obra reunia uma série <strong>de</strong> crônicas escritas por Ganganelli, pseudônimo <strong>de</strong><br />

Joaquim Saldanha Marinho e publicadas no Jornal do Commércio entre 1873 e 1875, sendo,<br />

mais tar<strong>de</strong>, agrupadas em quatro volumes (BALABAN, 2005, p.227).<br />

Retornando à imagem, ela não apresenta o seu autor, ou melhor, não apresenta quem a<br />

reproduziu nas páginas <strong>de</strong> O Mequetrefe, visto que é uma cópia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> Rafael<br />

Bordallo Pinheiro, publicada em O Mosquito em 02 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1875. A informação foi<br />

dada com a reprodução que revela se tratar <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senho copiado do jornal congênere e<br />

remete o leitor para um texto explicativo na página dois. Em O Mosquito, o <strong>de</strong>senho foi<br />

publicado menor, ao lado <strong>de</strong> outros que abordavam assuntos variados, sendo um <strong>de</strong>les a<br />

Questão Religiosa; na reprodução O Mequetrefe <strong>de</strong>u para ele um <strong>de</strong>staque “para que ele dê<br />

mais na vista; queremos que ele avulte aos olhos dos nossos assinantes essa feliz prova que<br />

enceta o Mosquito”. O jornal revelava ainda que o <strong>de</strong>senho concebido por Bordallo Pinheiro<br />

era inspirado em outro, publicado na França por H.Meyer. O <strong>de</strong>bate republicano também<br />

apareceu no texto ao comentar que a “rapariga” que espreme o bispo: “é a própria liberda<strong>de</strong>, é<br />

a república do futuro”. Somente ela po<strong>de</strong>ria acabar com o representante do “ultramontanismo<br />

retrógrado” possibilitando a liberda<strong>de</strong> da qual o país estava apartado: “só a República po<strong>de</strong><br />

salvar o Brasil das garras do ultramontanismo 8 ”.<br />

A imagem permite algumas interpretações não só em relação ao posicionamento <strong>de</strong> O<br />

Mequetrefe como também ao seu “comportamento”. Num primeiro momento <strong>de</strong>monstra a<br />

circulação das ilustrações que eram concebidas num periódico e copiadas por outros artistas,<br />

ativida<strong>de</strong> corriqueira no século XIX 9 . No caso <strong>de</strong>ssa imagem, sua inspiração começou no<br />

<strong>de</strong>senho <strong>de</strong> Bordallo Pinheiro que, por sua vez, se guiou num artista francês. A reprodução<br />

ainda atesta que, num instante inicial, as relações entre os dois periódicos eram amistosas.<br />

Possivelmente, a cópia também serviu para dar as boas vindas ao colega caricaturista que<br />

acabava <strong>de</strong> chegar no Brasil.<br />

Além <strong>de</strong> referendar a fonte da ilustração, o periódico incentivava ainda mais a<br />

campanha contra os bispos, dando notorieda<strong>de</strong> à causa com a veiculação <strong>de</strong> ilustrações que<br />

satirizavam abertamente os representantes da Igreja Católica. No final, ao revelarem que a<br />

alegoria feminina da liberda<strong>de</strong> é a República do futuro, acabaram fazendo referência aos<br />

republicanos. A solução seria a instalação <strong>de</strong> um governo republicano como a única forma <strong>de</strong><br />

acabar com a subordinação do país perante a religião, aliança consi<strong>de</strong>rada um retrocesso. O<br />

texto encerrava afiançando que este era o pensamento colocado no <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> Bordallo<br />

422


Pinheiro e compartilhado em O Mosquito. No entanto, ao reproduzirem o <strong>de</strong>senho, acabavam<br />

igualmente enfatizando – talvez não propositalmente – a campanha dos republicanos.<br />

Apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar não ser republicano, o jornal seguiria sendo relacionado à<br />

propaganda republicana possivelmente por causa das ilustrações que publicava. Essa situação<br />

foi enfrentada, sobretudo, por sua posição ambígua, ou seja, seus responsáveis se <strong>de</strong>claravam<br />

não republicanos na parte textual e utilizavam a simbologia republicana em suas ilustrações.<br />

Essa dicotomia seguiu em suas páginas ao longo <strong>de</strong> seu primeiro ano, como exemplificam o<br />

texto e a imagem analisados.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

As duas ilustrações analisadas acima são apenas dois exemplos <strong>de</strong> um conjunto maior<br />

<strong>de</strong> imagens veiculadas na imprensa ilustrada do Rio <strong>de</strong> Janeiro nas últimas décadas do século<br />

