A Casa dos Fantasmas - Volume II, de Luiz Augusto Rebello da Silva
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travessas por on<strong>de</strong> as multidões se escoam, fugindo feri<strong>da</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>mencia.<br />
Os clamores, os gritos <strong>de</strong> angustia, as interjeições <strong>de</strong> pavor cortam os ares, e<br />
ensur<strong>de</strong>cem os ouvi<strong>dos</strong>. Mulheres e crianças arrasta<strong>da</strong>s no tropel, meio suffoca<strong>da</strong>s,<br />
palli<strong>da</strong>s e quasi moribun<strong>da</strong>s, alçam em vão os braços supplicantes, e <strong>de</strong>sapparecem<br />
perdi<strong>da</strong>s <strong>de</strong>pois nos rolos, que se ennovellam e arremessam a ca<strong>da</strong> passo.<br />
A tropa, cujas alas vergam e se rompem com o embate <strong>da</strong> plebe, é corta<strong>da</strong> em to<strong>dos</strong> os<br />
senti<strong>dos</strong>, e <strong>de</strong>bal<strong>de</strong> tenta reunir-se. Os artilheiros <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>na<strong>dos</strong> ce<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>samparam as<br />
carretas.<br />
Colhi<strong>da</strong> no centro do bulcão popular, a procissão rota e dispersa em mil fragmentos, que<br />
vozeam e se revolvem, como troços semi-vivos <strong>de</strong> um reptil, alastra as ruas <strong>de</strong> cruzes,<br />
<strong>de</strong> tochas, e <strong>de</strong> insignias, calca<strong>da</strong>s por milhares <strong>de</strong> pés. Fra<strong>de</strong>s, padres, magistra<strong>dos</strong>,<br />
cavalleiros, irmãos, e penitentes bra<strong>da</strong>m, imploram, atropellam-se, e ora doba<strong>dos</strong> no ar,<br />
ora estatela<strong>dos</strong> em terra, livi<strong>dos</strong>, moi<strong>dos</strong>, e <strong>de</strong>scompostos pelejam por se arrancarem a<br />
este pelago tempestuoso, em que abafam, buscando [15] por similhante forma refugio<br />
contra o perigo.<br />
O prelado, que trazia a custodia, e o pomposo sequito que ro<strong>de</strong>ava o pallio, vê <strong>de</strong><br />
repente a praça torna<strong>da</strong> um mar procelloso, e ouve sobre o clamor geral as vozes <strong>dos</strong><br />
officiaes francezes man<strong>da</strong>ndo carregar as armas á guar<strong>da</strong> <strong>de</strong> grana<strong>de</strong>iros, e accen<strong>de</strong>r os<br />
morrões aos artilheiros <strong>da</strong> bateria posta<strong>da</strong> junto do adro. Attonitos e paralyza<strong>dos</strong> um<br />
instante, o medo presta-lhes azas <strong>de</strong>pois. Luctam, repellem-se, volvem a traz, e<br />
rompendo, como cunha viva, por meio <strong>da</strong> multidão, que transbor<strong>da</strong> do templo, vão cair<br />
uns sobre os outros <strong>de</strong> roldão na sacristia, <strong>de</strong>ixando o pavimento juncado <strong>de</strong> thuribulos,<br />
<strong>de</strong> capas <strong>de</strong> asperges, <strong>de</strong> roquetes dilacera<strong>dos</strong>, <strong>de</strong> chapéus <strong>de</strong> plumas, e <strong>de</strong> mantos <strong>da</strong>s<br />
or<strong>de</strong>ns militares.<br />
A cavallaria <strong>de</strong> Junot une as fileiras. As largas espa<strong>da</strong>s <strong>dos</strong> sol<strong>da</strong><strong>dos</strong> reluzem por cima<br />
<strong>da</strong>s cabeças com lampejos terriveis. O povo agglomerado, entre a muralha que o atira<br />
sobre os cavallos, e o terror <strong>da</strong>s armas, que o ameaçam, solta horriveis clamores, peleja<br />
por abrir passagem, e augmenta o ruido, o sossobro, e a confusão do tumulto immenso.<br />
Não ha pincel, nem tintas que possam <strong>de</strong>senhar quadro tão medonho! Os gemi<strong>dos</strong>, os<br />
choros, as que<strong>da</strong>s, contrastam a ca<strong>da</strong> minuto com os lances comicos e os episodios<br />
risiveis. O medo inspira os ardis mais burlescos. O <strong>de</strong>sespero suggere os arbitrios mais<br />
violentos.<br />
As ruas e travessas proximas, similhantes a canaes rotos á furia <strong>da</strong>s aguas, engolem e<br />
<strong>de</strong>spejam incessantemente os ban<strong>dos</strong> variega<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> fugitivos, entre os quaes a<br />
egual<strong>da</strong><strong>de</strong> do terror acotovella os commen<strong>da</strong>dores e os toga<strong>dos</strong> com o operario, o fra<strong>de</strong><br />
e o farricouco pelo ju<strong>de</strong>u transido, ou pela collareja [16] tão veloz nos passos, como<br />
solta <strong>de</strong> lingua e prompta <strong>de</strong> gestos.<br />
Capotes, cabelleiras, chinós, sapatos, abas <strong>de</strong> far<strong>da</strong>s e <strong>de</strong> casacas, canhões e gollas<br />
bor<strong>da</strong><strong>da</strong>s, lenços, cintos, farrapos, <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as telas e <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os matizes em fim,<br />
coalham este campo <strong>de</strong> batalha, aon<strong>de</strong> os mortos, felizmente, isto é os que baqueiam,<br />
resuscitam logo ao beijarem o chão, e se levantam para disputar celeri<strong>da</strong><strong>de</strong> aos mais<br />
ligeiros. No meio <strong>dos</strong> alari<strong>dos</strong> e <strong>dos</strong> estrepitos, do centro d'este cahos rui<strong>dos</strong>o <strong>de</strong> furias,