XIX. Os dois <strong>de</strong>senhos, no entanto, <strong>de</strong>monstram que a questão republicana estava presente<br />

nas discussões políticas ocorridas no Corte, o centro político do Império do Brasil, e, <strong>de</strong>vido a<br />

sua importância, mereciam ser comentadas nas páginas dos periódicos.<br />

A primeira ilustração publicada na Semana Illustrada apresentava uma posição mais<br />

direta e crítica aos republicanos. Não somente a eles, os liberais radicais acabavam associados<br />

aos republicanos e seus jornais se tornavam duas comadres. A sátira presente na ilustração <strong>de</strong><br />

maneira explicita não foi encontrada no segundo <strong>de</strong>senho. Neste a leitura da Alegoria<br />

Feminina recebeu outro significado, em O Mequetrefe ela surge para satirizar o Império e<br />

atacar a Igreja Católica. A República, o seu i<strong>de</strong>al, igualmente recebe outro tratamento, se<br />

antes, na imagem da Semana foi vista com <strong>de</strong>saprovação, nesta, em O Mequetrefe, ela é<br />

consi<strong>de</strong>rada como a única capaz <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r a liberda<strong>de</strong> que o Brasil necessita para alcançar<br />

o progresso.<br />

Dessa forma, é possível consi<strong>de</strong>rar que a imprensa ilustrada do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

representada por essas duas ilustrações, possibilita averiguar o <strong>de</strong>senvolvimento da política <strong>de</strong><br />

seu tempo, as discussões e os i<strong>de</strong>ários <strong>de</strong>fendidos ou combatidos. Essas ilustrações, <strong>de</strong> igual<br />

maneira, permitem averiguar que a posição dos caricaturistas e colaboradores dos periódicos<br />

não foi unânime, ainda, <strong>de</strong>monstram como elas foram transmitidas aos seus leitores como<br />

uma leitura da realida<strong>de</strong> na qual estavam inseridos.<br />

Notas<br />

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1<br />

Após a fundação do Partido Republicano no Rio <strong>de</strong> Janeiro, surgiram outras agremiações republicanas no<br />

Brasil como o Clube Republicano <strong>de</strong> São Paulo em 1872 e o Partido Republicano do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul em<br />

1882. Sobre a atuação republicana nessas e nas <strong>de</strong>mais províncias do Império ver: (BOHERER, 2000).<br />

2<br />

Sobre a Simbologia republicana no contexto francês ver: (AGULHON, 1979) (STAROBINSKI, 1980).<br />

3<br />

Essa questão foi melhor <strong>de</strong>senvolvida em: (LOPES, 2010, p.112-114)<br />

4<br />

Essa associação foi constante na Semana Illustrada e surgiu em outras ilustrações <strong>de</strong> Henrique Fleiuss.<br />

5<br />

Sobre a história do petróleo ver:<br />

Disponível em: Acesso em: 21/01/2008.<br />

6<br />

Aluisio Azevedo, contudo, ao optar pela literatura, se tornou um dos literatos mais conhecidos do século XIX.<br />

É <strong>de</strong> sua autoria, por exemplo, o romance naturalista O Mulato (1881), Casa <strong>de</strong> Pensão (1884) e O Cortiço<br />

(1890).<br />

7<br />

Em 1872 a Igreja se envolveu num conflito com o governo imperial que ficaria conhecido como a Questão<br />

Religiosa, nas qual algumas notabilida<strong>de</strong>s da política da época, como o Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Branco, João Alfredo e<br />

o Imperador Dom Pedro II tomaram parte. Do lado da Igreja estavam envolvidos os Bispos do Rio <strong>de</strong> janeiro, <strong>de</strong><br />

Pernambuco e do Pará e até o Papa Pio IX. A imprensa do Rio <strong>de</strong> Janeiro e membros das casas maçônicas<br />

também acabaram se envolvendo; da mesma forma que O Mosquito e A Vida Fluminense, O Mequetrefe também<br />

aproveitou o momento para criticar a união entre a Igreja e o Estado.<br />

8<br />

Uma reforma religiosa iniciada em meados do século XIX passou a apregoar a doutrina <strong>de</strong> infalibilida<strong>de</strong> do<br />

Papa, e os seus responsáveis passaram a ser chamados ultramontanos, <strong>de</strong>nominação dada àqueles que <strong>de</strong>fendiam<br />

a centralização da Igreja em Roma e no Papa. (VIEIRA, 1980).<br />

9<br />

A Revista Illustrada, por exemplo, teve algumas ilustrações reproduzidas pelo periódico A Ventarola <strong>de</strong><br />

Pelotas-RS. (LOPES, 2006, p.47-59).<br />

Referências bibliográficas:<br />

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